Dia das Crianças e a prioridade absoluta reduzida

12/10/2024, às 10:15 (atualizado em 12/10/2024, às 10:29) | Tempo estimado de leitura: 9 min
Por Lucas Daniel Rodrigues e Thallita de Oliveira
Por que ser criança e adolescente é reprovável? Por que tanta dificuldade em encarar com seriedade o que crianças e adolescentes expressam?

“É um humano que todos temos que apreciar”. Este é o conceito que Johana Villa, de 8 anos, constrói sobre criança para o livro “Casa das Estrelas” organizado por Javier Naranjo. Ainda na introdução do livro, Naranjo reflete sobre a escolha de palavras de Johana, em especial a utilização da palavra “temos”, que indica o dever ou a obrigação de todas as pessoas sobre essa “apreciação” da criança. O conceito construído por Johana aponta para a responsabilidade que a sociedade e o poder público têm sobre a infância , mas provoca pensar se estamos caminhando e como caminhamos pela garantia de direitos das crianças e adolescentes no Brasil.

A atenção às infâncias e adolescências é consolidada na nossa legislação pelo Art. 227 da Constituição Federal de 1988 e pelo Art. 4 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Eles partem do princípio da prioridade absoluta, indicando que crianças e adolescentes tenham preferência no acesso às políticas públicas e na formulação e execução do orçamento público.

As legislações abordam a criança e o adolescente no singular, o que provoca a reflexão sobre qual dedicação e compromisso é empenhado quando pensamos nas infâncias e adolescências a partir de uma cultura que encaixa todas as particularidades e vivências num único modelo de ser. Partindo de olhares pautados no adultocentrismo, se constrói uma ideia de criança atrelada à inocência e fragilidade, mas também à incapacidade e falta de experiência como justificativas de silenciamento e desconsideração de suas opiniões, presença, e de seu poder de escolha em espaços de decisão que impactam as estruturas sociais, culturais, pedagógicas e políticas.

Essa mesma cultura, que estigmatiza e inferioriza as diversas formas de ser criança e ser adolescente, é disseminada dia a dia em termos como “infantilizar” ou “criancice” utilizados para reprovar falas e posturas. Por que ser criança e adolescente é reprovável? Por que tanta dificuldade em encarar com seriedade o que crianças e adolescentes expressam? A desconexão com as infâncias e adolescências se expressa dentro da lógica que associa o “tornar-se alguém na vida” (termo que já implica que crianças e adolescentes não podem ser alguém) ao ser adulto. E não pode ser qualquer adulto, tem que ser alguém que produza e colabore, tem que ser alguém que trabalhe. Vale refletir em como esses apontamentos impactam nas visões de mundo, nas relações, nos sonhos e como atuam dentro da diversidade de infâncias e adolescências, porque a cobrança por produção parte de diferentes lugares dependendo de onde as crianças e adolescentes nascem, vivem e ocupam.

Nas periferias, o trabalho pode vir de outro lugar, estando associado à manutenção de necessidades básicas como ter um teto e se alimentar. As responsabilidades chegam mais cedo com as crianças (especialmente meninas) assumindo as tarefas da casa e o cuidado com os irmãos mais novos, mas também o incentivo ao trabalho infantil a partir da inserção de crianças e adolescentes em trabalhos informais. A vivência do trabalho como estratégia de sobrevivência, sendo apresentada desde cedo, impacta em como as necessidades substituem a capacidade de sonhar ou orientam sonhos relacionados à possibilidade de comer bem ou de dar uma casa para a mãe. Portanto, neste 12 de outubro de 2024, Dia das Crianças, quais delas estão vivenciando sua infância com dignidade e proteção?

A despeito da prioridade absoluta prevista para todas as crianças e adolescentes, as leis orçamentárias brasileiras, desde 2021, têm priorizado uma parte desta população, a primeira infância, que se refere a crianças de 0 a 6 anos. Este grupo foi considerado nas Leis de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2021, 2022 e 2023. Com essa conquista, recursos direcionados à primeira infância estão sendo melhor demarcados no orçamento, o que é um ganho em termos de controle social. No entanto, é necessário avaliar o que se ganha e o que se perde dando preferência apenas a políticas para essa faixa etária com invisibilização ou falta de investimentos em crianças maiores e adolescentes. As políticas públicas precisam acompanhar todo o ciclo de desenvolvimento das meninas e dos meninos e isso significa garantir recursos orçamentários para todas as áreas pertinentes às infâncias e adolescências considerando suas especificidades de classe, raça, etnia, gênero, território e as crianças com deficiência, de modo a prevenir situações de risco ou violação de direitos.

Como exemplo, uma das principais políticas para a primeira infância, com foco nas famílias de baixa renda, é o Programa Criança Feliz, que tem sido criticado por sua prática assistencialista e pouco técnica no atendimento das famílias com foco nas crianças. Alguns pesquisadores da política a relacionam com a perspectiva do Código de Menores.

No atual governo, o programa tem sido reformulado, mas ainda assim sua execução se mantém.  Até final de agosto de 2024, a execução havia sido de R$ 280,2 milhões de reais (de acordo com dados do Siga Brasil) e entre 2017 e 2022 foi uma das políticas mais bem financiadas pela União, com recursos mais volumosos que a educação infantil e a estratégia da Rede Cegonha (saúde materna e infantil).

Também de responsabilidade do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), ao contrário, teve nenhum recurso executado pelo governo federal até 10 de outubro de 2024, e nos quatro anos do governo Bolsonaro, não houve investimento para tal      política. Neste sentido, é importante lembrar que não deve haver sobreposição entre os direitos ou entre os sujeitos de direitos. É necessário garantir recursos a todas as políticas que promovem e protegem direitos de todas as meninas e meninos do país.

Apreciar as infâncias e adolescências é ampliar os olhares para além das “fases”. É considerar as existências, reconhecer a capacidade de aprender e ensinar, promover a participação, permitir que as potencialidades se desenvolvam e que espaços de criação e conexão com a memória, a terra e a história prevaleçam. O caminho para isso passa por não ignorar como as desigualdades e as violências se expressam nas diversidades de infâncias e adolescências e, a partir disso, pensar em estratégias para que políticas públicas de garantia de direitos sejam instrumentos no combate da evasão escolar, trabalho infantil, exploração sexual, fome e qualquer outra violência que estreite a caminhada dos sonhos de crianças e adolescentes.

Lucas Daniel Rodrigues é educador popular do projeto Onda (Adolescentes em Movimentos pelos Direitos do Inesc) e Thallita de Oliveira é  assessora política do Inesc. 

Categoria: Artigo
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