Por Alessandra Cardoso e Leila Saraiva, assessoras políticas do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc)
O Brasil tem desafios do tamanho do seu vasto e complexo território, um deles é o de equacionar o que chamamos de questão socioambiental. Em linhas gerais, a temática socioambiental evidencia como os sucessivos governos enfrentam ou não o desafio de garantir um meio ambiente saudável, juntamente com o reconhecimento e garantia dos direitos das populações que vivem e sobrevivem com base em uma relação com a terra, o território, a floresta e a biodiversidade que não se resume à dimensão do mercado ou da sobrevivência material.
Alguns dos temas socioambientais ganham mais destaque na agenda pública, como o do desmatamento, por sua premência e peso na política global do clima. Outros, são objeto de intensa disputa de forças e poder, como é o caso da demarcação das terras indígenas e o reconhecimento dos territórios quilombolas. Mas todos eles não podem ser resolvidos de forma isolada de um projeto de país, de sociedade, de economia e de Estado.
Estabelecer limites e condições para a expansão do agronegócio, por exemplo, é imprescindível para garantir o direito dos povos indígenas aos seus territórios. Estes direitos estão sendo negados hoje porque há um interesse econômico forte, poderoso e representado no Estado para impedir que as terras indígenas sejam demarcadas, assim como para impedir que territórios de quilombolas e outras comunidades tradicionais sejam reconhecidos.
Por isto, é preciso olhar não apenas para os temas que aparecem nas “cartas de intenções” dos candidatos à presidência da República, mas também observar como as estratégias de crescimento econômico e de saída da crise, inclusive fiscal, dialogam com os desafios socioambientais. Dois anos de Teto dos Gastos já mostraram que não é possível ter políticas públicas funcionando com o orçamento congelado. O sucateamento da Fundação Nacional do Índio (Funai), do Instituo Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), a extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), os orçamentos pífios do Ministério do Meio Ambiente (MMA), o desmonte das políticas públicas e tutti quanti são prova disto.
O que fazer com a EC 95 já é, portanto, um primeiro divisor de águas. Os candidatos que se comprometem com sua revogação são Ciro (PDT), Haddad (PT), Boulos (Psol), Vera (PSTU) e Goulart (PPL). Do outro lado, Marina (Rede), Bolsonaro (PSL), Cabo Daciolo (Patriota), Alckimin (PSDB), Álvaro Dias (PODE), Eymael (DC), Meirelles (MDB) e Amoedo (Novo) repetem o discurso da austeridade, que na prática já mostrou suas consequências.
Entre os candidatos que propõem manter a política de austeridade fiscal, Marina merece destaque por ser uma candidata identificada com a pauta socioambiental. Na sua proposta, o teto para os gastos seria baseado na metade da variação do PIB. Quer dizer, se o país voltar a crescer 3% ao ano, por exemplo, os gastos poderiam crescer somente em 1,5% ao ano em termos reais. Na prática, esta proposta é tão nefasta quanto o teto hoje vigente, ao não reconhecer que o estágio de sucateamento do Estado e das políticas públicas exige um gasto crescente em termos reais que não poderá ser viabilizado com tal limite.
Outro ponto caro à pauta socioambiental é o desmatamento. Desde 2012, há uma demanda vocalizada por várias organizações socioambientais para que o governo se comprometa com o desmatamento zero. Na proposta já formulada, algumas exceções seriam garantidas para a agricultura familiar (por um período de transição), para terras indígenas que são protegidas por legislação própria, e onde o desafio é proteção e fiscalização, assim como territórios de povos e comunidades tradicionais onde o uso coletivo dos territórios caminha ao lado da proteção. São ainda consideradas exceções para ações e projetos de segurança nacional, defesa civil, pesquisa, planos de manejo florestal, atividades de interesse social e utilidade pública, que são regulamentadas pelos órgãos competentes, a exemplo do licenciamento conduzido pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
O grande desafio que está por traz do desmatamento zero é impedir novos desmatamentos, mesmo os legalmente autorizados. A questão central daí resultante é como estancar o avanço do agronegócio sobre áreas de floresta sendo que hoje seus atores podem desmatar áreas extensas de floresta sob a proteção legal do Código Florestal.
Os candidatos que abordam a questão do desmatamento zero são: Marina, Boulos e Lula/Haddad.
A abordagem que dão ao tema, no entanto, é distinta. Marina Silva indica que o compromisso com o desmatamento zero será alcançado por meio de mecanismos de mercado, entre eles o mercado de carbono, que estimularia “iniciativas para conferir valor às florestas, com vistas a atingirmos o desmatamento zero no Brasil, no menor prazo possível, com data limite em 2030”. Vale dizer que a crença no mercado como aquele que resolverá nossos males, e não só o do desmatamento, é uma tónica na sua proposta e está alinhada ao compromisso de continuar com a austeridade fiscal: “Considerando a severa restrição fiscal que limita fortemente o aumento de gastos discricionários, incluindo investimentos públicos, a forma mais racional de viabilizar projetos estruturantes no Brasil é pelo investimento privado”.
Haddad assumem o compromisso com a taxa de desmatamento líquido zero até 2022. Indicam claramente que isto implicaria em colocar um fim à expansão da fronteira agropecuária, o que passa pela “regulação do grande agronegócio para mitigar os danos socioambientais, impedir o avanço do desmatamento, assegurar o ordenamento da expansão territorial da agricultura de escala, corrigir as permissividades normativas, impedir excessos das subvenções públicas e subordinar sua dinâmica aos interesses da soberania alimentar do país”.
É importante notar que a palavra “líquido” não é mero detalhe, expressa a possibilidade de que áreas desmatadas possam ser compensadas com outras áreas, inclusive reflorestadas, o que reduz o escopo do desmatamento zero.
É para ressaltar esta diferença que o programa de Boulos reforça o compromisso com o desmatamento zero afirmando que “É possível, necessário e vantajoso ao Brasil zerar o desmatamento em uma década em todos os biomas. Para que isso seja efetivo, a meta deve ser do “desmatamento zero” e não “desmatamento ilegal zero” ou mesmo “desmatamento líquido zero”.
Ciro menciona vagamente a necessidade de se desenhar uma estratégia para redução do desmatamento. Meireles diz que é preciso acelerar programas de redução do desmatamento, detalhe, somente na Amazônia. Na mesma linha, João Amoedo propõe resolver o problema do desmatamento no longo prazo e somente na Amazônia. Bolsonaro, Alckmin, Álvaro Dias, Cabo Daciolo, Eymael e Vera Lúcia nem sequer citam o problema do desmatamento.
Já no que tange à demarcação e regularização fundiária de terras indígenas e quilombolas, os candidatos que se comprometem com a pauta são: Boulos (PSOL), Ciro (PDT), Haddad (PT), Marina (REDE), Vera Lúcia (PSTU). Os demais candidatos ou se calam sobre o assunto, havendo programas que nem sequer mencionam o tema, ou propõe diretamente políticas anti-indígena e anti-quilombola, como é o caso do candidato Bolsonaro, que propõe que “O Estado deve facilitar que o agricultor e suas famílias sejam os gestores do espaço rural”, ignorando os crescentes índices de violações aos direitos humanos no campo que acometem o país.
Por fim, outro ponto que chama atenção em uma análise mais geral dos programas das candidaturas é como a problemática socioambiental dialoga ou se confronta com o chamado “modelo de desenvolvimento” que as candidaturas defendem para o país. Embora seja arriscado ler as propostas sob esta ótica, dado que os documentos são cartas de intenção e em sua grande maioria muito vagos, eles apontam caminhos e devemos ficar atentos a eles e suas consequências.
A questão socioambiental, suas possibilidades, tensões e limites, está diretamente associada ao modelo de desenvolvimento. Não será possível, por exemplo, enfrentar o problema da demarcação das terras indígenas, da garantia ao território para quilombolas e dezenas de comunidades tradicionais, sem enfrentar o modelo de crescimento fortemente baseado na produção, extração e circulação de commodities. Faz parte da natureza deste modelo buscar a expansão e, dado seu poder dentro do Estado brasileiro, obstruir as possibilidades de equacionar o direito à terra e território. Esta é, como apontado anteriormente, uma questão também ligada ao desmatamento zero.
Um outro modelo de desenvolvimento, de base industrial moderna (a exemplo da indústria 4.0 tão mencionada nas propostas dos presidenciáveis), mas também de base florestal, regional, de transição ecológica entre outros adjetivos e substantivos, só tem chance de prosperar com muito planejamento, políticas públicas e orçamento público. Tal modelo está, entre outras coisas, na contramão da inserção subordinada do Brasil nas redes globais de produção e não será o mercado por sua obra e graça a prossegui-lo.
Logo, é fundamental entender qual planejamento e qual Estado estão sendo propostos pelas diferentes candidaturas. Neste ponto, existe um segundo divisor de águas.
Existem as candidaturas que partem do pressuposto de que o Estado, o planejamento, o investimento, o orçamento público e as políticas públicas são centrais para a saída da crise e para a construção de um novo modelo de desenvolvimento, onde os desafios socioambientais estão, mais ou menos, postos: Boulos, Ciro, Haddad, Vera e João Goulart.
Existem as candidaturas que partem do pressuposto de que o Estado ou não é capaz ou não é necessário para induzir de forma mais direta o desenvolvimento, cabendo à iniciativa privada o papel de “salvadora da pátria”: Marina (Rede), Bolsonaro (PSL), Cabo Daciolo (Patriota), Alckimin (PSDB), Alvaro (PODE), Eymael (DC), Meirelles (MDB) e Amoedo (Novo).
Não por acaso esta divisão é a mesma em relação à Emenda Constitucional 95.
Da mesma forma, dois assuntos polêmicos e decisivos para o equacionamento da questão socioambiental são infraestrutura econômica e energia. Sobre o último, embora sejam muitas as candidaturas que insinuam o compromisso de investir mais em energias renováveis, nenhuma delas se compromete a não investir em grandes hidrelétricas na Amazônia. Com o adendo de que no programa do candidato Boulos está registrado que “não entendemos serem necessárias construções de novas usinas neste momento”.
No tema da infraestrutura econômica, em especial na Amazônia onde ela serve a uma estratégia de escoamento da produção de commodities com impactos cumulativos severos, as propostas também são vagas, a exemplo do programa de Haddad onde afirma-se que “para o Brasil crescer e se desenvolver, é preciso priorizar os investimentos em infraestrutura – que geram empregos e dinamizam a economia – orientados pela busca da sustentabilidade”.