A pandemia aprofundou a exclusão dos povos amazônicos

28/05/2020, às 13:11 (atualizado em 17/07/2020, às 9:55) | Tempo estimado de leitura: 12 min
Por Tatiana Oliveira, assessora política do Inesc
Tratar a população como um bloco homogêneo impossibilita a aplicação das políticas de proteção social neste momento de transição neoliberal.
Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Se está difícil pensar a conjuntura política nacional, analisar a realidade amazônica (na sua porção brasileira) apresenta o desafio particular de comunicar sobre uma região ainda desconhecida, num país que é lido a partir das suas grandes capitais no centro-sul.

Por isso, e aproveitando a metáfora do vírus como ameaça intangível, este é um texto sobre a diferença impossível. Este é um texto sobre aquilo que o desenho das políticas de massa raramente alcança, seja porque incorpora o cálculo das perdas ao seu desenho, seja porque investe na disciplina de toda diferença cultural.

Indígenas, quilombolas, ribeirinhos, camponeses, caiçaras, raizeiras, quebradeiras-de-coco, entre outros grupos, são alvos desta política de apagamento. E no contexto de um governo comandado pela aliança entre militares, conservadores e extrema-direita (ao qual se somou a complicação de uma pandemia global) não é preciso muito para que se configure uma situação de extermínio interessado.

O governo brasileiro não está paralisado em meio à pandemia. Ele tem trabalhado em favor do acirramento da exploração dos recursos da natureza e das comunidades que se relacionam mais diretamente com ela. Exemplo disso, se, por um lado, a tramitação do PL 1142, que institui o Plano Emergencial de enfrentamento da Covid-19 para Povos e Comunidades Tradicionais (PCTs), se arrasta, por outro lado, assusta a velocidade vertiginosa com que projetos de lei contrários aos direitos territoriais desses grupos, como PL 2633, são considerados.

“Só tem um povo nesse país”

Na reunião ministerial do dia 22 de março, que foi tornada pública por supostamente comprovar as tentativas de intervenção do presidente da República na Polícia Federal, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, declarou odiar o termo “povos indígenas” e “povo cigano”. Para completar, Weintraub afirmou existir apenas um povo no país.

No Brasil, a pluralidade de nacionalidades foi reconhecida constitucionalmente (capítulo VIII, art. 231 e 232) em 1988. A declaração do ministro fere, portanto, um princípio constitucional. Mas é verdade que a burocracia de governo opera, no cotidiano, esta presunção de homogeneidade. O que distingue a lógica da rotina burocrática e o enunciado do ministro é, de um lado, a potência da presunção (a dúvida), e, do outro lado, a força de uma afirmação “evidente” (a certeza, destrutiva e com tonalidade autoritária).

O problema da inclusão

A assimilação é o problema da inclusão. Políticas de inclusão, mesmo as mais bem-intencionadas, são por definição assimilacionistas. A consideração de grupos étnicos ou culturalmente diversos no âmbito das políticas assistenciais, por exemplo, de transferência de renda ou de saúde, ocorre frequentemente pelo ponto de vista (macro) da nação.

Isso significa que, para o Estado, PCTs precisam ser integrados às estatísticas de pobreza e desigualdade estrutural a fim de fazerem “sentido”. A discussão sobre se os modos de vida dos PCTs são ou não “pobreza” é longa. Porque “pobreza” é um fenômeno moderno e ocidental que não cabe na cosmologia desses povos e comunidades.

Outro elemento para discussão, a “raça” é uma ideia que organiza o exercício de separação, classificação e adequação desses grupos, “os pobres” do campo e da floresta, a políticas universais. E a geografia acaba delimitando o lugar dos corpos matáveis e morríveis. Nesse sentido, é possível falar sobre um extermínio físico e também cultural.

Construir políticas públicas para a Amazônia é, portanto, um desafio. Pois, a região norte do país é não só singular na comparação com o resto do território brasileiro, como reúne (e acolhe) culturas diversas.

O problema é justamente que essas culturas diversas nem sempre respondem ou querem viver segundo os objetivos do desenvolvimento definidos nos grandes centros urbanos e financeiros. A estratégia bolsonarista, que foi capaz de produzir o “agro-indígena”, discurso violento e civilizatório, se conecta com a percepção de que é preciso forçar uma mudança de comportamento desses grupos.

No contexto da Covid-19, a dificuldade do Estado para mapear os infectados e controlar o ritmo do contágio da doença denuncia uma falha antiga da governança das políticas públicas, a universalidade acachapante e colonialista, mas também aponta o desinteresse atual no que se refere ao cuidado e à proteção da população. Como disse Weintraub, quem não se conformar que vá embora (ame-nos ou deixe-nos).

O contexto econômico da pandemia

A pandemia causada pelo coronavírus chega no contexto de crise e atualização do regime de acumulação e das suas formas de exploração. Esse processo vem causando transformações profundas no modo de organização do Estado, bem como na sua relação com a sociedade e as corporações.

A economia verde, o desenvolvimento sustentável ou as soluções comerciais para a crise climática baseadas na natureza são, hoje, fronteiras do capitalismo, na atual fase do neoliberalismo.

Daí testemunharmos o acirramento dos processos de apropriação fundiária por interesses privados, bem como ataques reiterados a grupos para os quais a terra significa mais do que um ativo financeiro. Nova economia e velha economia sempre andam juntas, e às vezes chegam a se confundir.

Esse movimento de renovação econômica por meio de velhas práticas segue um roteiro conhecido: desmatamento, grilagem, despossessão ou apropriação ilegal e violenta de terras, expansão da fronteira agrícola, da pecuária e da mineração para áreas protegidas ou terras públicas sem destinação.

É importante lembrar, como mostrou recentemente uma declaração do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Sales, que o governo não está alheio a este processo e cumpre uma função primordial: em nome do desenvolvimento, é dever do Estado realizar o planejamento econômico setorial, organizando as oportunidades de mercado para as empresas.

Esta é uma percepção da natureza e da população como ativos econômicos/financeiros sob posse do Estado. Natureza e povo devem trabalhar para o desenvolvimento. E o Estado deve trabalhar para permitir a colonização, isto é, a “modernização”, do território, a sujeição do “outro” indomável.

As políticas de saúde

O Sistema Único de Saúde (SUS) ocupa um lugar de importância inquestionável no cuidado com a saúde dos brasileiros. No entanto, o desmonte orçamentário que o atingiu nos últimos anos, bem como a adoção de um modelo de governança fragmentado, que delega muito à iniciativa privada, faz com que ele desempenhe, hoje, um papel-chave na estratégia genocida da extrema direita que governa o país.

A ineficiência “estrutural” do sistema justifica antecipadamente as dificuldades encontradas durante a crise da Covid-19.

A saúde como política pública é resultado da luta social, mas também responde a um serviço fundamental para a reprodução do trabalho, portanto, do valor e do lucro. A compreensão da política sanitária não pode ser reduzida à promoção da felicidade e do bem-estar. Pois ela tem uma função no regime de acumulação, na medida em que se destina a “consertar” trabalhadores para devolvê-los ao mundo da produção.

Além disso, é preciso considerar, como ensina a história, que a saúde também é instrumento de política demográfica e de eugenia.

No norte do país, a estrutura do SUS não parece considerar as características demográficas e infraestruturais peculiares da região. A assistência ambulatorial básica não encontra respaldo em estruturas hospitalares mais complexas, dificultando o acesso ao atendimento e sobrecarregando o sistema das capitais na região.

Com densidade populacional menor e com maiores distâncias a percorrer até o atendimento emergencial, a desassistência é grande. No contexto da Covid-19, esse cenário contribui para elevar o nível (já alto) de subnotificações, refletindo mortes domiciliares. Quem morre as mortes evitáveis nestas condições são indígenas, quilombolas, ribeirinhos, camponeses…

E daí!?, disse o presidente

O “e daí!?” de Jair Bolsonaro substitui um dar de ombros simplório, uma lamentação rasa e distante, uma verdadeira psicopatia do poder constituído. Por outro lado, a reação do presidente não denota loucura ou má compreensão dos fatos. Sob a razão neoliberal, aqueles que foram acometidos por uma doença e morrem falharam individualmente.

O raciocínio, nu e cru, é que mortos e infectados foram incapazes de se proteger (e muitas vezes também às suas famílias), devendo assumir a responsabilidade por essa fraqueza. Não conseguir pagar pelo tratamento ou pelo remédio adequado basta para justificar o sofrimento e a morte.

O neoliberalismo funciona na base do toma lá dá cá, tal qual a rudeza bolsonarista.

A evolução ascendente da Covid-19 transformou-se num drama nacional, mas não pode ser lida apenas por este viés. Ao chegar, ela acelerou um processo de mudança que já estava em curso (ao menos desde 2008).

Esta doença atua sobre a necessária reconfiguração das sensibilidades para uma nova era histórica: a do estado corporativo, do individualismo possessivo como liberdade, da servidão como novo regime de trabalho e organização social, do endividamento como dispositivo primordial para alavancagem do valor.

Não há lugar para visões de mundo alternativas nesse neoliberalismo extremista e conservador. A pandemia, além de tudo, reforçou o vigilantismo de uma lógica de governo autoritária.

O mundo depois da pandemia será outro. Esta é a única certeza que pode ser dita agora. Mas a boa notícia é que tudo isso não chega sem enfrentamento. Iniciativas de solidariedade e resistência têm surgido em várias partes do mundo, do norte ao sul global.

Se não quisermos que as coisas sigam o velho normal, precisaremos ser capazes de conceber um Estado em que a diferença seja possível, onde todos caibam nele e possam se expressar na sua singularidade. Sem abrir espaço para esse “mundo embaralhado” nossos esforços de combate serão perdidos.

Categoria: Artigo
Compartilhe

Conteúdo relacionado

  • Foto: Marcos Vinicios de Souza / Inesc
    Taxação dos super-ricos, COP Tributação e ...
    Termina nesta terça-feira (19), no Rio de Janeiro,…
    leia mais
  • Cristiane Ribeiro, do colegiado de gestão do Inesc na COP 29, em Baku
    A tragédia é agora. Quais serão as respost...
    Estamos em 2024 e mais uma Conferência das…
    leia mais
  • Inesc na COP 29: transição energética ganh...
    Começou nesta semana em Baku, no Azerbaijão, a…
    leia mais
  • Quanto custa tirar um PGTA do papel? 2ª ed...
    Nesta 2ª edição da nossa metodologia “Quanto custa…
    leia mais
  • Foto: Audiovisual G20
    Inesc no G20: taxação dos super-ricos e tr...
    Terá início no próximo dia 14 de novembro,…
    leia mais

Cadastre-se e
fique por dentro
das novidades!