Por Joana Rozowykwiat – Portal Vermelho
De acordo com dados do Fundo Monetário Internacional (FMI) e da Heritage Foundation, de 2014 e 2015, a carga tributária média mensal brasileira é a quinta mais baixa entre as 20 maiores economias do mundo e está longe de figurar como a mais elevada do planeta.
“Quando a gente avalia, na comparação com outros países, vemos que os cerca de 36% de carga tributária [em relação ao PIB] do Brasil está na média dos outros lugares. O problema é que temos aqui uma situação de injustiça fiscal que penaliza os pobres e a classe média”, diz Grazielle Custódio David, especialista em Orçamento Público e assessora do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).
Segundo ela, essa situação de desigualdade acontece basicamente por duas razões. Primeiro, porque grande parte da estrutura tributária do país está baseada em impostos indiretos, ou seja, que incidem sobre o consumo de bens e serviços e não sobre a renda e a propriedade.
“O problema de ter uma grande taxação de consumo é que, proporcionalmente, quem acaba pagando mais são os mais pobres. Por exemplo, se vai comprar arroz no supermercado, um pobre paga o mesmo imposto que um rico. Mas, quando a gente relaciona com o salário que aquela pessoa recebe, a proporção que o pobre paga é muito maior que a da pessoa rica. Isso configura uma situação de injustiça fiscal”, aponta Grazielle.

O outro entrave à justiça fiscal, diz Grazielle, está relacionado à forma de tributar a renda no país. “A gente tem uma situação em que a classe média, a faixa que recebe entre 20 e 40 salários mínimos, é a que paga mais imposto de renda hoje no Brasil. Já quem recebe, por exemplo, acima de 70 salários mínimos, praticamente não paga imposto”, compara.
No país, hoje, as rendas do trabalho são submetidas à cobrança de imposto de acordo com uma tabela progressiva com quatro tipos de alíquotas (7,5%, 15%, 22,5% e 27,5%). Já nas rendas do capital o leão dá apenas uma mordiscadinha, uma vez que as rendas decorrentes da distribuição de lucros e dividendos são isentas de Imposto de Renda. E outras, como ganhos financeiros ou de capital, estão sujeitas a alíquotas exclusivas, inferiores àquelas cobradas sobre a renda do trabalho.
“Se a gente compara um assalariado que paga na alíquota máxima de 27% com alguém que recebe mais do que o limite do imposto de renda, há uma situação terrível. Porque a maioria deles [os mais ricos] recebe por lucros e dividendos e, quando a gente avalia quanto eles pagam em imposto de renda, normalmente chega em 6%. Olha a situação: um grupo, que é a classe média, paga 27,5% de IR. E quem ganha muito mais que este grupo paga muitas vezes só 6%, porque existe a isenção de cobrança do Imposto de Renda sobre lucros e dividendos”, lamenta Grazielle.
Segundo dados da Receita Federal, em 2014, um grupo com cerca de 71 mil brasileiros ganhou quase R$ 200 bilhões sem pagar nada de Imposto de Renda de Pessoa Física (IRPF). Foram recursos recebidos, em sua maioria, como lucros e dividendos.

Essa isenção da tributação sobre lucros e dividendos foi instituída no país em 1995, durante o governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB). “Entre todos os países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), só o Brasil e a Estônia têm essa isenção. É uma vergonha, um vexame que o Brasil tenha aprovado uma lei como esta, que acaba punindo muitos de seus cidadãos, e beneficiando muito poucos”, critica Grazielle.
Os pesquisadores Sérgio Gobetti e Rodrigo Orair, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), estimam que o governo poderia arrecadar mais de R$ 43 bilhões ao ano com a cobrança de imposto de 15% sobre lucros e dividendos recebidos por donos e acionistas de empresas.
Em um momento de ajuste fiscal, no qual o governo faz malabarismos para cortar gastos e aumentar a arrecadação, o valor seria mais que bem-vindo.
As manipulações da Fiesp
Os ricos brasileiros não têm mesmo do que se queixar. De acordo com Grazielle, o Brasil tem ainda um dos mais baixos impostos sobre patrimônio. “Hoje, no Brasil, a arrecadação com impostos sobre patrimônio está na faixa de 3%. A média mundial é entre 8 e 12%”, informa, apontando a falácia no argumento de quem cita a carga tributária como abusiva.
A assessora do Inesc criticou o discurso de combate aos tributos, que interessa, especialmente, aos super-ricos, sobre quem menos pesam os impostos. Ela aponta a Fiesp como grande representante desse grupo – em grande parte possuidor de empresas e recebedor de lucros e dividendos não tributados.
Para ela, a entidade mente e manipula informações, de forma a conseguir a adesão da população para suas campanhas pela redução da carga tributária. Ao propalarem desinformação, as iniciativas terminam conseguindo apoio entre as classes baixa e média, que de fato sentem no bolso o preço dos impostos.

“A Fiesp, através de sua atuação, inclusive de lobby com o Legislativo, grandes campanhas e articulação, representando os interesses dos super-ricos, tem formulado um discurso fácil de ser assimilado, porque as pessoas percebem uma carga pesada para elas e acatam esse discurso. Mas o problema é que eles [da Fiesp] contam uma mentira, ou uma verdade incompleta. Manipulam as informações, e o pobre e a classe média acabam sentindo, sim, o peso, porque todo o peso da carga tributária está sobre eles. Enquanto isso, os ricos praticamente não pagam imposto. É um discurso forjado, manipulador, para enganar a população”, acusa.
Para que serve o imposto
De acordo com Grazielle, a maior consequência deste tipo de campanha é que, ao insistir que a carga tributária é alta, distancia as pessoas de uma compreensão real sobre a importância dos impostos.
“A gente vai então ignorando o que determina uma carga tributária, que são as demandas sociais”, ressalta. Segundo ela, cria-se um quadro de contradição, em que as pessoas pleiteiam melhores serviços públicos, mas combatem a forma que o Estado tem de promovê-los.
“É isso que leva as pessoas para as ruas. É saúde, educação, segurança, promoção de direitos fundamentais, direitos humanos. E são essas demandas e necessidades sociais que vão determinar qual é a carga que um país tem que ter de tributos para garantir esse tipo de assistência à sua população. Se a gente quer que essas demandas sejam atendidas, os impostos são necessários. Agora, a forma como esse imposto vai ser cobrado da sociedade, aí é que entra a questão da justiça fiscal, que precisa melhorar no país”, diz.
Ela avalia que o debate sobre a importância dos tributos não interessa à parcela mais rica da população – a mesma que faz críticas ao tamanho do Estado. “Esses super-ricos não têm muito interesse de que essas demandas sociais sejam atendidas para o coletivo, porque muitos deles, por exemplo, recorrem a um plano de saúde, a uma escola privada, muitos contratam segurança privada, e esquecem que a maioria da população não tem como recorrer a isso e necessita que o Estado garanta.”
Para ela, mais que um debate sobre ter mais ou menos impostos, é preciso redistribuir a carga já existente.

“Isso pode ser feito com a diminuição de impostos indiretos e com redistribuição do imposto de renda. A gente pode, por exemplo, criar mais faixas, com diferentes alíquotas, diminuindo a incidência do Imposto de Renda até os 40 salários mínimos, e aumentando a partir daí, desde que se revogue a lei que isenta de taxação os lucros e dividendos. Além disso, a gente pode trabalhar muito na questão dos impostos sobre patrimônio”, sugere.
A especialista em Orçamento Público defende que, com esta série de medidas, é possível aumentar a arrecadação – e, consequentemente, o orçamento público –, diminuir o peso da carga tributária sobre os mais pobres e a classe média e, ainda, atender melhor às demandas sociais e promover políticas públicas com melhor financiamento, o que acabaria por gerar melhor qualidade nos serviços.
Grandes fortunas
Outra medida que vem sendo discutida como forma de aumentar a justiça fiscal no país é a implantação do imposto sobre grandes fortunas, que está previsto na Constituição, mas precisa ser regulamentado. Grazielle, contudo, avalia que a medida enfrenta dificuldades para avançar.
“Uma grande resistência a esse tipo de taxação é de quem diz que vai haver fuga de capitais do país. Outra questão é que, quando se fala em imposto, significa que a União não pode compartilhar. Então existe uma resistência de estados e municípios para avançar nisso, se for em formato de imposto. Se fosse, por exemplo, no formato de uma taxa, ou outro formato de cobrança, talvez tivesse mais apoio de governadores e prefeitos”, avalia.
Segundo ela, nesse sentido, a adesão dos estados e municípios é maior à proposta de recriação da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF). “Como a CPMF é uma contribuição, ela pode ser compartilhada. Talvez por isso, o debate sobre a taxação de grandes fortunas perca um pouco de força”, explica.
Segundo ela, por causa da resistência que foi forjada na sociedade em relação a novos tributos, talvez seja melhor o governo trabalhar com as possibilidades que já existem, eliminando desonerações e aumentando a fiscalização e cobrança, de forma a recuperar recursos que estão na Dívida Ativa da União ou foram sonegados.
“Hoje as renúncias tributárias são altíssimas no Brasil, concedidas ao setor privado, sem que haja um controle adequado de qual retorno existe. Você desonera uma grande empresa, falando que ela vai garantir mais empregos, que vai melhorar a economia, mas não tem depois nenhum estudo que avalie se isso de fato aconteceu”, condena.
Ela lembra que a Dívida Ativa da União ultrapassa hoje R$ 1 trilhão. “Porque não investir na capacidade de fiscalização e cobrança dessas dívidas?”, questiona, acrescentando que outros R$ 500 bilhões anualmente se perdem na sonegação.

Grazielle cita ainda manobras feitas por grandes empresas, com o objetivo de pagar menos impostos. “A gente fez um estudo com a Vale, no qual foi possível observar a série de planejamentos tributários que eles fazem. Vendem, por exemplo, minério a preço muito abaixo do valor de mercado para países que são paraísos fiscais. Lá eles revendem e redistribuem para outros países, já com preço de mercado. Quando o minério sai daqui com preços baixos, eles já estão pagando menos impostos.
Novo código da mineração: avanços ou retrocessos
Publicado por Teoria e Debate.
A discussão de um novo código da mineração para o Brasil se arrasta na Câmara dos Deputados desde 2012. Até há pouco tempo os debates estavam concentrados na Comissão Especial criada para emitir parecer sobre a proposta de código encaminhada pelo Poder Executivo. Nesse período recebeu quase quatrocentas emendas e está em sua quarta “versão”, os chamados substitutivos.
Em tese, a busca por um novo código se impõe pelo anacronismo de mérito do Decreto-Lei nº 227, de 1967 (Código de Minas). Mesmo tendo sido recepcionado pela Constituição de 1988, esse instrumento seria incapaz de regular o tema nas circunstâncias contemporâneas, internas e globais, que envolvem a atividade da mineração.

A mencionada Comissão Especial não logrou êxito nos seus propósitos, basicamente por conta da insistência do relator em torno de uma proposta de legislação com perfil ultraliberal, pautada na supremacia absoluta dos interesses empresariais e com a atividade mineral sobrepondo os demais interesses nacionais.
Na realidade, o governo e a sociedade civil organizada reagiram aos substitutivos apresentados em razão de conteúdos que fragilizariam a capacidade regulatória do poder concedente. As organizações dos trabalhadores no setor e aquelas que direta ou indiretamente defendem uma lei comprometida com as causas ambientais e os direitos sociais das comunidades afetadas pela atividade, por maior justiça econômica, obviamente não poderiam apoiar proposição com conteúdo oposto.
Nesse cenário e ante as repercussões dramáticas do desastre de Mariana, foi criada uma comissão externa para acompanhar o caso, tendo como protagonista o mesmo relator da Comissão Especial, que atua em favor da aprovação de um novo substitutivo, com foco a atender alguns pontos socioambientais, todavia mantendo o caráter liberal da proposta.
Assim, constaria a existência de “acordo” para submeter ao Plenário da Câmara dos Deputados. Esse novo texto sobre o Código da Mineração, que neste momento, ao contrário dos anteriores, porta um discurso virtuoso, frente ao atual substitutivo, assume a condição de uma resposta política do Congresso à “tragédia de Mariana”. A articulação não foi difícil. O relator, com a assessoria de um grande escritório de advocacia de São Paulo – que tem a Vale e outras mineradoras como clientes –, tratou de adicionar ao conteúdo do substitutivo anterior suposta musculatura socioambiental, que gerou discurso suficiente para conquistar o apoio de parcela da bancada ambientalista. Com isso, a matéria ganhou destaque recente na mídia e no processo legislativo.
Desde logo vale frisar que as mudanças processadas não se ativeram apenas ao campo socioambiental. Envolveram também vários aspectos da legislação com propósitos no mínimo questionáveis.
A seguir alguns pontos polêmicos que surgiram com os últimos substitutivos.
Criação da Agência Nacional de Mineração (ANM)
Com a criação da Agência Nacional de Mineração (ANM), chamam atenção as sutilezas de algumas mudanças no Capítulo VI do atual substitutivo em relação ao anterior. O art. 46, §2º, fixa que “A pedido do autorizatário ou concessionário, a ANM poderá declarar o imóvel ou parte dele de utilidade pública para fins de constituição de servidão mineral”. Ora, de acordo com o art. 6º do Decreto-Lei nº 3.365/41, a declaração de utilidade pública é de competência do presidente da República por meio de decreto. Assim, o texto do novo substitutivo subtrai essa prerrogativa do(a) presidente(a) e a transfere para a agência.
Na sequência (art. 49), o novo substitutivo dispõe que a “…desapropriação do imóvel ou parte dele poderá ser promovida pelo autorizatário ou concessionário, na forma do Decreto-Lei nº 3.365, de 21 de junho de 1941”. Ou seja, subentende-se que a ANM declara a utilidade pública do imóvel e o autorizatário ou concessionário promovem a desapropriação de acordo com os parâmetros definidos pelo decreto-lei.
Na forma prevista, a agência poderá declarar a utilidade pública de extensas áreas para a atividade mineral, sensíveis nos planos social e ambiental, sem que o processo passe pela avaliação prévia dos órgãos ambientais e fundiário, por exemplo.
É óbvio que o “superempoderamento” da agência traduz estratégia de facilitação dos interesses empresariais. Afinal, põe ao largo as estruturas do governo, concentrando o poder em instância rigorosamente autônoma com mandato inviolável da respectiva direção.
A primazia da mineração
Uma supressão muito comemorada pelos opositores da linha de mérito do relator foi o art. 136 do substitutivo anterior pelo qual ficava explicitamente permitida a exploração de recursos minerais nas unidades de conservação.
Contudo, convém o exame mais detido do art. 26, inciso IV, cujo texto já constava da proposta do relator e que foi mantido com algumas mudanças periféricas. Consta nesse dispositivo o direito do titular do direito real de autorização de lavra a “ter acesso a imóvel de domínio público ou privado sobre o qual recaia a autorização, e a outros imóveis necessários ao empreendimento para realizar atividades de mineração, nos termos da Lei” (art. 26, IV).
O dispositivo permite que se interprete sobre a manutenção da primazia dos interesses da mineração sobre os demais, tanto em áreas de domínio privado como público. O fato fica reforçado por não haver em todo o texto do substitutivo uma referência expressa para as áreas protegidas, ressalvadas as áreas indígenas, objeto de regulação específica nos termos da Constituição Federal.