“A gente vê a riqueza passando na nossa porta todos os dias, dia e noite, mas para a gente mesmo fica só a poeira”. A fala de um morador da região resume a situação vivenciada por diversas comunidades do Médio Tapajós, localizado no estado do Pará, Amazônia. Indígenas, pescadores, agricultores familiares, população urbana, comunidades inteiras afetadas com a chegada dos portos e estações de transbordo de cargas (ETC). O primeiro empreendimento começou a operar na região em 2014. De lá pra cá, a paisagem e a vida dos povos que já habitavam as margens dos rios estão sendo brutalmente afetadas.
Reunidos em Itaituba, movimentos, organizações da sociedade civil, pesquisadores e organismos internacionais analisaram impactos e debateram estratégias conjuntas de fortalecimento e proteção da vida e dos territórios. A atividade foi promovida pelo Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos), em parceria com a CPT (Comissão Pastoral da Terra) e o MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens). De acordo com Tatiana Oliveira, assessora política do Inesc, o principal objetivo foi dialogar com as comunidades sobre os principais resultados do trabalho que vem sendo desenvolvido na região.
“Embora o corredor logístico do Tapajós facilite o comércio internacional de grãos, em especial da soja e do milho, e, cada vez mais, de agrotóxicos, os efeitos cotidianos para a vida da população são perversos e variados. Com o nosso trabalho, temos construído um conhecimento coletivo sobre a região por meio do qual o Inesc aprende com as comunidades e as comunidades aprendem conosco. Do nosso ponto de vista essa troca é fundamental para que esse trabalho coletivo tenha um impacto político relevante para a vida de quem vive nesses locais”, sublinhou Tatiana.
Desde 2019, o Instituto elabora pesquisas que analisam os impactos da infraestrutura logística instalada na região. Atualmente, segundo Tatiana, Miritituba, distrito de Itaituba, tornou-se a principal rota para a exportação de grãos do Brasil. “E para mostrar como isso aconteceu e quais os impactos para o território, para as populações e para a natureza, nós produzimos uma websérie que conta a história de transformação do Rio Tapajós. Além de devolver para as comunidades o conhecimento acumulado ao longo dos últimos quatro anos e trabalhar os materiais produzidos com eles, nós traduzimos os vídeos da websérie para a língua Munduruku e entregamos para as lideranças indígenas. Além de formar os sujeitos dessa luta, o nosso intuito é chamar a atenção da população brasileira para os problemas que esse modelo de desenvolvimento predatório tem produzido na região”.
A comunidade de Miritituba viu sua população triplicar de tamanho nos últimos anos. Mas não viu políticas públicas para garantir direitos e vida digna acompanharem o mesmo ritmo. As promessas de desenvolvimento e de apoio dos próprios empreendimentos a essas comunidades continuam, ano após ano, seguindo apenas como promessas.
Isso o ‘agro’ não mostra
Tráfego constante e intenso de caminhões. Poeira. Muita poeira. Acidentes com mortes. Falta de qualificação profissional. Pobreza. Exploração sexual. Falta d’água em comunidades próximas a nascentes. Rios privatizados. Contaminação por agrotóxicos e mercúrio. Essa é a realidade cotidiana das pessoas que vivem na rota da soja no oeste do Pará. De acordo com o guia ilustrado produzido pelo Inesc ‘Logística no Médio Tapajós: o caso de Itaituba-Miritituba’, a comunidade com cerca de 15 mil habitantes, convive com o tráfego diário de 1.500 carretas durante a alta safra da soja.
Um dossiê, também elaborado pelo Inesc, mostra os impactos socioambientais ocasionados pela empresa Hidrovias do Brasil (HDB) em atuação na cidade de Itaituba. Desde 2015, a empresa tem entre seus acionistas o banco multilateral de desenvolvimento Corporação Financeira Internacional (IFC), braço privado do Banco Mundial. Para receber esse investimento, a empresa fez uma série de promessas para o banco, entre elas, impedir, diminuir ou mitigar os efeitos negativos da sua atividade na região. Mas não é exatamente isso que nos mostra a realidade. “Vai chegar uma hora que o pescador vai ter de abrir um buraco para colocar a malhadeira dele ali dentro porque todo lugar é proibido de pescar”, sentencia o relato de um trabalhador da região.
Impactos climáticos
Para além das questões sociais, os impactos climáticos também reforçam o alerta. O artigo ‘Infraestruturas logísticas, agronegócio e clima’, produzido pela assessora política do Inesc Tatiana Oliveira, registra o monitoramento da política socioambiental e climática no Brasil ao longo dos anos de 2019 e 2020. A análise considera a mudança de governo deflagrada no mesmo período no País, que implicou a retomada do projeto de ocupação e desenvolvimento da Amazônia brasileira.
A análise mostra que, de acordo com dados do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG, Observatório do Clima), o Pará foi a unidade subnacional com maior nível de emissões de gases de efeito estufa no País entre 2019 e 2020. “Essa situação foi causada, em sua maior parte, pelos efeitos acumulados da atividade agropecuária e das mudanças no uso da terra. Além dos elevados índices de desmatamento e queimadas, o avanço da fronteira agrícola e a instalação de complexos logísticos multimodais para a exportação de commodities agrícolas contribuíram para a configuração de uma paisagem de devastação”, explicou a pesquisadora.
Desenvolvimento para quem?
Desde 2007, o aprofundamento de um modelo econômico neoextrativista intensificou a destruição ambiental e gerou efeitos negativos para o cotidiano da vida de pessoas e comunidades. Não é exagero dizer que esses indivíduos e grupos passaram a se ver reféns de uma gestão pública que não reserva espaço para escuta, consulta e muito menos consentimento.
A expansão da fronteira agrícola brasileira do Centro-Sul para o Norte do País recolocou na ordem do dia um projeto compartilhado por sucessivos governos: a interiorização da infraestrutura logística voltada para a exportação.
O guia ‘Governança da infraestrutura no Brasil: um olhar a partir de Itaituba e Miritituba’, conduzido pelo Inesc, evidenciou a presença de elementos característicos do processo de financeirização da política e privatização da infraestrutura. Isto é: o Estado desenha e autoriza os processos de privatização e estabelece linhas de crédito para os investidores privados por meio de um banco público. Por exemplo, oferece pacotes de (des)regulação cambial e financeira para facilitar operações de alavancagem de créditos por parte da iniciativa privada, cria regimes para a suspensão de tributos e implementa um amplo sistema de garantias jurídico-financeiras para os investidores privados. Somando-se a isso os problemas de escuta e consentimento, é possível dizer que as comunidades em zonas de sacrifício perdem o direito de opinar sobre como querem viver ou sobre como compreendem o seu bem-estar. “A aterrissagem desses megaempreendimentos logísticos nos territórios não destrói apenas a natureza ao seu redor, mas a possibilidade de vislumbrarmos a coexistência entre seres humanos e natureza”.