Nos últimos anos, temos assistido à consolidação de um verdadeiro “parlamentarismo orçamentário”, em que o Congresso Nacional tem assumido, na prática, funções que deveriam ser exclusivas do Poder Executivo: o planejamento, a execução e a gestão integrada das políticas públicas.
Este “parlamentarismo” desconfigura o sistema político definido pela Constituinte de 88 e confirmado pelo Plebiscito de 1993, onde mais de 55% votaram pelo presidencialismo e apenas 24,7% pelo parlamentarismo. Este sistema implantado à “margem” da legalidade faz com que tenhamos um parlamento que executa grande parte do orçamento mas sem nenhum mecanismo de controle que o sistema parlamentarista tem.
Em 2024, as emendas parlamentares alcançaram R$ 40,89 bilhões — 27% dos gastos discricionários da União. Um valor que supera, por exemplo, o orçamento de diversos ministérios sociais e compromete a capacidade do Estado em operar com eficiência e planejamento na alocação orçamentária.
Essa captura de recursos fere o espírito da Constituição Federal, que estabelece, nos artigos 165 ao 169, a centralidade do Poder Executivo na elaboração e execução do orçamento, devendo o processo orçamentário conferir coerência entre o Plano Plurianual (PPA), a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei Orçamentária Anual (LOA), tríade que busca garantir previsibilidade, racionalidade e continuidade nas ações do Estado.
Por isso, a imposição legal de execução obrigatória das emendas parlamentares rompe o equilíbrio entre os poderes, ferindo, frontalmente, os princípios constitucionais que regem o ciclo orçamentário.
Durante a audiência pública realizada no Supremo Tribunal Federal em 27 de junho de 2025, representantes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal buscaram legitimar esse modelo a partir de dois argumentos centrais: o fortalecimento da democracia e a necessidade de atendimento às demandas locais, ignoradas pelo governo federal. Entretanto, os argumentos apresentados não se manifestam na realidade.
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“As emendas fortalecem a democracia e a representação”
Essa afirmação ignora o caráter opaco, desigual e pouco participativo do atual sistema de emendas. O que temos visto é o favorecimento de redes clientelistas e de barganhas políticas. A democracia não se fortalece quando o acesso aos recursos públicos é determinado pela proximidade de um deputado ou senador com o poder executivo local ou pela capacidade de mobilização nos períodos eleitorais. Ao contrário: isso enfraquece a democracia, cria desigualdades territoriais e torna a política refém de interesses de curto prazo, fazendo com que os parlamentares municipais e estaduais que atuem como distribuidores de favores e não como agentes de transformação social.
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“As emendas atendem demandas locais ignoradas pelo governo federal”
É verdade que muitas demandas locais não recebem a devida atenção, não só do governo federal como dos estaduais e municipais. Mas é falso que o atual modelo de emendas seja a resposta mais justa para esse problema. Em vez de uma alocação fundamentada nas prioridades pactuadas no Plano Plurianual (PPA) e na escuta das comunidades, as emendas seguem alheias a diagnósticos sociais e aos critérios estabelecidos nas peças orçamentárias e nas políticas públicas. As recentes auditorias da Controladoria-Geral da União (CGU) indicam que recursos que poderiam financiar programas estruturantes — como saúde indígena, educação básica, transição energética, igualdade racial ou medidas de mitigação e adaptação às mudanças climáticas — são fragmentados em obras pontuais e desconectadas de políticas públicas mais amplas.
O Inesc acredita que o orçamento público deve ser regido por princípios constitucionais de eficiência (art. 37), economicidade (art. 70) e planejamento na alocação orçamentária (arts. 165 a 169). Dessa forma, a atual hipertrofia das emendas parlamentares vai na contramão desses princípios, pois corrói a capacidade do Estado de enfrentar desigualdades históricas e rebaixa a política pública a um arranjo de conveniência e sobrevivência política.
Por isso, defendemos:
- O fortalecimento do PPA, da LDO e da participação social no orçamento, como instrumentos legítimos de construção coletiva das prioridades do país.
- O reposicionamento do orçamento a serviço do interesse público, não apenas como uma exigência técnica ou contábil mas, sobretudo, como um imperativo democrático, orientado pela efetivação dos direitos humanos e direitos fundamentais.
O Inesc seguirá contribuindo no debate para que o orçamento possa ser ferramenta de realização de direitos e redução das desigualdades, priorizando as populações com maiores vulnerabilidades. Os nossos princípios são financiamento do Estado com justiça social, máximo de recursos para investimentos sociais e ambientais, realização progressiva dos direitos humanos, não discriminação e promoção da igualdade, e participação social.