Apesar do tema ser desconhecido para a maioria das pessoas, faz pelo menos quatro anos que a revisão do Licenciamento Ambiental no Brasil se impõe como um campo de batalha.
De um lado do campo, se aliam o setor do agronegócio, interessado em ocupar mais terras; as grandes mineradoras, interessadas em abrir novas minas; e investidores interessados em leilões de energia e infraestrutura, em especial portos, ferrovias e rodovias, cuja demanda potencial está fortemente associada a estes mesmos setores do agronegócio e mineração. Não por acaso, todos estes atores têm seus interesses especialmente posicionados na Amazônia, onde também contam com o apoio de grupos políticos locais e regionais. No plano federal, possuem notório poder de influência no Congresso Nacional e junto ao governo, onde não só contam com incondicional apoio e incentivo como, na prática, representam a cabeça pensante de um planejamento refém dos seus interesses.
Também não por acaso, as obras mais polêmicas no Brasil, que alimentaram o discurso do licenciamento como “entrave ao desenvolvimento”, foram as grandes hidrelétricas na região: Jirau, Santo Antônio, Belo Monte. Em tempos de crise econômica profunda e de crise fiscal generalizada, a flexibilização e simplificação do licenciamento ambiental adere bem ao discurso fácil de que este é um passo necessário para a retomada de investimentos no Brasil.
Do outro lado do campo, com argumentos sólidos, mas desvantagem no jogo de forças político, estão as organizações socioambientalistas[1], especialistas no tema[2] e muitos gestores públicos do Ibama e de outros órgãos como a Funai, a ICMBio, a Fundação Palmares, e o IPHAM[3]. Para este conjunto de atores, as Leis e normas administrativas que norteiam o procedimento de licenciamento ambiental têm funcionado como o principal instrumento da Política Nacional do Meio Ambiente. Graças a ele, e apesar dos seus limites e fragilidades, o Estado brasileiro foi legal e institucionalmente munido de condições para que impactos fossem avaliados e para que medidas para evita-los, minimizá-los e compensá-los fossem tomadas pelo empreendedor. Em síntese, desta perspectiva, o licenciamento não é um entrave ao desenvolvimento. Ele é uma forma de garantir que o meio ambiente e as populações impactadas sejam considerados e que medidas sejam tomadas pelo empreendedor e também pelo Estado brasileiro[4].
Por isso, o debate sobre a necessidade de aperfeiçoar e até mesmo agilizar o licenciamento não deveria ser travado em campo de batalha, ao contrário, deveria ser encarado como um problema real que precisa ser reconhecido pela sociedade e enfrentado pelo governo e pelo empreendedor.
Mas ninguém quer pagar a conta
O setor privado alega que o licenciamento ambiental coloca no seu colo o papel que é do governo, de executar políticas públicas cujas demandas se acirram no contexto da implantação de grandes obras, que por sinal serão ainda mais dramáticos no atual quadro de crise econômica e social estrutural que estamos mergulhados. O governo, por sua vez, sem projeto e sob regime de servidão a um dos lados do campo, repete como um mantra que a solução é “menos Estado e mais investimento privado”.
É neste contexto que está prestes a ser votado no plenário da Câmara dos Deputados o relatório do Deputado Kim Kataguiri (DEM/SP), e MBL, criando uma Lei Geral do Licenciamento (Projeto de Lei N.º 3.729/2004). A proposta, síntese das demandas do minero-agronegócio e sua infraestrutura associada, tenta desaparecer magicamente com o problema, por meio de dois artifícios combinados.
Um primeiro, endereçado ao empreendedor, que limita as condicionantes ambientais – que são as medidas, condições ou restrições sob responsabilidade do empreendedor – somente à área que sofre os impactos ambientais diretos da construção, instalação, ampliação e operação de atividade ou empreendimento[5]. Assim, muitos dos impactos indiretos que claramente serão atribuídos à obra estarão de fora das condicionantes e, logo, da conta do empreendedor. Para tentar garantir que esta fatura será mesmo reduzida, o relatório ainda constrói, como anexo, uma zona de delimitação que serve ao propósito de reduzir a contabilização dos impactos, mas que de fato, como já disseram especialistas no tema, não passa de uma “inserção ‘tosca’ de falsa objetividade, que na prática tem grande chance de desencadear judicialização, tendo em vista que os valores apresentados são absolutamente arbitrários e desprovidos de qualquer embasamento técnico” (Sánchez, L; Fonseca, A; Montaño, M. 2019).
Um segundo, endereçado ao governo, reduz a participação e estabelece prazos rígidos de manifestação por parte dos órgãos envolvidos que têm a atribuição de proteger os direitos dos povos indígenas (Funai), dos quilombolas (FCP), responsáveis pelas Unidades de Conservação (ICMBio) e pelo patrimônio histórico e cultural (IPHAM). O PL limita a manifestação destes órgãos: i) no caso de Terras Indígenas, somente àquelas com “portaria de declaração de limite publicada” e “portaria de interdição em razão da localização de índios isolados”; ii) no caso de terras quilombolas, somente quando estiverem tituladas; iii) no caso de Unidades de Conservação, somente àquelas de Proteção Integral.
Conforme levantamento do Instituto Socioambiental (ISA), a Funai deixaria de se manifestar sobre os impactos em 163 terras indígenas que se encontram hoje em processos de demarcação em fase de identificação. No caso dos territórios de remanescentes de quilombos, 87% em processo de reconhecimento, também seriam sumariamente desconsiderados. Além disto, os impactos em 523 Unidades de Conservação de Uso Sustentável também seriam desconsiderados, já que o PL somente considera a manifestação dos órgãos quando se trata de Unidades de Proteção Integral.
Ao corte sumário na competência dos órgãos envolvidos se adiciona a definição de prazos apertados para que se manifestem no processo de licenciamento, componente que adicionado à pressão política para celeridade dos processos, resultará em licenças por WO.
Rumos do desenvolvimento em disputa
Na visão oportunista, disfarçada de idílica, dos defensores da proposta, isso reduzirá o custo e o tempo de execução do projeto, atraindo novos investimentos. Mas na vida real a conta estará lá e a fatura será cobrada judicialmente, como hoje já ocorre e tende a se ampliar exponencialmente.
Em outras palavras, frente às jurisprudências consolidadas no Supremo Tribunal Federal e a Constituição Federal, os impactos ambientais continuarão a ser endereçados aos seus responsáveis, o que inevitavelmente se traduzirá em paralizações, atrasos e mais custos. Adicionalmente, as tensões e os conflitos provocados por obras com elevados impactos serão ainda mais amplificados em função da combinação destes mesmos dois artifícios – a limitação da área de impacto e a tentativa de expurgar territórios e grupos sociais do processo de licenciamento – amplificada por pressões sociais e por múltiplos impactos advindos do descontrole de processos migratórios, em face de uma população cada vez mais empobrecida e desesperada pela falta de alternativas econômicas.
Não existe caminho fácil para a desmobilização deste campo de batalha, pois ele é também uma síntese da disputa pelos rumos do desenvolvimento no país. Muitos dos potenciais investimentos que implicariam em significativos impactos ambientais, a exemplo da Ferrogrão, estão localizados em áreas e territórios frágeis ambiental e socialmente e, também, onde a presença do Estado já é reduzida e será cada vez mais pálida.
Colocar os diversos e elevados impactos de muitos destes investimentos na conta, de fato, pode significar um preço alto demais a ser pago. Não colocá-los tampouco fará com que eles desapareçam e não sejam cobrados.
[1] – Para uma visão aprofundada dos equívocos e riscos do atual relatório, apresentado pelo Deputado Kim Kataguiri, ver ISA. NOTA TÉCNICO-JURÍDICA: 3.ª VERSÃO DO TEXTO-BASE PROJETO DE LEI N.º 3.729/2004.
[2] – Para um posicionamento de pesquisadores e cientistas sobre o tema ver Projeto de Lei Geral do Licenciamento Ambiental: análise crítica e propositiva da terceira versão do projeto de lei à luz das boas práticas internacionais e da literatura científica. Sánchez, L; Fonseca, A; Montaño, M. 2019
[3] – Para o posicionamento do IPHAM referente à proposta em tramitação de Lei Geral do Licenciamento ver NOTA TÉCNICA nº 3/2019/CNL/GAB PRESI.
[4] – Embora as medidas mitigadoras e de compensação no âmbito do Licenciamento sejam endereçadas ao empreendedor, é necessário considerar que a presença do Estado em áreas a serem impactadas deveria ser um desafio de planejamento do desenvolvimento regional e local, anterior à própria obra e ao longo do processo de licenciamento.
[5] – Um exemplo conhecido é o barramento de um rio para geração de energia hidrelétrica. Seus efeitos se espraiam para além da área de influência direta em função, entre outras coisas, da redução do fluxo de água, afetando comunidades que vivem da pesca ao longo deste rio.