Produção nacional de insumos é chave para acesso a medicamentos

04/06/2019, às 14:27 | Tempo estimado de leitura: 8 min
Por Luiza Pinheiro, assessora política do Inesc
Tramita na Câmara um PL visando obrigar a produção nacional de insumos para doenças negligenciadas. Contudo, objetivo deve ser a autonomia frente às oscilações do mercado farmacêutico

No último dia 23, foi aprovado pela Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados (CSSF) o Projeto de Lei 10096/18, que altera a Lei nº 8.080/9, para dispor sobre a produção nacional de insumos farmacêuticos ativos estratégicos para o tratamento de doenças negligenciadas.

De acordo com o texto do PL e o parecer da CSSF, um dos principais motivadores para sua elaboração foi a recente escassez de penicilina no mercado brasileiro frente ao aumento do número dos casos de sífilis. Foi necessária a adoção de medidas para evitar a falta do medicamento, como por exemplo, a autorização do Ministério da Saúde para aumentar o preço e estimular o mercado. Outros países também enfrentaram problemas com o desabastecimento de penicilina.

Isso porque a penicilina tem baixo valor comercial, por ser um princípio ativo antigo, de amplo uso e barato. Com isso, as empresas farmacêuticas não têm interesse em fabricá-lo, já que seu retorno financeiro é baixo. A orientação pelo lucro é ponto central do problema das doenças negligenciadas (como dengue, Chagas, tuberculose, hanseníase, malária entre outras).

O parecer da Comissão sintetiza o quadro: “o problema (das doenças negligenciadas) é particularmente grave em relação à disponibilidade de medicamentos, já que as atividades de pesquisa e desenvolvimento das indústrias farmacêuticas são principalmente orientadas pelo lucro, e o retorno financeiro exigido dificilmente seria alcançado no caso de doenças que atingem populações marginalizadas, de baixa renda e pouca influência política, localizadas, majoritariamente, nos países em desenvolvimento, como o Brasil ”.

O estudo do Inesc  sobre os recursos federais destinados à assistência farmacêutica (2013-2017) mostra que apesar do lucro das empresas farmacêuticas atingir cerca de cem bilhões de reais, e do setor receber subsídios fiscais de quase 10 bilhões de reais, isso não se traduz em redução do preço do medicamento para o consumidor final. A indústria farmacêutica não sentiu os efeitos da crise no Brasil, que levou a diversos cortes e contingenciamentos, inclusive na área da saúde. Mesmo assim, recursos públicos não deixaram de ser canalizados para esse setor em volumes vultosos e crescentes.

Considerações sobre o  PL

O PL estabelece, então, que os laboratórios farmacêuticos públicos deverão produzir os insumos ativos destinados a estas doenças. Quando a produção pública dos insumos não for possível, será autorizada a celebração de parcerias ou convênios com o mesmo objetivo.

Produzir princípios ativos nacionalmente é importante para evitar riscos de desabastecimento e diminuir a vulnerabilidade ao mercado e ao cenário internacional. Um diferencial brasileiro positivo é a existência de laboratórios farmacêuticos públicos que podem realizar esta atividade. Um bom exemplo da importância destes laboratórios e da produção pública local foi a política de combate a AIDS, na qual só foi possível oferecer tratamento – e não apenas a prevenção – de forma ampla, pois o país detinha a competência para produzir localmente.

O Brasil pôde, nesse sentido, usar esta competência para usufruir das flexibilidades estabelecidas no acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (mais conhecido por sua sigla em inglês, TRIPS). Uma delas é a licença compulsória, que permite a produção ou a importação de um medicamento genérico, forçando a concorrência e a queda dos preços. Essa medida foi utilizada apenas como uma ameaça no Brasil na década de 1990 e no início da década seguinte, o que levou a consideráveis reduções de preços dos medicamentos diante da possibilidade concreta de produção do genérico por laboratórios públicos nacionais, caso a licença fosse concedida[1].

Todavia, é necessária a atenção a dois pontos que não são detalhados no PL: a definição de doenças negligenciadas e as possíveis parcerias. Doenças negligenciadas é um termo amplo, que pode incluir diversos tipos de enfermidades e com diferentes prioridades. Como o PL tem o objetivo especifico de evitar o desabastecimento de insumos de baixo interesse comercial, é necessário que o texto da lei estabeleça isso de forma explícita.

Parceria deve ser para a independência

Sobre as parcerias, o texto aponta que caso os laboratórios públicos não tenham condições de fabricação destes insumos, eles podem procurar parceiros “para a adaptação de sua linha produtiva e aquisição de tecnologias e processos” e que o “Poder Público fica autorizado a financiar, estimular, promover e buscar parcerias nacionais e internacionais”.

O objetivo principal dessas parcerias deve ser de capacitar o laboratório público oficial a realizar de forma independente a produção dos insumos. Assim, deve-se priorizar aquelas que visam a plena transferência da tecnologia para as instituições públicas e não apenas a aquisição pontual de insumos ou processos de empresas privadas. Visa-se assim a autonomia de fato em relação a produtores internacionais e à volatilidade do mercado, além de estimular a concorrência. Este ponto também deve ser registrado de forma explícita no texto.

A proposta será analisada ainda, em caráter conclusivo, pelas comissões de Finanças e Tributação e de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara federal.

Alinhamento internacional

No último dia 24, em Genebra, na Assembleia Geral da Saúde, seis agências internacionais assinaram a “Declaração interinstitucional sobre a produção local de medicamentos e outras tecnologias relacionadas com a saúde”. Elas se comprometeram a trabalhar “de forma colaborativa, estratégica e holística em parceria com governos e outras partes relevantes para fortalecer a produção local”, com base nos respectivos conhecimentos e mandatos.

A Organização Mundial de Saúde (OMS), a Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial (UNIDO), a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e o Fundo Global reiteraram com a declaração que a produção local e a transferência de tecnologias são elementos cruciais para promover a inovação, capacitação e melhorar o acesso das populações à medicamentos e tecnologias em saúde. Além disto, enfatizaram a sua importância no contexto de desabastecimento global.

[1] ABIA, 2016. Mito vs Realidade: sobre a resposta brasileira à epidemia de HIV e AIDS em 2016. Disponível em http://abiaids.org.br/wp-content/uploads/2016/07/Mito-vs-Realidade_HIV-e-AIDS_BRASIL2016.pdf

Categoria: Artigo
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