Qualquer pessoa que conheça a história da adolescência brasileira sabe que na colonização não existia a concepção do que era ser adolescente, de todo modo, ser criança ou adolescente não branco não garantia nenhuma forma de proteção. No decorrer dos séculos, surgiram ações direcionadas ao público de até 18 anos, mas com foco no controle e higienização social, a partir de medidas privativas da liberdade recheadas de violências e discriminações.
Ou seja, não havia nenhum arcabouço legal que assegurasse qualquer direito para o público infanto-adolescente, mesmo que este vivenciasse situações de maus tratos, exploração sexual, trabalho infantil e escravo, abuso sexual, abandono, falta de acesso à escola, altas taxas de mortalidade, desnutrição e fome.
Do código de 1927 ao ECA: avanços e permanências
A primeira legislação com foco nesta população, em 1927, propunha apenas disciplinar, institucionalizar e controlar os chamados “menores” em “situação irregular”. Em vez do Estado analisar o verdadeiro problema da falta de acesso aos direitos humanos, criminalizava os adolescentes pela situação imposta pelas desigualdades do país. A Constituição Federal de 1988, ao tornar crianças e adolescentes sujeitos de direitos, possibilitou avanços nas políticas públicas, alcançando melhorias nos indicadores sociais da infância e da adolescência.
No ano seguinte, a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989) criou o terreno necessário para que em julho de 1990, após bastante mobilização popular, fosse aprovada a Lei nº 8.069/90 que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Ainda assim, os adolescentes seguem sofrendo com a falta ou precarização de ações públicas específicas para esse grupo etário.
Violências e desigualdades que ainda atingem adolescentes
Dados do o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2025), ilustram o tamanho do desafio da luta pela garantia dos direitos infanto-juvenis. No que diz respeito às violências cometidas contra crianças e adolescentes, a pornografia infanto-juvenil, a exploração sexual infantil e a lesão corporal dolosa em contexto de violência doméstica têm maior predominância no grupo de 14 a 17 anos. E as mortes violentas intencionais afetam mais o grupo de 12 a 17 anos, cerca de 89%.
Outros dados impactantes: 2.103 adolescentes foram mortos por violência intencional em 2024. Destes, 89,9% eram meninos e 85,1%, negros. Para efeito de comparação, a taxa de Mortes Violentas Intencionais (MVI) da população geral em 2024 teve uma queda em relação a 2023, no entanto, na faixa etária de 12 a 17 anos, houve aumento, o que revela o descuido com esse público etário. No que diz respeito ao estupro, 77,6% dos casos no Brasil tinham como vítimas menores de 18 anos, sendo a maioria de meninas e negras.
Saúde mental, educação e trabalho: direitos ainda negados
Em 2023, a taxa de ansiedade e depressão entre adolescentes foi maior do que entre adultos. De acordo com o Unicef, um em cada seis meninos e meninas entre 10 e 19 anos de idade no Brasil vive com algum transtorno mental. É o grupo etário que mais provoca autolesão e que teve maior aumento de casos de suicídio.
No que tange à escolarização, em 2023, 9 milhões de jovens de 14 a 29 anos do país não completaram o ensino médio, destes, 27,4% eram brancos e 71,6% eram pretos ou pardos (Pnad Contínua 2023 – Educação). Segundo a mesma pesquisa, a maioria apontou que o motivo para parar de estudar foi a necessidade de trabalhar. Entre as meninas, o segundo motivo foi a gravidez. No Brasil, 1,2 milhão de adolescentes entre 14 e 17 anos estavam em situação de trabalho infantil em 2023. E de 2013 a 2023 mais de 232 mil meninas de até 14 anos engravidaram e tiveram o parto concluído.
Adultização dentro e fora das redes
O questionamento que devemos fazer é: o que, de fato, o Parlamento tem proposto para erradicar as múltiplas violações de direitos que afetam, em maioria, meninas e meninos negros das regiões Nordeste e Norte do país? Se, por um lado, avança em direção a uma maior proteção da infância e adolescência em ambientes digitais ao aprovar o PL 2.628/22, por outro, de forma contraditória, coloca na mesa o PL 1.473/25, que propõe aumentar o tempo da medida socioeducativa de internação para 5 anos, podendo chegar até 10.
Ao fazê-lo, os parlamentares parecem esquecer que a chamada adultização de meninas e meninos não é um fenômeno recente e restrito à internet. Desde que esse país se chama Brasil, crianças e adolescentes, principalmente negros, indígenas, periféricos e do campo, têm seus direitos de viver plenamente a infância e adolescência ceifados pelas desigualdades e violências impostas.
A aprovação do PL 1.473 pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado Federal, assim como todas as propostas que têm o intuito de reduzir a idade penal, é uma hipocrisia que chega a enojar. É a manutenção de uma concepção menorista que atribui a meninos pobres e negros a responsabilidade pela criminalidade do país, quando não há, para eles, a garantia integral dos direitos humanos.
Orçamento para a infância e adolescência
No orçamento público do governo federal e da capital federal, por exemplo, não há nenhuma ação específica para adolescentes no âmbito do esporte, da cultura e do lazer. Quando se compara a quantidade de ações direcionadas para a primeira infância com as direcionadas para outros grupos etários dentro da população infanto-adolescente, percebe-se um vão enorme no cuidado aos sujeitos que não estão na faixa de 0 a 6 anos. Poucas políticas de assistência social específicas, manutenção das famílias em situação de pobreza, sem promoção de esporte, lazer e cultura por parte do Estado, educação de má qualidade para as periferias brasileiras.
De acordo com estudo do Inesc, em âmbito federal, a política de atenção à saúde de adolescentes e jovens teve R$0,00 executado em 2023 e apenas R$ 1,7 milhão, de restos a pagar de anos anteriores, em 2024. As ações de enfrentamento das violências e do trabalho infantil também não tiveram execução orçamentária em 2023 e 2024.
A hipocrisia do aumento do tempo de internação
E se o adolescente, vivenciando todas essas privações de direito, comete um ato infracional, a resposta proposta pelo parlamento é que ele seja aprisionado por mais tempo, perdendo mais uma vez o direito de viver a adolescência e de se desenvolver num ambiente garantidor de direitos que não foi possibilitado anteriormente (conforme se vê nos dados citados).
A medida de internação deve ser a última opção. Por ser socioeducativa, deveria cumprir o princípio da brevidade para possibilitar a responsabilização do adolescente de modo que o caminho escolhido seja revisto, mas em conjunto à responsabilização da família e do Estado, para que estes possibilitem ao adolescente uma vivência num contexto menos degradante e de melhores oportunidades.
O risco da cooptação pelo crime organizado
Além disso, a ascensão das facções prisionais já se faz presente nas unidades socioeducativas brasileiras, expondo os adolescentes a vulnerabilidades decorrentes da exclusão social. Estes grupos paramilitares cooptam as crianças e adolescentes cada vez mais cedo para o universo infracional, sobretudo para o tráfico, que é considerado uma das piores formas de trabalho infantil, conforme a Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Como um exemplo de ingerência, ataca-se a causa, com respostas imediatistas e populistas, que em nada contribuem para a superação de desigualdades historicamente constituídas. Nossas infâncias e adolescências clamam por socorro, porque quando os direitos não são garantidos, diminuem-se as possibilidades de caminhos. O Estado, a família e a sociedade têm o dever de cuidar de todas as crianças e adolescentes, de modo que estas possam ter possibilidades infinitas de sonhos e de escolhas. Se esta não é a realidade, jogar toda a responsabilidade para o adolescente, mantendo-o privado de liberdade por tanto tempo, é novamente cometer uma violência.