Sistematização do “Projeto Onda: adolescentes em movimento pelos direitos”

Avaliando os websites de transparência orçamentária nacionais e sub-nacionais e medindo impactos de dados abertos sobre direitos humanos no Brasil (2014)

Pesquisa sobre dados abertos do Inesc, desenvolvida em parceria Gpopai-USP e financiada pela Web Foudation, investigou sites das 27 capitais brasileiras, do governo federal e do Senado. Além de escutar representantes de organizações da sociedade civil, do governo, da academia e da mídia.

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Avaliando os websites de transparência orçamentária nacionais e sub-nacionais e medindo impactos de dados abertos sobre direitos humanos no Brasil de Inesc – Instituto de Estudos Socioeconomicos (Nathalie Beghin e Carmela Zigoni, organizadoras) está licenciado com uma Licença Creative Commons – Atribuição-NãoComercial-CompartilhaIgual 4.0 Internacional.

Conselhos populares e democracia participativa

Publicado Por Plenalto.com.br

O decreto presidencial nº 8.243, de 23 de maio de 2014, criando Conselhos Populares, objetivando o aperfeiçoamento do instrumental de apoio ao Poder Executivo para a implementação de uma Política Nacional de Participação Social, e para tanto criando um Sistema Nacional de Participação Social, é um passo importante, altamente positivo, no sentido de ampliar as práticas de democracia participativa na sociedade brasileira. Na realidade, essa iniciativa deverá contribuir significativamente para que se dê efetividade ao disposto no parágrafo único do artigo 1º da Constituição, segundo o qual todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente. Numa rápida visão retrospectiva, é oportuno lembrar que no século dezoito, como resultado das revoluções burguesas, foi proclamado o objetivo da implantação de sistemas democráticos, com sistemas governamentais em que o povo é o titular do poder político. Esse foi o primeiro passo para dar ao po vo um papel positivo nas decisões fundamentais de seu governo.

Pela impossibilidade prática de obter a participação direta e imediata do povo em grande número de decisões de seu governo acabou prevalecendo a democracia representativa, na qual a vontade popular deveria ser manifestada por meio de representantes eleitos. Entretanto, ocorreu uma importante evolução, criando-se novos instrumentos de participação popular nas decisões governamentais, consagrando-se o plebiscito e o referendo como veículos de expressão da vontade do povo, convivendo com as instituições representativas. Mais recentemente, com a criação e o aperfeiçoamento de novos meios para a obtenção da vontade do povo surgiu a democracia participativa. E quanto a essa importante inovação a Constituição brasileira de 1988 é das mais avançadas do mundo, como tem sido reconhecido e proclamado por constitucionalistas e defensores da sociedade democrática em diferentes países.

O decreto presidencial número 8.243, criando instrumentos para a efetivação de uma Política Nacional de Participação Social, tem sólido embasamento constitucional, a partir do já referido parágrafo único do artigo 1º da Constituição, segundo o qual deve ser dado ao povo um papel ativo no exercício do poder. Relativamente à competência da Presidenta da República para decretar a criação dos novos instrumentos de participação popular, para colaborar com o governo e influir sobre as decisões relativas à definição, aos objetivos e aos meios de implantação da Política Nacional de Participação Social, existe disposição expressa no artigo 84 da Constituição, que estabelece as competências privativas do Presidente da República, entre as quais está expressamente referida, no inciso VI, dispor, mediante decreto, sobre a organização e funcionamento da administração federal. Os Conselhos Sociais, previstos no decreto 8243, atuarão junto a órgãos da administração federal, colaboran do para a melhor definição de objetivos e a maior eficácia em seu desempenho.

Contrapondo-se a essa iniciativa presidencial, foram divulgadas pela imprensa as opiniões de alguns juristas tentando sustentar a inconstitucionalidade dessa iniciativa presidencial, mas com argumentos absolutamente inconsistentes, que podem ser facilmente rejeitados com a simples referência a disposições expressas da Constituição. A par disso, é oportuno assinalar que foram publicadas com grande ênfase críticas da grande imprensa, que pretende ser reconhecida como o veículo de expressão da vontade de todo o povo. Assim é que, a par da insinuação de que os conselhos poderão ser instrumentalizados, foi referida na imprensa como negativa a intenção da Presidenta Dilma Roussef de dar voz a uma tal sociedade civil, esquecendo-se esses críticos de que os conselhos terão apenas a natureza consultiva, não participando da tomada de decisões. Para os juristas opositores dessa inovação, ela seria inconstitucional porque os meios de participação política do povo seriam apenas aqueles enumerados no artigo 14 da Constituição, ou seja, o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular, não havendo aí referência a outras formas de participação popular. Na realidade, quem fez essa afirmativa parece não ter conhecimento do total dos dispositivos constitucionais. Com efeito, basta lembrar alguns artigos da Constituição nos quais há referência expressa à participação popular, por meios não constantes da enumeração do referido artigo 14. Assim, no artigo 198, que trata das ações e dos serviços públicos de saúde existe a determinação de que sejam observadas algumas diretrizes, entre as quais consta, expressamente, no inciso III, participação da comunidade. Nessa mesma linha, no artigo 205, que trata do direito de todos à educação, está expresso que esta será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade. No artigo 29, que dispõe sobre a organização e a atuação do Município na ordem política brasileira, dispõe-se que deverão ser observados os pr eceitos a seguir enumerados, entre os quais consta, no inciso XII, a cooperação das associações representativas no planejamento municipal.

Como fica mais do que evidente, um dos preceitos básicos da Constituição é justamente a criação de meios para que o povo participe efetivamente do exercício do pode, como está expresso no parágrafo único do artigo 1º. Seguindo essa diretriz podem e dever ser criados novos meios de participação social na definição de políticas e na busca de sua implantação. A par disso, é muito importante lembrar a grande importância que já assumiu no Brasil a prática das audiências públicas, instrumento de participação popular não referido no artigo 14 da Constituição, que vem exercendo influência no desempenho do Legislativo, do Executivo e do Judiciário e cuja constitucionalidade ninguém jamais contestou.

Por último, é importante e oportuno assinalar que os Conselhos criados pelo decreto número 8243 têm caráter consultivo, não afetando de qualquer modo os direitos e poderes dos membros do Legislativo nem restringindo as atribuições e competências de qualquer órgão público brasileiro. As restrições a essa importante e louvável iniciativa só podem ser explicadas pela persistência de uma mentalidade formalista e elitista, ancorada nos argumentos e nas práticas do século dezenove. Além disso, várias manifestações deixaram evidente a resistência de parlamentares que pretendem preservar para si a exclusividade e o privilégio de serem os únicos veículos de expressão da vontade do povo, que formalmente representam, povo que muitas vezes tem sido prejudicado por decisões de representantes que privilegiam os interesses de segmentos sociais ou econômicos a que se vinculam.

Em conclusão, bem ao contrário das críticas negativas e das tentativas de questionamento da constitucionalidade, o decreto número 8243 é rigorosamente fiel à Constituição e dá importante contribuição para a prática da democracia participativa, ou seja, para que tenha efetividade à proclamação constitucional do Brasil como Estado Democrático de Direito.

O artigo foi publicado no site Migalhas no dia 24 de junho de 2014.

A sombra do povo e a insônia dos grã-finos

Publicado Por Carta Maior

Não bate! O clamor que tomou conta dos arraiais do conservadorismo brasileiro desde o anúncio do Programa Nacional de Participação Social, há alguns dias, decididamente não combina com a empáfia impostada de seus representantes políticos.

Como é que é? Aposentadoria antecipada para Dilma, seis meses antes do pronunciamento das urnas? De que vale o sarcasmo de Aécio e assemelhados, quando ele é desmentido cotidianamente por seu patente nervosismo?

Fernando Henrique Cardoso falava ao país em cadeia nacional, e estava tudo muito bem. Por que a cólera? Por que o afã em punir com os rigores de uma lei reinventada para esse propósito, toda vez que Dilma Roussef faz isso?

A mesma pergunta vale para o decreto 8.243. Mal publicado no Diário Oficial,  ele foi denunciada pelos porta-vozes acreditados do conservadorismo pátrio como peça axial do programa insidioso do PT de transformar em ditadura popular disfarçada nossa ainda frágil democracia. 

Mas a incongruência entre o objetivo suposto e o instrumento empregado salta à vista. Um decreto não tem o condão de alterar a ordem constitucional do país. Exercício unilateral de poder do chefe do executivo, ele pode ser modificado — ou simplesmente revogado  —  por outro decreto, em qualquer instante.

Ora, ninguém em sã consciência imagina que o governo venha a se lançar em obras de complexa engenharia institucional nos próximos meses. Terminada a Copa, a campanha eleitoral nas ruas, todos os esforços do PT estarão concentrados na tarefa de conquistar os votos necessários para manter os postos que detém no presente e conquistar outros novos.

Como essa é uma tarefa inglória, posto que o país rejeita o PT  — assim nos garantem  — e tudo que a ele se associa   não há porque perder o sono. A revogação do malfadado decreto será o primeiro ato do próximo Presidente da República.

Seria essa a atitude dos opositores se estivessem tranqüilos. Mas eles não estão tranqüilos. A ansiedade perturba-lhes o sono, e nas noites mal dormidas tomam sombras por seres reais assustadores, aos quais reagem com alarde como se verdadeiramente perseguidos. 

Melhor assim. Ao expressar em palavras o sentimento de ameaça que os aflige esses personagens se descobrem e ao fazer isso se expõem à crítica. Se nenhum outro mérito tivesse, o decreto em questão mereceria aplausos por isso. 

O que os seus detratores vêem de tão nocivo nele?  Um abuso de poder, um atentado à Constituição, uma tentativa perversa de manietar o Congresso, submetendo-o  à vontade de grupos orquestrados, parcamente representativos.

Não bate! O clamor que tomou conta dos arraiais do conservadorismo brasileiro desde o anúncio do Programa Nacional de Participação Social, há alguns dias, decididamente não combina com a empáfia impostada de seus representantes políticos. 

Como é que é? Aposentadoria antecipada para Dilma, seis meses antes do pronunciamento das urnas? De que vale o sarcasmo de Aécio e assemelhados, quando ele é desmentido cotidianamente por seu patente nervosismo? 

Fernando Henrique Cardoso falava ao país em cadeia nacional, e estava tudo muito bem. Por que a cólera? Por que o afã em punir com os rigores de uma lei reinventada para esse propósito, toda vez que Dilma Roussef faz isso?

A mesma pergunta vale para o decreto 8.243. Mal publicado no Diário Oficial,  ele foi denunciada pelos porta-vozes acreditados do conservadorismo pátrio como peça axial do programa insidioso do PT de transformar em ditadura popular disfarçada nossa ainda frágil democracia. 

Mas a incongruência entre o objetivo suposto e o instrumento empregado salta à vista. Um decreto não tem o condão de alterar a ordem constitucional do país. Exercício unilateral de poder do chefe do executivo, ele pode ser modificado — ou simplesmente revogado  —  por outro decreto, em qualquer instante.

Ora, ninguém em sã consciência imagina que o governo venha a se lançar em obras de complexa engenharia institucional nos próximos meses. Terminada a Copa, a campanha eleitoral nas ruas, todos os esforços do PT estarão concentrados na tarefa de conquistar os votos necessários para manter os postos que detém no presente e conquistar outros novos.

Como essa é uma tarefa inglória, posto que o país rejeita o PT  — assim nos garantem  — e tudo que a ele se associa   não há porque perder o sono. A revogação do malfadado decreto será o primeiro ato do próximo Presidente da República.

Seria essa a atitude dos opositores se estivessem tranqüilos. Mas eles não estão tranqüilos. A ansiedade perturba-lhes o sono, e nas noites mal dormidas tomam sombras por seres reais assustadores, aos quais reagem com alarde como se verdadeiramente perseguidos. 

Melhor assim. Ao expressar em palavras o sentimento de ameaça que os aflige esses personagens se descobrem e ao fazer isso se expõem à crítica. Se nenhum outro mérito tivesse, o decreto em questão mereceria aplausos por isso. 

O que os seus detratores vêem de tão nocivo nele?  Um abuso de poder, um atentado à Constituição, uma tentativa perversa de manietar o Congresso, submetendo-o  à vontade de grupos orquestrados, parcamente representativos.

Contra a sordidez desse propósito, que vem embalado na retórica enganosa da democracia participativa, os opositores defendem-se tirando do baú idéias arcaicas sobre o governo representativo. De acordo com estas, a vontade do povo se expressa na livre escolha de seus governantes. No intervalo entre uma eleição e outra, cabe aos cidadãos perseguir seus interesses privados, nos limites da lei, atentos tanto quanto possível à gestão da coisa pública.  Mas isso eles não podem fazer solitariamente. Para tanto, necessitam de fontes críveis de informação e da possibilidade de trocar idéias sobre os problemas em pauta. A liberdade de expressão é inerente, pois, a essa forma de governo, que tem na opinião pública a sua contrapartida. É esta que faz a ponte entre representantes e representados no curso rotineiro da vida política.

O problema com essa concepção, que passou a salpicar as páginas dos jornais nos últimos dias, é que ela tem muito pouco a ver com a maneira como funcionam as democracias contemporâneas. E muito menos ela tem com a operação real de nossa organização política.

Ao dizer isso não penso apenas na existência consolidada de Conselhos, Fóruns e outros mecanismos de diálogo e aconselhamento, que vêm se multiplicando nos mais diversos ramos da administração pública brasileira já há muito tempo. Nem nas relações simbióticas entre o Banco Central e o mercado financeiro, que constituem um elemento estrutural publicamente reconhecido da política de metas inflacionárias em vigor no País desde o final da década de 1990.  

Refiro-me à posição estruturalmente privilegiada que os detentores do poder econômico desfrutam em qualquer sociedade capitalista, e do franco acesso aos centros decisórios que tal condição lhes faculta. Situação geral que se vê reforçada no Brasil pelos índices escandalosos de concentração de renda e riqueza, e pela qualidade deplorável, com as exceções de praxe, da grande imprensa falada e escrita, quase inteiramente controlada entre nós por um punhado de famílias. 

A Política Nacional de Participação Social assusta porque encerra a promessa de corrigir parcialmente esse viés  —  para o bem da gestão das políticas públicas e a qualidade de nossa tão imperfeita democracia. E assusta tanto mais porquanto dentro de alguns meses a promessa pode começar a ser cumprida. 

A ofensiva contra os Conselhos tem, portanto, caráter eminentemente defensivo. Com ela os conservadores pretendem levar o governo a recuar desse projeto, antes mesmo que a batalha das urnas seja ferida. 

Mas por isso mesmo a resposta a ela não pode ser tímida. Não se trata de defender o decreto 8.243, e com ele todos os mecanismos de representação social que hoje existem. É preciso aproveitar a oportunidade do debate para questionar o financiamento empresarial de campanhas eleitorais e a concentração da propriedade na mídia. Em uma palavra, diante do ataque a reação correta é partir para cima.

Mas não se atormentem, senhores e senhoras. Para cima na luta de idéias. Para cima, no bom sentido.

Ocupando espaços proibidos: o significado da aprovação das cotas raciais no Poder Executivo

No último dia 20 de maio, o Senado aprovou a o PL 6738/2013 que destina 20% das vagas em concursos públicos para negros. De autoria do Poder Executivo, o texto, já aprovado na Câmara, será encaminhado à sanção da presidente Dilma Rousseff. O projeto garantirá, por 10 anos, que candidatos pretos e pardos tenham cotas em concursos de órgãos da administração pública federal, autarquias, fundações, empresas públicas, e sociedades de economia mista controladas pela União.

O caminho entre a elaboração e a aprovação deste projeto foi, em comparação com outras propostas que tramitam no Parlamento, bastante rápido: simbolicamente anunciado no dia 20 de novembro de 2013, na Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial, seis meses depois já havia sido aprovado na Câmara dos Deputados e no Senado, sem polêmicas públicas relevantes. A “Associação Nacional de Concurseiros”, localizada no DF, até ensaiou uma mobilização contra, mas voltou atrás.

Fazendo um resgate histórico, há 10 anos, quando da aprovação das cotas na Universidade de Brasília, houve conflitos e debates públicos intensos, o lançamento do fatídico livro de Ali Kamel “Não somos racistas”, e acusações por parte de alguns acadêmicos, de que estar-se-ia criando um “apartheid brasileiro”, como se o racismo inexistisse em nossa sociedade.

A aprovação do PL de cotas representa avanços da política reparatória, em tornar todos os espaços mais diversos racialmente e promover a real mobilidade econômica da população negra. Mas também representa, considerando nosso momento histórico, a progressiva superação da “fábula das três raças”, ou, a ideia de democracia racial. Nunca houve democracia racial no Brasil, ao contrário, mecanismos de exclusão foram entranhados em todas as esferas sociais visando dar continuidade a relações de poder e privilégios existentes no período colonial. A mudança cultural na reação da sociedade a este PL, refletida na aprovação rápida e indolor pelos parlamentares, deve ser, portanto celebrada.

Como apontou o IPEA em Nota Técnica apresentada no Seminário sobre o PL 6738/2013, os negros estão concentrados em carreiras de remuneração mais baixa no serviço público, e mesmo quando muito qualificados do ponto de vista educacional, não chegam a ocupar os cargos de maior poder de decisão e melhor remunerados. Com a reserva de vagas, em 10 anos, este quadro poderá ser revertido.

Além da diminuição imediata das desigualdades encontradas no serviço público, as cotas no executivo apresentam mais uma vantagem, a da composição de uma política integrada: ora, se temos cotas nas universidades públicas, é preciso diminuir a desigualdade no acesso também ao mercado de trabalho formal, e bem remunerado.

O outro extremo do racismo (e machismo) no mercado de trabalho no Brasil

Temos observado resistências às mudanças na sociedade brasileira, setores conservadores insatisfeitos com a inclusão social e racial por meio de políticas públicas em diversos níveis. Tais setores não são uma abstração, são compostos por pessoas, essas mesmas que acreditam que o problema do racismo se resolve com uma campanha publicitária envolvendo bananas, que são

contra as políticas transferência de renda (em especial o Bolsa Família), e creem que jovens negros não podem frequentar o shopping e exercer o poder de consumo.  Outro exemplo é a oposição à regulamentação do trabalho doméstico: os argumentos contra esta importante legislação trabalhista se baseiam, na grande maioria dos casos, em racismo.

Considerando espaços sociais, podemos observar como nossa arquitetura física é reflexo do modelo social patriarcal e sexista: o setor imobiliário continua a construir residências com “dependência de empregada”, uma pequena senzala que pode ser encontrada na esmagadora maioria dos lares brasileiros, mesmo que não o utilizem como dormitório para aquelas que trabalham nesses lares.   O espaço, concreto e social, da memória da escravidão, continua ali, territorializando relações privadas que devem ser públicas, tornadas relações de trabalho, e não de dependência e subordinação.

Tatiana Dias, pesquisadora do Ipea, ressalta que estudos demonstram que as cotas raciais nas universidades públicas geraram impactos para além do acesso às vagas pelos estudantes. Também aumentaram os projetos de pesquisa sobre a temática racial, os espaços de convivência para debate dos estudantes sobre a negritude, enfim, a própria instituição universitária passa a ter que se repensar, deixando de ser um espaço essencialmente branco e masculino. Esperamos que o mesmo aconteça no serviço público federal, ou seja, que as intuições se transformem a partir da presença dos servidores negros e que o Governo crie ações de formação e de gestão voltadas para a superação do racismo institucional.

Destruir espaços de opressão, ocupar espaços de poder e buscar transformá-los – este é o significado da luta dos movimentos negros no Brasil. A institucionalização dessas demandas, por meio de políticas públicas e legislações específicas, é fundamental para a superação das desigualdades raciais em nosso País.

O Plano Nacional de Educação em disputa

Por Nina Madsen*

Está em disputa, no Congresso Nacional, o Plano Nacional de Educação. De um lado da contenda estamos nós, movimentos sociais do campo dos direitos humanos, lutando pela manutenção do texto enviado ao Congresso em 2010, um texto que avança em relação ao PNE anterior e que tenta responder a demandas históricas desses movimentos. Do outro lado, os grupos fundamentalistas conservadores que, há algum tempo, declararam guerra aos direitos das mulheres e da população LGBTT no país. As bancadas evangélica e ruralista, junto com as lideranças católicas conservadoras do Parlamento, estão unidas para tentar conter o que tem chamado de “avanço da ideologia de gênero”.

O texto do PNE não é exatamente revolucionário. Muito menos propagador de uma suposta “ideologia de gênero” – seja lá o que isso venha a significar. O texto simplesmente define como uma das diretrizes, “a superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual” (item III, Artigo 2º). O que os conservadores propõem em substituição, é uma redação genérica (com o perdão do trocadilho), que determina a ênfase da superação das desigualdades educacionais “na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação”.

O investimento dos grupos religiosos brasileiros no campo da educação não é novidade. Para lembrar dois exemplos recentes: o Acordo Brasil-Vaticano, firmado em 2009 pelo então Presidente Lula, que, atentando contra os princípios de nosso Estado Laico, recuperou a obrigatoriedade do ensino religioso nas escolas; e, em 2010, o arbitrário cancelamento da distribuição do material didático elaborado no âmbito do Projeto Escola Sem Homofobia.

Há algum tempo que nossa caminhada rumo a qualquer tipo de avanço no que diz respeito à garantia dos direitos humanos e do Estado Laico no país tem sido dificultada. Com o PNE, o caso não é diferente.

O que perdemos, caso ganhem os grupos religiosos conservadores? Perdemos a possibilidade de avançar em direção a uma educação fundada em princípios de igualdade, de direitos humanos e de cidadania para todxs, que garanta a diversidade sexual e a liberdade religiosa neste país multirracial e pluriétnico. Perdemos a possibilidade de avançar na desconstrução da cultura machista, racista e homofóbica que predomina em nossa sociedade. Uma cultura de violência que tem autorizado Estado e sociedade a produzirem números inaceitáveis de casos de violência contra as mulheres, de assassinatos de jovens negros e da população LGBTT no país.

De quantas mortes precisamos para convencer nossos ilustres parlamentares de que educar para a igualdade de gênero e para a igualdade racial e étnica é uma necessidade absolutamente urgente em nossa sociedade? De quantos estupros, de quantos assassinatos de mulheres, de jovens negros, de indígenas, de gays, lésbicas e pessoas trans precisamos?

Quantos casos e dados são necessários para convencê-los da gravidade do problema? Servem os dados do IPEA, lançados no dia 27 de março, sobre violência contra as mulheres e estupro? Essas pesquisas apontam números estarrecedores: 65,1% de concordância, total ou parcial, com a afirmação “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”. 58,5% concordaram com a afirmação de que “se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros” . O relatório da pesquisa destaca ainda, a respeito destes dados, que “chama atenção o fato de que católicos têm chance 1,4 vez maior de concordarem total ou parcialmente com essa afirmação, e evangélicos 1,5 vez maior”.

Na pesquisa sobre estupros, uma estimativa assustadora de mais de 500 mil estupros por ano no país, dos quais apenas 10% chegam ao conhecimento da polícia; 97,5% são praticados contra mulheres; 70% são praticados contra menores de 18 anos; e 15% são casos de estupro coletivo .

Educação para a igualdade e para a liberdade não é pregação de ideologia, é garantia de direitos e é estratégia de construção de uma sociedade menos violenta e mais justa. O Estado brasileiro não pode, nem por um segundo, enganar-se quanto à sua obrigação e quanto ao seu compromisso com essa construção. Não permitiremos nada menos.

*Nina Madsen é socióloga e integrante do Colegiado de Gestão do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea)

Artigo publicado no jornal Correio Braziliense em 02/04/2014

PNE corre o risco de ficar para 2015

No dia 11 de fevereiro foi retomada a tramitação do novo Plano Nacional de Educação (PNE) na Câmara dos Deputados, após um difícil período de análise da matéria no Senado Federal.

Embora a Câmara estivesse vazia, o Plenário 11 do Anexo 2 estava cheio. Na reunião da Comissão Especial dedicada ao tema estavam presentes: deputados e deputadas, assessores e consultores legislativos, ativistas da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, representantes de entidades de gestores municipais e estaduais, professores, líderes sindicais, jornalistas, evangélicos, servidores do MEC (Ministério da Educação), entre outros. Poucas matérias recebem tanta atenção.

Nessa etapa de tramitação osdeputados têm três opções: optar pela sua versão de PNE, aprovada em junho de 2012; escolher a versão do Senado Federal, finalizada em dezembro de 2013; ou eleger trechos de cada uma, compondo um novo texto, desde que nele não conste qualquer dispositivo novo que altere o mérito do que foi aprovado anteriormente pelo Senado ou pela Câmara.

Embora pareça ser um simples exercício de escolha, essa etapa exigirá sensibilidade e forte capacidade de negociação por parte dos parlamentares. O PNE tramita no Congresso Nacional desde dezembro de 2010 e sua construção não tem sido fácil.

Colaboração

Segundo o Art. 214 da Constituição Federal, o objetivo do PNE é “articular o Sistema Nacional de Educação em regime de colaboração”. Obrigatoriamente, ele deve “definir diretrizes, objetivos, metas e estratégias de implementação para assegurar a manutenção e desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis, etapas e modalidades”. Para dar conta dessa tarefa, a Carta Magna determina que é necessário empreender “ações integradas dos poderes públicos das diferentes esferas federativas”. E é precisamente nesse trecho final que reside essencialmente o problema.

Boa parte da demora na aprovação do PNE pode ser explicada precisamente pela dificuldade dos governos federal, distrital, estaduais e municipais de trabalharem em conjunto, articulando ações entre si e cumprindo com suas responsabilidades constitucionais.

PAPEL DO GOVERNO FEDERAL ESTÁ CLARO NA CONSTITUIÇÃO

Como a colaboração é desejável, mas nem sempre é espontânea, a Constituição Federal no Art. 211 vai asseverar que os governos federal – o que mais arrecada –, distrital, estaduais e municipais “organizarão em regime de colaboração seus sistemas de ensino”.

Ou seja, devem trabalhar juntos.

Logo em seguida, no primeiro parágrafo deste mesmo artigo, determina que a União, além de organizar o sistema federal de ensino e financiar as instituições públicas sob sua responsabilidade, “exercerá, em matéria educacional, função redistributiva e supletiva, de forma a garantir equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade do ensino mediante assistência técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios”.

Mais para frente é determinado que estes entes subnacionais são responsáveis, prioritária e respectivamente, pelo ensino médio (Estados), ensino fundamental (ambos) e a educação infantil (municípios).

No Brasil, a trajetória das políticas sociais em geral, e a da educação em específico, pode ser narrada como uma história de descontinuidades e dissonâncias. Embora alguns esforços recentes em contrário, cada governo tem a sua política, fala a sua língua e tenta acertar um alvo específico, sempre querendo deixar a sua marca.

Nesse jogo quase exclusivamente dedicado à ambição eleitoral, quem sai perdendo é o cidadão. Por exemplo, para um adolescente que está nos anos finais do ensino fundamental, pouco importa se sua escola é federal, estadual ou municipal, ele tem o direito de estudar em uma boa escola.

Custo mínimo, com qualidade, por aluno

Em relação à proposta aprovada na Câmara dos Deputados, um dos principais retrocessos do texto do Senado Federal de PNE foi precisamente o de desobrigar a União de colaborar com os entes subnacionais no alcance dos valores do CAQi (Custo Aluno-Qualidade Inicial).

O CAQi é um índice que reúne os custos da educação pública por aluno ao ano, considerando salário inicial condigno, política de carreira e formação continuada aos profissionais da educação, número adequado de alunos por turma, além de insumos infraestruturais como: brinquedotecas, bibliotecas, quadra poliesportiva coberta, laboratórios de informática e laboratórios de ciências, etc.

Criado pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, o mecanismo do CAQipretende proporcionar equidade no acesso à educação e, para isso, materializa justamente o padrão mínimo de qualidade exigido pelo parágrafo primeiro do Art. 211 da Constituição. Ou seja, oferece uma solução prática para colaboração da União com os entes subnacionais ao determinar que nenhum cidadão pode estudar em uma escola pública sem aqueles insumos listados.

Sendo um mecanismo justo, por que ele foi tirado do PNE no Senado Federal?

Primeiro porque as escolas brasileiras estão muito abaixo do padrão mínimo de qualidade. Uma pesquisa aponta que menos de 1% das escolas brasileiras têm infraestrutura mínima, segundo os critérios do CAQi (Custo Aluno-Qualidade Inicial). Segundo porque, o governo federal deveria repassar a Estados e municípios cerca de R$ 37 bilhões de reais por ano apenas para as matrículas atuais conforme estudo da Associação Nacional de Pesquisadores em Financiamento da Educação (Fineduca). Como o PNE exigirá a expansão de matrículas, esse valor subirá — e muito. E isso explica parte significativa da necessidade de investimento de um patamar equivalente a 10% do PIB para a educação pública.

Divergências entre Câmara e Senado

Além do CAQi, os textos da Câmara e do Senado divergem em outros temas importantes. Pelo Senado, o Estado brasileiro, e principalmente a União, fica desresponsabilizado de criar matrículas públicas no ensino técnico de nível médio e na educação superior, curiosamente uma das marcas do ex-presidente Lula, patrocinador político da presidenta Dilma Rousseff.

destinação de investimento público exclusivamente em educação pública também foi extraída do texto.

O PNE do Senado também traz outras mudanças negativas. E o aspecto mais dramático é que a versão aprovada pelos senadores em dezembro do ano passado foi construída por meio de forte interlocução deles com o MEC.

Nesse cenário, em que pese o fato de que na primeira reunião dedicada ao PNE todos os deputados tenham discursado em favor do texto da Câmara dos Deputados, dificilmente a matéria será resolvida com celeridade em sua etapa terminativa de tramitação.

Dificilmente o Governo Federal abrirá mão do texto do Senado Federal, pois ele é mais omisso quanto às suas responsabilidades. E é impossível que a sociedade civil aceite um PNE que desobriga o Poder Público de expandir matrículas com padrão de qualidade, tanto na educação básica, quanto na educação superior. O ano de 2014 reserva fortes emoções. E será lamentável, mas não uma surpresa, se ele se encerrar sem o Brasil ter um bom PNE aprovado.

Fonte: Uol Educação

Fora da escola não pode

Cleomar Manhas[1]

Realizou-se, no Senado Federal, audiência pública com o tema “Fora da Escola não Pode”, para apresentar pesquisa realizada pelo UNICEF e Campanha Nacional pelo Direito à Educação, como parte da Campanha Global Out of School.

O relatório elaborado no âmbito desta Campanha apresenta dados sobre quem são as crianças e adolescentes fora da escola, que em termos relativos significa pouco mais que 2% desse público, mas como se está falando de um país com mais de 200 milhões de habitantes, estes meros 2% viram multidões e representam grave violação de direitos. São 535 mil crianças entre 7 e 14 anos que estão fora da escola. E as pesquisas mostram que os mais afetados são negros, indígenas, quilombolas, pobres, sob risco de exploração e violência e com deficiência.

Além disso, apesar de o ensino fundamental estar quase universalizado, com exceção dos 2% citados, quando se fala em educação infantil e ensino médio a situação muda bastante. De acordo com o IBGE/CENSO 2010, há 1.154.572 crianças entre 4 e 5 anos e 1.725.232 adolescentes entre 15 e 17 anos em situação de exclusão escolar. Não computados aqui a demanda por creche não atendida, que se sabe ser número bastante significativo.

Kailash Satyarthi, criador da Marcha Global contra o Trabalho Infantil, alertou que um dos motivos de as crianças e adolescentes estarem fora da escola é em decorrência do trabalho precoce. E que não se pode falar de trabalho infantil separado do tema da educação. Os governos não devem tratá-los como questões díspares e a sociedade civil também não. E o que se vê é exatamente isso, tanto as políticas públicas, quanto os movimentos da sociedade organizada trabalham de maneira fragmentada e não dialogam entre si, desagregando temas e os enfraquecendo.

É plausível afirmar que trabalho infantil, analfabetismo e pobreza são três vértices de um mesmo triângulo, que se fortalecem mutuamente e precisam ser enfrentados conjuntamente. A última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD/2012) apresentou dado preocupante, o índice de analfabetismo que vinha, mesmo que devagar, em descenso nas duas últimas décadas, parou de decrescer. E mesmo tendo demonstrado que não aumentou entre as populações mais jovens, manteve-se entre os mais velhos. Além disso, há regiões com números elevados, especialmente em municípios mais distantes e com população rural numerosa. A preocupação deve-se ao fato de que em famílias com pouca ou nenhuma escolaridade, as crianças são menos estimuladas a estar na escola, o que promove um círculo vicioso.

A educação é um direito humano indiscutível, mas também é possível inverter a lógica e dizer que tanto o desenvolvimento, quanto os direitos humanos ligam-se à educação, que os promove. Pois é evidente que nos países onde a população tem acesso à educação de qualidade, por maior tempo, o desenvolvimento humano e econômico é mais vigoroso e o acesso aos demais direitos mais factível, até por se ter uma sociedade mais mobilizada e crítica, conhecedora de seus direitos.

Portanto, garantir educação de qualidade da Creche à Universidade significa realizar direitos humanos com a redução das diversas manifestações de desigualdades e a possibilidade de se ter desenvolvimento com sustentabilidade.



[1] Educadora e assessora política do Inesc.

Estupro na TV – por Márcia Acioli

Por Márcia Acioli

Um fato impensável invade lares de milhares de cearenses pela TV. Desavisadas, as pessoas em plena luz do dia assistem ao estupro de uma menina de 9 anos no dia 7 de janeiro de 2014 pela TV Cidade, de Fortaleza, afiliada da Rede Record. Como se não bastassem os dezessete minutos de exibição do estupro incluindo imagens do rosto da criança, a emissora ainda mostra a casa da vítima, violando o Estatuto da Criança e do Adolescente que preconiza no seu artigo 17 “O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais”.

O grau extremo de violência e de dor daquelas imagens é consenso. Não há quem conteste a ocorrência de injustificado ato de desprezo pela vida humana. No entanto, a violência não se restringe ao estupro. A exibição tem um efeito mortal sobre uma menina que certamente não quer reviver a cena, que não quer que outras pessoas a vejam naquela situação. Ela foi violada em sua intimidade, exposta no seu sofrimento máximo; naquele que, possivelmente será um dos maiores e mais marcantes de sua vida. Além de banalizar o estupro, a veiculação do ato na televisão viola o direito inalienável à privacidade. Portanto, a menina é violada inúmeras vezes. Uma pelo agressor direto, outras pelo agressor camuflado. Os efeitos da conjunção violência / exibição são devastadores. A publicação dessas imagens em nada difere das pornográficas. Ambas são exploração da imagem da criança na relação de exploração cruel de sua sexualidade.

Por outro lado uma audiência que, acostumada às cenas de terror e apresentadores histéricos incitando ao ódio, assiste com crescente desejo por vingança. A bola de neve da violência cresce descontroladamente. Linchamento público acaba sendo a única perspectiva para se conter a violência sexual.

A exibição o vídeo tem o único propósito de fazer da violência um espetáculo para uma audiência educada para o sangue. Não é preciso ver um estupro para saber que ele é violento. Este tipo de imagem importa somente a um grupo restrito de profissionais que tem como responsabilidade o trato direto ou indireto com a questão.

Para prestar um importante serviço à sociedade as TVs deveriam discutir profundamente a violência sexual, considerando a complexidade desta modalidade de violência contra crianças e adolescentes. É preciso discutir as perspectivas da idade, da identidade de gênero, das motivações de estupro, dos agressores e muito mais.

Por mais monstruosa que seja a violência sexual, o agressor também é humano e é justamente a sua dimensão humana que a praticou (ou pratica). É essencial que se compreenda, portanto, o nascedouro da motivação. O problema, embora pessoal, é também social e atinge a milhares de crianças pelo país inteiro, de múltiplas formas. Assim, a única justificativa para tratar de estupro na TV seria problematizá-lo para que todos os segmentos da sociedade fossem provocados a mudar, a eliminar, a coibir, a intimidar os valores e gestos que permitem que tal violência seja praticada.

Considerando que a TV aberta é uma concessão de um serviço público, submetida à decisão do Congresso Nacional regulamentada pelo Ministério das Comunicações, há responsabilidade do estado perante o fato e o estado deve uma resposta à sociedade brasileira. Multa, fim da concessão, responsabilização dos dirigentes da emissora é o mínimo que se espera. É importante recuperar aqui o debate nacional para um novo marco regulatório da comunicação que visa “garantir a estrita observação dos princípios constitucionais da igualdade; prevalência dos direitos humanos; livre manifestação do pensamento e expressão da atividade intelectual, artística e de comunicação, sendo proibida a censura prévia, estatal (inclusive judicial) ou privada; inviolabilidade da intimidade, privacidade, honra e imagem das pessoas; e laicidade do Estado”. (Vale acessar o site da campanha para Expressar a Liberdade )

Enquanto isso todo o esforço do mundo dificilmente devolverá à menina a alegria de sua infância.

*Assessora política do Inesc e mestre em educação pela UnB

Rolezinhos: O que estes jovens estão “roubando” da classe média brasileira

O Natal de 2013 ficará marcado como aquele em que o Brasil tratou garotos pobres, a maioria deles negros, como bandidos, por terem ousado se divertir nos shoppings onde a classe média faz as compras de fim de ano. Pelas redes sociais, centenas, às vezes milhares de jovens, combinavam o que chamam de “rolezinho”, em shopping próximos de suas comunidades, para “zoar, dar uns beijos, rolar umas paqueras” ou “tumultuar, pegar geral, se divertir, sem roubos”. No sábado, 14, dezenas entraram no Shopping Internacional de Guarulhos, cantando refrões de funk da ostentação. Não roubaram, não destruíram, não portavam drogas, mas, mesmo assim, 23 deles foram levados até a delegacia, sem que nada justificasse a detenção. Neste domingo, 22, no Shopping Interlagos, garotos foram revistados na chegada por um forte esquema policial: segundo a imprensa, uma base móvel e quatro camburões para a revista, outras quatro unidades da Polícia Militar, uma do GOE (Grupo de Operações Especiais) e cinco carros de segurança particular para montar guarda. Vários jovens foram “convidados” a se retirar do prédio, por exibirem uma aparência de funkeiros, como dois irmãos que empurravam o pai, amputado, numa cadeira de rodas. De novo, nenhum furto foi registrado. No sábado, 21, a polícia, chamada pela administração do Shopping Campo Limpo, não constatou nenhum “tumulto”, mas viaturas da Força Tática e motos da Rocam (Ronda Ostensiva com Apoio de Motocicletas) permaneceram no estacionamento para inibir o rolezinho e policiais entraram no shopping com armas de balas de borracha e bombas de gás.

Se não há crime, por que a juventude pobre e negra das periferias da Grande São Paulo está sendo criminalizada?

Primeiro, por causa do passo para dentro. Os shoppings foram construídos para mantê-los do lado de fora e, de repente, eles ousaram superar a margem e entrar. E reivindicando algo transgressor para jovens negros e pobres, no imaginário nacional: divertir-se fora dos limites do gueto. E desejar objetos de consumo. Não geladeiras e TVs de tela plana, símbolos da chamada classe C ou “nova classe média”, parcela da população que ascendeu com a ampliação de renda no governo Lula, mas marcas de luxo, as grandes grifes internacionais, aqueles que se pretendem exclusivas para uma elite, em geral branca.

Antes, em 7 de dezembro, cerca de 6 mil jovens haviam ocupado o estacionamento do Shopping Metrô Itaquera, e também foram reprimidos. Vários rolezinhos foram marcados pelas redes sociais em diferentes shoppings da região metropolitana de São Paulo até o final de janeiro, mas, com medo da repressão, muitos têm sido cancelados. Seus organizadores, jovens que trabalham em serviços como o de office-boy e ajudante geral, temem perder o emprego ao serem detidos pela polícia por estarem onde supostamente não deveriam estar – numa lei não escrita, mas sempre cumprida no Brasil. Seguranças dos shoppings foram orientados a monitorar qualquer jovem “suspeito” que esteja diante de uma vitrine, mesmo que sozinho, desejando óculos da Oakley ou tênis Mizuno, dois dos ícones dos funkeiros da ostentação. Às vésperas do Natal, o Brasil mostra a face deformada do seu racismo. E precisa encará-la, porque racismo, sim, é crime.

“Eita porra, que cheiro de maconha” foi o refrão cantado pelos jovens ao entrarem no Shopping Internacional de Guarulhos. O funk é de MC Daleste, que afirma no nome artístico a região onde nasceu e se criou, a zona leste, a mais pobre de São Paulo, aquela que todo o verão naufraga com as chuvas, por obras que os sucessivos governos sempre adiam, esmagando sonhos, soterrando casas, matando adultos e crianças. Daleste morreu assassinado em julho com um tiro no peito durante um show em Campinas – e assassinato é a primeira causa de morte dos jovens negros e pobres no Brasil, como os que ocuparam o Shopping Internacional de Guarulhos.

A polícia reprimiu, os lojistas fecharam as lojas, a clientela correu. Uma das frequentadores do shopping disse a frase-símbolo à repórter Laura Capriglione, na Folha de S. Paulo: “Tem de proibir este tipo de maloqueiro de entrar num lugar como este”. Nos dias que se seguiram, em diferentes sites de imprensa, leitores assim definiram os “rolezeiros” (veja entrevista abaixo): “maloqueiros”, “bandidos”, “prostitutas” e “negros”. Negros emerge aqui como palavra de ofensa.

As novelas já vendiam uma vida de luxo há muito tempo, só que nelas os ricos eram os que pertenciam ao mundo de riqueza. Nos videoclipes de funk ostentação, são os pobres que aparecem neste mundo.”

O funk da ostentação, surgido na Baixada Santista e Região Metropolitana de São Paulo nos últimos anos, evoca o consumo, o luxo, o dinheiro e o prazer que tudo isso dá. Em seus clipes, os MCs aparecem com correntes e anéis de ouro, vestidos com roupas de grife, em carros caros, cercado por mulheres com muita bunda e pouca roupa. (Para conhecer o funk da ostentação, assista ao documentárioaqui). Diferentemente do núcleo duro do hip hop paulista dos ano 80 e 90, que negava o sistema, e também do movimento de literatura periférica e marginal que, no início dos anos 2000, defendia que, se é para consumir, que se compre as marcas produzidas pela periferia, para a periferia, o funk da ostentação coloca os jovens, ainda que para a maioria só pelo imaginário, em cenários até então reservados para a juventude branca das classes média e alta. Esta, talvez, seja a sua transgressão. Em seus clipes, os MCs têm vida de rico, com todos os signos dos ricos. Graças ao sucesso de seu funk nas comunidades, muitos MCs enriqueceram de fato e tiveram acesso ao mundo que celebravam.

Esta exaltação do luxo e do consumo, interpretada como adesão ao sistema, tornou o funk da ostentação desconfortável para uma parcela dos intelectuais brasileiros e mesmo para parte das lideranças culturais das periferias de São Paulo. Agora, os rolezinhos – e a repressão que se seguiu a eles – deram a esta vertente do funk uma marca de insurgência, celebrada nos últimos dias por vozes da esquerda. Ao ocupar os shoppings, a juventude pobre e negra das periferias não estava apenas se apropriando dos valores simbólicos, como já fazia pelas letras do funk da ostentação, mas também dos espaços físicos, o que marca uma diferença. E, para alguns setores da sociedade, adiciona um conteúdo perigoso àquele que já foi chamado de “funk do bem”.

A resposta violenta da administração dos shoppings, das autoridades públicas, da clientela e de parte da mídia demonstra que esses atores decodificaram a entrada da juventude das periferias nos shoppings como uma violência. Mas a violência era justamente o fato de não estarem lá para roubar, o único lugar em que se acostumaram a enxergar jovens negros e pobres. Então, como encaixá-los, em que lugar colocá-los? Preferiram concluir que havia a intenção de furtar e destruir, o que era mais fácil de aceitar do que admitir que apenas queriam se divertir nos mesmos lugares da classe média, desejando os mesmo objetos de consumo que ela. Levaram uma parte dos rolezeiros para a delegacia. Ainda que tivessem de soltá-los logo depois, porque nada de fato havia para mantê-los ali, o ato já estigmatizou-os e assinalará suas vidas, como historicamente se fez com os negros e pobres no Brasil.

Jefferson Luís, 20 anos, organizador do rolezinho do Shopping Internacional de Guarulhos, foi detido, é alvo de inquérito policial, sua mãe chorou e ele acabou cancelando outro rolezinho já marcado por medo de ser ainda mais massacrado. Ajudante geral de uma empresa, economizou um mês de salário para comprar a corrente dourada que ostenta no pescoço. Jefferson disse ao jornal O Globo: “Não seria um protesto, seria uma resposta à opressão. Não dá para ficar em casa trancado”.

Por esta subversão, ele não será perdoado. Os jovens negros e pobres das periferias de São Paulo, em vez de se contentarem em trabalhar na construção civil e em serviços subalternos das empresas de segunda a sexta, e ficar trancados em casas sem saneamento no fim de semana, querem também se divertir. Zoar, como dizem. A classe média até aceita que queiram pão, que queiram geladeira, sente-se mais incomodada quando lotam os aeroportos, mas se divertir – e nos shoppings? Mais uma frase de Jefferson Luiz: “Se eu tivesse um quarto só pra mim hoje já seria uma ostentação”. Ele divide um cômodo na periferia de Guarulhos com oito pessoas.

Neste Natal, os funkeiros da ostentação parecem ter virado os novos “vândalos”, como são chamados todos os manifestantes que, nos protestos, não se comportam dentro da etiqueta estabelecida pelas autoridades instituídas e por parte da mídia. Nas primeiras notícias da imprensa, o rolezinho do Shopping Internacional de Guarulhos foi tachado de “arrastão”. Mas não havia arrastão nenhum. O antropólogo Alexandre Barbosa Pereira faz uma provocação precisa: “Se fosse um grupo numeroso de jovens brancos de classe média, como aconteceu várias vezes, seria interpretado como um flash mob?”.

A ideia da imaginação como uma força criativa apresenta-se fortemente no funk ostentação.”

Por que os administradores dos shoppings, polícia, parte da mídia e clientela só conseguem enquadrar um grupo de jovens negros e pobres dentro de um shopping como “arrastão”? Há várias respostas possíveis. Pereira propõe uma bastante aguda: “Será que a classe média entende que os jovens estão ‘roubando’ o direito exclusivo de eles consumirem?”. Seria este o “roubo” imperdoável, que colocou as forças de repressão na porta dos shoppings, para impedir a entrada de garotos desarmados que queriam zoar, dar uns beijos e cobiçar seus objetos de desejo nas vitrines?

Para nos ajudar a pensar sobre os significados do rolezinho e do funk da ostentação, entrevisto Alexandre Barbosa Pereira nesta coluna. Professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ele dedica-se a pesquisar as manifestações culturais das periferias paulistas. Em seu mestrado, percorreu o mundo da pichação. No doutorado, mergulhou nas escolas públicas para compreender o que é “zoar”. Desde 2012, pesquisa o funk da ostentação. Mesmo que os rolezinhos, pela força da repressão, se encerrem neste Natal, há muito que precisamos compreender sobre o que dizem seus protagonistas – e sobre o que a reação violenta contra eles diz da sociedade brasileira

– O rolezinho aparece ligado ao funk da ostentação. Em que medida há, de fato, essa ligação?

Alexandre Barbosa Pereira – O funk ostentação é uma releitura paulista do funk carioca, feita a partir da Baixada Santista e da Região Metropolitana de São Paulo, na qual as letras passam a ter a seguinte temática: dinheiro, grifes, carros, bebidas e mulheres. Não se fala mais diretamente de crime, drogas ou sexo. Os funkeiros dessa vertente começaram a produzir videoclipes inspirados na estética dos videocliples do gangsta rap estadunidense. Mas o mais curioso desse movimento é a virada que os jovens fazem ao mudar a pauta que, até então, era principalmente a criminalidade para o consumo. As músicas deixam de falar de crime para falar de produtos que eles querem consumir. Assim, ao invés de cantarem: “Rouba moto, rouba carro, bandido não anda à pé” (Bonde Sinistro), os funkeiros da vertente ostentação cantam: “Vida é ter um Hyundai e um hornet, dez mil para gastar, rolex, juliet. Melhores kits, vários investimentos. Ah como é bom ser o top do momento” (MC Danado). Deste modo, os MCs começaram a ter mais espaços para cantar em casas noturnas e passaram a produzir videoclipes cada vez mais elaborados, com mais de 20 milhões de acessos no YouTube, o que levou a um sucesso às margens da mídia tradicional. Alguns MCs chegaram a alcançar grande repercussão entre um segmento do público jovem, sem nunca ter aparecido na televisão. Vi meninas chorando por MCs em bailes, mesmo antes de o funk ostentação alcançar o destaque que conseguiu na grande mídia. Surgiram empresas especializadas na produção de clipes no estilo ostentação, como a Kondzilla e a Funk TV, claramente inspirados no gangsta rap, em que os jovens aparecem em carrões e motos, exibindo-se com roupas, dinheiro e mulheres. Uma reflexão interessante a se fazer é como a mídia tradicional, que antes execrava o chamado funk proibidão, que falava de crime, drogas e sexo abertamente, agora começa a elogiar o funk ostentação, denominando-o até como “funk do bem” e ressaltando a trajetória econômica e social ascendente dos MCs.

Pergunta. Fazendo um parêntese aqui, antes de chegar ao rolezinho, qual é o caminho para um jovem pobre ter acesso ao consumo de luxo, segundo o olhar do funk da ostentação? Esta virada que você mencionou…

Resposta. Primeiro que esse bem de luxo não é tão de luxo assim, afinal uma garrafa de uísque a 60 ou 80 Reais não é nenhum absurdo. É sempre possível comprar uma réplica daqueles óculos escuros que custam mais de mil reais. Nas casas noturnas de funk que observei, este era o preço. Pensemos num grupo de pelo menos quatro amigos dividindo o valor da compra. Não sai tão caro brincar de ostentar. Agora, tem os carros. Estes sim estão fora do alcance da maioria desses jovens. Mas aí há uma explicação interessante, que Montanha, um produtor e diretor de videoclipes da Funk TV, em Cidade Tiradentes, sabiamente me deu. Ele me disse que as novelas já vendiam uma vida de luxo há muito tempo, só que nelas os ricos eram os que pertenciam ao mundo de luxo. Nos videoclipes de funk ostentação, são os pobres que aparecem como um mundo de “riqueza” ou de “luxo”, com carros, mansões, roupas de marcas mais caras. Os jovens agora poderiam, segundo afirmou Montanha, ver-se como parte de um mundo de prestígio, daí a grande identificação. O crime pode ser um caminho para acessar esse mundo de luxo ou o que esses jovens entendem por um mundo de luxo, mas não é único. Esta é a lição que muitos MCs de funk têm tentando passar em suas falas na grande mídia. Eles de certa forma mostram um outro caminho, que, aliás, sempre esteve presente para esses jovens da periferia: tornar-se famoso pela música ou pelo futebol. Aliás, esses são caminhos que aparecem como os mais possíveis para os jovens negros e pobres das periferias do país imaginarem um futuro de sucesso. Num mundo em que há uma forte divisão entre trabalho intelectual e manual, com a extrema valorização do primeiro, o uso do corpo em formas lúdicas como meio de ganhar dinheiro mostra-se como opção para uma transformação da vida. “Crime, futebol, música, caralho, eu também não consegui fugir disso aí”, esse é o Negro Drama cantado pelos Racionais MC’s. Os MCs de funk ostentação estão tentando dizer que é possível construir uma vida de sucesso pela música. E o que era ficção, os videoclipes com carros importados emprestados ou alugados, com dinheiro cenográfico jogado para o ar, começa a tornar-se realidade. Muitos deles começam a ganhar uma quantidade razoável de dinheiro com os shows. Acho que a ideia da imaginação como uma força criativa apresenta-se fortemente no funk ostentação.

Será que a classe média entende que os jovens estão ‘roubando’ o direito exclusivo de eles consumirem? Direito que, por sua vez, vinha sendo roubado desses jovens pobres há muito tempo.”

Por outro lado, é preciso destacar que masculinidades pautadas pelo desejo de possuir um automóvel ou uma motocicleta não foram construídas pelo funk ostentação. Já existia há um tempo. Para os meninos da periferia, possuir um bom carro, bonito e potente, é uma das metas principais de vida. A posse do carro é, no imaginário desses jovens, mas também da população em geral, um indicativo de sucesso econômico e social, garantindo, consequentemente, sucesso com as mulheres.

Neste caldo cultural, o consumo é cada vez mais exaltado como espaço de afirmação e de reconhecimento para os jovens. É, inclusive, bastante complexa a forma como se dá a relação entre criminalidade e consumo no funk. Na virada que produziram, parece que há o recado de que essas duas ações sociais podem constituir dois lados de uma mesma moeda. Eles não deixam de falar do crime. Acabam citando-o indiretamente, como nas músicas do MC Rodofilho, nas quais ele celebra: “Ai meu deus, como é bom ser vida loka!”. O importante é entender como o crime e o consumo são pautas constantes nas relações de sociabilidade dos jovens da periferia. Os mais pobres também querem que ipads, iphones e automóveis potentes façam parte de seu mundo social. Ainda preciso observar e refletir mais sobre isso, mas acho que tanto no caso do crime, como no do consumo temos que atentar mais para o modo como se dão as relações entre pessoas e coisas. Fico pensando que a busca de realização apenas pelo consumo envolve sentimentos e posturas extremas de um egoísmo hedonista e de um profundo desprezo pelos outros humanos. As mercadorias, ou as coisas almejadas, de certa forma têm conformado as subjetividades contemporâneas. E nessas novas subjetividades, pautadas pelo instantâneo e o instável, parece não haver muito espaço para a solidariedade. Há uma nova tendência na discussão antropológica afirmando que não podemos entender as coisas apenas como representação ou resultado do social. Precisamos pensar também em como as coisas fazem as pessoas e mesmo o social, como as coisas, ou as mercadorias mais desejadas hoje, motivam tanto um consumismo desenfreado, irracional e egoísta, quanto o ingresso de jovens na criminalidade. Sempre fico espantado quando vejo as imagens, em outros países, das pessoas correndo desesperadas para comprar um novo lançamento de smartphone, videogame ou tablet… Mas não só isso, tais coisas também motivam e determinam formas de estar, pensar, relacionar-se e sentir no mundo contemporâneo.

Penso muito nisso quando parte da classe média critica o consumo desses jovens, dizendo que apenas eles – da classe média que, supostamente, pagaria os impostos – têm direito a consumir, ou se relacionar com certos produtos. Será que, desse modo, a classe média entende que os jovens estão roubando o direito exclusivo de eles consumirem ou de se relacionarem com esses objetos de prestígio? Direito que, por sua vez, vinha sendo roubado desses jovens pobres há muito tempo?

Essa crítica pode vir inclusive de certa classe média mais intelectualizada e mesmo com ideias políticas progressistas, mas que acha que sabe o que é melhor para os pobres. Aí fazem a crítica, a partir dos seus ipads e iphones, ao que entendem como um consumo irracional dos mais pobres, que deveriam poupar ao invés de gastar com produtos que não seriam para o nível econômico deles. Enfim, tem aí um jogo de perde e ganha e também de busca de satisfações individuais que envolve o roubo do direito de alguns ao consumo, que é preciso aprofundar para entendermos melhor essas dinâmicas contemporâneas. Todos têm o direito a consumir o que quiserem hoje? E seria viável, hoje, todos consumirem em um alto padrão? Que implicações ambientais teríamos? E se não é sustentável ou viável que todos consumam em tamanha intensidade, por que incentivamos tal consumismo? Com isso, o que quero dizer é que não se pode pensar a relação entre crime e consumo apenas entre os pobres, mas creio que precisamos também olhar para as classes médias e altas e para os crimes que, historicamente, têm sido cometidos contra os mais pobres e o meio ambiente para proteger o consumo dos ricos.

P. É neste ponto que os rolezinhos aparecem e criam uma tensão das mais reveladoras neste Natal?

R. Os rolezinhos nos shoppings estão ligados diretamente a esse contexto. Não sei dizer como surgiram efetivamente, mas me parece que despontaram por essas novas associações que as redes sociais permitem fazer, de forma que uma brincadeira possa virar algo sério. De repente, uma convocatória feita na internet pode levar centenas de jovens a se encontrarem num shopping, local onde podem ter acesso a esses bens cantados nas músicas, ainda que apenas por acesso visual. Agora, o que é importante ressaltar é que não foram os rolezinhos nem o funk ostentação que criaram essa relação de fascinação com consumo. Esta já existia há muito tempo. Os Racionais, há mais de dez anos, já cantavam sobre isso, com afirmações como: “Você disse que era bom e a favela ouviu, lá também tem uísque, red bull, tênis nike e fuzil” ou “Fartura alegra o sofredor”

É importante perceber que os shoppings onde os rolezinhos ocorreram estão em regiões mais periféricas. Eles não têm ido aos templos maiores do consumo de luxo na cidade.”

P. Algumas análises relacionam os rolezinhos a uma ação afirmativa da juventude negra e pobre, a uma denúncia da opressão e a uma reivindicação de participação, neste caso no mundo do consumo. Como você analisaria este fenômeno tão novo?

R. Não me arriscaria a dizer que há um movimento político muito claro. Pode indiretamente constituir-se como uma ação afirmativa da juventude negra e pobre. Talvez a tensão que se criou com a criminalização desses jovens, durante os rolezinhos, possa levar a algum tipo de reflexão e ação política maior, mas é difícil prever. Em um livro intitulado Cidadania Insurgente, (o antropólogo americano) James Holston analisa o surgimento das periferias urbanas no Brasil, particularmente em São Paulo, apontando a discriminação contra certas espécies de cidadãos no Brasil. Esse autor mostra como, historicamente, as formulações de cidadania elaboradas pelos mais pobres se deram a partir de sua ocupação dos bairros nas periferias das grandes cidades. Noções e práticas próprias de cidadania que se produziram, ao mesmo tempo, por meio das experiências de tornar-se proprietário, de participar de movimentos sociais por melhorias dos bairros e de ingressar no mercado consumidor. Primeiro se ocupou os bairros, mesmo sem estrutura mínima. Depois, ocorreram as reivindicações pela legalização dos terrenos ocupados. E, enfim, vieram as lutas pela chegada da energia elétrica, saneamento básico e asfalto. Acho sempre muito interessante, em conversas com lideranças antigas dos bairros periféricos de São Paulo, observar que elas indicam a chegada do asfalto como o grande marco de transformação do bairro e a integração deste ao espaço urbano.

Encaro, portanto, ações como estas, dos rolezinhos, do ponto de vista dessa “cidadania insurgente”, referindo-se a associações de cidadãos que reivindicam um espaço para si e, assim, se contrapõem ao grande discurso hegemônico ou, se não se dissociam do discurso hegemônico, ao menos provocam ruídos nele. Trata-se de uma reivindicação por cidadania, participação política e direitos que, historicamente, foi feita na marra, pelos mais pobres, muitas vezes nas costuras entre o legal e o ilegal, e que começou com a própria ocupação dos bairros na periferia da cidade de São Paulo, como forma de habitar e sobreviver no mundo urbano. Essa cidadania não necessariamente se apresenta como resistência, mas pode também querer, em muitos casos, associar-se ao hegemônico, produzindo dissonâncias.

O que são o funk ostentação e os rolezinhos se não essa reivindicação dos jovens mais pobres por maior participação na vida social mais ampla pelo consumo? Estas ações culturais parecem situar-se nessa lógica, que não necessariamente se contrapõe ao hegemônico, na medida em que tenta se afirmar pelo consumo, mas provoca um desconforto, um ruído extremamente irritante para aqueles que se pautam por um discurso e uma prática de segregação dos que consideram como seus “outros”.

P. Como definir este desconforto? O que são os “outros” neste contexto? E que papel estes “outros” desempenham?

R. O desconforto em ver pobres ocupando um lugar em que não deveriam estar, como o de consumidores de certos produtos que deveriam ser mais exclusivos. É um tipo de espanto, que indaga: “Como eles, que não têm dinheiro, querem consumir produtos que não são para a posição social e econômica deles?”. Estes “outros” são os considerados “subalternos”. Podem ser funkeiros, pobres e pardos da periferia, mas podem ser também as empregadas domésticas, os motoboys, os pichadores, entre outros “outros”, que muitas vezes são utilizados como bode expiatório das frustrações de uma parcela considerável da classe média.

Há uma tendência de perceber os jovens pobres a partir de três perspectivas: a do bandido, a da vítima e a do herói.”

Os rolezinhos não são protestos contra o shopping ou o consumo, mas afirmações de: “Queremos estar no mundo do consumo, nos templos do consumo”. Entretanto, por serem jovens pobres de bairros periféricos, negros e pardos em sua maioria, e que ouvem um gênero musical considerado marginal, eles passam a ser vistos e classificados pela maioria dos segmentos da sociedade como bandidos ou marginais. Vamos pensar que, na própria concepção do shopping, não está prevista a presença desse público, ainda mais em grupo e fazendo barulho. Pergunto-me se fosse em um shopping mais nobre, com jovens brancos de classe média alta, vestidos como se espera que um jovem deste estrato social se vista, se a repercussão seria a mesma, se a criminalização seria a mesma. Talvez fosse considerado apenas um flash mob. Há uma tendência, por parcela considerável da classe média, da mídia e do poder público de perceber os jovens pobres a partir de três perspectivas, quase sempre exclusivistas: a do bandido, a da vítima e a do herói.

P. Como funcionam estas três perspectivas – bandido, vítima e herói?

R.  São muito mais formas de enquadrar esses jovens por aqueles que querem tutelá-los do que categorias assumidas pelos próprios jovens. Por isso, são contextuais. Dependendo da situação e dos atores sociais com quem dialogam, o jovem pode ser entendido a partir de uma dessas categorias. O pichador, por exemplo, é um agente que pode mobilizar todas essas classificações, dependendo do contexto e dos interlocutores: a polícia, a secretaria de cultura, os pesquisadores acadêmicos ou a ONG que quer salvar os jovens da periferia da violência. No caso do funk, por exemplo, já há comentários e mesmo textos de pessoas mais politizadas vendo os rolezinhos como uma ação afirmativa ou extremamente contestatória. Para estes, os protagonistas dos rolezinhos são vítimas que se tornaram heróis. Outros, como a polícia, a administração dos shoppings e a clientela, mas também seus vizinhos, que moram lá nos bairros pobres da periferia, enxergam neles principalmente vilões e mesmo bandidos.

Jovens como estes que estão nos rolezinhos não necessariamente aceitam se encaixar nesses rótulos, mas, em alguns casos, podem também se encaixar em todos eles ao mesmo tempo. Não se pode simplificar um fenômeno como este. Porém, se pensarmos esse movimento que surge principalmente com o hip hop, de valorizar a periferia como espaço político e de afirmação positiva, é possível ver, sim, ainda que em menor intensidade, uma certa ação política. De dizer: “Somos da quebrada e temos orgulho disso”. Um movimento de reversão do estigma em marca positiva.

P. Mas há, de fato, uma ação consciente, organizada, com um sentido político prévio? Ou o sentido está sendo construído a partir dos acontecimentos, o que é igualmente legítimo?

R. Olha, sinceramente, é difícil dizer se há um sentido político, direto, consciente e/ou explícito. Talvez por parte de alguns, mas pelo que vi nas redes sociais, não da maioria. Se o movimento persistir ou tomar outras formas, pode ser que tal sentido político fique mais forte. Por enquanto é difícil analisar esse ponto. O antropólogo (indiano) Arjun Appadurai analisa há algum tempo as mudanças que se processam no mundo por causa do avanço das tecnologias de comunicação e de transporte. Segundo este autor, as pessoas cada vez mais se deslocam no mundo atual, e não apenas fisicamente, mas também e talvez principalmente pela imaginação, por causa de meios de comunicação como a televisão e, mais recentemente, pela internet. Hoje é possível imaginar-se nos mais diferentes lugares do mundo, mas também em diferentes classes sociais. O que são os videoclipes de funk da ostentação que não imagens/imaginações que os jovens produzem sobre o que seria pertencer a outra classe social ou possuir melhores condições econômicas para o consumo?

O que são os videoclipes de funk ostentação que não imagens que os jovens produzem sobre o que seria pertencer a outra classe social?”

Essa imaginação, segundo esse autor, pode constituir-se como um projeto político compartilhado, mas pode também ser apenas uma fantasia, como algo individualista e egoísta, sem grandes potenciais políticos. Parece-me que o funk da ostentação em São Paulo e movimentos como o dos rolezinhos nos shoppings têm intensamente essas duas potências. Difícil saber se alguma delas irá prevalecer ou tornar-se hegemônica.

P. A escolha da música do MC Daleste, assassinado num show em Campinas, para o rolezinho promovido no Shopping Internacional de Guarulhos, pode ter um significado a mais?

R. A escolha da música do MC Daleste na entrada dos jovens no shopping de Guarulhos me pareceu bastante significativa, por vários motivos. Principalmente, porque a morte dele no palco, cantando funk, de certa forma construiu um marco para esse funk da ostentação. O seu assassinato acabou por dar ainda mais visibilidade a esta vertente do funk paulista. MC Daleste cantava proibidão antes e, assim, essa relação confusa entre crime e consumo manifesta-se de modo bastante forte no que o MC Daleste representa. Há no seu próprio nome artístico essa afirmação de um certo orgulho do lugar de onde vem e de ser da periferia, que tanto o funk quanto o hip hop expressam. Não é por acaso que ele é “Da Leste”. Lembremos que Guarulhos também está à leste da Região Metropolitana de São Paulo.

P. Hoje, uma parte significativa da geração que se criou nas periferias com movimentos contestatórios como o hip hop e a literatura periférica ou marginal tem, pelo funk da ostentação, assumido os valores de consumo das classes médias e alta. Como você analisa este fenômeno e o insere no contexto histórico atual do Brasil?

R. O que um evento como esse parece evidenciar é, por um lado, esse anseio por consumir e por afirmar-se pelo consumo que esses jovens vêm demonstrando já há algum tempo, pelas letras dos funks, mas que também já é visto no hip hop. Apesar das críticas de certos segmentos do hip hop, não sei se o funk ostentação rompe com o hip hop mais politizado dos anos 1980 e 1990 ou se oferece uma das muitas possíveis continuidades a esse movimento cultural. Parece-me que o funk ostentação é uma releitura paulista, muito influenciada pelo hip hop, do funk carioca. Muitos MCs de funk eram MCs de hip hop, muitos deles, além dos funks, cantam também raps, e músicas dos Racionais são ouvidas nos shows. Trechos de letras de músicas dos Racionais podem ser encontrados facilmente nas letras do funk. Agora, o fato é que o funk não é tão marcado pela questão política como o hip hop. O Montanha, de Cidade Tiradentes, disse-me algo interessante, certa vez, de que, na verdade, o hip hop ofereceria um espaço de expressão política que faltava aos jovens, já o funk é um espaço de lazer e de sociabilidade. Parece-me uma reflexão interessante. Não que o hip hop não possa conter lazer e sociabilidade também, nem o funk, protesto político, mas que as duas vertentes tendem para um dos polos. O funk, aliás, ganhou esse grande espaço junto aos jovens das periferias de São Paulo porque, nessa articulação de um espaço de lazer, configurou-se um espaço para as mulheres que, no hip hop, era mais difícil. As mulheres são presença fundamental nos bailes funks. O protagonismo da dança sempre foi delas. Ainda que os meninos também dancem e as meninas participem cada vez mais como MCs. O hip hop sempre foi muito mais masculino, da dança ao estilo de se vestir.

P. Mas qual é a diferença, na sua opinião, entre a forma como, por exemplo, os Racionais falam em consumo e os MCs da ostentação falam de consumo?

Devemos questionar não a ação dos meninos, mas as relações sociais fomentadas na contemporaneidade que se pautam cada vez mais pela busca do reconhecimento pelo consumo, pela posse de ben

Revista Descolad@s – Ano 3, nº 3

Esta edição está repleta de temas polêmicos, mas extremamente relevantes: a relação entre orçamento público e grandes eventos (neste caso, a Copa do Mundo de futebol da Fifa); a Política Nacional de Resíduos Sólidos, com a desativação dos lixões até o fim de 2014; drogas na perspectiva da saúde pública e sua história.

A Revista Descolad@s é uma publicação criada inteiramente por adolescentes: meninos e meninas que têm muita coisa para falar e querem divulgar para outras jovens do Brasil a discussão de direitos e participação juvenil.

Mandela conseguiu ser reverenciado por seus antigos inimigos

Publicado pela Folha de São Paulo

http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2013/12/1292225-mandela-conseguiu-ser-reverenciado-por-seus-antigos-inimigos.shtml

No final da comédia “Um Peixe Chamado Wanda”, os letreiros descrevem o futuro dos personagens, e o direitista maluco e homicida interpretado por Kevin Kline termina como “ministro da Justiça da África do Sul”. Ri com o resto da audiência daquele cinema londrino, onde assisti ao filme pouco depois do lançamento, em 1988. Com Nelson Mandela na cadeia, dezenas de milhares de pessoas detidas sem processo judicial e o apartheid no auge de sua fúria, usar a palavra “justiça” para descrever o cargo não poderia ser mais absurdo e contraditório.

O que nenhum dos presentes ao cinema, ou aliás praticamente qualquer outra pessoa, poderia ter imaginado era que Mandela estivesse, naquele exato momento, conduzindo um diálogo perfeitamente cordial com Kobie Coetsee, então ministro da Justiça sul-africano. Coetsee, que comandava também o departamento carcerário, vinha realizando reuniões secretas com o mais famoso prisioneiro político do planeta desde 1985, a fim de explorar a possibilidade de uma transição negociada rumo ao governo democrático. Os dois continuaram a dialogar até que Mandela fosse libertado da prisão, depois de 27,5 anos encarcerado, em fevereiro de 1990.

Oito anos mais tarde, entrevistei Coetsee para um documentário de TV que eu estava produzindo sobre Mandela, que estava chegando ao fim de seu mandato de cinco anos como presidente da África do Sul. O que descobri foi que, para Coetsee, a reunião inicial com Mandela, em 1985, foi um caso de amor à primeira vista. Mandela, sob guarda e convalescendo de uma cirurgia na próstata, vestia um camisolão por cima do pijama. Coetsee, para todos os efeitos seu carcereiro, usava terno e gravata. Mas o ministro percebeu de imediato que não estava no mesmo plano que Mandela. “Ele era carismático por natureza –percebi assim que o vi”, Coetsee contou. “Era um líder nato”. Durante os 90 minutos de minha entrevista com Coetsee, ele chorou pelo menos seis vezes. “Para mim, Mandela personifica as grandes virtudes romanas”, disse o ex-ministro. “Honestas, gravitas, dignitas”.

Para aquele documentário, e o livro sobre Mandela que escrevi subsequentemente, entrevistei muitos de seus velhos inimigos políticos, homens brancos que haviam comandado ou apoiado o apartheid e aplaudido seu longo encarceramento. Sem exceção, todos haviam passado a reverenciar o antigo inimigo; como aconteceu com Coetsee ao falar comigo sobre Mandela, muitos derramaram lágrimas ao recordar sua nobreza.

Bastava conhecê-lo em pessoa para sucumbir ao seu charme. Mandela dispunha de um coquetel irresistivelmente sedutor que combinava sua inata majestade a um humor autoirônico, um conjunto de valores inflexíveis, visão astuta, inteligência política e monumental integridade. Tanto amigos quanto inimigos cediam diante de sua vontade. Pouco admira que políticos do mundo todo estejam formando fila para tecer elogios a Mandela: ele era o melhor do ramo. Uma das pessoas que veio a reconhecer seu talento, embora inicialmente não estivesse muito certo disso, foi Tony Leon, um líder branco da oposição política nos cinco anos de governo de Mandela.

Leon, um advogado de humor ferino que dirigia o Partido Democrata (no Reino Unido, ele seria conservador), costumava duelar com Mandela em debates parlamentares. Um dia, Mandela perdeu a paciência. “Estou ficando cansado dessas festinhas do Mickey políticas”. Leon retrucou: “Sim, e nós estamos cansados de uma política econômica dirigida pelo Pateta”. Dias mais tarde, Leon, 36 anos mais jovem que Mandela, sofreu um ataque cardíaco e teve de ser levado urgentemente ao hospital para uma cirurgia de ponte de safena. Ele estava se recuperando da operação quando ouviu uma voz, do outro lado das cortinas que protegiam seu leito. “Ei, Mickey Mouse”, disse a voz que ele reconheceu imediatamente como a de Mandela. “Pateta está aqui”.

Desde então, Leon, que recuperou a saúde e hoje é embaixador da África do Sul na Argentina, acrescentou seu nome à longa lista de admiradores irrestritos de Mandela. Meu nome também consta dela, aliás. Tendo observado seu trabalho de perto como correspondente do jornal “Independent” na África do Sul entre 1990, o ano de sua libertação, e 1995, o primeiro ano de sua presidência, e tendo realizado meia dúzia de entrevistas pessoais com ele e conversado com Mandela em diversas outras ocasiões políticas e sociais, terminei tão impressionado quanto todos os demais jornalistas que tiveram o privilégio de conviver com ele. Mandela eliminou o ceticismo que costuma ser endêmico em nossa profissão.

Em dado nível, isso se deve ao seu imenso gênio político, por conta das duas missões impossíveis que conseguiu realizar: a primeira, convencer seu povo a renunciar à vingança, depois de séculos de humilhação racial; a segunda, persuadir os compatriotas brancos a entregar o poder pacificamente, evitando a muito alardeada guerra civil.

Mas em nível mais simples, se bem que igualmente profundo, o que aprendi com Mandela foi a lição de como uma pessoa decente deve se comportar. É muito incomum conhecer alguém cujo comportamento se equipara aos valores que a pessoa diz defender; e mais incomum ainda encontrar uma pessoa desse tipo no mundo hipócrita da política. Mandela defendia o respeito, igualdade e generosidade de espírito. Colocava esses valores em prática em cada detalhezinho de sua vida, mesmo distante das câmeras, onde não havia vantagens políticas a obter. Era tão cortês e respeitoso com o jardineiro, o garçom e o comissário de bordo quanto o era com o presidente dos Estados Unidos e a rainha da Inglaterra –que aliás o adora. Tenho uma centena de histórias que serviriam para ilustrar o ponto. Eis uma delas:

Mandela estava em Xangai, hospedado na suíte presidencial de um hotel de luxo. Ao se levantar de manhã, ele arrumou a cama, como fazia onde quer que dormisse –incluindo o Palácio de Buckingham e a Casa Branca. A camareira que respondia pelo seu quarto ficou preocupada, como se já não soubesse seu lugar no mundo. Mandela, que estava participando de uma ciranda de reuniões com membros do governo chinês, foi informado da preocupação da camareira e a chamou ao seu quarto. Por meio de um intérprete, ele pediu desculpas, explicando que arrumar a cama era um reflexo tão natural e inevitável para ele quanto escovar os dentes a cada manhã. Mandela explicou que havia passado muito tempo na prisão, e que arrumar a cama era um hábito que não conseguia abandonar.

Ouvi essa história muitos anos depois de acontecida. Teria sido divertido descobrir qual foi a reação da camareira chinesa. Meu palpite é que ela deve ter ficado tão encantada e tão duradouramente impressionada quanto Kobie Coetsee, a rainha da Inglaterra e todos nós.

JOHN CARLIN, jornalista inglês, é colunista do “El País” e colaborou com o caderno “Esporte” da Folha. É autor de “Conquistando o Inimigo”, livro que inspirou o filme “Invictus”, sobre Mandela.

Tradução de PAULO MIGLIACCI

Por uma Constituinte Exclusiva e Soberana do Sistema Político

Só uma reforma política será capaz de favorecer um novo comportamento republicano

Marilza de Melo Foucher*

A reforma do sistema político foi uma das promessas de campanha da presidente Dilma Rousseff. O assunto voltou para a pauta de discussão depois de sua intervenção sobre os pactos firmados em consequência das diferentes manifestações de junho/julho. Hoje a presidente se diz defensora da reforma política com participação popular.

O Brasil tem um regime presidencialista dentro de uma federação, o que talvez complique ainda mais a missão do poder Executivo, pois cabe ao Legislativo fazer as leis. Supostamente se imagina que bastaria ter vontade política para promover todas as mudanças fundamentais que há anos a população espera, entretanto, a presidente tem que andar em cima de ovos para manter o equilíbrio entre Executivo e Legislativo. A negociação do Executivo se dá com os representantes eleitos no congresso e não com a sociedade. Aí a questão crucial é: como garantir uma boa governabilidade diante de parlamentares que na maioria das vezes não representam em nada aos seus eleitores?

O atual sistema partidário brasileiro não é compatível com a nova república democrática brasileira. Muitos partidos foram implantados no período de crise da ditadura e de transição para a democracia. Muitos surgiram sem fundamentos ideológicos. Infelizmente, nenhum governo pós-ditadura pode elaborar um projeto de reforma política, muitas vezes por falta de maioria e outras vezes por falta de vontade política. Existe uma pulverização do sistema partidário no Brasil que dificulta a formação de maiorias nas assembleias estaduais e no Congresso Federal.

Hoje temos aberrações que permite toda deriva republicana. Atualmente, segundo o Tribunal Eleitoral, existem registros de 27 partidos! Muitos desses não têm nenhuma base filosófica e política, são legendas de aluguel, como muitos proclamam. A prática nociva do “dando que se recebe” se banalizou no parlamento brasileiro. O pior é que esses políticos fisiológicos contribuem na permanência do vírus maléfico da corrupção política. Impunemente eles abusam do poder político para nomeações de afiliados, usam do apadrinhamento na distribuição de cargos. Estes políticos fisiológicos defendem interesses paroquiais em detrimento do interesse nacional. Para eles, tudo isto é normal. Eles vão continuar repetindo de modo cínico que tudo isto “faz parte do jogo político”.

Este ano festejamos 25 anos da Constituição Cidadã e a jovem democracia brasileira para entrar na idade de amadurecimento político vai precisar reformar com urgência seu sistema político. Não dá mais para esperar! Caso contrário, continuaremos vivendo num edifício inacabado muito aquém de uma democracia efetiva. A da Constituição Federal de 1988 no art. 14, incisos I, II e III, garante mecanismos de participação direta, tais como: o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular. A presidente Dilma pode fazer uso destas prerrogativas que conjuga a democracia representativa com mecanismos de participação popular.

Em razão desta realidade, só uma boa reforma do sistema político pode provocar um choque de seriedade junto à opinião publica e sem dúvida nenhuma contribuirá na melhoria da imagem do parlamento brasileiro hoje completamente deteriorada. Como dizia Norberto Bobbio: “Não existe estruturas perfeitas, e, a atitude do bom democrata é a de não se iludir sobre o melhor sistema político e a de não se conformar com o pior” (O futuro da democracia – Paz e Terra – São Paulo 1986).

O interesse pela coisa pública e a defesa do interesse geral

O parlamentar deve ter consciência que o exercício de um cargo eletivo não deve ser nem “individualista” e nem “carreirista”. A política não é uma profissão, nem é vitalícia, nem hereditária. Como indagava a filósofa Hannah Arendt: qual o sentido da política quando os homens políticos, eles mesmos perderam o sentido político?

Não devemos esquecer que temos nossa parte de responsabilidade em certos desvios republicanos, pelo fato de não exercermos nossa cidadania política e exigir que a casa do povo seja mais bem representada. O deputado não é eleito para oferecer um emprego ou bolsa de estudo. Ele é eleito para zelar pela coisa pública, pelo interesse coletivo e não individual. Ele não é eleito para defender seus interesses privados.

Se quisermos um melhor funcionamento da governabilidade democrática, e uma reforma do sistema e o funcionamento das instituições políticas, é hora de selar uma parceria entre democracia participativa e democracia representativa para elaborar uma verdadeira reforma do sistema político a fim de evitar a privatização da política.

Os representantes do povo, além de assumir o compromisso de defender os interesses públicos, devem estimular e facilitar a inclusão da participação social no poder político. Essa inclusão da cidadania política efetivará uma mudança estrutural nas relações com o poder e dará melhor sustentabilidade para uma governabilidade democrática mais participativa.

Existe hoje uma urgente necessidade de reencontrar o sentido nobre da política que permite uma comunidade de agir sobre ela mesma, sem perder a visão do interesse geral. Esta reforma política deve favorecer um novo comportamento republicano, só assim a política será escrita com letras maiúsculas e a palavra política ganhará credibilidade e sustentabilidade.

Os parlamentares devem ter um real compromisso partidário e devem privilegiar o interesse geral e zelar pela coisa pública.
Seria impossível renovar os quadros políticos e revigorar a democracia se não aceitamos dividir o poder, ou delegar o poder.
O dinamismo de uma democracia é aquela que não perde a capacidade de se inovar. O ideal seria poder ter uma rotatividade de mandatos e limitar os mandatos ao máximo de duas legislaturas. Os quadros políticos devem ser renovados. A rotatividade pode ser a solução para levar os jovens a se interessarem na política partidária. Por exemplo, um vereador pode se candidatar a prefeito, o prefeito a deputado estadual, o deputado estadual a deputado federal, o senador a governador, o deputado federal a senador. Se esta regra fosse votada, teríamos uma renovação completa do corpo partidário. É uma rica experiência poder subir na esfera da legitimação da representatividade popular. Assim como é importante que quadros políticos possam ser renovados.

Um segundo mandato é talvez interessante devido à experiência e amadurecimento político acumulado. Todavia, cabe aos eleitores no próximo pleito avaliar se a ação do candidato foi pertinente, que projetos ele apresentou, que projetos interessantes contaram com o seu voto, qual a sua postura ética durante o mandato. Diante do constato da ação política, eles votarão ou não a confiança para um segundo mandato. Brigar por um terceiro mandato consecutivo impede a ascensão de novos candidatos.

A reforma política é indiscutivelmente fundamental também para definir novas regras de financiamento público de campanha eleitoral criando um mecanismo de controle mais rígido. Outra questão que merece um debate nacional seria aprofundar a discussão sobre o significado da sustentabilidade política hoje no Brasil.

Os representantes do povo, além de assumir o compromisso de defender os interesses públicos, devem estimular e facilitar a inclusão da participação social no poder político. Essa inclusão da cidadania política efetivará uma mudança estrutural nas relações com o poder e dará de fato uma melhor sustentabilidade para uma governabilidade democrática mais participativa. De certeza o modo de fazer política forjará uma nova relação entre o Estado e a sociedade civil e um novo comportamento republicano.

Note: Escrevi um artigo semelhante que foi publicado em fevereiro de 2011 na Plataforma pela Reforma do Sistema Político que desde 2005 vem discutindo esta questão. A plataforma reúne atores da sociedade civil organizada (movimentos sociais, sindicatos, pastorais, fóruns sociais e outras diferentes organizações sociais).

*Economista, jornalista e correspondente do Correio do Brasil em Paris

Publicado originalmente no 247

Guia: Por um Parlamento sem Racismo

Os BRICS e a Participação Social na Perspectiva de Organizações da Sociedade Civil

O Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e a Rede Brasileira Pela Integração dos Povos (REBRIP) lançam “Os BRICS e a Participação Social na Perspectiva de Organizações da Sociedade Civil”. A publicação, que também tem co-autoria com parceiros dos países membros do BRICS, visa contribuir para a ampliação do debate sobre os BRICS e o papel que a sociedade civil pode e deve ter no sentido de incidir sobre os rumos deste bloco de países. Confira aqui

Novo Código Mineral

Novo Código Mineral representa um retrocesso do ponto de vista ambiental

Aconteceu ontem, dia 04 de setembro, a sétima audiência pública (no Congresso Nacional) da Comissão Especial encarregada de apresentar o relatório do novo Código da Mineração (PL 5708 de 2013). Depois de muitas audiências, esta foi a primeira e a última, de acordo com a agenda apresentada pela comissão, que pautou a questão dos impactos ambientais associados à mineração. O resultado não poderia ser mais preocupante.

As falas do Ministério Público, de organizações socioambientais e do Comitê em Defesa dos Territórios frente à Mineração (que reúne mais de 60 organizações e movimentos sociais) foram unânimes na avaliação de que o PL retrocede anos luz na questão ambiental.  O atual Código, de 1967, assegura a responsabilidade do minerador pelos danos ambientais e sociais gerados pela atividade e vincula o não cumprimento destas responsabilidades às sanções previstas no próprio Código. Já o PL que o governo enviou ao CN apenas menciona, como uma das diretrizes, o vago compromisso com o desenvolvimento sustentável e com a recuperação dos danos ambientais causados pela mineração. Todos nós sabemos que, em Lei, diretrizes e princípios não garantem nada concreto.

A opção do governo pelo chamado Código minimalista isenta o minerador do compromisso legal para com a preservação e recuperação do meio ambiente, sob a alegação de que isto está assegurado pela legislação ambiental vigente, por meio do licenciamento ambiental. Mas esta legislação ambiental vigente é hoje pouco cumprida porque os órgãos ambientais estão totalmente despreparados do ponto de vista técnico e humano, além de não terem poder político para fazer cumprir a legislação.

Estamos, portanto, no pior dos mundos. À fragilidade dos órgãos ambientais, exponenciada no caso dos órgãos estaduais, soma-se à ausência do compromisso legal explícito e específico da atividade mineral para com a preservação e recuperação do meio ambiente.  Em tempos de flexibilização da legislação ambiental e especificamente dos processos de licenciamento, que já não funcionam como deveriam, esta lacuna parece ainda mais preocupante.

A falta de compromisso do governo com uma regulação da atividade mineral que a torne menos agressiva ambientalmente e mais responsável pelos danos gerados ficou clara na audiência de ontem, de maneira constrangedora. O técnico de carreira do Ibama enviado para representar o órgão simplesmente assumiu publicamente que o seu órgão não tem posição institucional sobre o Projeto. Projeto este que foi enviado pelo governo ao CN, em regime de urgência constitucional, depois de anos sendo construído pelo MME sob a batuta da Casa Civil.

Ou seja, este PL absolutamente lacônico em relação ao meio ambiente simplesmente não foi discutido com os órgãos ambientais que deveriam, tecnicamente, ser os responsáveis por subsidiar esta parte da matéria e aprimorá-la em relação ao Código hoje vigente. Não é de se estranhar, portanto, que ele praticamente ignore a questão ambiental.

Outra expressão da falta de compromisso do governo e do seu PL com a busca de soluções concretas para conciliar mineração e preservação ambiental é a irrisória compensação financeira derivada da exploração mineral (CFEM) que será destinada ao combalido orçamento do Ibama para reforçar seu poder de fiscalização e licenciamento. Apenas 2% de 12% da CFEM que cabe à União será repassada ao órgão, ou seja, 0,24% vai para o Ibama. A situação, embora desoladora, é ainda melhor que a dos estados e municípios, já que nenhum centavo da CFEM distribuído aos municípios e estados (que abocanham a maior parte dos recursos, 65% vai para os municípios e 23% para os estados produtores) está obrigado a ser aplicado no meio ambiente devido ao fato de que não existe nenhuma vinculação para utilização deste recurso.

Como resolver esta lacuna? Objetivamente, uma primeira medida é garantir no texto da Lei o compromisso explícito e consequente com a preservação ambiental, incorporando o que já existe no Código de 1967 e dando garantias legais que reforcem e assegurem o que a atual legislação ambiental e sua prática, sozinhas, não estão conseguindo dar conta.

Mas é preciso ir além. É preciso que haja tempo para que o Congresso Nacional discuta com técnicos, com a sociedade e organizações socioambientais como disciplinar da melhor forma possível esta atividade, compatibilizando-a com outros valores tão estratégicos quanto os minérios.  Existem várias propostas de melhoria deste projeto que estão sendo colocadas na mesa de negociação. Também existem experiências de regulação da mineração em outros países que avançam do ponto de vista ambiental e social que devem nos servir de inspiração.

Cabe ao parlamento e também ao governo garantir o tempo necessário para que o debate amadureça e para que esta nova regulação não represente um grande retrocesso.

 

Qual o tamanho do passivo da mineração? Ninguém sabe, muito menos o Ibama.

O tamanho do passivo da mineração foi um debate a parte na audiência sobre “as entidades ambientais”, nome estranho para designar a relação entre mineração e seus impactos ambientais.

Sabemos que a mineração ao longo da sua história gerou um enorme passivo ambiental. Parcialmente, em função da fragilidade da legislação ambiental do passado, notadamente até a década de 90. Mas em grande parte, também, em função da incapacidade do estado de cumprir a legislação por meio de suas políticas de comando e controle. Relatos e imagens de minas abandonadas, rios assoreados, secos, contaminados, áreas degradadas pela mineração dão uma dimensão destes impactos.

Mas qual o tamanho do passivo gerado por tantos anos de impactos não mitigados? De quem é a responsabilidade por medir e reparar o que ainda pode ser reparado? Estas questões foram abordadas na audiência e geraram um constrangimento ainda maior na já desastrosa presença do Ibama no evento.

Ficou claro que o governo e os seus órgãos não só não sabem o tamanho do passivo como não têm reflexão ou posição formada sobre o tema. Simplesmente, insistem em dizer que os passivos não deveriam existir porque teoricamente o licenciamento existe para que os impactos sejam avaliados, mitigados e compensados ao longo da vida do projeto mineral.

Frente a este discurso desolador, a ideia de um inventário dos impactos da mineração cogitada por um parlamentar na audiência, soou como uma novidade ao órgão que já deveria ter este desafio como forma de enfrentar um dos seus muitos passivos.

Na ausência de respostas por parte do governo, o representante do Ministério Público disse que, por iniciativa da instituição, está sendo feito um levantamento dos impactos e um inventário, instrumento para melhorar a atuação do MP em ações de reparação. Nestas ações tem sido atribuído também ao Estado, a responsabilidade pelo dano ao meio ambiente. Essa atribuição advém de sua omissão em não fazer cumprir a legislação ambiental e o próprio código da mineração. Esta parte da conta, obviamente, caberá aos contribuintes.

O curto e ainda restrito debate sobre esta questão demonstra que é necessário garantir no texto do Código da Mineração não só a responsabilidade do empreendedor pela preservação ambiental, mas também os meios legais e institucionais pelos quais esta responsabilidade se objetivará. Isto significa colocar a questão ambiental como requisito para as concessões e operação das minas, garantir as condições financeiras para que os órgãos ambientais federal e estaduais atuem, além de garantir que a Agência e o Conselho a serem criados atuem, dentro dos limites das suas respectivas competências, em parceria com os órgãos ambientais no monitoramento e controle ambiental da atividade.

 

Alessandra Cardoso é assessora política do Inesc e atualmente é responsável pelo desenvolvimento do Observatório de Investimentos da Amazônia

 

 

 

 

 

Reforma Política: Como e o quê?

Uma reforma que amplie as possibilidades e oportunidades de participação, e seja capaz de incluir e processar os projetos de transformação que sujeitos políticos historicamente excluídos dos espaços de poder trazem para o cenário político. Foi essa a principal lição que as manifestações de junho nos colocaram.

Por José Antonio Moroni

A reforma política está presente na agenda nacional há vários anos, mas nas últimas semanas, após as manifestações e o pronunciamento da presidente Dilma Rousseff, um novo ingrediente, que diz respeito ao “processo”, foi acrescentado. Isto é, qual é o caminho para fazer a reforma política. Assembleia Nacional Constituinte? Plebiscito? Referendo? Iniciativa popular? Congresso faz sozinho e do jeito dele? Todos esses elementos estão “misturados” no debate, ofuscando a discussão sobre o conteúdo da reforma política: para que a queremos, o que esperamos enfrentar com ela, que sistema político desejamos construir? Os dois debates, sobre o processo e sobre o conteúdo, são fundamentais para a construção de um novo modelo democrático no país e devem andar conjuntamente. Na reforma política não podemos separar o conteúdo da forma, pois um determina o outro.

O Congresso Nacional há dezoito anos tenta votar essa reforma. Duas observações: todas as tentativas foram na direção de uma transformação eleitoral, e não política, e realizadas em momentos de “crises políticas” ou no início de legislatura. A resposta foi clara: queremos manter o sistema como está. Em outras palavras, o Congresso não vê grandes problemas que justifiquem uma “reforma”. O que se fez foram pequenos ajustes no processo eleitoral, nem sempre na direção da democratização do poder, e sim para atender aos interesses de quem está no poder ou próximo dele. Um exemplo recente é o grupo de trabalho da minirreforma eleitoral coordenado pelo deputado Cândido Vaccarezza (PT-SP), que apresentou relatório em julho no qual constam propostas na contramão de tudo o que a sociedade aponta e deseja. A sociedade quer partidos e candidatos com propostas, e eles liberam a obrigatoriedade dos candidatos de registrar seus programas em cartório; a sociedade quer transparência e controle dos gastos nos processos eleitorais, e eles flexibilizam a prestação de contas. Todas as propostas desse grupo de trabalho vão nessa direção, e o projeto foi aprovado em regime de urgência e vai entrar em votação no início de agosto. Vale aqui a ressalva de não confundir esse grupo de trabalho com o outro – coordenado pelo mesmo deputado – que trata da reforma política com o objetivo de dar resposta às demandas da rua e a proposta da presidente da convocação de um plebiscito.

Como podemos perceber, dificilmente o Congresso vai fazer uma reforma política que atenda aos interesses da população. O Parlamento entrou num processo muito comum às instituições de confundir os interesses de seus membros com os da instituição ou de quem ela diz representar. Quando isso acontece, o organismo perde a representatividade, a legitimidade e as condições políticas de propor algo que satisfaça as demandas do povo; e vai ficar sempre baseado nos interesses de seus grupos e integrantes. É o que acontece com o Congresso brasileiro.

Só se rompe isso com um movimento que articule forças políticas de fora com quem está “dentro” e quer mudanças. Caso contrário, o Congresso continuará a atuar como aquele cachorro que fica correndo atrás de seu próprio rabo.

Diante desse quadro político e pensando em criar esse movimento de fora, várias organizações e movimentos da sociedade civil coletam desde o final de 2011 assinaturas para a Iniciativa Popular para Reforma do Sistema Político. A iniciativa não se restringe a mudanças do sistema eleitoral, mas vai na direção do fortalecimento da soberania popular, por meio de várias propostas, entre elas a de que determinados temas só possam ser definidos por plebiscitos e referendos e a que dá ao povo o poder de convocação desse instrumento da democracia direta, retirando essa exclusividade do Congresso, como ocorre hoje. Para conhecer melhor essa proposta, acesse .

Nas últimas semanas, novos ingredientes foram acrescentados nesse debate. Com as últimas manifestações de rua, ficou evidente o total esgotamento do nosso atual modelo democrático, centrado no poder da representação e na força do capital privado financiando as campanhas. Assim, ganha força na sociedade a busca de outras estratégias políticas para a realização da reforma política. É nesse contexto que surgem as propostas de convocação de uma assembleia constituinte e de um plebiscito.

Para iniciar esse debate, precisamos colocar algumas premissas sem as quais corremos o risco de cair em armadilhas ou cascas de banana colocadas ao longo do caminho.

A Assembleia Constituinte precisa ser exclusivasoberanaespecíficapara a reforma política. Exclusivaquer dizer eleita especificamente para fazer a reforma, não delegando ao Congresso essa tarefa. Soberana: sem influência do poder econômico, tanto no processo de escolha dos constituintes como nas definições, com possibilidades de candidaturas avulsas, ou seja, não necessariamente via partidos, e representativa de todos os segmentos da população. Uma assembleia constituinte não pode ser o espelho da representação que temos hoje no Parlamento: branca, masculina e proprietária. Tem de ser uma expressão, em pé de igualdade, de todos os grupos sub-representados de nossa sociedade, mulheres, população negra, indígena, jovem, homoafetiva, do campo e das periferias. Específica: deve ficar restrita ao tema da reforma política (não apenas eleitoral), não podendo decidir sobre outras questões que não estejam a ela relacionadas. Não podemos correr o risco de perder conquistas obtidas com a Constituinte de 1988, principalmente as concernentes aos direitos sociais, individuais e coletivos.

Se o caminho for o plebiscito, devemos garantir que a definição das perguntas seja feita por meio de mecanismos de consulta popular, e não apenas pelo Congresso; que a campanha gratuita tenha a participação das organizações da sociedade, e não apenas das frentes parlamentares, como define a lei hoje; e, por último, mas não menos importante, que o plebiscito tenha caráter vinculante, isto é, o Congresso não pode decidir pelo contrário. A ideia seria fechar esse processo com o referendo − o povo dizendo se o Congresso interpretou bem ou não a vontade popular. Aqui vale uma ressalva: quando da ideia do plebiscito, juristas de plantão, aqueles que a grande mídia escuta, vieram com a pérola de que o plebiscito era apenas uma consulta, cujo resultado o Congresso poderia acatar ou não. Sugiro para estes algumas aulas extras de soberania popular.

Essa discussão “da forma” é fundamental, pois define a concepção que temos de reforma política e também os sujeitos políticos desta. No formato o “Congresso faz”, estamos delegando esse poder à representação e, como esta só consegue pensar em processo eleitoral, a reforma política será igual a reforma eleitoral. Que é importante, necessária, mas não suficiente.

Nos demais casos, iniciativa popular, Assembleia Constituinte exclusiva, soberana e específica e plebiscito/referendo, estamos dizendo que o alicerce da reforma política é a soberania popular. Portanto, o sujeito político dessa transformação é o próprio povo, e o conteúdo diz respeito ao exercício dessa soberania, isto é, a todas as formas de poder, e não apenas à representação.

Nesse caso, reforma política é a reforma do próprio processo de decisão, portanto, a reforma do poder e da forma de exercê-lo.Quem exerce o poder, em nome de quem, quais são os mecanismos de controle? Enfim, quem tem o poder de exercer o poder numa sociedade tão desigual como a nossa? Por isso deve estar alicerçada nos princípios da igualdade, da diversidade, da justiça, da liberdade, da participação, da transparência e do controle social, e não pode ser apenas reforma eleitoral. Portanto, estamos falando da reforma do sistema político.

Se todo poder emana do povo, pensar a reforma do sistema político é pensar como esse poder deve ser devolvido ao povo, que tem o direito de exercê-lo de forma direta, e não apenas por delegação (delegar para quem elegemos). Democracia é muito mais que apenas ter “eleições limpas”.

Não se pode pensar numa reforma do sistema político sem enfrentar as desigualdades de sexo, de raça, etnia e de renda nas formas de exercer o poder. Assim, falar em reforma do sistema político é tratar de racismo, machismo, homofobia, desigualdade econômica e preconceitos presentes em nossa sociedade e nas estruturas de poder.

A reforma precisa radicalizar a democracia, enfrentando todas as formas de desigualdade e preconceito, promovendo a igualdade, a diversidade e a participação política. Isso significa uma reforma que amplie as possibilidades e oportunidades de participação, que seja capaz de incluir e processar os projetos de transformação que sujeitos políticos historicamente excluídos dos espaços de poder − como mulheres, afrodescendentes, homossexuais, indígenas, jovens, pessoas com deficiência, idosos e todos os despossuídos de direitos − trazem para o cenário político. Foi essa a principal lição que as manifestações de junho nos colocaram. Precisamos construir outro desenho democrático, isto é, um mosaico em que todos se sintam não apenas representados, mas participantes e com mecanismos de exercício do poder de forma direta.

Precisamos também repensar a atual arquitetura da participação (democracia participativa). A multiplicação de espaços participativos (conselhos e conferências) não significa automaticamente a partilha de poder. Precisamos caminhar na direção daconstrução de um sistema integrado de participaçãoque inclua a política econômica e de desenvolvimento, e não apenas as políticas sociais. Aqui vale uma pergunta: por que as demandas das manifestações de junho por serviços públicos de qualidade não desembocaram nesse sistema de participação institucionalizada? Se desembocaram, por que não foram respondidas?

Precisamos aperfeiçoar a democracia representativa. Para isso são necessários partidos políticos democráticos, fortes, programáticos, com densidade na sociedade, com vida o ano todo, e não apenas em momentos eleitorais. Precisamos realmente terpartidos como instrumentos de representação política de parte da sociedade, e não de interesses pessoais ou de grupos. A fidelidade partidária, o financiamento público exclusivo de campanha, a votação em listas escolhidas de forma democrática, com alternância de sexo e respeito a critérios raciais, geracionais e homoafetivos, e a possibilidade de revogação de mandatos pela população devem ser prioridades. É necessário pensar outra forma de escolha da representação indígena. Antes de tudo, é preciso criar a equidade nas disputas políticas que se fazem por meio de mecanismos da democracia representativa.

Não existe reforma do sistema político sem enfrentamento do poder dos meios de comunicação privados, assim como do isolamento do Poder Judiciário às demandas populares e sua elitização.

Em resumo, pensar a reforma do sistema político é pensar como democratizar as relações de poder em todas as esferas e em todos os espaços, e isso só a soberania popular é capaz de fazer.

José Antonio Moroni – é filósofo, da Direção Colegiada do Inesc – Instituto de Estudos Socioeconômicos.

Publicado originalmente no Le Monde Diplomatique

Qual reforma política e como?

 

A reforma política presente na agenda nacional há vários anos ganhou novo ingrediente após as manifestações e o pronunciamento da Presidenta Dilma. Este novo ingrediente diz respeito ao “processo”, isso é, qual o melhor caminho para se fazer a reforma política. Assembleia Nacional Constituinte? Plebiscito? Referendo? Iniciativa Popular? O Congresso faz do jeito dele? Este debate importante não pode ofuscar a discussão sobre o conteúdo da reforma política: para que queremos a reforma política, o que queremos enfrentar com a reforma política, que sistema político queremos construir? Os dois debates, sobre o processo e sobre o conteúdo da reforma política, são fundamentais para a construção de um novo modelo democrático no país e devem andar de forma conjunta.

Independente da inércia e da falta de interesse do Congresso, o que se coloca como questão de fundo é quais são os sujeitos políticos reconhecidos como tal para fazer a reforma. Sempre defendemos que a reforma política tem que construir uma nova forma de poder, portanto uma nova forma de exercício da política.  Esta nova forma só pode estar alicerçada na soberania popular, no poder popular. Portanto, o instrumento para se fazer a reforma precisa estar alicerçado na democracia direta, nos sujeitos políticos e na sociedade, com as suas diversas formas de organização, inclusive os partidos.

Sobre o conteúdo, não podemos aceitar uma reforma que queira apenas “limpas as eleições”. Isso não muda a lógica do poder, nem do debate político sobre a reforma. Além de melhorar o nosso sistema eleitoral, com a proibição do financiamento privado e mecanismos de inclusão nos espaços de poder dos grupos subrepresentados, especialmente mulheres, população negra e indígena, homoafetiva, pessoas com deficiência, jovens etc, precisamos fortalecer o poder de decisão do próprio povo através dos instrumentos da democracia direta.

Neste sentido é fundamental que o povo tenha o poder de convocar plebiscito e referendo e que determinadas questões só possam ser decididas através destes instrumentos. E não existe reforma do sistema político sem enfrentar o poder dos meios de comunicação privados, assim como o isolamento do poder judiciário às demandas populares e a sua elitização.

Em resumo, pensar Reforma do Sistema Político é pensar em como democratizar as relações de poder em todas as esferas e em todos os espaços, e isso só a soberania popular é capaz de fazer.

*membro do Colegiado de Gestão do Instituto de Estudos Socioeconômicos – Inesc

**Acesse a página da Plataforma pela Reforma do Sistema Político e assine a PROPOSTA DE INICIATIVA POPULAR PARA REFORMA DO SISTEMA POLÍTICO

Fonte: Abong




http://www.rets.org.br/?q=node/2306

Candelária, 20 anos – País rico é país sem chacina

Leonardo Sakamoto

 

 

Mais de 50 crianças e adolescentes de rua costumavam dormir na praça da Igreja da Candelária, região central do Rio de Janeiro. Na madrugada de 23 de julho de 1993, policiais militares, em horário de folga, atiraram contra nove deles, com idades entre 11 e 20 anos. Dos atingidos, apenas um sobreviveu. Durante as investigações, levantaram-se diferentes razões para o crime. De uma pedra atirada contra uma viatura da polícia por um dos garotos até o não pagamento de propina aos PMs coniventes com o tráfico de cocaína.

 

 

 

Quatro pessoas foram acusadas após a chacina: Marcus Vinícius Emmanuel, Cláudio dos Santos e Marcelo Cortes e o serralheiro Jurandir Gomes de França. Em 1996, Nelson Cunha confessou sua participação no crime e acusou seus colegas policiais Marco Aurélio Alcântara, Arlindo Lisboa Afonso Júnior e Maurício da Conceição, assassinado em 1994.

 

 

Desses, Emmanuel, Alcântara e Cunha, foram condenados a penas que chegaram a 300 anos de reclusão, respectivamente. Mas, hoje, estão em liberdade, indultados ou em condicional.

 

Arlindo foi condenado a dois anos porque uma das armas usadas na chacina foi encontrada em seu poder. Cláudio, Jurandir e Cortes foram inocentados com o depoimento de Cunha e absolvidos a pedido do Ministério Público. Os dois primeiros foram indenizados pelo Estado por ficarem presos injustamente por quase três anos.

 

 

Na época, os meninos afirmaram que oito policiais participaram da ação, e Wagner dos Santos, o único sobrevivente, foi contundente ao reconhecer Cortes como um de seus algozes. Hoje, a vítima mora na Suíça, após ter sofrido um atentado e recebido constantes ameaças de morte. Carrega as sequelas do crime, como balas alojadas no corpo.

 

 

Os promotores do processo afirmam que havia mais policiais envolvidos, mas durante as investigações não foi possível identificá-los.

 

A repercussão internacional decorrente da exploração do caso na mídia e do trabalho das ONGs ajudou na condenação dos policiais. Mas a pressão da mídia também prejudicou o andamento do processo por dar a ele um sentido de escândalo, impedindo o aprofundamente na investigação. Daí, alguns foram injustiçados e outros saíram impunes.

 

 

O Estado, porém, não teve competência para garantir uma vida melhor ao restante dos jovens que dormiam sob as luzes da Igreja da Candelária. Muitos sobreviventes morreram assassinados, vítimas da Aids, outros serviram ao tráfico, foram para prostituição e há os que desapareceram. Sandro, o sequestrador morto pela polícia no caso do ônibus 174, caso que inspirou um filme, escapara daquele

 

dia na Candelária.

Nas últimas duas décadas, o Brasil bateu recordes na geração de empregos, reduziu a fome e a pobreza, manteve sua economia estabilizada, consolidou sua democracia. Tornou-se parte de um acrônimo (Bric), ganhou respeito internacional e começou a pavimentar seu caminho para se tornar a quinta maior economia do mundo – processos que, em maior ou menor grau, devem ser creditados aos governos que conduziram o país nesse período. Diante de um cenário de pujança como esse, pergunto-me porque o Brasil continua encontrando formas idiotas de matar seus filhos.

 

 

 

Pensávamos que não cometeríamos os mesmos tipos de “erros” de 20 anos atrás, mas não foi bem assim. Carandiru (1992), Vigário Geral (1993), Ianomâmis (1993), Candelária (1993), Corumbiara (1995), Eldorado dos Carajás (1996)  ganharam roupagem nova e continuam acontecendo. Ou seja, o modelo se se manteve: continuamos matando gente pobre.

 

 

Nos últimos dez anos, o país assistiu a centenas de assassinatos de trabalhadores rurais indígenas, quilombolas e ribeirinhos em conflitos agrários (e daqueles que ousaram os ajudar), massacres de sem-teto e população em situação de rua, mortes de homossexuais. Isso sem contar os jovens negros e pobres na periferia de grandes cidades, como São Paulo.

 

 

Como em agosto de 2004, quando moradores de rua foram espancados no Centro de São Paulo, na região do Largo São Bento, Praça João Mendes e Rua 15 de Novembro. Sete não resistiram e morreram em decorrência dos ferimentos. Policiais militares e seguranças privados foram apontados como responsáveis, formando uma espécie de grupo de extermínio.

 

 

Ou em maio de 2006, em que cerca de 500 pessoas, a maioria de jovens, negros, pobres e moradores de periferia foram mortos no Estado de São Paulo. O indícios apontam para policiais e

grupos de extermínio ligados a eles como retaliação aos ataques do PCC.

Ou ainda a condição dos guarani kaiowá do Mato Grosso do Sul, que enfrentam a pior situação entre os indígenas do Brasil, apresentando altos índices de suicídio e desnutrição infantil. O confinamento em pequenas parcelas de terra por conta do avanço do agronegócio no estado é uma das razões principais para a precária situação do povo. O Estado vem concentrando a maioria dos assassinatos de indígenas no país, boa parte delas diretamente relacionadas com a disputa pela terra. Mesmo em reservas já homologadas, os fazendeiros-invasores se negam a sair. E contam com a ajuda da

 

 

segurança pública, a mando do poder público ou a soldo particular.

Muitos policiais estão envolvidos com os crimes citados. Poderiam muito bem afirmar que estava “cumprindo ordens”, como os nazistas em Nuremberg. Pois, o que ocorreu em muitas dessas chacinas foi um servicinho sujo que parte de nós, “homens e mulheres de bem”, desejavam (e ainda desejam) em seus sonhos mais íntimos: a “limpeza social” desde país das “classes perigosas” e dos entraves para o progresso. Vamos ser sinceros. Não é que a nossa sociedade não consegue apontar e condenar os culpados por todas elas como deveria. Ela simplesmente não faz questão. Porque, como já disse aqui, não suportaria um espelho no banco dos réus.

 

 

 

(Com informações e texto de Fernanda Sucupira e Natália Suzuki, pela Repórter Brasil)

 

http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2013/07/23/candelaria-20-anos-pais-rico-e-pais-sem-chacina/

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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