Publicado pelo site Voyager.
Em uma experiência no Museu do Seringal em Manaus, pude ir além da abstração e melhor refletir sobre a história do ciclo da escravidão por dívidas. Porém, fiquei ainda mais preocupado com a imagem que me veio, um cenário tenebroso que já é uma realidade mundo afora, a qual pode, se nada for feito, se converter numa distopia enlouquecedora para as “pessoas comuns”.
Também ficou evidente que grupos financiados por ultra-magnatas para fazer panfletagens nas quais insistem que liberdade é meramente ausência de coerção, trabalham para nos jogar numa armadilha. Não se percebeu ainda o risco catastrófico que significa para nós essa intensificação de um lobby que visa, na verdade, um processo político que trará retrocessos a longo prazo.
Para continuarmos o debate deste tema, cabe recapitular brevemente o modus operandi da servidão por dívidas: o capataz, de confiança do Barão, lhe servia na esperança de um dia poder comprar um bocadinho de terra para descansar as canas na velhice; buscava os trabalhadores – em sua maioria nordestinos, os mais precarizados e, logo, vulneráveis –aliciados pelos “gatos”, vindos em barcos chamados “Gaiolas”.
Chegavam já devendo a viagem e a acolhida, o local de residência para fazer a cabana – apenas um pequeno espaço de chão -, comida, ferramentas de trabalho e, então, já estavam presos a uma pesada dívida… Tratava-se do “adiantamento” do Barão, o qual considerava em sua auto-compensação moral como “renúncia de gasto presente”. Devia-se trabalhar muito tempo para apenas amortecer uma dívida que se auto replicava, sonhando em conseguir quitar antes de morrer de tuberculose, malária, febre amarela, ou mesmo devido a ataques de animais ou pelas mãos de um assassino do seringal.
Os trabalhadores eram obrigados a conseguir pelo menos cinquenta quilos em uma semana de borracha para incitar a produtividade. Os rolos de borracha não tinham sistema de rigor de marcação de peso, então se produzia em torno de 60 kg ou 70 Kg para não ficarem abaixo do mínimo. Como a balança do Barão só media 50Kg, este lucrava com a quantidade a mais. Afinal, precisava de “produtividade”.
O Barão contratava um espião disfarçado de padre, que além de ouvir as confissões obrigatoriamente semanais, perambulava sondando as conversas. E repassava ao Barão os anseios, planos e ideias dos seringueiros.
Muitas vezes não recebiam em espécie. O Barão pagava em entretenimento. Era o patrono das festas, dos encontros religiosos, e trazia mulheres, chamadas de “cocotas”, para os seringueiros encontrarem “conforto”. Tudo meticulosamente cobrado deles. Quando tentavam ir embora do seringal , considerava-se que os Seringalistas estavam sendo roubados pela dívida não paga e carregada. O castigo era sempre exemplar.
Algum defensor do livre mercado pode tergiversar, dizendo que isso era um sistema de coerção. Mas – apoiando-se em muitos filósofos liberais – pode-se dizer que a base do sistema se dava a partir de trocas voluntárias. Os trabalhadores vinham espontaneamente porque a “utilidade” de irem era maior do que de não irem; contraíam obrigações com os seringalistas que lhes ofereciam serviços, ainda que o Regatão pudesse oferecer mercadorias a preço mais baixo – embora nem sempre acessível quando se precisava. Os Barões eram geradores da oferta, da riqueza, “criadores de empregos”, graças ao seu espírito de iniciativa, diligência e tato econômico mais desenvolvido do que os trabalhadores, abrindo com sua demanda outros postos de trabalho…
Quem quiser pode continuar fazendo os paralelos. Mas, enquanto isso…
Formados para dever, devendo para viver
Ganhou destaque, com muitas pessoas comentando e compartilhando uma matéria veiculada recentemente sobre o sistema de dívidas estudantis nos Estados Unidos intitulado “A Vida dos Estudantes Americanos com dívidas acima dos 500 mil”. Fenômeno que ocorre de forma análoga também em países com um sistema de ingresso nas universidades privado ou semi-público, como é o caso do Chile e de Israel.
Noam Chomsky salienta que isso não ocorre por uma necessidade econômica, mas sim atende a uma agenda ideológica, com a qual apenas os mais ricos são beneficiados. Porém, se engana aqueles que acham que apenas intelectuais de esquerda criticam o sistema privado de unis. Nos EUA, isso se tornou um problema tão crítico, que sequer a imprensa conservadora o ignora mais, como podemos conferir na matéria “Por que a dívida estudantil é muito mais grave do que as pessoas pensam?”, da revista Time.
Mas há algo muito mais profundo e tenebroso que pode escapar de muitos leitores. É pra assustar mesmo, até porque é uma rede mafiosa que inclui jovens pagos para defender o esquema na internet.
Falo sobre um “complexo industrial de dívida estudantil”, uma hidra que cria mercados de títulos de securitização lastreados nos ativos de empréstimos estudantis (denominados SLABS). A securitização, a grosso modo, é um instrumento de transformação de créditos em um “produto financeiro”, um título negociado no mercado, de forma que não se compromete o securitizador quanto a seus limites de crédito junto a instituições bancárias e não se transforma em passivo no seu balanço de pagamentos. Esses títulos são transformados em mercadorias com valores ancorados a prêmios ao risco, negociados a “n” credores, movimentando mais de duzentos bilhões de dólares, com o qual os megainvestidores faturam com os pagamentos mensais dos empréstimos e o acréscimo dos juros. É fácil perceber que aqueles que lucram com isso podem muito bem investir em uma fortíssima panfletagem para convencer as pessoas que a privatização.
Esse mercado é complexo, muito diferente do funcionamento de uma feira como os panfletos lobistas e neoliberais de internet tentam vender o capitalismo. Pirâmides de mercados emergem dele, incluindo mercado de apostas; os credores faturam também com taxas, os negociadores recebem comissões e cada um vai repassando o risco pra frente formando uma bolha. Desta forma não interessa a estes poderosos agentes que ocorra uma grande quitação das dívidas, mas antes, que elas se acumulem.
Não há como os devedores atenuarem sua situação declarando falência. Esse Complexo envolve ainda corporações de advogados especializados e formas de arrecadação dos governos com os descontos em salários, nos seguros desemprego e benefícios sociais, acréscimo em impostos e taxas. O Complexo compra economistas e outros especialistas, bem como comentaristas na imprensa, para defender sua estrutura como algo “natural” e necessária. Mais ainda, financiam políticos e atacam aqueles que ousam enfrentar o problema.
Atentem: há forças ultra-poderosas que agem por meio de lóbi, usando seu poder econômico para forçar governos a mudarem o sistema de financiamento estudantil, cortando da verba direta das universidades, estimulando-as a entrarem nas bolsas de valores e captarem financiamento lá (captarem de quem mesmo? ) e assim criar a vulnerabilização necessária para erguer o sistema de dívidas. Depois dirão que é um sistema em que o estudante age em liberdade, sem coação, estimulado a ser responsável.
Esta espiral gera desigualdade que, por sua vez, alimenta a espiral. O componente racial é substancialmente impactante na desigualdade nos EUA. Um pesquisador apontou em um estudo que, nos períodos de menor investimento público em estudantes de ensino superior, “os negros experimentaram uma mobilidade inter geracional substancialmente menos ascendente e uma mobilidade inter geracional substancialmente mais descendente do que os brancos”.
Em uma pesquisa, abrangendo cerca de 125 anos dos Estados Unidos, analisando as diferenças salariais entre pessoas com diploma universitário e de ensino médio e comparando com o ritmo do número de diplomas universitários, foi constatado que as curvas evoluíram inversamente, ou seja, o ensino universitário ficou cada vez mais elitizado e a diferença da renda entre quem cursou uma universidade e quem ficou excluído do ensino superior se aprofundou. Nos anos setenta, a curva do número de diplomas universitários estacionou, quando então a discrepância salarial, que vinha diminuindo, ganhou impulso. A queda em investimentos públicos em ensino superior repercutiu nas desigualdades salariais, dado o maior custo para as famílias de pagarem as anuidades das universidades. Vemos que boa parte dos que militam contra a tônica de direitos sociais costumam também ser contra o ensino público gratuito. Assim, as coisas vão se encaixando.
E a espiral vai se avolumando: do início de 1994 ao início de 2016 a média da dívida dos bacharéis formados mais do que triplicou, sendo que, quando metade se formou devendo em média pouco mais de dez mil dólares, passou para dois terços devendo trinta e cinco mil dólares. Uma pesquisa do Federal Reserve de Nova Iorque constatou que boa parte dos devedores ainda não quitaram seus empréstimos estudantis, mesmo já estando numa faixa etária entre 40 e 50 anos de idade. A lógica mercantil desse sistema também provoca o declínio de estudantes nos cursos considerados não rentáveis, como é o caso dos cursos de humanas (e não é ao acaso que os lobistas venham desqualificando estes cursos, bem como de ciências sociais).
Dos Estados Unidos ao Chile e à Israel se forma uma grande massa de egressos da universidade vítimas do sistema da dívida.
“Fiz tudo certo: trabalhei muito, estudei muito, entrei para a faculdade. Agora, estou em um emprego precário muito aquém do que se prometia, com perspectivas realistas piores do que a geração anterior, e dívidas de dezenas de milhares”.
Em 1993, pouco menos da metade dos estudantes universitários dos EUA se formavam presos em dívidas. Hoje é mais de 75%. Credores terceirizam para especializadas que podem confiscar salários, pagamentos de encargos e mesmo prestações do seguro-desemprego, tudo o que conseguir recuperar.
Considerando a grande tendência de diversas empresas terem boa proporção de sua rentabilidade advindo de serviços financeiros, que por sua vez participam de sistema de gestão com empresas dos executivos das bolsas, há a grande chance de, em última instância, os jovens formados devedores trabalharem para seus credores. Servidão por dívidas?
Sobre povos e nações: o sistema imperial da dívida
El desmonte del sistema de protección social
Publicado por Agencia Latinoamericana de Información (Alai)
La crisis económica de 2008 fue utilizada como justificación para la adopción de medidas de austeridad en Europa. Los resultados han sido catastróficos, especialmente en países como Grecia y España, por lo que incluso el Fondo Monetario Internacional (FMI) ha tenido que reconocer, por medio de estudios empíricos, que los recortes presupuestarios durante las recesiones económicas tienden a ampliar los déficits fiscales y prolongar la recesión, ampliando los niveles de desempleo y desacelerando la recuperación económica.
Con un efecto un poco más tardío de la crisis, actualmente es América Latina la que está siendo bombardeada con las mismas medidas de austeridad. Entretanto, en lugar de tomar en cuenta su entendimiento sobre los efectos perjudiciales de las medidas de austeridad en casos de crisis económica, en esta región el FMI defiende a los gobiernos que adoptan medidas de ajuste fiscal extremo.
Brasil se ha destacado por el volumen, intensidad y perversidad de las medidas de austeridad adoptadas. El gobierno de Temer, que llegó al poder en 2016 después de la destitución de la presidenta democráticamente electa, ha adoptado un acelerado paquete de maldades contra el pueblo brasileño. Es importante destacar que tanto el presidente como sus ministros están profundamente implicados en las denuncias de corrupción en proceso, el país vive un escenario de crisis institucional y política, y las propuestas del gobierno nunca fueron sometidas al voto popular.
Entre las medidas más perversas, el gobierno de Temer presentó y aprobó en el Congreso Nacional, en 2016, una propuesta de Enmienda a la Constitución para instaurar un “nuevo” régimen fiscal, el cual determina que los gastos primarios, donde están todos los gastos sociales, tendrán un techo a partir de 2017: corresponderán al valor pagado en 2016 reajustado apenas por la inflación. En la práctica, eso representará un congelamiento de los gastos sociales por 20 años, o aun peor, como la población crecerá en un 9% y la población de tercera edad se duplicará en 20 años, los gastos sociales per cápita serán de hecho reducidos. Es importante destacar que existe en el país una normativa que permite contingencias presupuestarias para atender la meta de superávit primario, de acuerdo con la Ley de Directrices Presupuestales. Si la meta fuese muy restrictiva, los gastos sociales no serían simplemente congelados, sino inferiores en comparación con el año anterior. Ampliando el análisis, cuando el país vuelva a crecer, ninguna recaudación adicional del país podrá ser utilizada en gastos sociales para ampliar derechos, debido al techo de gastos primarios, y solamente podrá ser utilizada en gastos financieros, para pagar intereses y deuda.
Si bien se están adoptado medidas de control sobre los gastos primarios por el mundo, el caso brasileño es único: I. Fue determinado por enmienda constitucional; II. Tiene un plazo excesivo de 20 años, lo cual inviabiliza la adopción de otras políticas fiscales por futuros gobiernos electos democráticamente; III. Imposibilita el crecimiento real de los gastos sociales al limitarlos a la corrección inflacionaria, en lugar de a la variación a mediano plazo del PIB como en muchos países europeos; IV. Hace abstracción de cualquier necesidad social que demande mayores inversiones sociales. Por ejemplo, solamente el envejecimiento poblacional demandaría un crecimiento de 37% en el gasto de salud.
En perspectiva, si esa Enmienda hubiese sido aprobada desde 2013, el presupuesto de la salud en 2015 habría sido de casi la mitad de lo que fue realmente, R$ 55 billones en lugar de R$ 100 billones. En los próximos 20 años se prevé una reducción del 25% a una política pública cuyo financiamiento ha sido históricamente seriamente insuficiente.
De esta manera, la Enmienda Constitucional n.95/2017, previamente conocida como PEC 241 y después como PEC 55, es enteramente incompatible con las obligaciones en derechos humanos. Así lo afirmó el relator especial de las Naciones Unidas (ONU) para la extrema pobreza y los derechos humanos, Philip Alston, que considera que la enmienda afectará de forma más intensa a los brasileños más pobres y vulnerables, además de ampliar las desigualdades en una sociedad ya bastante desigual.
El comité de Derechos Económicos, Sociales y Culturales de la ONU ya emitió direcciones específicas a ser observadas por los países que forman parte del Pacto Internacional de los Derechos Económicos, Sociales y Culturales cuando se adopten medidas en respuesta a crisis económicas. Para estar en acuerdo con el Pacto, las medidas fiscales deben: ser temporales; estrictamente necesarias y proporcionales; no discriminatorias; tomar en consideración posibles medidas alternativas, incluyendo medidas tributarias; identificar y proteger el contenido mínimo y central de los derechos humanos; y ser adoptadas solamente después de un cuidadoso análisis con genuina participación social en el proceso de toma de decisión, especialmente de los grupos e individuos afectados.
Con la EC 95, el gobierno de Temer falló en considerar todos esos criterios. La Enmienda no es temporal, pues se extiende por 20 años y más allá del periodo de la crisis económica. El techo a los gastos sociales afectará desproporcionalmente a los más vulnerables, como a las mujeres e infantes negros pobres, que son justamente los que más dependen de los servicios públicos como salud y educación. No se consideraron medidas alternativas, especialmente las que podrían mejorar y ampliar las recetas de forma más equitativa. Algunas posibilidades serían: I. Combatir la evasión fiscal que representaría un crecimiento del 27% del valor de recaudación, lo que en 2015 correspondió a R$ 500 billones; II. Ampliar la contribución de los súper ricos con la revocación de la no tributación sobre los lucros y dividendos en el impuesto a la renta, que en 2015 hubiese correspondido a R$ 43 billones. Con esas medidas se podría haber evitado recortes drásticos en el gasto social. Finalmente, el gobierno y varios congresistas no realizaron análisis sobre los efectos de las medidas, ni permitieron la participación social adecuada, al apresurar la aprobación de la Enmienda e inviabilizar la realización de Audiencias Públicas que ya estaban previamente aprobadas.
La Comisión Interamericana de Derechos Humanos (CIDH), al considerar todos esos elementos presentados en audiencia pública, instó al gobierno brasileño a respetar los principios de progresividad en la realización de los derechos humanos y de no regresión social, en conformidad con el Protocolo de San Salvador, que Brasil ratificó en 1996. De acuerdo con ese documento, los países signatarios tienen prohibido adoptar medidas políticas y legales, sin justificación adecuada, que empeoren la situación de gozo de los derechos económicos, sociales y culturales por la población.
En la evaluación de la Inesc al presupuesto de Brasil para 2017 es posible observar los primeros indicios de irrespeto tanto a las orientaciones de la ONU como de la CIDH, lo que implicará una afrenta a los derechos sociales de las brasileñas y de los brasileños como resultado de la austera EC 95. Entre 2016 y 2017 hubo un aumento del 17,20% de los recursos públicos para gastos financieros. Por otro lado, los gastos primarios sufrieron una reducción del 14,2% en su tajada del pastel del presupuesto de la Unión.
Los datos presupuestarios evidencian que son las funciones y programas presupuestarios relacionados con las poblaciones en mayor riesgo los que más perderán. Como ejemplo, la función “Derechos de la Ciudadanía” tuvo la mayor pérdida presupuestaria. Nominalmente, esa función bajó de R$ 2,4 billones en 2016 a R$ 1,6 billones en 2017, un recorte del 47%. Dentro de esa función, el programa más golpeado fue el de “Políticas para las Mujeres: Enfrentamiento a la Violencia y Autonomía” que tuvo una reducción del 52%. Ese es el Programa que garantiza, por ejemplo, la atención a las mujeres en situación de violencia. Esa acción presupuestaria se redujo en R$ 5,5 millones en 2017. En contrapartida, para los intereses, en 2016 se pagaron como parte de la deuda interna y externa R$ 381 billones, y en 2017 la previsión es de R$ 557 billones, lo que representa un aumento de 46%.
Es decir, mientras el porcentaje del gasto financiero creció entre 2016 y 2017, los gastos primarios se redujeron, probando que la lógica de la EC 95 es fijar recursos cada vez más protegidos para el sector financiero y cada vez más limitados para los derechos humanos. Esto atropella los principios de no regresión social, no discriminación y de uso máximo de recursos disponibles para la realización progresiva de los derechos humanos.