Uma nação não se faz pela irracionalidade. Pode ser levada a aventuras, mas não se constrói por ímpeto, pela angústia ou pela descrença. Um país, pelo contrário, se faz pela esperança e pela utopia de ser fértil e fincar a crença na prosperidade. Este, aliás, é um dos princípios do Estado Moderno: sustentar a crença individual num futuro melhor.
Nestes últimos dias, a ação selvagem de alguns jovens, que nos impele a descrer no projeto humano, parece convidar ao irracionalismo, irmão gêmeo da selvageria. Uma trama que a mente humana, de tempos em tempos, cria e que faz o errado parecer certo.
A discussão, importante e necessária, sobre a redução da maioridade penal está mergulhada em forte comoção e pode servir a interesses não muito claros e inconfessos. Há muita desinformação a respeito. Uma das questões encoberta pela comoção que envolve o debate atual é a tradição latina sobre desenvolvimento humano.
Nossa cultura é oposta à tradição jurídica da Inglaterra e EUA. Para estes dois países (há alterações importantes em curso) crianças e adolescentes acusados de autoria de atos infracionais podem ser punidos. Foi publicado, no Brasil, um importante livro intitulado Gritos no Vazio: a história de Mary Bell, de autoria de Gitta Sereny, que relata os equívocos desta concepção jurídica e sociológica. O livro trata da prisão de uma pré-adolescente que assassinou duas crianças. Um fato real e dramático. A tradição e cultura latina é mais comunitária e menos individualista. Baseia-se na convicção que o processo educacional não é uma virtude individual, mas uma responsabilidade da coletividade. Na prática, isto significa que uma criança não possui responsabilidade sobre o que faz, não tem maturidade intelectual suficiente para compreender a gravidade de seus atos.
Muitos estudos da psicologia comprovam esta tese. Há estudos de anglo-saxões, inclusive, como Lawrence Kohlberg, seguidor de Piaget, que comprovam esta tese. Por este motivo, atos de crianças são imputados aos seus pais ou responsáveis. São eles que assumem a responsabilidade dos seus atos. No caso dos adolescentes, a situação é mais complexa. Eles não são adultos, mas não são mais crianças. Os latinos sugerem que eles sejam considerados responsáveis, mas não imputáveis. Na prática, significa que eles sabem o que fazem, mas ainda estão em processo de amadurecimento. Eles já têm, inclusive, maturidade física para ter filhos e para dirigir carros, mas a sociedade considera que não têm maturidade intelectual para efetivar esta realidade. Seus atos infracionais não são julgados tendo por fim uma pena, mas uma medida socioeducativa, de caráter essencialmente pedagógico. É verdade que parte do sistema judiciário, fundado na lógica criminal, sente dificuldades em compreender a lógica pedagógica. Mas é importante destacar, assim mesmo, que nesta tradição a sociedade adulta entende que há, ainda, uma última ação a ser desenvolvida para com esta pessoa que está em processo de formação.
Os argumentos pela diminuição da maioridade penal incorrem no erro de idealizar a idade e desconsiderar o processo de amadurecimento do ser humano. Desconsidera situações cotidianas, como o julgamento que fazemos sobre um ato incorreto de uma criança e nossa postura sobre o mesmo ato cujo ator é um adulto. A expectativa sobre o comportamento de um é absolutamente distinta em relação ao outro, justamente porque a idade define a compreensão de mundo e de responsabilidade sobre ele.
Jean Piaget, desde os anos 30 do século passado, desenvolveu pesquisas que revelaram que os seres humanos se desenvolvem moralmente por estágios. Demonstrou que uma criança respeita regras não porque compreende sua função e natureza, mas porque teme ser punida ou perder o carinho de quem lhe ensina a regra. Tempos depois, já sabe empregar a regra no convívio com seus pares de idade, mas ainda não tem a compreensão sobre justiça. Na adolescência, já constrói esta noção, mas em fases mais complexas, gradativamente, de compreensão. Enfim, amadurece moralmente aos poucos. E amadurece, como outro psicólogo procurou provar (Lev Vygostsky), a partir de estímulos externos, que devem ser programados, no caso dos educadores. Tratar adolescente como adulto é um erro que coloca em xeque não apenas nossa cultura, mas a própria esperança na vida e na vida social.
[1] Sociólogo, 44 anos, Doutor em Ciências Sociais, Coordenador do Instituto Cultiva e membro do Comitê Executivo Nacional do Fórum Brasil do Orçamento. Coordenou pesquisa sobre sistema de atendimento ao adolescente autor de ato infracional em Minas Gerais. E-mail: ruda@inet.com.br . Site: www.cultiva.org.br