Hipocrisia e descaso com crianças e adolescentes

Hipocrisia, Políticas Públicas e Direitos da Criança e do Adolescente

 Márcia Acioli
Ivônio Barros
Lucídio Bicalho

 

Na última semana de setembro, o jornal Correio Braziliense, mais uma vez, escancarou em suas principais páginas a dura realidade da exploração sexual e do abuso contra crianças e adolescentes no centro de Brasília. A mesma realidade de drogas, abuso e exploração que se vê no centro e praias do Rio de Janeiro, no centro de São Paulo, na praia de Iracema, em Fortaleza, no Recife, em Natal, entre outras tantas.

Não é novidade. As crianças e adolescentes estão lá, em todos esses locais, desde há muito. Os passantes não os vêem. Quando muito, desviam deles, como fazem com as fezes dos cachorros ou o esgoto da rua.

São crianças-cocô. É assim que a sociedade os percebem. Como autoridades públicas e governantes não andam à pé pela cidade, nem isso olham.

O horror denunciado revela o descaso com que o Governo do Distrito Federal, o GDF, trata crianças e adolescentes desfavorecidas pela “loteria genética” na capital da república. Não é por ser capital do país que o problema se torna mais grave, mas é por ser o centro do poder que se espera políticas exemplares para o enfrentamento a qualquer forma de violência contra crianças e adolescentes. É obrigação do poder público já ter construído e consolidado políticas eficientes para o enfrentamento à intolerável dizimação da infância.

Nos centros urbanos a concentração é maior. Mas as crianças e jovens estão cheirando cola de sapateiro, tinner, fumando crack e outras drogas pesadas em vários lugares da cidade. E, esses mesmos pontos são os lugares onde são exploradas e abusadas. Os traficantes, policiais, abusadores de toda a espécie sabem disso. Jornais fotografam os carros, com o cuidado de não mostrar suas placas, para não constranger os estupradores e exploradores.

Os adultos que exploram saem invariavelmente incólumes. São pessoas comuns que as violentam, mas protegidas pelos gabinetes de luxo, ou pelo espaço privado de seus carros permanecem intactas. Já para o menino ou para a menina que se encontra nas ruas em situação de exploração e/ou de alta vulnerabilidade os olhares são dos mais intolerantes e discriminatórios, como se fizessem parte de uma outra humanidade que não a dos abastados.

Quando a notícia sai nos jornais, juízes, ministros, governadores, políticos em geral, fazem cara de espanto e prometem agir imediatamente. Eles sabiam. Eram coniventes. Sabem do horror das ruas, mas na mente deles, elas são destinadas a subpessoas ou não-pessoas. Quer sejam elas trabalhadores superexplorados, quer sejam sem-teto, meninos e meninas de rua, pessoas que não freqüentam a “sociedade”.

O GDF já teve um programa exemplar. O governo Cristovam chamou os diversos segmentos: movimentos sociais, universidade e secretarias de governo para conceberem coletivamente o programa Brasília diz não à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. A experiência, ainda por ser aperfeiçoada, foi desarticulada por mera questão de disputas partidárias por ocasião da mudança de governo.

 

A série de reportagens do Correio Braziliense mostra bem o complexo elo entre as diversas formas de vulnerabilidades e de violação de direitos: trabalho infantil, situação de rua, violência doméstica, violência e exploração sexual, tráfico e dependência de drogas. São inúmeras situações que se articulam, configurando cenas de profunda degradação humana; fatos que têm sido sistematicamente denunciados pelas organizações da sociedade civil que vêm exigindo do GDF ações articuladas que dêem respostas concretas ao problema social, bem como a casos particulares que exigem atenção e proteção imediata.  

O governador do Distrito Federal fez publicar no dia 26/9 no Correio Braziliense um artigo que fala da indignação que sentiu e, novamente, de algum lugar entre a hipocrisia e o populismo, diz que sua prioridade é a educação. Mentira. A prioridade deste governo, como do anterior, é o asfalto e o concreto. Movimenta mais dinheiro e reforça a lógica do sistema político e econômico. É o reino do automóvel particular, das empreiteiras, das porcentagens que alimentam caixas de campanha e fortunas pessoais que aparecem da noite para o dia.

Agora, o governo responde aos jornalistas e à parte da sociedade com um programa emergencial. Não irá resolver nada. Nem minimizar o problema. É um pouco de velhas fórmulas, todas focadas na repressão a crianças e adolescentes. Nem os traficantes se sentirão intimidados, não são a eles que o governo procura. Portanto, são respostas que além de insuficientes, trazem vícios de concepção que não ajudam a avançar nas raízes do problema.

Não é uma ação desesperada e histérica que vai dar conta de um mal que avança com o tempo e ganha contornos de violência cada vez mais sofisticados. Hoje o governo é cobrado por uma omissão acumulada ao longo dos anos.

No ano em que o Estatuto da Criança e do Adolescente completa 18 anos, é flagrante o desprezo pelo principal instrumento “garantidor de direitos” deste segmento. Isto é notório quando analisada a execução orçamentária das principais ações do GDF na área do combate à exploração sexual de crianças e adolescentes apurado até o dia 4 de agosto.

O “Programa Sentinela” efetivamente gastou (liquidou) apenas 4,58% (R$ 12,34 mil de R$ 269,98 mil disponíveis para esse programa no ano). O “Programa Social de Atendimento à criança e adolescentes vítimas de Violência e Exploração Sexual” teve 0,0% de execução.

No DF, o Índice de Gini — indicador do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE que mede as disparidades — cresceu em 2007, indo na contramão da tendência nacional. A taxa brasiliense aumentou de 0,571 em 2006 para 0,587 em 2007 — quanto mais próximo o coeficiente for de zero, menores são as disparidades. No Brasil, o Índice de Gini variou de 0,593 para 0,552. Apesar da queda de 7% no nível de concentração no período, o Brasil ainda está entre as nações mais desiguais do mundo.

Enquanto isso, novos viadutos são construídos. Obras e mais obras. E escolas continuam descuidadas. Professores que ensaiam projetos que mobilizam jovens são reprimidos ou removidos para que não possam agir em conjunto, como aconteceu recentemente em uma escola na Asa Norte. Movimentos sociais e entidades da sociedade civil que mostram um pouco de visão crítica são afastadas e impedidas de chegar perto de escolas, em seu lugar estão as organizações cooptadas pelo governo ou ligadas a esta ou aquela liderança política ou religiosa.

Não há prioridade alguma à educação. Os modelos usados são velhos. Quando muito, se reforça programas que vão treinar melhor os jovens para o mercado de trabalho. É para isso que servem, segundo as elites.

Brasília tem a maior renda per capita do país. É um dos orçamentos mais folgados nas áreas de saúde, educação e segurança pública. As cidades são próximas umas das outras. A maior parte do território pertence ao poder público. Todas as condições para que políticas públicas de respeito à dignidade humana fossem desenvolvidas e aplicadas.

Porque nada é feito então? A resposta é simples. Porque não se quer.

Tabela de execução orçamentária

Em defesa da democracia no Paraguai

Em defesa da democracia no Paraguai

 

Edélcio Vigna

 

O Inesc, como uma organização que privilegia nas suas atividades os direitos humanos, na sua atuação junto ao Parlamento do Mercosul, vem repudiar qualquer tentativa de violação contra os princípios democráticos. Lembra a Cláusula Democrática, existente no Protocolo de Ushuaia, que garante o regime em todos os Estados-parte do Mercosul. Sem este sistema de governo, nenhum país poderá ser parte do Mercado Comum.

 

O Inesc soma sua indignação e faz eco com a Associação das Organizações Não-Governamentais do Paraguai e com a Mesa Coordenadora Nacional de Organizações Camponesas, que expressaram apoio ao presidente Fernando Lugo, após a denúncia de um plano de golpe de estado que teria a participação do ex-presidente do país, Nicanor Duarte, além do general Lino César Oviedo.

O presidente do Paraguai, recém-eleito, Fernando Lugo apresentou detalhes dos planos e afirmou que representantes das Forças Militares tinham as informações sobre a tentativa. A notícia repercutiu em todo o país e gerou manifestações de diversos segmentos sociais em favor da manutenção da democracia e do respeito pela vontade popular que elegeu Lugo.

O presidente do Parlamento do Mercosul, o deputado brasileiro Dr. Rosinha, emitiu um documento empenhando seu apoio ao presidente Lugo e a democracia paraguaia.  No entendimento desta Presidência, tal tentativa representa não apenas uma agressão covarde à democracia e ao povo paraguaio, mas também uma ofensa inaceitável contra o Mercosul e, particularmente, contra o seu Parlamento, instituição voltada à consolidação da democracia, no âmbito do bloco?.

 

Veja abaixo a íntegra da nota pública divulgada pelo Parlamento do Mercosul em defesa da democracia no Paraguai:

“Apoio à democracia paraguaia 

A Presidência do Parlamento do Mercosul vem a público manifestar o seu mais veemente repúdio à noticiada tentativa de golpe de estado contra o governo eleito do presidente Fernando Lugo, da República do Paraguai.

No entendimento desta Presidência, tal tentativa representa não apenas uma agressão covarde à democracia e ao povo paraguaios, mas também uma ofensa inaceitável contra o Mercosul e, particularmente, contra o seu Parlamento, instituição voltada à consolidação da democracia, no âmbito do bloco.

A Presidência do Parlamento do Mercosul lembra que o Protocolo de Ushuaia, que instituiu, no contexto dos Estados-parte do Mercosul, bem como nos Estados associados do Chile e da Bolívia, a cláusula democrática do Mercado Comum do Sul, é compromisso inalienável e fundamental para a estabilidade política da região e o processo de integração. Portanto, quaisquer violações dessa cláusula pétrea resultariam na impossibilidade de que o Estado transgressor pudesse permanecer no Mercosul.

A Presidência recorda, ademais, que Carta Democrática Interamericana, firmada no âmbito da OEA, também demanda, de todos os Estados signatários, respeito incondicional às normas e instituições democráticas, bem como compromisso solene com o estado de direito.

A Presidência do Parlamento do Mercosul destaca que os recentes pleitos eleitorais do Paraguai, que resultaram na eleição do Exmo. Sr. presidente Fernando Lugo, transcorreram dentro da mais absoluta normalidade e tiveram alta taxa de participação popular, o que demonstra o atual grau de maturidade da sociedade civil paraguaia e comprova a sólida e insofismável legitimidade das autoridades democraticamente constituídas naquele país.

Por último, a Presidência manifesta a sua mais plena confiança nas instituições e no povo paraguaios e expressa seus votos de prosperidade e paz àquela grande nação. 

Dr. Rosinha

Presidente do Parlamento do Mercosul”

Lamento muito, mas não deu…

A Rodada de Doha da OMC voltou a tropeçar devido à imposição da pauta pelos países desenvolvidos. Os países emergentes, como a China e a Índia, colocaram o pé na porta e não rebaixaram suas ambições diante dos EUA e da União Européia. O Brasil ficou intermediando as propostas e sua liderança na OMC pode ter saído maculada. O que fazer? Voltar-se para a integração sul-americana e cuidar das feridas abertas no âmbito do MERCOSUL. Retomar o trabalho no bloco e aparar algumas arestas que podem ter ficado com a Argentina e Venezuela, que se colocaram frontalmente contra as posições dos países desenvolvidos, enquanto o Brasil buscava um consenso.

Os negociadores seguiram às palpadelas nestes oito dias de rodadas, como se estivessem em um quarto escuro. Receberam as ordens, mas não encontram eco. Suas propostas se chocavam com as dos outros negociadores. Assim, não conseguiam apoio para avançar, mas continuavam repetindo o mantra. Assim, a resistência de cada negociador se esgotou.

Acusado de ser um dos culpados pelo fracasso das negociações da Rodada de Doha, o ministro da Índia, Kamal Nath, afirmou: “Não estamos isolados. Se bloquear uma ronda é não aceitar uma proposta dos países ricos, então que seja assim”. Os países em desenvolvimento demonstraram que as regras do mercado internacional não serão mais elaboradas somente ao gosto dos países desenvolvidos. Com a emergência de novas forças que se projetaram no cenário internacional, a história da globalização não será mais a mesma.

Depois de muitas tentativas de articulação de posições dentro do G7, e entre o G7+Lamy+coordenadores de agricultura/NAMA+outros 30 países presentes ficou claro que as negociações da Rodada de Doha não tinham consenso suficiente para ser fechada. As propostas que buscavam contornar os problemas não foram suficientes para superar as diferenças em temas como produtos especiais, produtos sensíveis, salvaguardas, e quase todo o texto de NAMA (coeficientes, flexibilidades, anticoncentração e setoriais).

A rodada que começou, seu ultimo dia, com uma reunião áspera entre EUA versus Índia e China, terminou na terça-feira. EUA e União Européia não se entenderam com a Índia e China sobre as propostas de salvaguardas em agricultura (Algodão e Bananas) e setoriais em NAMA. Vários outros dissensos agitaram o dia: a Argentina avaliou que o documento de NAMA não servia nem para discussão. O Equador, de um lado, Guiana e Camarões de outro, discutiram sobre o comércio de bananas. O Senegal reclamou dos EUA sobre algodão. Bangladesh e Nepal discutiram com Lesoto e El Salvador sobre erosão de preferências. A Venezuela, Nicarágua, Cuba e Bolívia questionaram todo o processo.

À tarde, enquanto o G7 ameaçava romper as negociações, o diretor-geral Pascal Lamy realizou uma série de consultas temáticas que não chegaram a lugar algum. O ministro Celso Amorim, do Brasil, voltou a declarar que as conversas estavam por um fio. Os EUA e a Índia continuaram o bate-boca publico sobre salvaguardas.

Os informes internos do G7 apontavam uma cristalização de posições entre “orientais” (Índia, China e Japão) e “ocidentais” (UE, EUA, Austrália e Brasil) sobre três temas agrícolas: produtos especiais, salvaguardas e produtos sensíveis. A discussão passou de preços/volumes de comércio para a política. Enquanto a negociadora dos EUA, Susan Schwab, avaliava quantos votos de parlamentares perderia no Congresso a cada percentual de salvaguardas, o indiano Kamal Nath avaliava quantas dezenas de milhões de eleitores perderia nas eleições a cada percentual concedido.

As negociações desta rodada foram tão difícil que até a União Européia saiu rachada. A Alemanha, Reino Unido e Suécia de um lado, França, Itália, Portugal, Grécia, Hungria, Polônia e República Checa de outro, com a Holanda e a Espanha no meio. Fica evidente que, passados sete anos desde o início da Rodada de Doha, a conjuntura política e as disputas de poder tornaram a arena da OMC bem mais complexa. Começando com o reagrupamento do G20 em Cancun, com o NAMA-11 neste último ano, as rupturas internas de interesses dentro da EU e o fim do governo Bush produziram um jogo bem mais complexo, com muitos mais níveis e infinitas posições.  Um olhar para trás, desde o fim da Rodada do Uruguai, onde os países ricos dominavam e se impunham sobre qualquer tema, o colapso desta mini-ministerial corrobora e atesta esta complexidade.

Resta-nos agora esperar para ver qual será o resultado deste retumbante fracasso nas conversações da última semana em Genebra. Qual será o próximo passo?

Bolsa Família

Site Ibase

 

O Inesc reproduz a entrevista realizada com Mariana Santarelli, uma das responsáveis pela coordenação executiva do trabalho.

 

Entrevista: Mariana Santarelli

Flávia Mattar e Jamile Chequer

 

Ibase acaba de concluir a pesquisa “Repercussões do Programa Bolsa Família na Segurança Alimentar e Nutricional das Famílias Beneficiadas”. Entre os objetivos estão o levantamento do perfil das famílias beneficiadas, como adquirem os alimentos e as repercussões do Bolsa Família na segurança alimentar e nutricional. Ao todo, foram entrevistados 5 mil titulares do cartão Bolsa Família, em 229 municípios brasileiros do Nordeste, Centro-Oeste, Norte, Sudeste e Sul. A pesquisa contou também com uma fase qualitativa, na qual foram ouvidos 170 titulares em 15 grupos focais e 62 gestores(as) em entrevistas semi-estruturadas. Um levantamento como este favorece não só a reflexão sobre o Bolsa Família como a proposição de políticas públicas que somem esforços para a diminuição da pobreza e da insegurança alimentar. A pesquisa do Ibase, Mariana Santarelli, fala sobre as fortalezas e desafios do Programa, além de mostrar a situação de beneficiários(as) e a forma como percebem e lidam com o Bolsa Família. Mariana também aponta recomendações para potencializar a iniciativa.

Ibase – Qual a importância de uma pesquisa como essa?

Mariana Santarelli – O Programa Bolsa Família é uma política elaborada para lidar com o problema da fome e beneficia aproximadamente 11,1 milhão de famílias pobres brasileiras. Pela trajetória do Ibase com o tema da segurança alimentar e nutricional, não poderíamos deixar de analisar esta política e em que medida influencia a capacidade das famílias se protegerem da fome. A pesquisa ajuda a compreender como as famílias mais pobres se alimentam e de onde vêm os produtos consumidos, o que nos dá condições para pensar que políticas, entre as que já existem e as que podem vir a ser implementadas, são mais relevantes para garantir o direito humano à alimentação, principalmente em um contexto de crise mundial de alimentos.

Ibase – O Bolsa Família é uma iniciativa eficaz no combate à pobreza?

Mariana Santarelli – Sua finalidade é transferir renda para quem não tem ou tem renda muito baixa. Ele cumpre sua parte. Mas não tem a capacidade de resolver todos os problemas. No Brasil, a pobreza é um fenômeno complexo e tem determinantes que a reproduzem permanentemente. É preciso que, junto com a transferência de renda, tenhamos outras políticas públicas capazes de romper com esse ciclo de geração de pobreza que nega a cidadania a milhões de brasileiros. O que vimos na pesquisa é que a insegurança alimentar grave está fortemente associada à baixa escolaridade, à exclusão do mercado formal de trabalho e à precariedade no acesso a serviços públicos, como saneamento básico. Políticas públicas capazes de atacar estes problemas aumentam as condições das famílias de superar a pobreza.

Ibase – As pessoas beneficiadas ainda vivenciam a fome?

Mariana Santarelli – Adotamos a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia), instrumento utilizado na Pnad 2004, que reflete aspectos do acesso aos alimentos. Os dados mostram que mais da metade das famílias beneficiadas, aproximadamente 6,1 milhões, está em situação de insegurança alimentar moderada ou grave, ou seja, passou por restrições alimentares e até mesmo fome nos meses que antecederam a pesquisa.

Ibase – O Bolsa família contribui para a segurança alimentar e nutricional dessas famílias?

Mariana Santarelli – A pesquisa mostra que os beneficiários fazem uso do recurso para comprar mais alimentos e variar sua alimentação. Para muitos, o Bolsa Família é a única renda regular garantida, o que permite que ao menos o arroz e o feijão estejam garantidos todo mês. Há grande impacto também na variedade, as famílias passam a comer mais carne, leite, legumes e verduras. Por outro lado, também aumenta o consumo de alimentos não-nutritivos e calóricos, como biscoitos e industrializados.

Nos grupos focais percebemos que as titulares, em sua maioria mulheres e mães, sabem o que é saudável, mas pela escassez de recursos acabam optando por uma alimentação que proporciona saciedade. Tendem também a satisfazer os desejos dos filhos, o que é mais do que justificável. O Bolsa Família aumenta o poder de escolha e de compra dos alimentos, o que é ótimo, mas não significa, necessariamente, uma alimentação mais saudável. Por isso, há a necessidade de programas direcionados para a educação alimentar, principalmente nas escolas; de iniciativas que aumentem a oferta de alimentos adequados e pouco consumidos, como legumes, verduras e frutas a preços mais acessíveis; e também de ações de regulamentação da propaganda de alimentos.

Ibase – Qual a percepção das pessoas beneficiadas?

Mariana Santarelli – As pessoas beneficiadas percebem o programa como uma iniciativa que “ajuda, mas não resolve”, o que corrobora a visão do Ibase de que é uma iniciativa importante, mas são necessárias outras políticas para garantir a emancipação das famílias.

Nos grupos focais, observamos que as pessoas beneficiadas preferem garantir a sobrevivência de suas famílias por meio do trabalho a depender do programa. Para aqueles que estão no auge da capacidade produtiva, principalmente homens, ser beneficiário chega mesmo a ser algo que causa vergonha.

Alguns expressam o desejo de receber o benefício para sempre. Este é o caso daqueles que vivem sob as condições mais extremas de pobreza e em municípios onde não há muitas alternativas de inserção no mercado de trabalho.

Há exemplos de como uma fonte estável e regular de renda significa maior possibilidade de planejamento de gastos e, principalmente, segurança. Muitas das mulheres titulares passaram a se sentir mais independentes financeiramente e respeitadas após a inclusão no programa.

Ibase – De acordo com a sua resposta, a alegação de que o Programa gera acomodação não é correta…

Mariana Santarelli – O Bolsa Família não faz com que as pessoas se acomodem e deixem de buscar trabalho, a não ser em casos em que há exploração de mão-de-obra ou quando o trabalho é de extrema precariedade. Nestes casos, é mais do que justificável que as pessoas não se submetam a estas condições. Se o Bolsa Família serve como apoio para isso, é bastante positivo.

Ibase – Quais as principais recomendações do Ibase em relação ao Programa?

Mariana Santarelli – É necessário avançar na definição e na formalização de espaços que estimulem e viabilizem práticas intersetoriais no âmbito do Bolsa Família, nas três esferas de governo. Assim, será gerada capacidade de potencializar o acompanhamento das condicionalidades e fazer avançar iniciativas de geração de trabalho e renda.

Ainda que o programa seja de extrema importância, há uma série de outras políticas, algumas já em curso, que merecem ser melhor exploradas, como a Política Nacional de Alimentação Escolar, que poderia ser estendida ao ensino médio, e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que aumenta a demanda por produtos da agricultura familiar, ao mesmo tempo que provê assistência alimentar às famílias mais vulneráveis.

Há ainda iniciativas que vêm sendo experimentadas, tanto por prefeituras como pela sociedade civil organizada, que possibilitam a oferta de produtos alimentares saudáveis e pouco consumidos a preços mais acessíveis e que estimulam a aproximação de produtores e consumidores. Tais iniciativas poderiam ser mais estimuladas e incorporadas pelos governos locais.

 

Pesquisa Ibase –  REPERCUSSÕES DO PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA NA SEGURANÇA
ALIMENTAR E NUTRICIONAL DAS FAMÍLIAS BENEFICIADAS

O desafio de eliminar o racismo no Brasil

O artigo foi originalmente publicado no site da Oxfam, como um estudo de caso para o Relatório da Pobreza, lançado esta seman

O desafio de eliminar o racismo no Brasil: a nova institucionalidade no combate à desigualdade racial
Alexandre Ciconello

O morro da Providência e suas lições

Ao analisar um dos episódios que mais chocaram a sociedade brasileira, o assassinato de três rapazes do morro da Providência, no Rio de Janeiro, depois de terem sido entregues por integrantes do Exército a um bando de traficantes de um morro vizinho, Atila Roque argumenta que o evento denota “um sinal que ultrapassamos o fundo do poço e nos aproximamos perigosamente das profundezas do horror totalitário”.

A questão da banalização da violência contra jovens pobres e da insuficiência das desculpas apresentadas pelas autoridades aos familiares das vítimas, segundo Atila, representam uma “humilhação para o Estado brasileiro e lança uma mancha sobre o Exército”.

Leia a íntegra do artigo O Ovo da Serpente.

Fantasias racialistas: Em favor do sistema de cotas

O debate sobre a adoção de cotas para estudantes negros nos vestibulares para universidades públicas tem sofrido com argumentos falaciosos difundidos ad nauseam  pelos que se opõem à adoção dessas políticas. Com isso estamos correndo o risco de perder a oportunidade de realizar uma discussão realmente necessária sobre a eficácia das políticas afirmativas para a promoção da igualdade e da justiça social em uma sociedade historicamente marcada pelo racismo.

Um desses argumentos produz a mais perversa das inversões que é a acusação de racistas ou de promotores do ódio racial lançada sobre os defensores das ações afirmativas. Como se o racismo precisasse ser inventado no Brasil.

O que as políticas de cotas fazem é simplesmente reconhecer, com base em pesquisas acadêmicas e séries estatísticas produzidas ao longo das últimas décadas, que o racismo é um fator importante na trajetória de vida e na redução do leque de oportunidades disponíveis às populações de pele mais escura. Uma população que na linguagem do IBGE recebe a denominação de parda ou preta e que na vida cotidiana das pessoas assumem denominações mais diversificadas e nem sempre muito gentis: escurinhos, morenos, sararás, neguinhas. Homens e mulheres que sofrem em graus variados com os preconceitos de uma sociedade que se desejou por muito tempo européia, e não africana, e que elegeu a pele clara — e as características físicas a ela associadas, como os cabelos lisos (e sempre que possível louros), traços faciais “finos” —,  como sinais de beleza e inteligência.

Tentar carimbar isso de “racialização” da sociedade brasileira é um exagero que se presta à exibição narcísica de saberes acadêmicos, mas que nada tem a ver com o mundo da vida. Os eventuais equívocos e erros cometidos na implementação das cotas, poucos se comparados a outras políticas sociais focalizadas, merecem ser discutidos no marco de metodologias que avaliam eficácia e eficiência das políticas públicas.

Da mesma forma, reduzir tudo ao problema da pobreza, opondo cotas às políticas supostamente universais, é negar as conseqüências psicológicas e sociais do racismo, produzindo um falso dilema. As cotas não se opõem à valorização da escola pública ou à necessidade de investir em políticas sociais de caráter universal. Mas propõem uma aceleração do acesso de estudantes negros à educação superior. Elas representam um atalho legítimo para a constituição no curto prazo de uma elite composta de pardos, pretos, cafuzos, morenos ou qualquer definição que se queira dar a essa população de pele escura que se confronta cotidianamente com o preconceito da sociedade. O Brasil precisa de médicos, advogados e, especialmente, professores universitários negros.

As políticas que apenas começam a ser implementadas nas universidades brasileiras adotam modelos diversos, combinam cotas sociais e raciais, e promovem a diversidade em um ambiente universitário em que pretos e pardos estiveram quase sempre ausentes. Cerca de metade das experiências vigentes em universidades públicas, segundo avaliação recente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), adotam cotas raciais e sociais sobrepostas, operando, assim, com dois critérios complementares que devem ser observados simultaneamente para o preenchimento das vagas destinadas aos negros.

Finalmente, a acusação de que os defensores de cotas são teleguiados ou inocentes úteis de fundações internacionais e plagiadores da experiência supostamente fracassada dos EUA causa assombro por ignorar deliberadamente a longa trajetória de luta dos movimentos negros no Brasil, além de apresentar uma narrativa descontextualizada do debate norte-americano. Desde os anos 1930, grupos dos movimentos negros brasileiros apontavam para a necessidade de políticas públicas que garantissem o acesso da população negra à educação e, mais recentemente, no início dos anos 1980, os cursinhos pré-vestibulares para negros e carentes passaram a sublinhar o direito à educação superior. É surpreendente ver intelectuais e acadêmicos tão ilustres subscrevendo visões tão distorcidas.

As políticas de cotas apenas agora começam a ser avaliadas e os primeiros resultados desmentem largamente as críticas que continuam a ser repetidas sem qualquer amparo em dados. Não baixaram a qualidade da universidade, não colocaram “pobre-contra-pobre”, não beneficiaram apenas uma “elite de classe média negra”. Ao contrário, contribuíram para renovar o debate sobre o lugar da educação superior na conquista da cidadania plena e o papel das universidades públicas.

Essa experiência exemplar não deve ser interrompida em nome de fantasias racialistas despropositadas ou, em alguns casos, da defesa de privilégios de grupos que sempre resistiram à incorporação dos negros à vida republicana.

Fantasias racialistas

O debate sobre a adoção de cotas para estudantes negros nos vestibulares para universidades públicas tem sofrido com argumentos falaciosos difundidos ad nauseam  pelos que se opõem à adoção dessas políticas. Com isso estamos correndo o risco de perder a oportunidade de realizar uma discussão realmente necessária sobre a eficácia das políticas afirmativas para a promoção da igualdade e da justiça social em uma sociedade historicamente marcada pelo racismo.

Um desses argumentos produz a mais perversa das inversões que é a acusação de racistas ou de promotores do ódio racial lançada sobre os defensores das ações afirmativas. Como se o racismo precisasse ser inventado no Brasil.

O que as políticas de cotas fazem é simplesmente reconhecer, com base em pesquisas acadêmicas e séries estatísticas produzidas ao longo das últimas décadas, que o racismo é um fator importante na trajetória de vida e na redução do leque de oportunidades disponíveis às populações de pele mais escura. Uma população que na linguagem do IBGE recebe a denominação de parda ou preta e que na vida cotidiana das pessoas assumem denominações mais diversificadas e nem sempre muito gentis: escurinhos, morenos, sararás, neguinhas. Homens e mulheres que sofrem em graus variados com os preconceitos de uma sociedade que se desejou por muito tempo européia, e não africana, e que elegeu a pele clara — e as características físicas a ela associadas, como os cabelos lisos (e sempre que possível louros), traços faciais “finos” —,  como sinais de beleza e inteligência.

Tentar carimbar isso de “racialização” da sociedade brasileira é um exagero que se presta à exibição narcísica de saberes acadêmicos, mas que nada tem a ver com o mundo da vida. Os eventuais equívocos e erros cometidos na implementação das cotas, poucos se comparados a outras políticas sociais focalizadas, merecem ser discutidos no marco de metodologias que avaliam eficácia e eficiência das políticas públicas.

Da mesma forma, reduzir tudo ao problema da pobreza, opondo cotas às políticas supostamente universais, é negar as conseqüências psicológicas e sociais do racismo, produzindo um falso dilema. As cotas não se opõem à valorização da escola pública ou à necessidade de investir em políticas sociais de caráter universal. Mas propõem uma aceleração do acesso de estudantes negros à educação superior. Elas representam um atalho legítimo para a constituição no curto prazo de uma elite composta de pardos, pretos, cafuzos, morenos ou qualquer definição que se queira dar a essa população de pele escura que se confronta cotidianamente com o preconceito da sociedade. O Brasil precisa de médicos, advogados e, especialmente, professores universitários negros.

As políticas que apenas começam a ser implementadas nas universidades brasileiras adotam modelos diversos, combinam cotas sociais e raciais, e promovem a diversidade em um ambiente universitário em que pretos e pardos estiveram quase sempre ausentes. Cerca de metade das experiências vigentes em universidades públicas, segundo avaliação recente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), adotam cotas raciais e sociais sobrepostas, operando, assim, com dois critérios complementares que devem ser observados simultaneamente para o preenchimento das vagas destinadas aos negros.

Finalmente, a acusação de que os defensores de cotas são teleguiados ou inocentes úteis de fundações internacionais e plagiadores da experiência supostamente fracassada dos EUA causa assombro por ignorar deliberadamente a longa trajetória de luta dos movimentos negros no Brasil, além de apresentar uma narrativa descontextualizada do debate norte-americano. Desde os anos 1930, grupos dos movimentos negros brasileiros apontavam para a necessidade de políticas públicas que garantissem o acesso da população negra à educação e, mais recentemente, no início dos anos 1980, os cursinhos pré-vestibulares para negros e carentes passaram a sublinhar o direito à educação superior. É surpreendente ver intelectuais e acadêmicos tão ilustres subscrevendo visões tão distorcidas.

As políticas de cotas apenas agora começam a ser avaliadas e os primeiros resultados desmentem largamente as críticas que continuam a ser repetidas sem qualquer amparo em dados. Não baixaram a qualidade da universidade, não colocaram “pobre-contra-pobre”, não beneficiaram apenas uma “elite de classe média negra”. Ao contrário, contribuíram para renovar o debate sobre o lugar da educação superior na conquista da cidadania plena e o papel das universidades públicas.

Essa experiência exemplar não deve ser interrompida em nome de fantasias racialistas despropositadas ou, em alguns casos, da defesa de privilégios de grupos que sempre resistiram à incorporação dos negros à vida republicana.

Modelo de desenvolvimento predatório e violência: as mazelas da sociedade brasileira

Alexandre Ciconello

O relatório anual da Anistia Internacional divulgado essa semana, mais uma vez expõe as mazelas da sociedade brasileira: violência, impunidade e modelo de desenvolvimento predatório. O recrudescimento da violência policial, especialmente no Estado do Rio de Janeiro, e os impactos das obras do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) são dois destaques do relatório.

A sociedade brasileira pouco tem debatido os impactos sociais do modelo de desenvolvimento e de programas de governo como o PAC, PAS – Plano Amazônia Sustentável ou o IIRSA – Iniciativa para a Integração da Infra-estrutura Regional Sul Americana. As grandes obras previstas como rodovias, ferrovias, portos, hidrelétricas e represas são concebidas com pouca preocupação no que se refere aos impactos socioambientais de projetos de tal envergadura. Na verdade, tais obras atendem aos interesses de grandes corporações e exportadores, vinculados a atividades econômicas concentradoras de renda como o agronegócio, mineração e a produção de biocombustíveis.

Mesmo com a resistência dos movimentos sociais e das populações mais vulneráveis do semi-árido nordestino, o governo insistiu em levar adiante o Projeto de transposição do Rio São Francisco — que beneficiará projetos de irrigação de grandes proprietários rurais — ao invés de implementar políticas alternativas para a região, já elaboradas e que beneficiariam agricultores familiares e pequenas comunidades.

 

O relatório afirma que “a expansão da monocultura, como as plantações de soja e de eucaliptos, a extração ilegal de madeiras e a mineração, juntamente com projetos de desenvolvimento, como a construção de represas e o projeto de desvio do Rio São Francisco, estiveram entre as principais fontes de conflito” em 2007 no Brasil. Aliado a isso, a expansão do setor canavieiro para a produção do etanol tem aumentado os casos de ocorrência de trabalho escravo no país, como o ocorrido em uma fazenda da empresa produtora de etanol no Pará, em 2007, onde mais de 1000 pessoas foram libertadas.

 

A quem interessa esse tipo de desenvolvimento, que expulsa populações inteiras de suas terras; destrói seus modos de vida comunitário e tradicional; seus meios de sustento; desmata a floresta aumentando o desequilíbrio ambiental e climático no mundo; que viola direitos humanos fundamentais como a liberdade e a dignidade. Para onde vão os lucros obtidos por grandes corporações nacionais e internacionais beneficiadas com essas políticas?

 

Esse modelo de desenvolvimento predatório e insustentável ambientalmente tem violado cada vez mais os direitos humanos (civis, políticos, sociais, econômicos e culturais) ao invés de promovê-los. O Brasil ainda se pauta pela lógica antiga de buscar o desenvolvimento econômico a qualquer custo, ignorando as necessidades da população de baixa renda e dos grupos mais vulneráveis. O desenvolvimento humano e a garantia de condições de vida digna para todos/as é posto em segundo plano.

 

Por outro lado, a violência aumenta, especialmente nos grandes centros urbanos. A resposta do Estado tem sido truculenta, como a política de extermínio do governo do Rio de Janeiro. Segundo o relatório da Anistia, a partir de dados oficiais, em 2007, a polícia carioca “matou ao menos 1.260 pessoas(…) Todas as mortes foram classificadas como “resistência seguida de morte”. A maioria dessas pessoas são jovens e negros, que são as vítimas preferenciais dos assassinatos nesse país. Essa é apenas uma dimensão — a mais cruel delas —  de como o racismo opera na sociedade brasileira. Segundo dados do IPEA (2006, p. 80), em 2005, a taxa de homicídios de negros (31,8 por 100.000) era cerca de duas vezes superior à observada para os brancos (18,4), sendo que na região Nordeste — uma das mais pobres do país — a taxa de homicídios de negros era mais de três vezes superior a dos brancos.

 

O governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, após a publicação do relatório, afirmou que não vai mudar a sua política de segurança em razão da publicação do relatório da Anistia Internacional. O pior é que tal atitude é apoiada por outras autoridades públicas. Segundo o relatório, “apesar dos relatos abundantes de violações de direitos humanos cometidas pela polícia, o Presidente Lula e outras autoridades de seu governo apoiaram publicamente certas operações policiais militarizadas de grande repercussão, especialmente no Rio de Janeiro.”

 

Estamos no ano da celebração dos 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. O Brasil ainda não tem muito o que comemorar. A afirmação de que “todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos” ainda não é uma realidade em nosso país e por vezes parece que retrocedemos em vários aspectos.

 

Em dezembro de 2008 será realizada a XI Conferência Nacional de Direitos Humanos com o objetivo de revisar o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) de 2002. Até agosto serão realizadas as conferências estaduais. Violência e Segurança Pública; Desenvolvimento e Direitos humanos, são dois dos seis eixos orientadores do debate em todo o país, refletindo a centralidade que esses dois temas vem adquirindo no debate sobre os direitos humanos no Brasil. É uma oportunidade para que movimentos e organizações avaliem as atuais ações do Estado, propondo e formulando estratégias para o avanço dos direitos humanos, que não irá ocorrer se o Estado continuar a priorizar um modelo de desenvolvimento social e ambientalmente insustentável, predatório e concentrador de renda e uma política de segurança pública truculenta e ineficaz.

 

Para saber mais: Informe 2008 da Anistia Internacional: o estado dos direitos humanos no mundo, em http://thereport.amnesty.org/prt/the-world-by-region

Por que os bancos choram

Le Monde Diplomatique

Há duas razões para a gritaria dos banqueiros, após o aumento de impostos decidido pelo governo. Rompeu-se a lógica de conceder sucessivos benefícios fiscais ao setor financeiro. E fica claro que é possível uma reforma tributária verdadeira, capaz de reduzir a concentração de renda

 

Evilásio Salvador

O ano começou com o mini pacote tributário e fiscal de ajuste das contas públicas, para suprir a perda de R$ 40 bilhões de arrecadação, devido à rejeição da CPMF pelo Senado Federal. As medidas de ajuste anunciadas pelo governo são basicamente três: a) elevação das alíquotas do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) e da Contribuição Social do Lucro Líquido (CSLL) paga pelas instituições financeiras, que passou de 9% para 15%; b) corte de R$ 20 bilhões no orçamento; e, c) a expectativa de uma arrecadação extraordinária de R$ 10 bilhões, em função das mudanças de estimativas da inflação e do crescimento do PIB.

As medidas do governo foram seguidas de manifestação de representantes de entidades da sociedade civil, organizações populares, movimentos sociais, intelectuais e religiosos. Intitulado “Por uma Reforma Tributaria Justa”, o documento apóia uma reestruturação do sistema de impostos e defende a tributação do setor financeiro. Já a Federação Brasileira dos Bancos (Febraban), como seria de esperar, reagiu e criticou a elevação das alíquotas.

Neste artigo, vamos argumentar que o aumento da CSLL paga pelos bancos é uma medida importante. Em primeiro lugar, justiça fiscal significa onerar mais aqueles que têm maiores condições de contribuir com a manutenção do Estado e dos serviços públicos. Todos sabem que o setor financeiro, é um dos mais beneficiados pela política econômica pós-Plano Real. [1]. Ele tira proveito dos três sustentáculos desta política: elevada taxa de juros, superávit primário e câmbio valorizado. O resultado é evidente: ano após ano, os lucros bilionários dos bancos batem novos recordes.

Os privilégios de que desfrutam os banqueiros vêm, aliás, de longa data, como demonstra um estudo desenvolvido pelo professor Ary Minella, em seu livro sobre esta classe social e sua influência política. [2]. Entre as transformações do setor financeiro no país, ao longo dos anos, uma das mais marcantes é sua vinculação crescente à dívida pública interna e aos juros pagos pelo Estado — por meio de operações com os títulos públicos [3]. Além de tranferir-lhes parte importante da renda nacional, o Estado os protege das crises. Vale lembrar, por exemplo, o Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional (PROER), em 1995, uma espécie de “socorro” para recuperar, com fundos públicos, as instituições financeiras então em dificuldades.

O setor mais beneficiado pela política econômica é, além disso, sempre privilegiado com impostos baixos

Porém, apesar dos privilégios desfrutados pelo setor financeiro, uma das questões que mais chama atenção quando se estuda o sistema tributário brasileiro é a baixa tributação dos bancos. Em artigo de nossa autoria, batizamos essa situação de “paraíso tributário dos bancos” [4].

Seria impossível, neste artigo, relacionar a longuíssima série de decisões políticas que tem garantido esta desoneração injusta. Fiquemos nas mais recentes. A partir de 1996, a Lei 9.249 instituiu o conceito de “juros sobre o capital próprio”. Trata-se de uma medida artificial, que favorece os bancos e empresas bastante capitalizadas. Uma parte do lucro apurado pelas pessoas jurídicas é considerada despesa e, em vez de recolhida ao Tesouro — na forma de Imposto de Renda (IRPJ) e CSLL —, pode ser distribuída aos acionistas. É como se as pessoas físicas pudessem, ao fazer a declaração anual de Importo de Renda, deduzir, dos rendimentos obtidos, a remuneração financeira potencial de seu patrimônio.

O favorecimento pode ser constatado em números. Entre 2002 e 2004, os lucros de 216 empresas de capital aberto estudadas pelo jornal Valor saltaram de R$ 3,99 bilhões para R$ 49,72 bilhões — ou seja, multiplicaram-se por 12. No entanto, as provisões para pagamento de IR e CSLL aumentaram apenas seis vezes (de R$ 2,19 bilhões para R$ 12,28 bilhões). [5]. A redução da carga tributária é igualmente expressiva quando examinadas apenas as instituições financeiras. Nos últimos sete anos, seus lucros cresceram 5,5 vezes. Já a tributação — que incide sobre o resultado, e portanto deveria acompanhar este índice — aumentou apenas 2,7 vezes. A CSLL das instituições financeiras, um dos tributos que financia a seguridade social (Previdência, Assistência Social e Saúde), cresceu somente 122,76%.

Estima-se que, só em 2006, o mecanismo permitiu que bancos e empresas deixassem de pagar R$ 22 bilhões, em IR e CSLL. Sozinhos, os cinco maiores bancos nacionais pagaram a seus acionistas, a título de “juros sobre capital próprio” um montante de R$ 6 bilhões. O valor distribuído proporcionou uma redução nas despesas com encargos tributários desses bancos no montante de R$ 2,1 bilhões (IRPJ e CSLL).

Pouco mais tarde, em 2006, outro presente. O governo editou a MP 281, reduzindo a zero as alíquotas de IR e de CPMF para certos investidores estrangeiros no Brasil. As operações beneficiadas pela MP são cotas de fundos de investimentos exclusivos para investidores não-residentes, que possuam no mínimo 98% de títulos públicos federais. Novamente, o grande beneficiado é o setor financeiro. Após a MP 281, vem crescendo o interesse dos bancos estrangeiros com filiais no Brasil em emitir, no exterior, bônus indexados em reais. Eles lançam tais papéis pagando juros abaixo do Depósito Interfinanceiro (DI), e ingressam no país os recursos obtidos, utilizando-se da condição de favorecida de “investidores estrangeiros”. Compram, em seguida, títulos do Estado, remunerados segundo o DI. Ganham a diferença realizando uma operação de arbitragem.

Para que o “andar de cima” contribua, tributar a renda elevada e o patrimônio

Os Boletins de Arrecadação da Receita Federal revelam que, entre 2000 a 2006, os bancos recolheram ao Tesouro, na forma de Imposto de Renda e CSLL, apenas R$ 51,9 bilhões (em média, menos de R$ 7,5 bilhões anuais). Nesse mesmo período, só de Imposto de Renda, os trabalhadores pagaram R$ 233,8 bilhões [6].

Vimos, portanto, que há enorme espaço para uma maior tributação do sistema financeiro. Ainda que os bancos possam repassar parte de aumento de custo aos seus clientes, trata-se de uma medida importante, que provoca uma pequena mudança na estrutura do sistema tributário brasileiro, no caminho de recuperar a tributação direta, tão esquecida nos últimos anos.

O caminho da construção da justiça tributária passa pela mobilização da sociedade civil em defesa da maior progressividade dos impostos no Brasil, tributando a renda do “andar de cima” da pirâmide social do país, que há muito tempo beneficia-se de enormes privilégios fiscais. A pequena mudança na alíquota da CSLL, ainda que tímida, poderá ser um embrião de uma reforma mais profunda na estrutura tributária do país.

Outra pista para o debate sobre reforma tributária: apesar da enorme concentração patrimonial que marca o pais — as cinco mil famílias muito ricas (0,001% do total das famílias) têm patrimônio equivalente a 40% do PIB brasileiro [7] — os impostos que incidem sobre o patrimônio respondem por insignificantes 3,4% do montante de tributos arrecadado pela União, estados e municípios. Não seria hora de seguir o exemplo de tantos outros países e aumentar a tributação sobre este fator, como meio de obter justiça fiscal e assegurar serviços públicos de qualidade?

O “derretimento” do dólar e suas implicações para o Brasil.

O governo anunciou medidas para conter a valorização do real frente ao dólar na busca de impedir o que os economistas vêm classificando como “derretimento” da moeda norte-americana. Entre as medidas anunciadas estão a isenção do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) DE 0,38% sobre as exportações e a cobrança a alíquota de 1,5% de IOF sobre os investimentos estrangeiros que entrarem no país para aplicações de renda fixa. Anunciou, também, o fim da exigência de cobertura cambial para as exportações.

Na avaliação de Evilásio Salvador, assessor de Política Fiscal e Orçamentária do Inesc, as medidas são paliativas. No que se refere aos recursos especulativos, ele argumenta que são as taxas de juros os grandes atrativos para esse tipo de capital e o Banco Central do Brasil, pelas indicações, pretende elevar a taxa de juros na reunião de abril. Alega, ainda, que apesar da taxação em 1,5¨do IOF para investimento estrangeiro especulativo, a medida não retoma o mesmo patamar de incidência tributária existente em 2006.

Evilásio argumenta que a intenção do ministro da Fazenda de não permitir déficits nas contas externas poderia passar pela revogação do artigo 10 da Lei nº 9.249/1995 que isentou do imposto de renda a distribuição de lucros e dividendos, incluindo as remessas para o exterior.

Leia o artigo de Evilásio Salvador intitulado “Câmbio, imposto e economia em um país concentrador de renda”

 

 

 

Reforma Tributária – Uma “reforma” superficial e perigosa

Le Monde Diplomatique

Embora simplifique a arrecadação e combata a guerra fiscal, a mudança no sistema de impostos proposta pelo governo é uma oportunidade perdida. Ela evita promover, via tributos, a redistribuição de renda – e pode abrir caminho para o fim de conquistas históricas relacionadas à Seguridade Social

 

Evilásio Salvador

O governo enviou ao Congresso Nacional, por meio de Proposta de Emenda Constitucional (PEC), novo projeto de reforma tributária. Seu objetivo seria simplificar o sistema de impostos, eliminando alguns deles e acabando com a “guerra fiscal” entre os estados. Contudo, perde-se mais uma chance de debater princípios tributários inscristos na Constituição: em especial, a eqüidade, a progressividade e a capacidade contributiva. Ou seja, evita-se o caminho da justiça fiscal e social — um importante instrumento para a redistribuição da renda e a erradicação da pobreza sempre evitado pelos mais favorecidos. Há um aspecto ainda mais problemático: a “reforma” pode minar as bases do Orçamento da Seguridade Social. É ele que tem garantido a efetivação dos direitos relativos à Previência, Saúde, e Assistência Social alcançados na Constituinte, e parte da modesta redução de desigualdade ocorrida nos últimos anos.

Os principais pontos da proposta de “reforma” tributária são:

a) a criação de um Imposto sobre Valor Adicionado (IVA-F), com a extinção de cinco tributos federais (a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social – Cofins; a Contribuição para o Programa de Integração Social – PIS; a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico incidente sobre a importação e a comercialização de combustíveis – CIDE; e a contribuição social do salário-educação);

b) a incorporação da Contribuição Social do Lucro Líquido (CSLL) ao Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ);

c) a redução gradativa da contribuição dos empregadores para a Previdência Social, a ser realizada nos anos subseqüentes da reforma e definida em projeto de lei a ser enviado ao Congresso 90 dias após da promulgação da PEC;

d) a unificação da legislação do Imposto sobre Circulação de Mercadoria e Serviços (ICMS), a ser realizada por meio de lei única nacional e não mais por 27 leis das unidades da federação;

e) a criação de um Fundo de Equalização de Receitas (FER), para compensar eventuais perdas de receita do ICMS por parte dos estados;

f) a instituição de um Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional (FNDR), permitindo a coordenação da aplicação dos recursos da política de desenvolvimento regional.

O principal objetivo da reforma é simplificar a legislação tributária — tanto por meio da redução das legislações do ICMS, quanto pela eliminação de tributos, trazendo maior racionalidade econômica e amenizando as obrigações suplementares das empresas com custos de apuração e recolhimento de impostos. Além disso, a cobrança do ICMS no estado de destino da mercadoria deverá eliminar a “guerra fiscal”.

Do ponto de vista técnico, há racionalidade. Há medidas para evitar a guerra fiscal e se reduz a burocracia com recolhimento de impostos. Mas os tributos continuam transferidos ao consumidor

A criação do IVA-F vai reduzir a cumulatividade do sistema tributário. Hoje a CIDE-Combustíveis e parte da arrecadação da Cofins e da Contribuição para o PIS são cobradas diversas vezes sobre um mesmo produto – isto é, em todas as etapas de produção e circulação da mercadoria. O IVA-F vai tributar apenas o valor adicionado em cada estágio da produção e da distribuição. Assim, o tributo incidirá sobre a diferença entre o preço de venda do produto e o custo da aquisição, nas diversas etapas da cadeia produtiva. Embora mais adequado, o novo modelo não corrige uma distorção típica dos tributos indiretos: eles são quase sempre repassados ao preço final do bem ou serviço, sendo pagos, portanto, pelo consumidor final.

Aliás, o governo deveria aproveitar a oportunidade para regulamentar o Art. 150, § 5º, da Constituição. Diz ele: “A lei determinará medidas para que os consumidores sejam esclarecidos acerca dos impostos que incidam sobre mercadorias e serviços”. Trata-se de uma importante conquista, que pode assegurar maior transparência na arrecadação dos tributos. Sua efetivação, contudo, tem sido sistematicamente adiada.

A proposta de reforma traz avanços para as empresas, com a simplificação do recolhimento tributário. É algo que pode resultar no aumento da eficiência econômica e da produtividade. Porém, a marca principal do sistema tributário brasileiro, que é a sua enorme regressividade, permanece indelével.

Para começar a corrigi-la, o governo poderia abrir, entre a sociedade, um debate sobre os impostos que incidem sobre o patrimônio. Convém lembrar que as 5 mil famílias mais ricas do Brasil têm em patrimônio algo em torno de 40% do PIB brasileiro [1]. Ainda assim, a arrecadação de tributos sobre o patrimônio é insignificante: eles responderam, em 2007, por apenas 3,3% do montante arrecadado. A proposta de “reforma” tributária silencia sobre o assunto.

Outra implicação importante da “reforma” diz respeito ao financiamento da Seguridade Social. Os três mais importantes tributos que a financiam no Brasil serão modificados. A Cofins e a CSLL serão extintas; e haverá desoneração da contribuição patronal sobre a folha de pagamento. Para a Seguridade, passam a ser destinados 38,8% do produto da arrecadação dos impostos sobre renda (IR), produtos industrializados (IPI) e operações com bens e prestações de serviços (IVA-F). Em teoria, não há perdas: esse percentual corresponde exatamente ao percentual que os impostos vinculados à Seguridade (Cofins e CSLL) representaram em relação à receita tributária obtida por meio de uma cesta mais ampla de tributos (onde se incluem IR, Cofins, PIS, CIDE, Salário-educação e IPI).

Os grandes desafios da sociedade civil: evitar a diluição do orçamento próprio da Seguridade Social, assegurar as conquistas da Constituinte, retomar a idéia de Justiça Tributária

Em termos políticos, a mudança é grave. Um dos maiores avanços da Constituição, em termos de política social, foi a adoção do conceito de Seguridade Social, englobando em um mesmo sistema as políticas de Saúde, Previdência e Assistência Social [2]. Para assegurar a manutenção desta Seguridade ampliada, a Constituição multiplicou também as fontes de seu financiamento O artigo 195 estabeleceu que elas deveriam incluir, além dos aportes dos empregados e empregadores, os recursos provenientes das contribuições sociais sobre o lucro, a receita, o faturamento, a importação de bens e serviços e a receita de concursos de prognósticos (loterias).

Este princípio da diversidade das bases de financiamento da seguridade social estará em risco, caso a “reforma” seja aprovada na versão proposta pelo Executivo. Restarão inscritos no Artigo 195, como bases de financiamento da seguridade social, a contribuição sobre a folha de salários, a contribuição do trabalhador para a Previdência Social e a receita de loterias — sendo que a contribuição sobre folha de pagamento deverá ser reduzida, ao longo dos próximos anos. A idéia de orçamento de Seguridade Social diversificado em fontes de financiamentos retroagirá à situação de antes da Constituinte. Haverá perda da exclusividade de recursos para a Seguridade Social, que poderá ficar fragilizada em seu financiamento, dependendo de uma partilha do IVA-F e da arrecadação das contribuições previdenciárias.

A reforma tributária reforça ainda mais uma idéia em vigor desde a fusão do fisco, que resultou na criação Secretaria da Receita Federal do Brasil (SRFB). Sustenta-se que o orçamento da União é único, desconhecendo a existência do orçamento específico da Seguridade Social. A lei assegura a destinação das contribuições previdenciárias para o pagamento dos benefícios previdenciários, creditados diretamente no Fundo do Regime Geral de Previdência Social sob a gestão pelo INSS (art. 5º, inciso II). Mas a criação da SRFB transferiu a competência de cobrar a contribuição previdenciária sobre a folha de pagamento do ministério da Previdência para o da Fazenda.

Mesmo que seja garantido um repasse à seguridade social, com base em parte do orçamento fiscal, deixarão de existir as receitas próprias da Seguridade Social, alocadas em orçamento exclusivo, como determina Constituição. Com o tempo, a noção de separação da Seguridade Social vai-se desvanescer – o que poderá facilitar políticas de redução (“flexibilização”) de direitos, defendidas por diversas correntes políticas.

Evitar este retrocesso será, provavelmente, a principal batalha dos movimentos sociais, na tramitação da nova “reforma” tributária. Mas a sociedade civil não pode ficar apenas na defensiva. Por isso, a coluna debaterá, na próxima edição, os caminhos para criação de princípios de justiça tributária no Brasil.

Mais

Evilásio Salvador é colunista do Caderno Brasil de Le Monde Diplomatique. Edição anterior da coluna:

Por que os bancos choram
Há duas razões para a gritaria dos banqueiros, após o aumento de impostos decidido pelo governo. Rompeu-se a lógica de conceder sucessivos benefícios fiscais ao setor financeiro. E fica claro que é possível uma reforma tributária verdadeira, capaz de reduzir a concentração de renda

Os bilhões que nos tomaram
Como a Desvinculação de Receitas da União (DRU) desvia todos os anos bilhões de reais da Saúde, Educação e Previdência e os transfere para os mercados financeiros. Radiografia de um mecanismo que a mídia interesseiramente esconde

CPMF: muito além dos clichês
Às vésperas decisão do Congresso, uma análise em profundidade sobre o papel do tributo. Por que é regressivo. Qual sua importância no combate à sonegação. E o principal: como iniciar a construção de um sistema de justiça fiscal no país. Nova coluna do Diplô tratará permanentemente do tema

[1] Conforme POCHMANN, Marcio et al (Orgs). Os ricos no Brasil. São Paulo: Cortez, 2004

[2] BOSCHETTI, Ivanete. SALVADOR, Evilásio. “Orçamento da Seguridade Social e política econômica: perversa alquimia”. Serviço Social e Sociedade. São Paulo, v. 87, 2006, p. 25-57.

Gasto social e política macroeconômica – trajetória e tensões no período de 1995 a 2005

Este trabalho analisa a trajetória do Gasto Social Federal (GSF) de acordo com a metodologia de áreas de atuação, desenvolvida na Diretoria de Estudos Sociais (Disoc) do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Atualiza-se a série iniciada em 1995 até o ano de 2005, completando assim um período de 11 anos. Constata-se o crescimento do Gasto Social Federal, liderado pelas áreas de previdência e assistência social, tanto em seus valores reais, quanto em proporção do Produto Interno Bruto (PIB). Todavia, discute-se que tal crescimento permitiu uma expansão na proteção social proporcionada pelas políticas públicas – que não deve ser subestimada.

A trajetória do GSF revela-se também bastante irregular e instável no período, e um segundo objetivo deste texto consiste em relacionar essa instabilidade à condução da política macroeconômica. Observa-se que as mudanças ocorridas na gestão da política econômica – que delimitam claramente os três mandatos presidenciais deste período – condicionam fortemente a trajetória do GSF. Para tal, contextualiza-se esse gasto diante da trajetória da despesa financeira do governo federal e ao desempenho da carga tributária.

 

Gasto Social e Política Macroeconômica

Transgênico: De grão em grão, multinacionais enchem o papo


A aprovação do milho transgênico da Bayer e da Monsanto, duas grandes transnacionais do agronegócio, seguiu os critérios da lucratividade e da visão econômica mais tacanha. O Conselho Nacional de Biossegurança, formado por 11 ministros de Estado, perdeu a razão no mês do carnaval. Em meio a um festim de sandices, o governo rachou: aprovou por sete votos a quatro o milho transgênico, numa clara manifestação favorável ao agronegócio, enquanto Lula, acompanhado da ministra Marina Silva, do Meio Ambiente, encontrava-se na Guiana Francesa com o presidente francês Nicolas Sarkozy, cujo governo proibiu o milho MON 810 (o mesmo que foi liberado no Brasil) em nome do “princípio de precaução”, em janeiro deste ano.

Na defesa do produto das transnacionais, os ministros utilizaram os argumentos mais anticientíficos existentes. Desconsideraram todo estudo existente que colocava em dúvida a segurança alimentar do milho transgênico. Desconsideraram os dados do Ibama[1] que indicam que “para cada quilo de herbicida reduzido no Rio Grande do Sul, houve um aumento de 7,5 kg de glifosato no período de 2000 a 2004”. Desconsideraram a ameaça à saúde humana e animal mesmo depois do contundente painel “Vítimas do agronegócio na Cúpula da Biodiversidade”, corrida em Curitiba[2]. Desconsideraram as análises da Anvisa[3] que avaliam como inadequados e insuficientes os estudos da Monsanto e da Bayer para atestar a segurança alimentar e determinar os riscos à saúde pública, bem como seus estudos sobre alergenicidade e toxicidade. Desconsideraram as ponderações do Ibama que não foram realizados estudos sobre os impactos nos ecossistemas brasileiros e que a liberação do milho transgênico contaminará as variedades de milho crioulas, cultivadas pelos pequenos agricultores, indígenas e quilombolas.

O Registros de Contaminação Transgênica – 2006, do Greenpeace, alerta que há uma contínua e criminosa contaminação global nos estoques de milho. Na ultima década foram encontradas lavouras de milho contaminadas em 14 países: Áustria, Brasil, Chile, Croácia, França, Alemanha, Grécia, Itália, Nova Zelândia, Suíça e Estados Unidos, Alemanha, Nova Zelândia e Eslovênia.

As desconsiderações dos ministros do governo Lula terão custos sociais, ambientais e econômicos para os agricultores familiares e para o país. Os ministros sobrepuseram os interesses econômicos de um setor da sociedade e das multinacionais à saúde e bem-estar da população. Os ministros desprezaram o Protocolo de Cartagena de Biossegurança, ao relegar o princípio da precaução, que estabelece os meios e condições ao país de exigir elementos suficientes que comprovem a inocuidade dos produtos alimentares à saúde e ao meio ambiente.

A Casa Civil defendeu, de forma bisonha, uma visão técnica em um assunto de segurança alimentar e nutricional. A ministra Dilma Roussef, da Casa Civil, relevou as questões que questionavam a segurança do milho transgênico para a saúde humana e animal. Desautorizou os estudos realizados no âmbito de seu próprio governo, mesmo sabendo que vários países da Europa proibiram o milho transgênicos por ameaçar a saúde do contribuinte.

As organizações e os movimentos sociais apresentaram uma serie de documentos, estudos e pesquisas demonstrando o perigo da aprovação do milho transgênico no Brasil. A irresponsabilidade do governo coloca em risco a produção dos pequenos e médios agricultores familiares e a saúde da população, em especial os segmentos mais sensíveis, idosos e crianças. Neste sentido o Inesc acompanha as críticas das demais organizações sociais, faz eco às suas ponderações e apóia as ações judiciais que venham a ser interpostas à decisão atabalhoada tomada pelo governo federal.

 


Carta Aberta aos Ministros do Conselho Nacional de Biossegurança – Contra liberação do milho transgênico


[1] Instituto Nacional de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis/Ministério do Meio Ambiente

[2] 8ª Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica (COP 8), em Curitiba, em 2006.

[3] Agência Nacional de Vigilância Sanitária/Ministério da Saúde

Plano de Aceleração do Crescimento: muito empenho e pouca execução

O governo federal comemora o primeiro aniversário do Programa de Aceleração do Crescimento, o PAC, a menina dos olhos do Presidente Lula nesta terça-feira, dia 22 de janeiro. O programa é sempre celebrado como a principal alavanca do crescimento econômico do país, na medida em que se propõe a ultrapassar os entraves existentes principalmente na área de infra-estrutura. Uma análise dos dados orçamentários não aponta para grandes comemorações.

Apesar de o governo ter empenhado[2] a quase totalidade dos recursos autorizados pela Lei Orçamentária de 2007, não se pode concluir que o PAC vá de vento em popa. Até 31 de dezembro foram empenhados R$16 bilhões dos R$16,6 bilhões autorizados. O empenho significa que o recurso foi reservado para determinada ação, mas não significa sequer que a ação foi iniciada.

Embora um dos grandes motivos de comemoração seja o fato de que foi empenhada a quase totalidade dos recursos, um olhar mais detalhado sobre a execução das ações previstas pelo Programa mostra uma outra realidade.

A execução do orçamento 2007 mostra que somente R$4,9 bilhões foram liquidados o que corresponde a 29,55% do total autorizado para o PAC. O restante das despesas, em torno de R$11 bilhões, foi incluído em restos a pagar. São aqueles recursos que somente foram empenhados e sobre os quais não se tem a menor certeza de sua execução.

Os restos a pagar, na sua origem legal, têm o papel de mostrar o que foi concluído, ou liquidado, mas, que não foi possível pagar no exercício vigente e ficará para o exercício seguinte. Em Boletim anterior[3], o Inesc já apontava para o perigo que é jogar em restos a pagar despesas sobre as quais não se tem o menor controle sobre sua verdadeira execução. Não fica transparente para a sociedade o que será realmente concluído ou executado.

Um recorte sobre a execução por unidade orçamentária (UO) mostra que há ações do PAC que não conseguiram nem sequer terem a sua execução iniciada. É o caso do Ministério das Cidades, nas ações do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social, que em 31 de dezembro apresentava 0,06% de despesa liquidada. Somente R$130.446,00 foram liquidados de um total de R$236,5 milhões autorizados.

No Ministério dos Transportes, o Departamento Nacional de Infra-estrutura de Transportes (DNIT), que cuida das estradas, é um outro exemplo de execução baixa. Do total de recursos destinados para o PAC, foram executados apenas 35,84%.

As ações do PAC previstas para serem executadas pelo Ministério da Saúde, por meio da Fundação Nacional de Saúde, alcançaram o patamar irrisório de 1,85% do total autorizado.

A análise da aplicação dos recursos do PAC por Unidades da Federação revela que 12 estados e o Distrito Federal tiveram uma execução orçamentária (orçamento liquidado/orçamento autorizado) bem abaixo de 29,55%, que foi o percentual de execução do programa como um todo. Chama atenção que as obras do PAC no Amapá e no Rio de Janeiro têm uma execução orçamentária inferior a 10%.

O que os dados mostram não merece comemoração. Os níveis de execução das ações do PAC deixam muito a desejar. É importante lembrar que as ações aqui apontadas se referem àquelas que constam da Lei Orçamentária de 2007. As aplicações previstas no PAC para serem executadas pela iniciativa privada e pelas empresas estatais não estão computadas.

De qualquer forma, são recursos orçamentários disponíveis que não foram utilizados para deslanchar o crescimento do país, conforme previsão do Programa. Não basta empenhar recursos. Tem que empenhar também a capacidade de execução.

[1] Assessora de Política Fiscal e Orçamentária do Inesc

[2] Os dados e informações apresentados nesta nota foram retirados do Sistema Siga Brasil/Senado, disponível em www.senado.gov.br

[3] – Ver Nota Técnica n.° 10 de 2007, em www.inesc.org.br

O ovo da serpente

O ovo da serpente

ATILA ROQUE

O bárbaro episódio protagonizado no Rio de Janeiro pelos criminosos fardados do Exército é um sinal de que ultrapassamos o fundo do poço e nos aproximamos perigosamente das profundezas do horror totalitário.

Não vamos fingir que se trata de um episódio isolado. A responsabilidade é do Estado e da sociedade que tem sido leniente e tolerante com a brutalidade sistemática exercida pelos que deveriam ser os guardiões dos direitos dos cidadãos. É preciso uma intervenção radical, um movimento cívico que rompa com a inércia e o silêncio cúmplice que deixa as populações das periferias pobres e das favelas à mercê da barbárie executada pelo tráfico, pelas milícias, pela polícia e agora pelo Exército.

Estamos vendo o crime penetrar todas as esferas do Estado. As últimas notícias mostram que, no Rio de Janeiro, ex-governadores, ex-chefes de polícia, deputados e autoridades públicas deram as mãos ao crime organizado para ampliar o poder e a riqueza. As instituições vão aos poucos sendo corrompidas e manietadas, ferindo gravemente o estado de direito e a democracia.

Da mesma forma estamos vendo a banalização do extermínio puro e simples de jovens pobres, em supostos confrontos com uma polícia ineficiente, mal treinada e mal paga, que parece ter tomado gosto pela matança. Com o aplauso entusiasmado de uma classe média acuada pelo medo, que prefere a “limpeza” da cidade a qualquer preço do que enfrentar o desafio maior de reestruturar o sistema de segurança pública e garantir direitos iguais a todas as pessoas. Nunca é demais lembrar que as sementes do totalitarismo e do fascismo historicamente se alimentaram do medo e do silêncio.

O absurdo e a violência desse episódio humilham o Estado e lança uma mancha sobre o Exército que dificilmente será apagado com pedidos de desculpas formais, ainda que necessários e imprescindíveis.

A ausência de autoridades públicas no enterro dos jovens e as declarações quase protocolares do governador e do presidente não correspondem à gravidade do episódio.

A sociedade carioca também deve se perguntar a razão pela qual tragédias como essas não provocam uma onda de indignação, um grito coletivo de basta que coloque um ponto final na verdadeira política de extermínio que tem sido posta em prática no Rio de Janeiro, com um custo alto de vidas de jovens, em sua maioria negros e pobres. Por que as únicas manifestações públicas de dor e revolta são as das próprias comunidades violentadas? Acho que já passamos da hora de formar uma aliança acima dos interesses particulares, partidários ou econômicos, que coloque como prioridade absoluta uma política de segurança pública e de desenvolvimento social que pense a juventude excluída não como problema ou ameaça, mas como parte essencial do nosso futuro como sociedade.

Por que não podemos reunir novamente o que temos de melhor? Ou será que perdemos totalmente a capacidade de indignação e vamos seguir recolhidos em nossos bunkers urbanos enquanto os cães de guerra espalham sem limites a selvageria?

 

Atila Roque é historiador e Diretor do Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos)

Corrida de um cavalo só

Cavalo artigo AtilaA incapacidade de reconhecer a hora da mudança, cedo ou tarde, leva as instituições humanas à decadência ou irrelevância política. Isso também é verdade quando as instituições são organismos multilaterais, como é o caso do Banco Mundial. A crise que resultou na demissão de Paul Wolfowitz tem origem no sistema arcaico de sucessão vigente nas duas principais organizações financeiras multilaterais, o Banco Mundial e o FMI, reduzido a um acordo de cavalheiros que distribui os cargos máximos das duas instituições entre a Europa e os Estados Unidos. Tudo isso à revelia do que pensa o restante do mundo, em particular os países onde vive a maioria das populações diretamente atingidas pelas políticas dessas instituições.

 

Mas como diz o ditado: velhos hábitos custam a morrer. As notícias do processo eleitoral parecem indicar que as lições recentes não foram devidamente apreendidas. A indicação de Robert Zoellick, ex-representante comercial dos EUA, para a Presidência do Banco Mundial, reafirma a lógica da corrida de um cavalo só em que o candidato do governo de George W. Bush se prepara para cruzar solitário a linha de chegada.

 

A Europa e os Estados Unidos dão as mãos na tentativa de abafar rapidamente o desconforto e incômodo causado pelo affair Wolfowitz, ignorando um debate que teve reflexo até mesmo no Conselho de Diretores do Banco, formalmente a instância que indica o Presidente. Recentemente o Brasil, a Austrália e a África do Sul manifestaram publicamente o desconforto com a situação atual, pedindo um processo mais aberto. Talvez seja este o momento para esses países, em aliança com outros, darem um passo à frente e articularem candidaturas alternativas.

 

O próprio comunicado dos diretores executivos do Banco, comentando a indicação da candidatura de Zoellick, faz questão de dizer que as inscrições para novas candidaturas seguem abertas até o próximo dia 15 e que todas as candidaturas serão consideradas. A proposta de pelo menos uma candidatura alternativa deflagaria a oportunidade de um debate mais aberto sobre os critérios da escolha.

 

Ainda que aparentemente insossa, não devemos nos iludir sobre o que está em jogo nesse processo. Mais do que a definição sobre a liderança de instituições que, recentemente, perderam muito da capacidade de influenciar as políticas de países de renda média e alta como o Brasil, Índia e África do Sul — ainda que isso se faça menos necessário, já que a ideologia e o modelo por elas defendidos passaram a fazer parte do pacote básico das políticas nacionais —, o processo em curso diz muito da pouca disposição da Europa e dos Estados Unidos discutirem a reforma do chamado sistema de governança global. Este sim um assunto de grande relevância para o Brasil e outros países em desenvolvimento, como demonstra as negociações na Organização Mundial do Comércio e as discussões em curso nesta semana no encontro do G8, na Alemanha.

 

 

Atila Roque, Historiador e membro do Colegiado de Gestão do Inesc

Reforma Tributária desmonta o financiamento das políticas sociais

Brasil – Reforma Tributária desmonta o financiamento das políticas sociais

Evilásio Salvador *


Encontra-se em tramitação na Câmara dos Deputados a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 233/2008, também conhecida como a proposta de reforma tributária, trazendo graves conseqüências ao financiamento das políticas sociais no Brasil. A reforma altera de forma substancial a vinculação das fontes de financiamento exclusivas das políticas da seguridade social (previdência, saúde e assistência social), educação e trabalho.

A proposta de reforma tributária dá prosseguimento às medidas econômicas constante do Programa de Aceleração Econômica (PAC) lançado em 2007. Naquela oportunidade, o governo anunciou que iria “retomar a discussão sobre a reforma tributária com os governadores, prefeitos, empresários, representantes dos consumidores e parlamentares, tendo como objetivo o aprimoramento do sistema tributário nacional” (1). Chama atenção que agenda não inclui o debate com as entidades representativas da sociedade civil, organizações populares, movimentos sociais e sindicatos de trabalhadores.

De fato, a construção da proposta de reforma tributária, ao longo dos últimos 12 meses, incluiu uma ativa agenda de reuniões com os setores representativos do empresariado nacional, além de encontros com os governadores e prefeitos. O diálogo com o movimento social e sindical limitou-se às reuniões realizadas no âmbito do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), que trataram da reforma tributária. Assim, a proposta de reforma tributária é um reflexo do diversos interesses do setor empresarial e das questões federativas pautadas pelos governadores e prefeitos.

Com isso, a PEC da reforma tributária limita seus objetivos a simplificar, eliminar tributos e pôr fim à “guerra fiscal” entre os Estados (2). O único princípio tributário no qual a PEC 233/2008 foi baseada é o da neutralidade, esquecendo-se os demais princípios tributários e constitucionais, especialmente os princípios da capacidade contributiva, da isonomia e da progressividade. O princípio tributário da neutralidade é fundamentado na concepção neoclássica, segundo a qual o sistema tributário não pode romper o equilíbrio de mercado e, portanto, os impostos não podem afetar as decisões dos agentes econômicos na alocação dos recursos nas economias, o que afetaria a eficiência. Assim como os tributos não devem alterar a estrutura de distribuição de renda, pois esta, no modelo neoclássico4, é considera ótima, antes da incidência dos impostos (Oliveira, 2001).

Contudo, o debate sobre a reforma tributária deveria ser pautado pela retomada dos princípios da eqüidade, da progressividade e da capacidade contributiva, no caminho da justiça fiscal e social, priorizando a redistribuição da renda (Hickmann; Salvador, 2006). As tributações da renda e do patrimônio nunca ocuparam lugar de destaque na agenda nacional e nos projetos de “reformas tributárias” após a Constituição de 1988. Assim, é mais do que oportuno recuperarem-se os princípios constitucionais basilares da justiça fiscal (eqüidade, capacidade contributiva e progressividade). A tributação é um dos melhores instrumentos de erradicação da pobreza e da redução das desigualdades sociais, que constituem objetivos essenciais da República, esculpidos na Carta Magna.

Este breve artigo tem por objetivo analisar a proposta de reforma tributária, no âmbito da PEC 233/2008, destacando as implicações para o financiamento das políticas sociais no Brasil, especialmente a seguridade social e a políticas de educação e trabalho.

A construção do Estado de Bem-Estar Social nos países desenvolvidos privilegiou a redistribuição da renda gerada por meio orçamento, com tributação sobre os mais ricos e transferências dos recursos dos fundos públicos, para os mais pobres. Nos países desenvolvidos foram realizadas reformas no segundo pós-guerra, como a tributária, a social e a trabalhista. Pela primeira vez, os ricos passaram a pagar impostos, especialmente com o mecanismo da progressividade sobre a renda e patrimônio. Construiu-se uma nova estrutura de redistribuição da renda, que veio a se sobrepor à estrutura capitalista distributiva primária constituída (lucros, juros, aluguéis de imóveis, salários e remunerações). Como isso, os mais ricos passaram a ser tributados consideravelmente com impostos sobre a renda, patrimônio e herança, permitindo a criação de fundos públicos para financiar a transferência de renda para a população de menor renda, combatendo a pobreza, o desemprego e a desigualdade social nos países desenvolvidos (Pochmann, 2004).

O Brasil, com base na experiência internacional e com objetivo de erradicar a pobreza, reduzir as desigualdades sociais e construir uma sociedade mais justa, deveria utilizar o sistema tributário como instrumento de distribuição de renda e riqueza, no caminho inverso do construído nas últimas décadas.

O nosso país encontra-se entre as dez economias mais ricas do mundo (World Bank, 2007), no entanto, possui uma das maiores concentrações de renda do planeta (PNUD, 2006). Apesar da melhoria no coeficiente de Gini, no período de 1995 a 2005, de 0,601 para 0,569, a concentração de renda do nosso país é equiparável à de alguns países da África Subsaariana, uma das regiões mais miseráveis do mundo. Os dados que são utilizados no cálculo do Coeficiente de Gini são baseados na Pesquisa por Amostra de Domicílios (Pnad) do IBGE, que subestimam a renda do capital: juros, lucros e aluguéis.

A questão relevante é a distribuição funcional da renda, que colabora para averiguar a desigualdades entre as diferentes classes sociais. Nesse sentido, o Sistema de Contas Nacionais (SCN) do IBGE apresenta informações protuberantes para análise da iniqüidade social no Brasil. Os dados revisados do SCN pelo IBGE (2007) revelam a iniqüidade em vigor no país: em 2000, os salários representavam 32,1% do PIB, reduzindo-se para 31,7%, em 2005; enquanto os lucros, mensurados a partir do excedente operacional bruto, aumentaram sua participação na renda nacional de 34% (2000) para 35,2%, em 2005.

O sistema tributário brasileiro não colabora para reverter essa situação. Ao contrário, tem sido um instrumento a favor da concentração de renda, agravando o ônus fiscal dos mais pobres e aliviando o das classes mais ricas. O Imposto de Renda (IR) tem sido utilizado como instrumento de renúncias fiscais e favorecido a elisão e o planejamento tributário (Salvador, 2007). Além do tratamento mais gravoso dos rendimentos do trabalho e isentando os rendimentos do capital, como a distribuição do lucro. O que torna necessária uma profunda revisão do IR com objetivo de restabelecer o seu verdadeiro significado, contribuindo para assegurar a eqüidade horizontal e vertical na tributação (Dain, 2006).

Reforma tributária afeta o financiamento das políticas sociais

A PEC da reforma tributária não aponta para a construção de um sistema tributário progressivo, pautado pela tributação da renda e do patrimônio. Além disso, as modificações propostas afetam a estrutura de financiamento das políticas sociais, particularmente, os recursos vinculados ao custeio da seguridade social, educação e trabalho. Os principais pontos da reforma tributária são:

a) a criação de um Imposto sobre Valor Adicionado (IVA-F), com a extinção de quatro tributos federais (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social – Cofins; a contribuição para o Programa de Integração Social – PIS; a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico incidente sobre a importação e a comercialização de combustíveis – Cide; e a contribuição social do Salário-educação);
b) a incorporação da Contribuição Social do Lucro Líquido (CSLL) ao Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ);
c) a redução gradativa da contribuição dos empregadores para previdência social, a ser realizada nos anos subseqüentes da reforma, por meio do envio de um projeto de lei no prazo de até 90 dias da promulgação da PEC;
d) a unificação da legislação do Imposto sobre Circulação de Mercadoria e Serviços (ICMS), a ser realizada por meio de lei única nacional e não mais por 27 leis das unidades da federação;
e) a criação de um Fundo de Equalização de Receitas (FER) para compensar eventuais perdas de receita do ICMS por parte dos estados; e
f) a instituição de um Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional (FNDR), permitindo a coordenação da aplicação dos recursos da política de desenvolvimento regional.

O principal objetivo da reforma é a simplificação da legislação tributária, tanto por meio da redução das legislações do ICMS, quanto pela eliminação de tributos, trazendo maior racionalidade econômica e reduzindo as obrigações acessórias das empresas com custos de apuração e recolhimento de impostos. Além disso, a cobrança do ICMS no Estado de destino da mercadoria deverá eliminar a “guerra fiscal”.

A criação do IVA-F vai reduzir a cumulatividade do sistema tributário. Hoje, a Cide-Combustíveis e parte da arrecadação da Cofins e da Contribuição do PIS são cobradas diversas vezes sobre um mesmo produto, isto é, em todas as etapas de produção e circulação da mercadoria. O IVA-F vai tributar apenas o valor adicionado em cada estágio da produção e da distribuição. Assim, o valor do tributo poderá ser definido pela diferença entre o preço de venda do produto e o custo da aquisição, nas diversas etapas da cadeia produtiva. Contudo, em ambos os modelos, o tributo é repassado ao preço de venda do bem e do serviço, sendo pago, portanto, pago pelo consumidor final.

Aliás, o governo deveria aproveitar a oportunidade para regulamentar o Art. 150, § 5º, da CF “A lei determinará medidas para que os consumidores sejam esclarecidos acerca dos impostos que incidam sobre mercadorias e serviços”, assegurando maior transparência na arrecadação dos tributos.

A proposta de reforma traz avanços para as empresas, com a simplificação do recolhimento tributário, que poderá até resultar no aumento da eficiência econômica e da produtividade. Porém, a PEC não modifica a estrutura regressiva do sistema tributário brasileiro. O que ocorre é a alteração da regulação dos tributos indiretos, do regime cumulativo para a incidência sobre o valor adicionado. A marca principal do sistema tributário brasileiro, que é a sua enorme regressividade, permanece indelével.

Apesar da insignificante arrecadação dos impostos que têm incidência sobre o patrimônio, que responderam, por exemplo, em 2007, por apenas 3,3% do montante arrecadado em tributos, a proposta de reforma tributária silenciou sobre o assunto. Convém lembrar que as 5 mil famílias mais ricas do Brasil têm em patrimônio algo em torno de 40% do PIB brasileiro (Pochmann, 2004).

A implicação mais importante da reforma tributária diz respeito ao financiamento da seguridade social, do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) e da educação básica (Salário-educação). Os três tributos mais relevantes que financiam a seguridade social no Brasil serão modificados. A Cofins e a CSLL serão extintas e haverá desoneração da contribuição patronal sobre a folha de pagamento, por meio de legislação específica, após as mudanças constitucionais. Para a seguridade social passam a ser destinados 38,8% do produto da arrecadação dos impostos sobre renda (IR), produtos industrializados (IPI) e operações com bens e prestações de serviços (IVA-F). Esse percentual é equivalente a proporção entre a arrecadação da Cofins e da CSLL e a receita arrecadada, em 2006, com IR, CSLL, Cofins, PIS, Cide, Salário-educação e IPI.

Essa modificação é o sepultamento da diversidade das bases de financiamento da seguridade social inscrita no Artigo 195 da Constituição de Federal (CF) de 1988, que ampliou o financiamento da previdência, saúde e assistência social para além da folha de salários, incluindo, a receita, o faturamento e lucro. A partir da reforma, restará inscrito no Art. 195 da CF, como base de financiamento da seguridade social, a contribuição sobre a folha de salários, a contribuição do trabalhador para a previdência social e a receita de concursos e prognósticos, sendo que a contribuição sobre folha de pagamento deverá ser reduzida ao longo dos próximos anos. Portanto, a idéia de orçamento de seguridade social diversificado em fontes de financiamentos retroagirá a situação anterior a da CF. Com isso, haverá perda da exclusividade de recursos para a seguridade social, que poderá ficar fragilizada em seu financiamento, dependendo de uma partilha do IVA-F e da arrecadação das contribuições previdenciárias.

Além disso, a desoneração da folha de pagamento via a redução da contribuição patronal para a previdência social, conforme Projeto Lei a ser envidado 90 dias após aprovação da PEC, vai significar uma perda de R$ 24 bilhões para previdência social. Não existe nenhuma previsão de substituição desta contribuição por outro tributo no financiamento da previdência. Além do enfraquecimento da solidariedade no financiamento da previdência social, um compromisso historicamente construído no Brasil.

Convém lembrar que um dos maiores avanços dessa Constituição, em termos de política social, foi a adoção do conceito de seguridade social, englobando em um mesmo sistema as políticas de saúde, previdência e assistência social. Para tanto a CF apontou entre os princípios da seguridade social a diversidade da base de financiamento. Com isso, o artigo 195 da CF estabeleceu que além das contribuições dos empregados e empregadores, os recursos provenientes das contribuições sociais sobre o lucro, a receita, o faturamento, do importador de bens e serviços do exterior e a receita de concursos de prognósticos.

Mesmo que seja garantido um repasse à seguridade social com base em parte do orçamento fiscal, vai deixar de existir as receitas próprias da seguridade social prevista em orçamento exclusivo, como determina a CF. Com o tempo, a noção de separação da seguridade social vai-se desvanecer. As políticas sociais da saúde, assistência social e previdência terão que disputar recursos e enfrentar pressões no âmbito do orçamento fiscal, com os governadores e prefeitos, pois a base tributária será a mesma que é partilhada com os estados e municípios. Além da histórica pressão dos empresários por desoneração tributária e pelo destino de mais verbas orçamentárias para os investimentos.

O governo propõe na reforma tributária a desoneração da folha de pagamento, mediante a substituição da contribuição social do Salário-educação por uma destinação da arrecadação federal. O Salário-Educação é a contribuição social prevista no Artigo 212, § 5° da Constituição Federal: o ensino fundamental público terá como fonte adicional de financiamento a contribuição social do Salário-educação, recolhida pelas empresas na forma da lei.

A reforma tributária acaba com esta contribuição social específica para o financiamento da educação básica. No seu lugar, a PEC da reforma tributária prevê que em uma Lei Complementar será definido o percentual a ser destinado para o financiamento da educação básica, enquanto isso vai ocorrer uma destinação de 2,3% da arrecadação dos impostos sobre renda (IR), produtos industrializados (IPI) e operações com bens e prestações de serviços (IVA-F). Esse percentual é equivalente a proporção entre a arrecadação da Contribuição Social do Salário-educação e a receita arrecadada, em 2006, com IR, CSLL, Cofins, PIS, Cide, Salário-educação e IPI.

Em termos políticos, a mudança é grave. Um dos avanços da Constituição, em termos de políticas sociais foi a vinculação de recursos como uma das formas de enfrentar a perversa tradição fiscal existente no Brasil, cuja aplicação dos recursos do orçamento público sempre priorizou a acumulação do capital, submetendo as políticas sociais à lógica econômica. Vincular recursos significa, portanto, amenizar esta prática, assegurando que parte da receita seja obrigatoriamente destinada e exclusiva para o financiamento da área social. O objetivo é universalizar os direitos sociais: educação, previdência, saúde e trabalho.

Mesmo que seja garantido um repasse à educação básica, com base em parte do orçamento fiscal, deixarão de existir as receitas próprias da educação. O fim da fonte de recursos exclusiva para a educação básica poderá ter conseqüência para o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), que tem a educação básica de qualidade como a prioridade, assim como, para o Plano Nacional de Educação (PNE) que tem entre outros objetivos, a elevação global do nível de escolaridade da população e a melhoria da qualidade do ensino em todos os níveis. Pois, a reforma tributária vai enfraquecer o financiamento da educação básica, fragilizando o aporte dos recursos necessários para o alcance da metas e dos objetivos estabelecidos nesses planos.

O PNE diz que a questão do financiamento da Educação, é o “requisito para o exercício pleno da cidadania, para o desenvolvimento humano e para a melhoria da qualidade de vida da população.” Contudo este ideal é colocado em xeque com a reforma tributária, pois a reforma pode inviabilizar os recursos vinculados aos fundos sociais. O Salário-educação é um dos recursos geridos pelo FNDE, representando 37% dos recursos do Fundo, em 2008. A arrecadação tem também uma quota que é repassada aos estados e municípios.

Os fundos sociais foram criados em um modelo em que os recursos reservados para executar certas políticas fossem administrados por conselhos de composição paritária. Neles, representantes governamentais e não-governamentais somam-se para acompanhar e fiscalizar políticas públicas. Por terem recursos originados na cobrança de taxas ou contribuições especialmente criadas para alimentá-los, estes fundos são formados por fluxos financeiros como lucros, receitas brutas, faturamentos, folhas de pagamentos (Rocha, 2002). Eles têm em comum uma relativa estabilidade na captação de recursos, deixando de depender de recursos do orçamento fiscal. Com a reforma tributária, a educação passar a depender da disputa pelos recursos do orçamento fiscal, que nem sempre tem como prioridade os gastos nas áreas sociais, fragilizando com isso o futuro do PDE e do PNE.

No mesmo sentido, a PEC da reforma tributária, ao extinguir a contribuição social para o Programa de Integração Social (PIS), acabará como uma fonte importante de financiamento do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) – cujos recursos são direcionados ao custeio do Programa do Seguro-desemprego, do Abono Salarial e, pelo menos 40%, ao financiamento de Programas de Desenvolvimento Econômico a cargo do BNDES. No seu lugar passam a ser destinados 6,7% do produto da arrecadação dos impostos sobre renda (IR), produtos industrializados (IPI) e operações com bens e prestações de serviços (IVA-F).

Os tributos que serão extintos com a reforma tributária deverão alcançar o montante de R$ 153,8 bilhões, neste ano, conforme a previsão de receitas do Orçamento de 2008. Neste montante foi considerada a incidência da Desvinculação de Recursos da União (DRU), conforme demonstrado na Tabela 1. Essas receitas são vinculadas exclusivamente para fundos sociais que financiam as políticas da seguridade social (assistência social, previdência e saúde), educação e trabalho. A sua extinção significa o desmonte do financiamento da política social, conforme a estrutura de receitas exclusivas definida na Constituição, desde 1988. Os recursos para essas políticas serão repassados pelo orçamento fiscal, colocando a área social no âmago da disputa de receitas com os governadores, prefeitos e empresários. Isso vai ocorrer por dois motivos: primeiro, porque será a mesma base de partilha de tributos dos estados e municípios; segundo, há uma forte pressão de setores empresariais pelo aumento dos gastos orçamentários com investimento e por maior desoneração tributária.

Por fim, a reforma tributária propõe adequações no art. 76 do Ato das Disposições Constitucionais, de modo a garantir a continuidade da DRU até 31/12/2011. A DRU desvinculação de 20% da arrecadação de impostos e contribuições sociais. Hoje, a DRU transforma parte dos recursos qu e deveriam ser destinados ao financiamento da seguridade social em recursos fiscais para a composição do superávit primário e, por conseqüência, a sua utilização em pagamento de juros da dívida. Somente, em 2007, a DRU desviou R$ 38,6 do Orçamento da Seguridade Social, conforme dados da Secretaria do Tesouro Nacional (4). Esses recursos deveriam ser destinados às ações de previdência, saúde e assistência social, e poderiam ampliar os direitos relativos a estas políticas sociais, mas acabaram compondo o superávit primário. A reforma tributária perde oportunidade de extinguir a DRU, pois não há mais razão da sua existência, após consecutivas superações de metas de superávit primário.

Referências bibliográficas

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HICKMANN, Clair; SALVADOR, Evilásio (Org.). 10 anos de derrama: a distribuição da carga tributária no Brasil. Brasília: Unafisco Sindical, 2006.
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PISCITELLI, Roberto. Reforma tributária: a unanimidade de cada. In: MORHY, Lauro (Org.). Reforma tributária em questão. Brasília: Editora da UnB, 2003, p. 83-90.
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PNUD. Relatório do Desenvolvimento Humano 2006. Nova York: Programa das Nações Unidas para Desenvolvimento, 2006. Disponível em: http://hdr.undp.org
ROCHA, Paulo. Concepções dos fundos e seus impactos nas políticas sociais. In: MAGALHÃES JÚNIOR, José; TEIXEIRA, Ana Claudia (Org.). Fundos públicos e políticas sociais. São Paulo: Instituto Pólis, 2004. (Publicações Pólis, 45); Anais do seminário “Fundos Públicos e Políticas Sociais”, Ago. 2002, p. 85-92.
SALVADOR, Evilásio. A distribuição da carga tributária: quem paga a conta? In: SICSÚ, João. Arrecadação (de onde vem?) e gastos públicos (para onde vão?). São Paulo: Boitempo Editorial, 2007, p. 79-93.
SANTOS, Reginaldo. A teoria das finanças públicas no contexto do capitalismo, São Paulo: Mandacaru, 2001.
WORLD BANK. World Development Indicators database 14 September 2007. Disponível em: http://siteresources.worldbank.org/DATASTATISTICS/Resources/
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Notas:

(1) Vide http://www.brasil.gov.br/pac/economicas/economicas/desoneracao/
(2) Lembrando que a PEC 41da Reforma Tributária proposta em 2003, destacava em sua exposição de motivos entre os objetivos da reforma “promover a justiça social, desonerando as pessoas de menor renda e ampliando a progressividade do sistema” (p. 13).
(3) Para compreensão da discussão e dos aportes teóricos fornecidos pelas diferentes escolas do pensamento econômico sobre a
questão tributária, ver Santos (2001).
(4) Disponível em: http://www.tesouro.fazenda.gov.br/hp/downloads/lei_responsabilidade/
RROdez2007.pdf

* Economista, Mestre e Doutorando em Política Social na Universidade de Brasília (UnB). Assessor de Política Fiscal e Orçamentária do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc)

 

As contradições da votação da MP 422

As contradições da votação da MP 422

Edélcio Vigna, assessor do Inesc.

 
    A Medida Provisória (MP) 422, emitida pelo governo Lula em março e aprovada em julho de 2008, tem como objetivo permitir a regularização de até quinze módulos rurais (1.500 hectares) na Amazônia Legal, com dispensa de licitação. Agora a MP é uma nova redação da Lei 8.666/1993, e institui normas para licitações e contratos da administração pública.

O Inesc comentou esta iniciativa de lei do Executivo, quando foi assinada, indicando que entre outros impactos pode estimular a concentração de terra, a expansão da estrangerização da terra, a consolidação de grandes latifúndios e a promoção do desmatamento. 

A MP, assinada pelo presidente Lula, provocou um forte debate nas organizações e nos movimentos sociais do campo. Declarações contraditórias e análises desencontradas foram realizadas. Poucas foram escritas, para ocultar, talvez, a cisão no seio do movimento rural. Mas, as organizações se mostraram indignadas com o acelerado reconhecimento de áreas griladas na Amazônia Legal. Em 1993, a lei permitia a regularização sem licitação de até um modulo rural (100 hectares). Em 2004, a regularização foi ampliada para cinco módulos (500 hectares) e, em 2008, saltou para 15 módulos rurais (1.500 hectares). Esta última dimensão não corresponde a imóveis familiares, mas a grandes propriedades.

Em maio, a MP foi aprovada pelo plenário da Câmara dos Deputados. Com um quorum de 401 deputados, o placar foi de 289 votos favoráveis versus 110 contrários e uma abstenção. Os partidos políticos da base governistas votaram a favor da MP, apoiado por muitos deputados da oposição. Nestes partidos houve algumas dissidências em relação às orientações das suas lideranças. No DEM, que orientou sua bancada a votar “Não”, 23,4% votaram “Sim”, que representa 11 votos de 47. E no PSDB, 10,4% votaram “Sim” na MP do governo, que significa cinco votos de 48 deputados.

Muitos parlamentares, combativos e favoráveis à reforma agrária, votaram (“Sim”) com o governo mesmo com quando gostariam de ter votado “Não”, pois tinham resistências à proposição. Esse embaraço era compreensível, pois muitos ruralistas se mostravam favoráveis à MP (queriam votar “Sim”), mesmo seguindo a orientação da liderança e votando contra (“Não”) a MP. Sabiam que os votos contrários além de não iriam impedir a aprovação da MP, deixariam os parlamentares comprometidos com a reforma agrária em uma situação desconfortável e, ainda, colocariam nos ombros dos governistas a responsabilidade de aprovar a proposta do governo.

No Senado Federal esta situação contraditória – do governo Lula elaborar uma proposição ao gosto e desejo da bancada ruralista (muitos avaliam como coerente!) – revelou-se por completo. A votação que ocorreu no início de julho, sob um quorum de 63 senadores, 37 votou favoravelmente, 23 contrários e três abstenções. Os partidos que garantiram a aprovação da MP foram os de oposição: contribuíram com 19 votos dos 37 favoráveis. Isso significa 51,4% do total dos votos favoráveis. 

O mais interessante na votação do Senado, diferente do que ocorreu na Câmara onde os partidos governistas votaram alinhados, foi a significativa cisão no Bloco do governo. Oito senadores governistas votaram “Não” (47,1% dos 17 do Bloco). No oposicionista DEM, nenhum parlamentar votou contra o governo – na Câmara 76,6% dos deputados votaram contra o governo. No PSDB, 70% (dos 10 senadores) votaram contra o governo – na Câmara a votação pelo “Não” foi de 89,6%.

O que esta votação nos revela é um expressivo descolamento das estratégias dos partidos nas duas Casas Legislativas. Os argumentos formulados para explicar a votação da oposição, na Câmara dos Deputados, contra a MP pode ser fruto das hipóteses aventadas e não de uma estratégia organizada dentro dos partidos. O raciocínio que valeu para o DEM na Câmara, pode ter valido para dos senadores do Bloco governista no Senado. Sendo esta proposição de interesse dos que atuam junto aos grandes proprietários de terras na Amazônia Legal, seriam eles os que deveriam fazer maiores esforços para aprovação final da MP.

Essa votação evidencia como as representações políticas da população (Câmara) e das unidades federativas (Senado) pouco dialogam entre si. Há um abismo entre uma e outra Casa legislativa. Durante um tempo houve um forte debate se o Senado seria ou não a Casa revisora das proposições aprovadas pela Câmara dos Deputados. Esse debate está adormecido, mas se revela em alguns momentos.

O sistema partidário está carente de bases programáticas atuais e consolidadas. Os programas dos partidos políticos vem se perpetuando a mais de duas décadas. É um corta e cola sem nenhum critério político e muita preguiça. Assim, é necessário que as organizações da sociedade civil e suas redes, como a Plataforma dos movimentos sociais pela reforma do sistema político, questionem, por dentro e por fora, o sistema partidário e político para que não haja tanta insensatez nas votações das casas legislativas.

Betinho

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Hoje fazem 10 anos de morte de Herbert de Souza, o Betinho. Os muito jovens talvez não saibam quem ele foi. Isso porque somos um país de memória fraca, muito fraca. Nossos heróis são esquecidos ou morrem de overdose, como diria Cazuza. Mas convém lembrá-lo, nesse momento em que a política parece ter sido reduzida à maldita arte do possível e a utopia foi deixada para uns poucos malucos.

Repetiram tantas vezes o mantra da não-alternativa que uns e outros, ex-revolucionários, especialmente depois que chegam ao poder, acreditam que nada podem mudar. Deixem tudo como está ou vamos bem devagarinho, ensinam, sem provocar marola para não assustar. O melhor mesmo é fazer como sempre fizeram os donos do poder, vamos até tornar as coisas um pouquinho melhor para eles de modo que não nos acusem de anti-capitalistas ou coisa pior.

Betinho era o contrário desse conformismo. Ele dizia que se fosse deixar na mão do destino (ou do mercado) teria morrido muito antes, talvez no quartinho onde foi isolado quando diagnosticado com tuberculose, ainda adolescente. Hemofílico, sobreviveu a dois golpes militares (Brasil e Chile) e amargou mais de 10 anos de exílio. Não se abalou nem quando foi diagnosticado com vírus HIV, juntamente com os dois irmãos, Chico Mário e Henfil, também hemofílicos. Justamente quando ele achava que estava tudo dando certo, anistiado, apaixonado pelo filho pequeno, aprontando mil e umas, vinha aquela notícia que, ao final dos anos 80, soava mais como uma sentença de morte.

Teimoso, ele seguiu em frente e fez do drama pessoal uma causa pública. Já tendo criado o Ibase, fundou a Abia, a primeira ONG a enfrentar o problema da Aids no Brasil. A lei que determinou o controle dos bancos de sangue é batizada de “Lei Betinho”, em homenagem ao seu empenho na luta pelo fim do criminoso mercado de sangue. Sofreu como um cão danado a morte dos dois irmãos e acho que nunca voltou a sofrer tanto outra vez. Mas não se deixou matar de véspera e ainda oferecia, com aquele sorriso bem Fradim, um “pouquinho de Aids” para quem reclamasse de cansaço perto dele.

Na década de 1990, voltou a mobilizar o Brasil como o principal animador da Campanha Contra a Fome, desafiando mais uma vez o “impossível” e a boa consciência de uma esquerda que achava que distribuir alimentos era mera caridade, como se compaixão e solidariedade com o próximo não fossem valores revolucionários no mundo que vivemos. A “Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida”, nome oficial do movimento, politizou como nunca o tema da exclusão social e da pobreza, resgatando para o centro do palco o impulso individual e a capacidade de mobilização de cada uma das milhões de pessoas que se organizaram em milhares de comitês pelo país afora. Tudo isso parece ter sido esquecido nesses tempos de Fome Zero.

O silêncio quase total da mídia e do governo neste aniversário de morte nos envergonha. Foi assim há alguns meses, quando completaram os dez anos de morte de Darcy Ribeiro. Esquecemos rápidos os nossos heróis.

Betinho era um artista do impossível e queria a utopia no presente. Entrou de cabeça em quase todas as causas que importaram no seu tempo, cometeu equívocos políticos e até éticos – os quais purgou em praça pública, como no caso da doação de um bicheiro para salvar a Abia do fechamento iminente – , mas sorveu a vida até a última gota, com paixão e sem nunca deixar de acreditar que podemos sim mudar o mundo. O impossível é possível e a única coisa que não tem mesmo solução é a morte.

Texto publicado no Blog Opinativas

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