Defendemos que o “corte de gastos públicos” incida sobre o superávit primário e o pagamento dos juros da dívida pública
AS CLASSES dominantes fizeram uma articulação e, por meio dos seus parlamentares no Senado, conseguiram derrubar a CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira). Logo depois, aprovaram a continuidade da DRU (Desvinculação de Receitas da União), que permite o desvio de 20% da receita da União. Com isso, recursos podem ser utilizados sem controle para o pagamento de juros, em vez de em investimentos sociais. A questão fundamental é que a CPMF era um imposto que taxava principalmente os mais ricos -70% da sua arrecadação vinha de grandes empresas e bancos. Além disso, impedia sonegação, fraudes e desvios. Com a derrota no Senado, o governo federal tomou a iniciativa de aumentar o IOF (Imposto sobre Operações Financeiras) e a CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido) e retomou a cobrança do imposto sobre as remessas de lucros para o exterior. Essas propostas foram acertadas e justas, atingindo sobretudo os bancos, o sistema financeiro e as empresas estrangeiras, apontando para o combate à desigualdade social e para o desenvolvimento nacional. Mais uma vez, as forças conservadoras se movimentaram e, tendo à frente a Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) e a Febraban (Federação Brasileira de Bancos), fizeram uma campanha mentirosa contra as propostas do governo, com suporte da Globo, dos Democratas e do PSDB. De um lado, mentem quando afirmam que os mais pobres serão afetados por esses impostos e, de outro, escondem que as taxas de juros exorbitantes cobradas pelo sistema financeiro são o maior custo das compras a prazo. Calam-se porque são beneficiados por esse instrumento. Diante disso, organizações populares e sindicais, intelectuais e religiosos defendemos que o “corte de gastos públicos” exigido pelas classes dominantes incida sobre o superávit primário e o pagamento dos juros da dívida pública, que é a maior despesa do Orçamento da União nos últimos dez anos. Trata-se de uma transferência de dinheiro do povo para bancos e especuladores. Em 2007, o governo federal gastou R$ 160,3 bilhões em juros, valor correspondente a 6,3% do PIB (Produto Interno Bruto), que representa quatro vezes o investimento nas áreas sociais. Precisamos de uma verdadeira reforma tributária, que seja eficaz e progressiva, incidindo proporcionalmente à renda e à riqueza. Atualmente, 70% dos impostos são cobrados sobre o consumo e apenas 30% sobre o patrimônio. É preciso diminuir o peso sobre a população e aumentá-lo sobre a riqueza e a renda. Além disso, é fundamental a redução da taxa de juros básica usada como referência para o pagamento dos títulos da dívida pública com grupos financeiros. Os bancos, por sua vez, deveriam baixar as escandalosas taxas de juros cobradas dos consumidores e das empresas, que inviabilizam o crédito para o crescimento do país. Poderiam eliminar as taxas de serviços, que rendem por ano R$ 54 bilhões. Outra forma de aumentar a arrecadação sem prejudicar o povo com cortes no Orçamento é acabar com a Lei Kandir, que isenta do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) as exportações agrícolas e primárias, prejudicando inclusive as contas dos Estados. Por fim, necessitamos de uma política permanente de distribuição de renda e, para isso, será necessário tomar medidas que taxem o patrimônio, a renda e os privilégios dos 10% mais ricos, que se apropriam de 75% da riqueza nacional. Só dessa forma poderemos aumentar as oportunidades de emprego e renda e, sem reduzir a contratação ou os salários dos servidores, ampliar os serviços públicos de forma eficiente e gratuita para toda a população, especialmente em saúde, educação e seguridade social. A sociedade brasileira não pode se calar diante das pressões dos setores conservadores e deve se manifestar, utilizando plebiscitos e consultas como exercício do direito constitucional de decisão do povo sobre assuntos tão importantes para a vida de todos e o futuro do país.
JOÃO PEDRO STEDILE, 52, economista, é integrante da direção nacional do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). DOM DEMÉTRIO VALENTINI, 67, bispo de Jales (SP), é membro da Comissão Episcopal para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz, da CNBB. JOSÉ ANTÔNIO MORONI, 44, filósofo, é membro do Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos) e diretor da Abong (Associação Brasileira de ONGs). EMIR SADER, 67, sociólogo e cientista político, é secretário-executivo da Clacso (Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais) e professor da Uerj.
Reforma Tributária desmonta o financiamento das políticas sociais
Brasil – Reforma Tributária desmonta o financiamento das políticas sociais
Evilásio Salvador *
Encontra-se em tramitação na Câmara dos Deputados a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 233/2008, também conhecida como a proposta de reforma tributária, trazendo graves conseqüências ao financiamento das políticas sociais no Brasil. A reforma altera de forma substancial a vinculação das fontes de financiamento exclusivas das políticas da seguridade social (previdência, saúde e assistência social), educação e trabalho.
A proposta de reforma tributária dá prosseguimento às medidas econômicas constante do Programa de Aceleração Econômica (PAC) lançado em 2007. Naquela oportunidade, o governo anunciou que iria “retomar a discussão sobre a reforma tributária com os governadores, prefeitos, empresários, representantes dos consumidores e parlamentares, tendo como objetivo o aprimoramento do sistema tributário nacional” (1). Chama atenção que agenda não inclui o debate com as entidades representativas da sociedade civil, organizações populares, movimentos sociais e sindicatos de trabalhadores.
De fato, a construção da proposta de reforma tributária, ao longo dos últimos 12 meses, incluiu uma ativa agenda de reuniões com os setores representativos do empresariado nacional, além de encontros com os governadores e prefeitos. O diálogo com o movimento social e sindical limitou-se às reuniões realizadas no âmbito do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), que trataram da reforma tributária. Assim, a proposta de reforma tributária é um reflexo do diversos interesses do setor empresarial e das questões federativas pautadas pelos governadores e prefeitos.
Com isso, a PEC da reforma tributária limita seus objetivos a simplificar, eliminar tributos e pôr fim à “guerra fiscal” entre os Estados (2). O único princípio tributário no qual a PEC 233/2008 foi baseada é o da neutralidade, esquecendo-se os demais princípios tributários e constitucionais, especialmente os princípios da capacidade contributiva, da isonomia e da progressividade. O princípio tributário da neutralidade é fundamentado na concepção neoclássica, segundo a qual o sistema tributário não pode romper o equilíbrio de mercado e, portanto, os impostos não podem afetar as decisões dos agentes econômicos na alocação dos recursos nas economias, o que afetaria a eficiência. Assim como os tributos não devem alterar a estrutura de distribuição de renda, pois esta, no modelo neoclássico4, é considera ótima, antes da incidência dos impostos (Oliveira, 2001).
Contudo, o debate sobre a reforma tributária deveria ser pautado pela retomada dos princípios da eqüidade, da progressividade e da capacidade contributiva, no caminho da justiça fiscal e social, priorizando a redistribuição da renda (Hickmann; Salvador, 2006). As tributações da renda e do patrimônio nunca ocuparam lugar de destaque na agenda nacional e nos projetos de “reformas tributárias” após a Constituição de 1988. Assim, é mais do que oportuno recuperarem-se os princípios constitucionais basilares da justiça fiscal (eqüidade, capacidade contributiva e progressividade). A tributação é um dos melhores instrumentos de erradicação da pobreza e da redução das desigualdades sociais, que constituem objetivos essenciais da República, esculpidos na Carta Magna.
Este breve artigo tem por objetivo analisar a proposta de reforma tributária, no âmbito da PEC 233/2008, destacando as implicações para o financiamento das políticas sociais no Brasil, especialmente a seguridade social e a políticas de educação e trabalho.
A construção do Estado de Bem-Estar Social nos países desenvolvidos privilegiou a redistribuição da renda gerada por meio orçamento, com tributação sobre os mais ricos e transferências dos recursos dos fundos públicos, para os mais pobres. Nos países desenvolvidos foram realizadas reformas no segundo pós-guerra, como a tributária, a social e a trabalhista. Pela primeira vez, os ricos passaram a pagar impostos, especialmente com o mecanismo da progressividade sobre a renda e patrimônio. Construiu-se uma nova estrutura de redistribuição da renda, que veio a se sobrepor à estrutura capitalista distributiva primária constituída (lucros, juros, aluguéis de imóveis, salários e remunerações). Como isso, os mais ricos passaram a ser tributados consideravelmente com impostos sobre a renda, patrimônio e herança, permitindo a criação de fundos públicos para financiar a transferência de renda para a população de menor renda, combatendo a pobreza, o desemprego e a desigualdade social nos países desenvolvidos (Pochmann, 2004).
O Brasil, com base na experiência internacional e com objetivo de erradicar a pobreza, reduzir as desigualdades sociais e construir uma sociedade mais justa, deveria utilizar o sistema tributário como instrumento de distribuição de renda e riqueza, no caminho inverso do construído nas últimas décadas.
O nosso país encontra-se entre as dez economias mais ricas do mundo (World Bank, 2007), no entanto, possui uma das maiores concentrações de renda do planeta (PNUD, 2006). Apesar da melhoria no coeficiente de Gini, no período de 1995 a 2005, de 0,601 para 0,569, a concentração de renda do nosso país é equiparável à de alguns países da África Subsaariana, uma das regiões mais miseráveis do mundo. Os dados que são utilizados no cálculo do Coeficiente de Gini são baseados na Pesquisa por Amostra de Domicílios (Pnad) do IBGE, que subestimam a renda do capital: juros, lucros e aluguéis.
A questão relevante é a distribuição funcional da renda, que colabora para averiguar a desigualdades entre as diferentes classes sociais. Nesse sentido, o Sistema de Contas Nacionais (SCN) do IBGE apresenta informações protuberantes para análise da iniqüidade social no Brasil. Os dados revisados do SCN pelo IBGE (2007) revelam a iniqüidade em vigor no país: em 2000, os salários representavam 32,1% do PIB, reduzindo-se para 31,7%, em 2005; enquanto os lucros, mensurados a partir do excedente operacional bruto, aumentaram sua participação na renda nacional de 34% (2000) para 35,2%, em 2005.
O sistema tributário brasileiro não colabora para reverter essa situação. Ao contrário, tem sido um instrumento a favor da concentração de renda, agravando o ônus fiscal dos mais pobres e aliviando o das classes mais ricas. O Imposto de Renda (IR) tem sido utilizado como instrumento de renúncias fiscais e favorecido a elisão e o planejamento tributário (Salvador, 2007). Além do tratamento mais gravoso dos rendimentos do trabalho e isentando os rendimentos do capital, como a distribuição do lucro. O que torna necessária uma profunda revisão do IR com objetivo de restabelecer o seu verdadeiro significado, contribuindo para assegurar a eqüidade horizontal e vertical na tributação (Dain, 2006).
Reforma tributária afeta o financiamento das políticas sociais
A PEC da reforma tributária não aponta para a construção de um sistema tributário progressivo, pautado pela tributação da renda e do patrimônio. Além disso, as modificações propostas afetam a estrutura de financiamento das políticas sociais, particularmente, os recursos vinculados ao custeio da seguridade social, educação e trabalho. Os principais pontos da reforma tributária são:
a) a criação de um Imposto sobre Valor Adicionado (IVA-F), com a extinção de quatro tributos federais (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social – Cofins; a contribuição para o Programa de Integração Social – PIS; a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico incidente sobre a importação e a comercialização de combustíveis – Cide; e a contribuição social do Salário-educação); b) a incorporação da Contribuição Social do Lucro Líquido (CSLL) ao Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ); c) a redução gradativa da contribuição dos empregadores para previdência social, a ser realizada nos anos subseqüentes da reforma, por meio do envio de um projeto de lei no prazo de até 90 dias da promulgação da PEC; d) a unificação da legislação do Imposto sobre Circulação de Mercadoria e Serviços (ICMS), a ser realizada por meio de lei única nacional e não mais por 27 leis das unidades da federação; e) a criação de um Fundo de Equalização de Receitas (FER) para compensar eventuais perdas de receita do ICMS por parte dos estados; e f) a instituição de um Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional (FNDR), permitindo a coordenação da aplicação dos recursos da política de desenvolvimento regional.
O principal objetivo da reforma é a simplificação da legislação tributária, tanto por meio da redução das legislações do ICMS, quanto pela eliminação de tributos, trazendo maior racionalidade econômica e reduzindo as obrigações acessórias das empresas com custos de apuração e recolhimento de impostos. Além disso, a cobrança do ICMS no Estado de destino da mercadoria deverá eliminar a “guerra fiscal”.
A criação do IVA-F vai reduzir a cumulatividade do sistema tributário. Hoje, a Cide-Combustíveis e parte da arrecadação da Cofins e da Contribuição do PIS são cobradas diversas vezes sobre um mesmo produto, isto é, em todas as etapas de produção e circulação da mercadoria. O IVA-F vai tributar apenas o valor adicionado em cada estágio da produção e da distribuição. Assim, o valor do tributo poderá ser definido pela diferença entre o preço de venda do produto e o custo da aquisição, nas diversas etapas da cadeia produtiva. Contudo, em ambos os modelos, o tributo é repassado ao preço de venda do bem e do serviço, sendo pago, portanto, pago pelo consumidor final.
Aliás, o governo deveria aproveitar a oportunidade para regulamentar o Art. 150, § 5º, da CF “A lei determinará medidas para que os consumidores sejam esclarecidos acerca dos impostos que incidam sobre mercadorias e serviços”, assegurando maior transparência na arrecadação dos tributos.
A proposta de reforma traz avanços para as empresas, com a simplificação do recolhimento tributário, que poderá até resultar no aumento da eficiência econômica e da produtividade. Porém, a PEC não modifica a estrutura regressiva do sistema tributário brasileiro. O que ocorre é a alteração da regulação dos tributos indiretos, do regime cumulativo para a incidência sobre o valor adicionado. A marca principal do sistema tributário brasileiro, que é a sua enorme regressividade, permanece indelével.
Apesar da insignificante arrecadação dos impostos que têm incidência sobre o patrimônio, que responderam, por exemplo, em 2007, por apenas 3,3% do montante arrecadado em tributos, a proposta de reforma tributária silenciou sobre o assunto. Convém lembrar que as 5 mil famílias mais ricas do Brasil têm em patrimônio algo em torno de 40% do PIB brasileiro (Pochmann, 2004).
A implicação mais importante da reforma tributária diz respeito ao financiamento da seguridade social, do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) e da educação básica (Salário-educação). Os três tributos mais relevantes que financiam a seguridade social no Brasil serão modificados. A Cofins e a CSLL serão extintas e haverá desoneração da contribuição patronal sobre a folha de pagamento, por meio de legislação específica, após as mudanças constitucionais. Para a seguridade social passam a ser destinados 38,8% do produto da arrecadação dos impostos sobre renda (IR), produtos industrializados (IPI) e operações com bens e prestações de serviços (IVA-F). Esse percentual é equivalente a proporção entre a arrecadação da Cofins e da CSLL e a receita arrecadada, em 2006, com IR, CSLL, Cofins, PIS, Cide, Salário-educação e IPI.
Essa modificação é o sepultamento da diversidade das bases de financiamento da seguridade social inscrita no Artigo 195 da Constituição de Federal (CF) de 1988, que ampliou o financiamento da previdência, saúde e assistência social para além da folha de salários, incluindo, a receita, o faturamento e lucro. A partir da reforma, restará inscrito no Art. 195 da CF, como base de financiamento da seguridade social, a contribuição sobre a folha de salários, a contribuição do trabalhador para a previdência social e a receita de concursos e prognósticos, sendo que a contribuição sobre folha de pagamento deverá ser reduzida ao longo dos próximos anos. Portanto, a idéia de orçamento de seguridade social diversificado em fontes de financiamentos retroagirá a situação anterior a da CF. Com isso, haverá perda da exclusividade de recursos para a seguridade social, que poderá ficar fragilizada em seu financiamento, dependendo de uma partilha do IVA-F e da arrecadação das contribuições previdenciárias.
Além disso, a desoneração da folha de pagamento via a redução da contribuição patronal para a previdência social, conforme Projeto Lei a ser envidado 90 dias após aprovação da PEC, vai significar uma perda de R$ 24 bilhões para previdência social. Não existe nenhuma previsão de substituição desta contribuição por outro tributo no financiamento da previdência. Além do enfraquecimento da solidariedade no financiamento da previdência social, um compromisso historicamente construído no Brasil.
Convém lembrar que um dos maiores avanços dessa Constituição, em termos de política social, foi a adoção do conceito de seguridade social, englobando em um mesmo sistema as políticas de saúde, previdência e assistência social. Para tanto a CF apontou entre os princípios da seguridade social a diversidade da base de financiamento. Com isso, o artigo 195 da CF estabeleceu que além das contribuições dos empregados e empregadores, os recursos provenientes das contribuições sociais sobre o lucro, a receita, o faturamento, do importador de bens e serviços do exterior e a receita de concursos de prognósticos.
Mesmo que seja garantido um repasse à seguridade social com base em parte do orçamento fiscal, vai deixar de existir as receitas próprias da seguridade social prevista em orçamento exclusivo, como determina a CF. Com o tempo, a noção de separação da seguridade social vai-se desvanecer. As políticas sociais da saúde, assistência social e previdência terão que disputar recursos e enfrentar pressões no âmbito do orçamento fiscal, com os governadores e prefeitos, pois a base tributária será a mesma que é partilhada com os estados e municípios. Além da histórica pressão dos empresários por desoneração tributária e pelo destino de mais verbas orçamentárias para os investimentos.
O governo propõe na reforma tributária a desoneração da folha de pagamento, mediante a substituição da contribuição social do Salário-educação por uma destinação da arrecadação federal. O Salário-Educação é a contribuição social prevista no Artigo 212, § 5° da Constituição Federal: o ensino fundamental público terá como fonte adicional de financiamento a contribuição social do Salário-educação, recolhida pelas empresas na forma da lei.
A reforma tributária acaba com esta contribuição social específica para o financiamento da educação básica. No seu lugar, a PEC da reforma tributária prevê que em uma Lei Complementar será definido o percentual a ser destinado para o financiamento da educação básica, enquanto isso vai ocorrer uma destinação de 2,3% da arrecadação dos impostos sobre renda (IR), produtos industrializados (IPI) e operações com bens e prestações de serviços (IVA-F). Esse percentual é equivalente a proporção entre a arrecadação da Contribuição Social do Salário-educação e a receita arrecadada, em 2006, com IR, CSLL, Cofins, PIS, Cide, Salário-educação e IPI.
Em termos políticos, a mudança é grave. Um dos avanços da Constituição, em termos de políticas sociais foi a vinculação de recursos como uma das formas de enfrentar a perversa tradição fiscal existente no Brasil, cuja aplicação dos recursos do orçamento público sempre priorizou a acumulação do capital, submetendo as políticas sociais à lógica econômica. Vincular recursos significa, portanto, amenizar esta prática, assegurando que parte da receita seja obrigatoriamente destinada e exclusiva para o financiamento da área social. O objetivo é universalizar os direitos sociais: educação, previdência, saúde e trabalho.
Mesmo que seja garantido um repasse à educação básica, com base em parte do orçamento fiscal, deixarão de existir as receitas próprias da educação. O fim da fonte de recursos exclusiva para a educação básica poderá ter conseqüência para o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), que tem a educação básica de qualidade como a prioridade, assim como, para o Plano Nacional de Educação (PNE) que tem entre outros objetivos, a elevação global do nível de escolaridade da população e a melhoria da qualidade do ensino em todos os níveis. Pois, a reforma tributária vai enfraquecer o financiamento da educação básica, fragilizando o aporte dos recursos necessários para o alcance da metas e dos objetivos estabelecidos nesses planos.
O PNE diz que a questão do financiamento da Educação, é o “requisito para o exercício pleno da cidadania, para o desenvolvimento humano e para a melhoria da qualidade de vida da população.” Contudo este ideal é colocado em xeque com a reforma tributária, pois a reforma pode inviabilizar os recursos vinculados aos fundos sociais. O Salário-educação é um dos recursos geridos pelo FNDE, representando 37% dos recursos do Fundo, em 2008. A arrecadação tem também uma quota que é repassada aos estados e municípios.
Os fundos sociais foram criados em um modelo em que os recursos reservados para executar certas políticas fossem administrados por conselhos de composição paritária. Neles, representantes governamentais e não-governamentais somam-se para acompanhar e fiscalizar políticas públicas. Por terem recursos originados na cobrança de taxas ou contribuições especialmente criadas para alimentá-los, estes fundos são formados por fluxos financeiros como lucros, receitas brutas, faturamentos, folhas de pagamentos (Rocha, 2002). Eles têm em comum uma relativa estabilidade na captação de recursos, deixando de depender de recursos do orçamento fiscal. Com a reforma tributária, a educação passar a depender da disputa pelos recursos do orçamento fiscal, que nem sempre tem como prioridade os gastos nas áreas sociais, fragilizando com isso o futuro do PDE e do PNE.
No mesmo sentido, a PEC da reforma tributária, ao extinguir a contribuição social para o Programa de Integração Social (PIS), acabará como uma fonte importante de financiamento do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) – cujos recursos são direcionados ao custeio do Programa do Seguro-desemprego, do Abono Salarial e, pelo menos 40%, ao financiamento de Programas de Desenvolvimento Econômico a cargo do BNDES. No seu lugar passam a ser destinados 6,7% do produto da arrecadação dos impostos sobre renda (IR), produtos industrializados (IPI) e operações com bens e prestações de serviços (IVA-F).
Os tributos que serão extintos com a reforma tributária deverão alcançar o montante de R$ 153,8 bilhões, neste ano, conforme a previsão de receitas do Orçamento de 2008. Neste montante foi considerada a incidência da Desvinculação de Recursos da União (DRU), conforme demonstrado na Tabela 1. Essas receitas são vinculadas exclusivamente para fundos sociais que financiam as políticas da seguridade social (assistência social, previdência e saúde), educação e trabalho. A sua extinção significa o desmonte do financiamento da política social, conforme a estrutura de receitas exclusivas definida na Constituição, desde 1988. Os recursos para essas políticas serão repassados pelo orçamento fiscal, colocando a área social no âmago da disputa de receitas com os governadores, prefeitos e empresários. Isso vai ocorrer por dois motivos: primeiro, porque será a mesma base de partilha de tributos dos estados e municípios; segundo, há uma forte pressão de setores empresariais pelo aumento dos gastos orçamentários com investimento e por maior desoneração tributária.
Por fim, a reforma tributária propõe adequações no art. 76 do Ato das Disposições Constitucionais, de modo a garantir a continuidade da DRU até 31/12/2011. A DRU desvinculação de 20% da arrecadação de impostos e contribuições sociais. Hoje, a DRU transforma parte dos recursos qu e deveriam ser destinados ao financiamento da seguridade social em recursos fiscais para a composição do superávit primário e, por conseqüência, a sua utilização em pagamento de juros da dívida. Somente, em 2007, a DRU desviou R$ 38,6 do Orçamento da Seguridade Social, conforme dados da Secretaria do Tesouro Nacional (4). Esses recursos deveriam ser destinados às ações de previdência, saúde e assistência social, e poderiam ampliar os direitos relativos a estas políticas sociais, mas acabaram compondo o superávit primário. A reforma tributária perde oportunidade de extinguir a DRU, pois não há mais razão da sua existência, após consecutivas superações de metas de superávit primário.
Referências bibliográficas
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Notas:
(1) Vide http://www.brasil.gov.br/pac/economicas/economicas/desoneracao/ (2) Lembrando que a PEC 41da Reforma Tributária proposta em 2003, destacava em sua exposição de motivos entre os objetivos da reforma “promover a justiça social, desonerando as pessoas de menor renda e ampliando a progressividade do sistema” (p. 13). (3) Para compreensão da discussão e dos aportes teóricos fornecidos pelas diferentes escolas do pensamento econômico sobre a questão tributária, ver Santos (2001). (4) Disponível em: http://www.tesouro.fazenda.gov.br/hp/downloads/lei_responsabilidade/ RROdez2007.pdf
* Economista, Mestre e Doutorando em Política Social na Universidade de Brasília (UnB). Assessor de Política Fiscal e Orçamentária do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc)
Questão em debate – Previdência Social
Previdência Social em debate
Estudo lançado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA traz uma seleção de artigos que dialogam entre si na defesa da relevância e impactos da política social no Brasil, com destaque para a Previdência Social, Saúde, Educação, Transferência de Renda e Política de Emprego, Trabalho e Renda.
No caso da previdência social, o estudo propõe questões relevantes para animar o debate sobre seu papel na justiça distributiva e direito social, além de desmistificar argumentos usualmente utilizados sobre a necessidade de uma reforma previdenciária. Destacamos alguns pontos do estudo:
1. A tese da insustentabilidade fiscal do sistema de benefícios previdenciários não se sustenta tecnicamente.
Em artigo publicado neste estudo, Guilherme da Costa Delgado desconstroi o discurso da inevitabilidade da reforma da previdência social e reafirma sua importância para a justiça social no Brasil. Segundo o pesquisador, “um crescimento do PIB de 4% ao ano garantiria estabilidade na “necessidade de financiamento” do Regime Geral de Previdência Social – RGPS”. Isto, considerando o patamar atual de evolução da despesa e condicionados, principalmente, pelo crescimento do salário mínimo e do estoque de benefícios. Ou seja, do ponto de vista fiscal não existe um comprovado risco de explosão da necessidade de financiamento do RGPS, mantidas as regras atuais. Como também não se sustentam os argumentos de que essa necessidade de financiamento tenha impacto no déficit público, porque as contribuições sociais vinculadas ao financiamento da previdência social demonstram tendência de crescimento similar ao crescimento das despesas, estimado em cerca de 7,3% ao ano.
O necessário equilíbrio das contas da Previdência poderia ser garantido, segundo o pesquisador, com medidas de aprimoramento do sistema de gestão da Previdência Social, inibindo a aceleração de despesas, mas somente “acima daquilo que é necessário à garantia de direitos básicos”. Outra linha de esforços deveria ser ampliar o número de pessoas incluídas no sistema previdenciário. Um país como o Brasil, com elevado nível de informalidade — boa parte de caráter estrutural —, deveria repensar suas estratégias de filiação, incentivando com mais ênfase a entrada no sistema de 48% da população economicamente ativa – PEA, aproximadamente 11 milhões de pessoas, hoje sem proteção previdenciária.
2. Renda de um salário mínimo, de aposentados e pensionistas, tem expressivo impacto da redução da pobreza e indigência.
Estudo sobre os efeitos dos benefícios da previdência, assistência social e transferência de renda sobre a indigência e a pobreza, mostra que os atendidos pelo Benefício de prestação continuada – BPC e pelo RGPS, que recebem até um salário mínimo, representam dois terços do total de beneficiários e respondem por 45% do total do gasto com o sistema previdenciário. Esses recursos garantiram, em 2003, a retirada de 17 milhões de pessoas da linha de indigência. Em síntese, o estudo mostra que estes dois benefícios monetários têm conseguido garantir, com razoável sucesso, a manutenção da população vulnerável por motivos de idade ou deficiência acima das linhas de pobreza e indigência.
3. São significativos os impactos da previdência social na redução da pobreza e indigência nas regiões mais pobres.
O estudo sobre salário mínimo e mercado de trabalho mostra que os benefícios da Seguridade Social transferidos diretamente a indivíduos residentes em regiões de renda per capta inferior à média nacional têm cumprido um papel importante de transferência de renda para as regiões mais pobres. “O dinheiro das pensões e aposentadorias, vinculados ao salário mínimo, tem tido papel fundamental na sustentação da renda e do consumo das regiões mais pobres”, afirma o estudo, em especial se considerada a ausência de políticas explícitas de desenvolvimento territorial-local.
Estudos como esse tem oferecido importante contribuição para o enfrentamento do debate sobre a reforma da Previdência. Argumentos como os aqui ressaltados ajudam a desconstruir o discurso falacioso do déficit previdenciário, estimulando, em contrapartida, um debate mais profundo sobre a importância do sistema previdenciário brasileiro na promoção da justiça social.
A Medida Provisória (MP) 422, emitida pelo governo Lula em março e aprovada em julho de 2008, tem como objetivo permitir a regularização de até quinze módulos rurais (1.500 hectares) na Amazônia Legal, com dispensa de licitação. Agora a MP é uma nova redação da Lei 8.666/1993, e institui normas para licitações e contratos da administração pública.
O Inesc comentou esta iniciativa de lei do Executivo, quando foi assinada, indicando que entre outros impactos pode estimular a concentração de terra, a expansão da estrangerização da terra, a consolidação de grandes latifúndios e a promoção do desmatamento.
A MP, assinada pelo presidente Lula, provocou um forte debate nas organizações e nos movimentos sociais do campo. Declarações contraditórias e análises desencontradas foram realizadas. Poucas foram escritas, para ocultar, talvez, a cisão no seio do movimento rural. Mas, as organizações se mostraram indignadas com o acelerado reconhecimento de áreas griladas na Amazônia Legal. Em 1993, a lei permitia a regularização sem licitação de até um modulo rural (100 hectares). Em 2004, a regularização foi ampliada para cinco módulos (500 hectares) e, em 2008, saltou para 15 módulos rurais (1.500 hectares). Esta última dimensão não corresponde a imóveis familiares, mas a grandes propriedades.
Em maio, a MP foi aprovada pelo plenário da Câmara dos Deputados. Com um quorum de 401 deputados, o placar foi de 289 votos favoráveis versus 110 contrários e uma abstenção. Os partidos políticos da base governistas votaram a favor da MP, apoiado por muitos deputados da oposição. Nestes partidos houve algumas dissidências em relação às orientações das suas lideranças. No DEM, que orientou sua bancada a votar “Não”, 23,4% votaram “Sim”, que representa 11 votos de 47. E no PSDB, 10,4% votaram “Sim” na MP do governo, que significa cinco votos de 48 deputados.
Muitos parlamentares, combativos e favoráveis à reforma agrária, votaram (“Sim”) com o governo mesmo com quando gostariam de ter votado “Não”, pois tinham resistências à proposição. Esse embaraço era compreensível, pois muitos ruralistas se mostravam favoráveis à MP (queriam votar “Sim”), mesmo seguindo a orientação da liderança e votando contra (“Não”) a MP. Sabiam que os votos contrários além de não iriam impedir a aprovação da MP, deixariam os parlamentares comprometidos com a reforma agrária em uma situação desconfortável e, ainda, colocariam nos ombros dos governistas a responsabilidade de aprovar a proposta do governo.
No Senado Federal esta situação contraditória – do governo Lula elaborar uma proposição ao gosto e desejo da bancada ruralista (muitos avaliam como coerente!) – revelou-se por completo. A votação que ocorreu no início de julho, sob um quorum de 63 senadores, 37 votou favoravelmente, 23 contrários e três abstenções. Os partidos que garantiram a aprovação da MP foram os de oposição: contribuíram com 19 votos dos 37 favoráveis. Isso significa 51,4% do total dos votos favoráveis.
O mais interessante na votação do Senado, diferente do que ocorreu na Câmara onde os partidos governistas votaram alinhados, foi a significativa cisão no Bloco do governo. Oito senadores governistas votaram “Não” (47,1% dos 17 do Bloco). No oposicionista DEM, nenhum parlamentar votou contra o governo – na Câmara 76,6% dos deputados votaram contra o governo. No PSDB, 70% (dos 10 senadores) votaram contra o governo – na Câmara a votação pelo “Não” foi de 89,6%.
O que esta votação nos revela é um expressivo descolamento das estratégias dos partidos nas duas Casas Legislativas. Os argumentos formulados para explicar a votação da oposição, na Câmara dos Deputados, contra a MP pode ser fruto das hipóteses aventadas e não de uma estratégia organizada dentro dos partidos. O raciocínio que valeu para o DEM na Câmara, pode ter valido para dos senadores do Bloco governista no Senado. Sendo esta proposição de interesse dos que atuam junto aos grandes proprietários de terras na Amazônia Legal, seriam eles os que deveriam fazer maiores esforços para aprovação final da MP.
Essa votação evidencia como as representações políticas da população (Câmara) e das unidades federativas (Senado) pouco dialogam entre si. Há um abismo entre uma e outra Casa legislativa. Durante um tempo houve um forte debate se o Senado seria ou não a Casa revisora das proposições aprovadas pela Câmara dos Deputados. Esse debate está adormecido, mas se revela em alguns momentos.
O sistema partidário está carente de bases programáticas atuais e consolidadas. Os programas dos partidos políticos vem se perpetuando a mais de duas décadas. É um corta e cola sem nenhum critério político e muita preguiça. Assim, é necessário que as organizações da sociedade civil e suas redes, como a Plataforma dos movimentos sociais pela reforma do sistema político, questionem, por dentro e por fora, o sistema partidário e político para que não haja tanta insensatez nas votações das casas legislativas.
O futuro da reforma política
Por Edélcio Vigna, assessor político do Inesc
É preciso aprender com as derrotas. Segmentos democráticos importantes da sociedade civil defenderam com tenacidade a aprovação da lista fechada de candidatos a cargos legislativos, com alternância de gênero, no projeto de lei de reforma política que está em votação na Câmara dos Deputados.
A proposta foi enterrada na última semana de junho, pois obteve somente 41% do total dos votos na primeira votação e 46% na segunda. Não obtendo o quociente necessário de 257 votos para sua aprovação. O resultado da votação da lista fechada foi de 252 votos contrários contra 181 favoráveis e três abstenções. A diferença foi de 71 votos, de um total de 432 deputados federais votantes. O da votação da lista mista ou flex, ou seja, do requerimento que invertia a pauta para antecipar a votação da lista mista, foi de 240 votos “não” contra 202 votos “sim”, em um total de 443 votantes.
Apesar das votações serem diferentes, tiveram em comum o objeto em apreciação: a lista de parlamentares. Em ambas, o que estava em votação era a lista de parlamentares, apesar da diferença fundamental no conteúdo da matéria. Por isso, para efeito de análise, não vamos comparar as votações, mas as dissidências ocorridas em uma e outra. Assim, o objetivo é demonstrar que as dissidências partidárias apresentadas não afetaram a essência dos resultados, mas reafirmaram a falta de sintonia entre a Câmara dos Deputados e as propostas da Plataforma dos Movimentos Sociais para a Reforma do Sistema Político no Brasil.
O interessante nas votações é analisar o nível de dissidência partidária. Na votação da lista fechada, dos 437 votos, 78 foram votos dissidentes; ou seja, votos contrários à orientação das lideranças. O percentual de dissidência desta votação (18%) está na média de dissidência apresentada em outras sessões do Parlamento, demonstrando que os deputados não consideraram esta votação especial ou divisora de águas. De forma diferente, as organizações sociais que compõem a Plataforma dos Movimentos Sociais para a Reforma do Sistema Político no Brasil, tinham expectativas de que essa votação pudesse ser um primeiro passo no sentido de uma maior abertura do processo político brasileiro.
O Executivo, apesar de ter dado sinais de que apoiaria uma reforma política profunda, com lista fechada para que pudesse ser aprovado o financiamento público exclusivo de campanha, acabou liberando sua base parlamentar para votar conforme sua inclinação ou seu bloco partidário.
A base de apoio do governo no Congresso é formada pelos partidos: PMDB, PSC, PTC, PT, PSB, PDT, PCdoB, PMN, PHS e PRB. Os três primeiros partidos (PMDB, PSC e PTC), em consonância com a orientação do líder do Governo, liberaram seus deputados para votarem conforme suas consciências. Outra parte da base se posicionou contra a lista fechada e orientou o voto contrário (PRB, PSB, PDT, PCdoB, PMN e PHS). O PT orientou no sentido da aprovação da lista fechada.
Em relação ao primeiro bloco, que liberou o voto dos parlamentares, com exceção do PTC, que não tem mais representante, o PMDB praticamente rachou. Dos 77 parlamentares presentes na sessão[1], 35 votaram pela aprovação da lista fechada. Isso representa 45% da bancada pemedebista. Os seis deputados do PSC votaram contra a lista. O PT, que orientou “SIM” teve uma dissidência de apenas 3% da bancada. Dos seus 74 deputados, apenas dois votaram contra a lista fechada.
A segunda parte da base de apoio do governo orientou o voto contrário à lista fechada. Curiosamente, todos os parlamentares do PCdoB votaram contra a orientação da liderança do bloco: votaram a favor da lista fechada e em consonância com os anseios das organizações da sociedade civil. Dessa forma, caracteriza-se uma dissidência de 100%. O PCdoB alinhou-se ao PT e votou contrário à orientação do líder. O PSB teve uma dissidência de quatro de seus 22 deputados, o que representa uma dissidência de 18%. Os demais partidos (PRB, PDT, PMN e PHS) votaram de acordo com a orientação da liderança, contra a lista fechada.
Dos partidos de oposição, apenas dois – PSOL e DEM – orientaram o voto favorável à lista fechada. No DEM, houve uma dissidência de 18%, pois nove dos seus 59 deputados foram contrários à lista fechada. O PPS liberou sua bancada e dos seus dez parlamentares, quatro (40%) votaram de acordo com os anseios da sociedade civil. O restante (PSDB, PP, PR, PV e PTB) orientou o voto contrário. O PSDB, como maior partido de oposição, teve uma dissidência de 16% na sua bancada de 50 deputados. Oito parlamentares votaram pela lista fechada. O PP também teve uma dissidência de 6%. Isso significa que, dos seus 36 deputados, dois votaram favoráveis à lista fechada. Do PTB, dos 18 deputados apenas um (6%) votou contra a orientação do líder. A bancada do PV nas duas votações votou sem dissidências contra a proposta da lista fechada.
Nos bastidores do plenário da Câmara dos Deputados, antes da votação, houve a expectativa de que uma negociação pudesse resolver a questão da lista. Ficava evidente que a lista fechada estava sendo rejeitada à priori e que, para salvar as aparências, era necessário uma nova proposta. Assim, foi sugerida uma lista mista, que logo ganhou o irônico apelido de flex. Uma excrescência que só na imaginação de alguns parlamentares poderia dar certo. Muitos avaliam que, ao ser aventada esaa possibilidade, cavou-se a cova da reforma política.
Na votação da lista mista ou flex, o quorum para a votação foi um pouco maior. Dos 444 parlamentares, houve uma dissidência de 55, o que representa 12% do total. O interessante é a alteração na margem de dissidências partidárias ocorrida. Por exemplo, na votação da lista fechada, a dissidência no PSDB votando contra foi de 16%; na lista mista, foi de 4%. O PSB, com a mesma orientação, teve dissidência de 18% na lista fechada e de 4% na lista mista. No PMDB, a dissidência foi de 45% na lista fechada e de 22% na lista mista.
Mesmo com a diferença da margem de dissidência entre as duas votações, fica patente que os parlamentares não estavam em sintonia com os debates e avanços que a Plataforma dos Movimentos Sociais havia atingido e consolidado em suas deliberações, amplamente publicizadas. A consciência da necessidade de uma modernização do sistema eleitoral, por parte de uma parte dos deputados federais, não foi partilhada por uma maioria absoluta que pudesse aprovar uma alteração significativa na forma de votar do cidadão e da cidadã brasileiros.
A história, assim como o progresso da humanidade, não é linear. Ela ocorre por rupturas e de forma descontínua. Segmentos importantes da sociedade civil já avançaram e outros ainda estão no século XX. Novos debates deverão ocorrer mantendo mobilizadas mentes e corações. Novos confrontos de idéias serão provocados pelas contradições conjunturais até que possamos, como maioria significativa, avançarmos juntos.
A reforma política já começou para muitos e o que foi votado e o que será votado neste período não tem importância significativa diante do que será proposto e aprovado no futuro.
[1] No texto vamos considerar as bancadas como o número de deputados presentes na sessão, desconsiderando os ausentes.
Betinho
Hoje fazem 10 anos de morte de Herbert de Souza, o Betinho. Os muito jovens talvez não saibam quem ele foi. Isso porque somos um país de memória fraca, muito fraca. Nossos heróis são esquecidos ou morrem de overdose, como diria Cazuza. Mas convém lembrá-lo, nesse momento em que a política parece ter sido reduzida à maldita arte do possível e a utopia foi deixada para uns poucos malucos.
Repetiram tantas vezes o mantra da não-alternativa que uns e outros, ex-revolucionários, especialmente depois que chegam ao poder, acreditam que nada podem mudar. Deixem tudo como está ou vamos bem devagarinho, ensinam, sem provocar marola para não assustar. O melhor mesmo é fazer como sempre fizeram os donos do poder, vamos até tornar as coisas um pouquinho melhor para eles de modo que não nos acusem de anti-capitalistas ou coisa pior.
Betinho era o contrário desse conformismo. Ele dizia que se fosse deixar na mão do destino (ou do mercado) teria morrido muito antes, talvez no quartinho onde foi isolado quando diagnosticado com tuberculose, ainda adolescente. Hemofílico, sobreviveu a dois golpes militares (Brasil e Chile) e amargou mais de 10 anos de exílio. Não se abalou nem quando foi diagnosticado com vírus HIV, juntamente com os dois irmãos, Chico Mário e Henfil, também hemofílicos. Justamente quando ele achava que estava tudo dando certo, anistiado, apaixonado pelo filho pequeno, aprontando mil e umas, vinha aquela notícia que, ao final dos anos 80, soava mais como uma sentença de morte.
Teimoso, ele seguiu em frente e fez do drama pessoal uma causa pública. Já tendo criado o Ibase, fundou a Abia, a primeira ONG a enfrentar o problema da Aids no Brasil. A lei que determinou o controle dos bancos de sangue é batizada de “Lei Betinho”, em homenagem ao seu empenho na luta pelo fim do criminoso mercado de sangue. Sofreu como um cão danado a morte dos dois irmãos e acho que nunca voltou a sofrer tanto outra vez. Mas não se deixou matar de véspera e ainda oferecia, com aquele sorriso bem Fradim, um “pouquinho de Aids” para quem reclamasse de cansaço perto dele.
Na década de 1990, voltou a mobilizar o Brasil como o principal animador da Campanha Contra a Fome, desafiando mais uma vez o “impossível” e a boa consciência de uma esquerda que achava que distribuir alimentos era mera caridade, como se compaixão e solidariedade com o próximo não fossem valores revolucionários no mundo que vivemos. A “Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida”, nome oficial do movimento, politizou como nunca o tema da exclusão social e da pobreza, resgatando para o centro do palco o impulso individual e a capacidade de mobilização de cada uma das milhões de pessoas que se organizaram em milhares de comitês pelo país afora. Tudo isso parece ter sido esquecido nesses tempos de Fome Zero.
O silêncio quase total da mídia e do governo neste aniversário de morte nos envergonha. Foi assim há alguns meses, quando completaram os dez anos de morte de Darcy Ribeiro. Esquecemos rápidos os nossos heróis.
Betinho era um artista do impossível e queria a utopia no presente. Entrou de cabeça em quase todas as causas que importaram no seu tempo, cometeu equívocos políticos e até éticos – os quais purgou em praça pública, como no caso da doação de um bicheiro para salvar a Abia do fechamento iminente – , mas sorveu a vida até a última gota, com paixão e sem nunca deixar de acreditar que podemos sim mudar o mundo. O impossível é possível e a única coisa que não tem mesmo solução é a morte.
Reforma do Sistema Político: devolver o poder ao povo.
Reforma do Sistema Político: devolver o poder ao povo
Jose Antonio Moroni
Colegiado de Gestão do INESC
Diretor da executiva nacional da ABONG
A reforma política é tema recorrente na vida política brasileira. Está presente na agenda há vários anos, mas sempre orientada pelos interesses eleitorais e partidários. É o chamado casuísmo eleitoral — geralmente, alterações de curto prazo e de curta duração. Como por exemplo, a reeleição. Por isso que a maioria da população tem a concepção de reforma política apenas como reforma do sistema eleitoral.
Está presente, também, nas discussões acadêmicas e na mídia. Na academia mais como um objeto a ser estudado/pesquisado e na mídia, quase sempre, como a solução de todos os males do país ou de forma pejorativa. Para ambos, um instrumento para melhorar a governabilidade do Estado (manter as elites no poder) ou, aumentar sua eficiência (como atender melhor aos interesses das elites).
No âmbito da sociedade civil organizada, das organizações e movimentos, que defendem o interesse público, aqui entendido como os interesses da maioria da população, e a radicalização da democracia, a reforma política está inserida em um contexto mais amplo que necessariamente diz respeito a mudanças no sistema político, na cultura política, tanto na sociedade como no Estado. Portanto na forma de se fazer e pensar a política.
Por isso os princípios democráticos que devem nortear uma verdadeira reforma política são: da igualdade, da diversidade, da justiça, da liberdade, da participação, da transparência e do controle social. Em resumo, entendemos como reforma política a reforma do próprio processo de decisão, portanto, a reforma do poder e da forma de exercê-lo. Quem exerce o poder, em nome de que se exerce o poder, quais os mecanismos de controle do poder. Em fim quem tem o poder de exercer o poder.
Uma verdadeira reforma política deve enfrentar problemas que estão na origem do nosso país, tais como, o patriarcado, o patrimonialismo, a oligarquia, o nepotismo, o clientelismo, o personalismo e a corrupção. A corrupção aqui entendida também como a usurpação do poder do povo. Isso se manifesta em frases que escutamos em todos os lugares, “votar para quê, se voto para mudar e as coisas não mudam” ou “votar para quê, se depois eles fazem o que querem”.
Na Carta de 88, os constituintes elegeram como os objetivos fundamentais da República Brasileira “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, “garantir o desenvolvimento nacional”, “erradicar a pobreza, a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”, “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, etnia, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” e que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”.
Se todo o poder emana do povo, conforme define a nossa Constituição, pensar a reforma política é pensar como este poder deve ser devolvido ao povo que tem o direito de exercê-lo de forma direta e não apenas por delegação.
A incapacidade das instituições vigentes de concretizarem plenamente os objetivos da Constituição, o aumento do sentimento de distância entre os/as eleitores/as e seus/suas representantes coloca em risco a crença nos processos democráticos. Este é um risco que não podemos correr.
Democracia é muito mais que o direito de votar e ser votado. Não podemos apenas ser chamados a participar nos momentos eleitorais. Precisamos criar novos mecanismos de participação, que resgate o poder de decisão da população.
A Reforma Política que defendemos visa a radicalização da democracia, para enfrentar as desigualdades e a exclusão, promover a diversidade, fomentar a participação cidadã. Isto significa uma reforma que amplie as possibilidades e oportunidades de participação política, capaz de incluir e processar os projetos de transformação social que segmentos historicamente excluídos dos espaços de poder, como as mulheres, afrodescendentes, homossexuais, indígenas, jovens, pessoas com deficiência, idosos e todos os despossuídos de direitos trazem para o cenário político.
Não queremos a “inclusão” nesta ordem que aí está. Queremos mudar esta ordem. Por isto, pensamos o debate sobre a Reforma do Sistema Político como um elemento-chave na crítica às relações que estruturam este mesmo sistema. Entendemos que o patrimonialismo e o patriarcado a ele associado; o clientelismo e o nepotismo que sempre o acompanha; a relação entre o populismo e o personalismo, que eliminam os princípios éticos e democráticos da política; as oligarquias, escoltadas pela corrupção e sustentadas em múltiplas formas de exclusão (pelo racismo, pelo etnocentrismo, pelo machismo, pela homofobia e outras formas de discriminação) são elementos estruturantes do atual sistema político brasileiro que queremos transformar.
A construção de uma verdadeira reforma do sistema político precisa estar alicerçada em cinco eixos:
1 – Fortalecer a democracia direta;
2 – Fortalecer a democracia participativa;
3 – Aprimorar a democracia representativa: sistema eleitoral e partidos políticos
4 – Democratizar a informação e a comunicação e a
5- Democratização do Poder Judiciário
A reforma política deve dar nova regulamentação às formas de manifestação da soberania popular expressas na Constituição Federal (plebiscito, referendo e iniciativa popular), conforme projeto de lei, proposto pela OAB e CNBB, em tramitação no Congresso Nacional. Precisa também criar novas formas e mecanismos de participação direta. Mas para isso é fundamental o acesso as informações públicas, entre elas as orçamentárias. É uma vergonha que até hoje no Brasil o Executivo não disponibilize de forma clara e transparente essas informações.
Precisa também repensar a atual arquitetura da participação. A multiplicação de espaços participativos não significa automaticamente a partilha de poder. Isso ficou evidente no processo de consulta realizado em 2003 sobre o Plano Plurianual – PPA, onde nenhum dos acordos feitos em relação a continuidade do processo foram cumpridos, tanto pelo Executivo como no Parlamento. Precisamos caminhar na direção da construção de um sistema integrado de participaçãoque inclua a política econômica e não apenas as políticas sociais.
Precisamos aprimorar e fortalecer a democracia representativa. Priorizando a democratização dos partidos e a qualificação dos processos eleitorais. A fidelidade partidária, financiamento público exclusivo de campanha, votação em lista fechada e a possibilidade de revogação de mandatos pela população devem ser prioridades. Antes de tudo é necessário criar a equidade nas disputas políticas que se fazem via mecanismos da democracia representativa.
Uma reforma política que fique restrita apenas ao sistema eleitoral não serve à sociedade. Discutir apenas a fidelidade partidária, o financiamento publico de campanha, votação em lista pré-ordenada é uma reforma de perfumaria. Precisamos ir além, muito além.
É preciso democratizar a vida social, as relações entre homens e mulheres, crianças e adultos, jovens e idosos, na vida privada e na esfera pública. É preciso democratizar as relações de poder. Portanto democracia é muito mais que apenas um sistema político formal, é também a forma como as pessoas se relacionam e se organizam. Neste sentido, reforma política é devolver o poder ao povo do qual ele nunca devia ter retirado.
Câmbio, imposto e economia em um país concentrador de renda
O governo anunciou algumas medidas econômicas para segurar a valorização do real frente ao dólar. Entre elas estão duas modificações na área tributária: a isenção do IOF de 0,38% sobre as exportações e a cobrança de uma alíquota de 1,5% de IOF sobre os investimentos estrangeiros que entrarem no país para aplicações em renda fixa. Além disso, anunciou o fim da exigência de cobertura cambial para as exportações, ou seja, a necessidade dos exportadores trazerem as receitas recebidas em moedas estrangeiras para o Brasil.
As alterações na área tributária evidenciam um tratamento privilegiado que o governo concede às diferentes rendas na economia brasileira. Em 15 de fevereiro de 2006, foi editada a Medida Provisória (MP) n.º 281 (convertida na Lei 11.312, de junho de 2006) que reduziu a zero as alíquotas de Imposto de Renda (IR) — antes era 15% —e isentou a CPMF para investidores estrangeiros no Brasil. Os grandes beneficiários pela benevolência tributária do Estado brasileiro com a medida foram (e ainda são)os bancos. Pois, após a edição da MP cresceu o interesse de bancos estrangeiros, com filiais no Brasil, em captar recursos no exterior vinculado ao comportamento do Real. A operação é a seguinte: os bancos emitem títulos em reais fora do país pagando juros abaixo do Depósito Interfinanceiro (DI) e depois ingressam com esses recursos como investidores estrangeiros no Brasil, comprando títulos públicos que financiam a dívida. Em bom português é a política econômica favorecendo os rentistas que vivem de juros dos papéis da dívida pública brasileira.
A combinação de elevadas taxas de juros (a mais altas do planeta) e de um paraíso tributário para especulador estrangeiro permitiu a enxurrada de dólares em aplicações de curto prazo no país. O resultado é uma forte valorização do real frente ao dólar, que tem como conseqüência a perda de competitividade dos produtos brasileiros no exterior, trazendo efeitos negativos sobre a balança comercial (a diferença entre exportações e importações) e o saldo de transações correntes.
As medidas adotadas são paliativas, pois o que atrai recursos especulativos ao país é a elevada taxa de juros praticada pelo Banco Central do Brasil – Bacen e, ao que tudo indica, será elevada em abril, na próxima reunião do Comitê de Política Monetária (Copom). No tocante à questão tributária, apesar do importante retorno da taxação do investimento estrangeiro especulativo, com a cobrança de 1,5% de IOF sobre o valor do capital principal, a medida não retoma o mesmo patamar de incidência tributária existente em 2006 (15% de Imposto de Renda e 0,38% de CPMF) . O Brasil continua concedendo um tratamento tributário desigual às diferentes espécies de renda (juros, lucros, dividendos e salários). Assim, o especulador estrangeiro continuará pagando menos imposto que o trabalhador brasileiro.
O ministro da Fazenda também anunciou suas preocupações em não permitir déficits nas contas externas. O governo poderia começar a concretizar suas intenções revogando o artigo 10 da Lei 9.249/1995 que isentou de Imposto de Renda (IR) a renda dos capitalistas com a distribuição de lucro e dividendos, incluindo as remessas para o exterior. Neste particular, os dados do Banco Central revelam que a remessa de lucros e dividendos ao exterior alcançou, em 2007, o montante de US$ 22,4 bilhões, o maior volume desde 1947.
Em 2008, o Brasil voltará a depender de capitais estrangeiros para financiar as contas externas, pois a era de superávits em conta corrente chegou ao fim. As contas correntes são integradas pelo somatório da balança comercial, das transferências unilaterais (donativos) e da conta de serviços e rendas (lucros, dividendos, aluguéis, salários. O saldo de transação corrente vai ser a diferença entre o que Brasil enviou de recursos ao exterior e o que recebeu nessas contas. Esse resultado foi negativo em US$ 4,2 bilhões no mês de janeiro/2008, acumulando saldo negativo de US$1,2 bilhão, equivalente a 0,09% do PIB, nos últimos doze meses. A principal razão desse saldo negativo foi a elevada quantia enviada ao exterior em forma de lucros, dividendos e juros. O Bacen projeta para 2008 um déficit em conta corrente de US$ 3,5 bilhões.
Como as remessas de lucros e dividendos estão isentas de imposto de renda, o Brasil vem abrindo mão de receitas tributárias em favor da renda do capital. Houve época em que a taxação sobre essas transferências internacionais chegou a 25%, na época de edição da Lei 9.249/95 a alíquota era de 15%. Convertendo o valor de US$ 22,4 bilhões à taxa de câmbio média de 2007, chega-se ao montante de R$ 43,5 bilhões, que se fossem tributados com uma alíquota de 15% possibilitaria uma arrecadação tributária de R$ 6,5 bilhões.
No aspecto macroeconômico, o fim da cobertura cambial vai trazer implicações negativas para economia brasileira. O Bacen poderá ter dificuldades para formar reservas internacionais, já que o volume de dólares deixados pelos exportadores brasileiros no país será menor. Até fevereiro/2008, 33 grandes corporações já tinham aberto contas no exterior para aproveitar a regra, até então vigente, que permitia deixar até 30% das receitas com exportações no exterior.Além disso, o comportamento dos exportadores poderá seguir o mesmo padrão dos especuladores, que irão avaliar a partir agora a diferença entre juros internos e externos, a expectativa do câmbio futuro (Real/Dólar) e o risco de quebra do país. Com isso, restará como caminho principal na atração de dólares para financiar as importações, a manutenção de elevadas taxas de juros.
Por fim, o IBGE anunciou que Produto Interno Bruto (PIB) cresceu 5,4%, a maior elevação de 2004, alcançando R$ 2,6 trilhões. A renda per capita também subiu 4%, com isso, estima-se a renda média dos brasileiros foi de R$ 13,5 mil, em 2007. Convém ressaltar que a renda per capita é uma média, o que esconde a enorme concentração de renda vigente no país, que só é comparada a de alguns países da África Subsaariana, uma das regiões mais miserável do mundo. Junto com os resultados do PIB, foi o anunciado o aumento recorde de 9,1% na tributação sobre produtos, reforçando a necessidade que a reforma tributária altere a marca indelével do sistema tributária brasileiro: a regressividade. Essa característica é resultado da concentração da arrecadação tributária sobre consumo, com os mais pobres pagando mais impostos que os mais ricos. Está na hora de submeter os rendimentos do capital (juros, lucros e dividendos) a tabela progressiva do imposto de renda, pois a atual legislação tributária trata de forma benevolente a renda dos capitalistas comparativamente à dos trabalhadores, ferindo a isonomia prevista na Constituição Federal. Com isso, fazer justiça tributária e distribuição de renda no país da concentração de renda e riqueza.
[1] Economista, Assessor de Política Fiscal e Orçamentária do Inesc.
MP do agronegócio legaliza concentração de terras na Amazônia
O presidente Lula assinou uma Medida Provisória que possibilitará aos latifundiários e às transnacionais do agronegócio a se apoderarem de mais terras na Amazônia Legal. O texto da MP foi inspirado pela Bancada Ruralista, sob a liderança do líder do governo no Senado, o senador Romero Jucá. Há alguns anos atrás a regularização estava limitada em imóveis rurais de até 100 hectares, depois foi ampliada para 500 hectares e agora triplicada para 1.500 hectares.
Essa medida abre possibilidade para que o agronegócio avance sobre as glebas dos posseiros e das famílias de agricultores/as e, como detentor do capital financeiro, compre as áreas regularizadas. Esse processo concentrador de terra e poder na Amazônia Legal vai aumentar o poder dos seus aliados políticos, a Bancada Ruralista. Essa estratégia é parte do um avanço do território do agronegócio sobre o território dos camponeses e dos indígenas, onde se encontra a riqueza dos recursos naturais. A tendência de savanização da Amazônia, apontada pelas pesquisas sobre mudança climática, vai acentuar-se com o desmatamento que virá após a compra das terras pelo agronegócio.
Essa possessão do agronegócio não é expressão do desenvolvimento, nem do crescimento do país, mas uma forma de exterminar a cultura rural camponesa e indígena de resistência diante das previsões contrárias às suas sobrevivências. A tendência de territorialização do agronegócio significa a monopolização do território camponês. Assim, não se pode aceitar a expanção do agronegócio como um processo de modernização e de valorização da vida.
O senador Romero Jucá, durante a cerimônia de assinatura da MP pelo presidente Lula, declarou que esta era uma “MP do Congresso”. Essa declaração poderia soar como uma ironia se não fosse apenas uma tirada política e se a competência de edição de MP não fosse exclusiva do presidente da República e o Congresso não estivesse, justamente, discutindo a redução de edições de MPs, que travam a pauta legislativa, impedindo as propostas de lei de serem votadas no plenário.
O senador Jucá, como ministro da Previdência Social foi alvo da mídia, que até hoje assombra o senador. A Agência Senado[1] confirmou que o senador do PMDB/RR é investigado nos inquéritos nº 2221 (apura denúncias feitas quando Jucá era ministro da Previdência Social, em 2005) e nº 2116 (suspeita de irregularidades em empréstimos feitos pelo Banco da Amazônia para a empresa Frangonorte) que tramitam no Supremo Tribunal Federal, ambos sob segredo de Justiça.
O presidente Lula, na cerimônia de lançamento da MP, lembrou aos parlamentares presentes que “é preciso que o Legislativo vote a reforma tributária” e que “o Congresso precisa levar a cabo a reforma tributária“. Em bom politiquez, a mensagem é a seguinte: assino a MP do agronegócio e vocês votam a reforma tributária. Isso é o que chamamos nos bastidores da ciência política de apresentar a fatura no momento da compra.
A senadora Serys Slhessarenko (PT-MT) parabenizou o presidente Lula pela assinatura da medida provisória. E afirmou, candidamente, assim como o diretor de Ordenamento da Estrutura Fundiária do Incra, Roberto Kiel, que a aprovação da MP do agronegócio deverá beneficiar 90% dos posseiros da Amazônia. Porém, Kiel, vai além ao afimar que “agora eles poderão comprar do governo federal as terras que já ocupavam há anos e não vão precisar de concorrer com outros interessados”.
Diante dessas expressões de êxtases dos ruralistas, de alguns parlamentares e de técnicos do governo, perguntamos o que os ex-posseiros ganharão com a MP. Roberto Kiel, em nota do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), responde: “receberá a Certidão de Cadastro de Imóvel Rural e terá sua propriedade incluída no Sistema Nacional de Cadastro Rural. Isso permitirá a realização de transações imobiliárias (como a venda e o desmembramento do imóvel rural) e possibilitará o acesso às políticas públicas (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar –Pronaf)”.
Sabe-se que o Pronaf não está passando por seus melhores momentos. Há uma série de pesquisas que demonstram certa inadimplência dos tomadores de empréstimos junto ao programa. A Revista de Economia e Sociologia Rural traz um relatório da pesquisa de Carlos Guanziroli[2] que afirma que “o atraso é maior quando o risco é do Tesour, chegando a 48% no caso do PRONAF/C. O grupo A/C também registrou alto índice de atraso. Dados do Ministério de Integração Regional referido aos Fundos Constitucionais da região Norte mostram índices de inadimplência bastante altos em 2004: PROCERA: 42,6%, PRONAF/A: 3,4%, PRONAF/C: 8,1%, PRONAF/D: 4,2%”. Acrescenta, o estudo, que os dados de inadimplência não são muito altos porque parte dessas dívidas foi renegociada, tendo sido acordados novos prazos de vencimento, o que oculta o verdadeiro atraso dos créditos.
Assim, nas entrelinhas da declaração do diretor de Ordenamento da Estrutura Fundiária do Incra, pode-se inferir a possibilidade de compra das terras pelo agronegócio e de como uma política de crédito rural, como o Pronaf, pode não ser a melhor oferta do Estado para os/as agricultores/as familiares. Assim, a falaciosa declaração de que 90% dos posseiros da Amazônia poderão ser beneficiados começa a soar mais como uma ameaça do que uma saída para seus problemas[3].
A Medida Provisória levada ao presidente da República pela Bancada Ruralista para que se amplie a área dos imóveis a serem regularizados na Amazônia Legal de 500 hectares para 1.500 hectares é um cavalo de tróia. No bojo do encantamento da possibilidade dos camponeses de obterem o título de propriedade de suas posses há, em verdade, uma armadilha de apoderamento de suas terras.
Se essa MP é tudo o que pensamos que seja, é importante que os movimentos sociais do campo saibam, de fato, o que vão enfrentar. Que comecem a se mobilizar contra essa medida patológica, que amplia o poder político de um grupo organizado de parlamentares no sentido de extinguir os elementos resistentes da cultura rural camponesa e indígena.
[3]Em 2005, em Alagoas, pelo Banco do Nordeste do Brasil (BNB), somente no Pronaf/B a inadimplência atinge 3.808 alagoanos. Em algumas agências do Banco do Brasil, a inadimplência varia em até 50%, sendo a maior concentração de falta de pagamento no Pronaf/C (O Jornal, 5/6/2005, Dívidas impedem que produtores rurais tomem novos empréstimos, http://www.faeal.org.br/info_detail.asp?id=174). Em dezembro/2007, o Banco do Nordeste suspendeu a liberação de recursos do Pronaf/B em 23 municípios do Norte de Minas e Vales do Jequitinhonha e Mucuri. O motivo é que nesses municípios o índice de inadimplência superou 15% em relação ao valor total dos contratos em vigor. (Assessoria de Comunicação, Emater-MG faz campanha para melhorar aplicação do crédito rural, http://www.emater.mg.gov.br/portal.cgi?flagweb=site_tpl_paginas_internas&id=1352)
Direito à segurança: um balanço das respostas brasileiras e uma agenda para o Brasil
Direito à segurança: um balanço das respostas brasileiras e uma agenda para o Brasil[1]
Neste artigo pretendo apresentar um panorama geral da violência no Brasil, especialmente da violência letal, e indicar as principais características de sua distribuição, focalizando faixa etária, gênero, cor, classe e, principalmente, território. Pretendo analisar as principais respostas da sociedade civil brasileira a este fenômeno e indicar quais linhas de força explicam a baixa presença de participação de organizações não-governamentais e movimentos sociais em relação às políticas de segurança e às polícias. Finalmente, identificarei as maiores lacunas e as experiências mais inovadoras e criativas neste campo.
Panorama da violência no Brasil
No Brasil, 50 mil pessoas são assassinadas por ano. Nossas taxas de mortes violentas estão entre as mais altas do mundo há mais de duas décadas. Passamos de 11,7 homicídios por 100 mil habitantes, em 1980, para 26,9 pelos mesmos 100 mil, em 2004. Países da Europa Ocidental têm taxas inferiores a 3 mortes intencionais por 100 mil habitantes e os Estados Unidos encontram-se na faixa de 5 a 6 mortes intencionais por 100 mil habitantes.
Gráfico 1
Homicídios no Brasil: números absolutos e taxas por 100 mil habitantes de 1980 a 2004
Tabelas no arquivo pdf anexo
Fonte: Sistema de Informação sobre Mortalidade – Datasus.
IGCC – Idade, gênero, cor e classe: um indicador de risco para morte violenta no Brasil
Uma característica marcante no panorama brasileiro é a concentração dos homicídios na população jovem. Na faixa etária dos 15 aos 24 anos, as taxas são extraordinariamente mais altas do que as verificadas para a população como um todo. A tendência, como se observa no Gráfico 2, é nacional, ocorrendo mesmo nos estados com taxas de violência letal mais baixas. Entre os não-jovens, no Brasil, 9,6% do total de óbitos são atribuíveis às causas externas. Entre os jovens, as causas externas são responsáveis por 72,1% das mortes. Os homicídios respondem por 39,7% das mortes de jovens de 15 a 24 anos; os acidentes de transporte respondem por 17,1% e os suicídios por 3,6% (WISELFISZ, 2006). Em alguns estados, a taxa de homicídios de jovens ultrapassa os 100 por 100 mil jovens. Quando examinamos algumas áreas urbanas pobres, focalizando os jovens, encontramos taxas de mais de 200 homicídios dolosos por 100 mil habitantes.
Gráfico 2
Taxa de homicídios por 100 mil habitantes em diferentes estados brasileiros: jovens e total -2004
Fonte: Sistema de Informação sobre Mortalidade – Datasus.
Sexo também é um fato explicativo importante para compreender características do fenômeno. Seguindo um padrão predominante no cenário internacional, não só as mulheres, como as jovens representam uma proporção muito pequena das vítimas de violência letal. Como se sabe, mulheres são as vítimas mais freqüentes de violências interpessoais (domésticas e conjugais) e são as principais vítimas de lesões corporais. Uma cultura machista contribuiria, portanto, não só para a quantidade assombrosa de mortes violentas entre jovens do sexo masculino, mas também para explicar o perfil da vitimização feminina.
Gráfico 3 – Percentual de homicídios por sexo Jovens e população total – 2004
Fonte: Sistema de Informação sobre Mortalidade – Datasus.
Paralelamente à idade e gênero, estudos têm identificado a existência de uma dramática concentração de mortes violentas na população negra (somatório dos classificados como pretos e pardos), indicando que a distribuição desigual de riquezas e recursos sociais (educação, saúde, saneamento) entre brancos e negros, no Brasil, acaba por provocar outro tipo de desigualdade, aquela na distribuição da morte violenta. Assim, são os negros e, entre estes, os mais jovens, as vítimas preferenciais da violência letal.
As taxas de homicídios para negros são mais altas em todas as idades a partir dos 11 anos, embora muito mais acentuadas entre os 18 e os 26 anos, faixa em que os números aumentam sistematicamente. Enquanto a diferença é de 2,8% aos 13 anos de idade, esta sobe para 10,3% aos 14 anos, e 17,2% aos 19 anos de idade. Em seguida, a diferença vai diminuindo, chegando a 6% depois dos 26 anos e a menos de 1% depois dos 48 anos de idade (SOARES & BORGES 2004). Quando observamos apenas a população masculina, os contrastes são ainda mais acentuados, como se vê no gráfico 4.
Gráfico 4
Taxa de homicídios (por 100 mil habitantes) de homens segundo cor e idade no Brasil – 2000
Fonte: Borges, Doriam. Com dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade – Datasus.
As variáveis idade, gênero, cor e classe social, combinadas, também são um fator de risco para ser considerado suspeito pela polícia. Os jovens pobres, predominantemente negros, moradores de favelas e das periferias dos grandes centros são os suspeitos preferenciais da polícia. Pesquisa realizada pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, na cidade do Rio de Janeiro, em 2002, revelou que 57,9% das pessoas paradas pela polícia andando a pé na rua têm entre 15 a 29 anos. Por sua vez, considerando pessoas paradas em todas as abordagens policiais, os negros sofrem revista corporal em 55% das vezes em que são abordados, contra 32,6% das vezes quando os brancos são abordados (RAMOS e MUSUMECI, 2005). A distribuição das próprias operações policiais são variáveis por bairro, predominando as abordagens a pé na rua, com revistas corporais, nas áreas pobres e as “blitz” de automóveis, quase sempre sem revistas corporais, nas áreas mais ricas.
Geografia da morte: as cidades fraturadas
Nas regiões metropolitanas do país, como se sabe, a criminalidade violenta cresceu predominantemente em favelas e bairros pobres das periferias urbanas. Nessas áreas, especialmente a partir dos anos 80, instalou-se o tráfico de drogas e os conflitos entre facções rivais que disputam o controle de um mercado altamente lucrativo. Também ao longo dos anos, cresceram a violência e a corrupção policiais, umbilicalmente ligadas ao tráfico de drogas. É nesses territórios pobres e carentes de serviços públicos que se registram os mais altos índices de violência letal. Nas cidades brasileiras mais violentas é possível identificar uma geografia da morte, em que as maiores vítimas são jovens negros e pobres.
A Figura 1 ilustra a desigualdade na distribuição da violência letal entre os diversos bairros do município do Rio de Janeiro. O mapa traz a divisão do município em AISPs (Áreas Integradas de Segurança Pública). Como se pode perceber, as AISPs 2, 19 e 23, que englobam os bairros da Zona Sul da cidade (Copacabana, Ipanema, Leblon, Lagoa, Jardim Botânico, Barra), nas quais se concentram moradores com maior poder aquisitivo, são aquelas que apresentam as mais baixas taxas de homicídios. Ali são comuns taxas que variam entre 4,7 a 10 homicídios por 100 mil habitantes, próximas dos padrões norte-americanos. Já as AISPs 27, 9 16, situadas na Zona Oeste e no Subúrbio, que reúnem bairros pobres e regiões repletas de favelas, Acari e Santa Cruz, Complexo do Alemão, Vigário Geral e parada de Lucas, por exemplo, chegam a registrar taxas de até 84 homicídios por 100 mil habitantes. Essa distribuição configura a presença de dois padrões radicalmente diferentes existentes na mesma cidade: a uma distância de 40 minutos entre os bairros mais pobres e os mais ricos, entre os mais bem servidos pela presença do Estado e onde o Estado permaneceu por longos anos ausente, a ponto de grupos armados manterem controle total sobre territórios inteiros de áreas de favelas. Na prática, são dois países convivendo na mesma cidade. Como veremos, também são duas polícias e duas políticas de segurança.
Manchas territoriais de concentração de mortes violentas nos bairros pobres e nos aglomerados de favelas também se evidenciam em cidades nas quais estudos sistemáticos têm sido desenvolvidos, como os do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (Crisp) sobre a violência letal e Belo Horizonte, como mostra a Figura 2.
Figura 1
Taxa de homicídios por 100 mil habitantes no município do Rio de Janeiro: Áreas Integradas de Segurança Pública – 2003
Fonte: Musumeci (2002), com dados do Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro e IPP (estimativas populacionais 2002).
Figura 2
Clusters de homicídio em Belo Horizonte – 1995 a 2000
Fonte: Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública – Crisp/UFMG
O sistema de justiça criminal, as políticas de segurança e a Polícia
Com quê políticas públicas de segurança o país tem respondido ao fenômeno da crescente violência urbana? Nos mais de vinte anos desde que o processo de transição da ditadura militar teve início (1985), o setor que menos progressos fez em relação à modernização e à democratização foi o de Justiça Criminal, em particular o das instituições policiais (Leeds, 2005). Apenas na segunda metade da década de 1990 começaram a ser registrados os primeiros esforços sistemáticos de elaboração de políticas públicas de segurança baseados numa perspectiva contemporânea, identificada com a combinação entre eficiência e direitos humanos. Até então, o tema era relegado, pela maioria dos governos, às esferas corporativas das próprias polícias (Soares, 2000). O silêncio em relação à escalada de violência letal predominou também entre amplos setores intelectuais, na mídia e mesmo entre as organizações não-governamentais durante os anos 1980 e em parte da década de 1990. Efetivamente, nos contextos acadêmico e universitário, salvo raras exceções, são relativamente recentes a criação de centros de pesquisa voltados para os temas da violência com foco em segurança pública.
O perfil sócio-econômico das principais vítimas da violência letal e sua baixa capacidade de pressão política podem ajudar a explicar o despertar tardio dos governos, da mídia e da sociedade civil brasileira para o tema da segurança pública e para a necessidade de investir em modernização, controle e democratização das instituições de polícia. A maioria das polícias civis e militares nos estados da Federação foram se degradando e algumas tornaram-se violentas e ineficientes. O crime organizado que se estrutura em torno do tráfico de armas e drogas, por meio de mecanismos em níveis diversos, corrompeu amplos segmentos das corporações policiais, em alguns casos atingindo desde as bases até às chefias (Lemgruber, Musumeci & Cano, 2003). Em alguns estados, a violência policial transformou-se em um problema que afeta as corporações e vitima as populações pobres, que se vêem encurraladas entre a violência dos grupos armados de traficantes e a violência e a corrupção policiais.
No Estado do Rio de Janeiro, segundo os dados da Secretaria de Segurança Pública para o ano de 2006, a Polícia é responsável por 14% das mortes violentas intencionais. Os “autos de resistência” – isto é, as mortes registradas como decorrentes de confrontos com a Polícia –, aumentaram 280% em seis anos (de 289, em 1999, subiram para 1.063, em 2006), denotando um crescimento extraordinário do uso da força letal pela Polícia.
A violência policial também assume, tal como as taxas de homicídios na cidade, uma geografia específica, estando fortemente concentrada na Zona Oeste e nos bairros de Subúrbio, as áreas mais pobres da cidade. Em 2006, os batalhões dos Subúrbios do Rio (3o, 9o,16o e 22o BPMs) mataram 357 civis enquanto os batalhões da Zona Sul (2o, 19o, 23o e 31o BPMs) mataram 34. A mesma desproporção havia ocorrido em 2003 (Ramos & Musumeci, 2005). A baixa presença de organizações de direitos civis nessas áreas, aliada a uma espécie de “naturalização” da idéia de que conflitos em favelas provoquem vítimas civis podem ajudar a compreender por que esses números são espantosamente em algumas regiões.
O fenômeno do uso excessivo de força letal pela Polícia é um problema grave em vários estados da federação. Muitas Polícias estaduais nem mesmo divulgam estatísticas sobre mortes ocorridas em ação. Em São Paulo e em Minas Gerais, onde há dados, vêm sendo colocadas em prática políticas de redução da violência policial letal. Em São Paulo, as mortes em confronto com policiais caíram significativamente: de 573, em 2004, para 300, em 2005 (www.ssp.sp.gov.br) Em Minas elas tiveram uma pequena redução: de 103, em 2004, para 99, em 2005 (dados do Comando de Policiamento da Capital). Nesses dois estados, como veremos, os governos têm igualmente desenvolvidos esforços que vêm baixando progressivamente a violência letal em geral.
As características das mortes em confronto são indicadoras das suas dinâmicas. Um estudo minucioso dos autos de resistência (Cano, 1997) focalizando os anos de 1993 a 1996, na cidade do Rio de Janeiro, revelou que as vítimas são majoritariamente jovens do sexo masculino (de 15 a 29 anos, com ênfase na faixa de 20 a 24) e que 64% são negros (pretos e pardos), contrastando com a presença de 39% de negros na população carioca. O estudo também mostrou que as mortes decorrentes das ações policiais concentram-se em favelas e que quase a metade dos corpos recebeu quatro disparos ou mais e 65% dos cadáveres apresentava pelo menos um tiro nas costas ou na cabeça, configurando casos de execuções sumárias.O fato é que, no Rio de Janeiro, a violência policial encontra-se fora de controle dos comandos superiores. Na medida em que a “licença para matar” foi concedida aos policiais que atuam nas favelas e bairros pobres, abriu-se um amplo terreno para o crescimento da corrupção e para os chamados “acertos” ou “arregos” entre traficantes e agentes policiais (Soares, Bill & Athayde, 2005).
Em relação às políticas de segurança, tem havido experiências importantes no Brasil. Recentemente, alguns municípios passaram a incorporar pesquisadores e organizações da sociedade civil na elaboração e execução de políticas públicas (Sento-Sé, 2005). O caso
Relator do Orçamento corta R$ 265 milhões da reforma agrária
Relator do Orçamento corta R$ 265 milhões da reforma agrária
Edélcio Vigna
Assessor Reforma Agrária e Soberania Alimentar
Inesc
Um dos princípios basilares do Orçamento da União é a anualidade. O orçamento deve compreender o período de um exercício financeiro, que corresponde ao ano fiscal[1]. A Constituição Federal diz, no artigo n.º 35 das Disposições Transitórias , que “a lei orçamentária da União será encaminhada até quatro meses antes do encerramento do exercício financeiro e devolvido para sanção até o encerramento da sessão legislativa”, mas não prevê nenhum tipo de punição em caso do não cumprimento dos prazos estabelecidos. Ocorre que, quando a disputa política fica acirrada, os parlamentares dão um jeitinho e postergam a votação. O orçamento de 2008, sancionado pelo Congresso Nacional no último dia 12 de março, deverá ser sancionado antes do final do mês. O grande atraso na votação do orçamento deste ano foi decorrente da rejeição da CPMF pelo Senado Federal. O rombo foi grande e as receitas que viriam desta taxa evaporam-se. Foi necessário que o governo e o Congresso fizessem uma recomposição das receitas frente às despesas. Assim, até o momento, o governo tem utilizado a cada mês um mecanismo de executar apenas 1/12 dos recursos previstos para o ano. Nesta recomposição, um grupo de programas teve seus recursos diminuídos e, entre eles, os que tratavam das políticas sociais. Dessa forma, os programas que compõem o orçamento da reforma agrária foram atingidos, perdendo R$ 265,1 milhões.
Tabela 1
Programas – Valores previstos no PLOA 2008 para a Função: ORGANIZAÇÃO AGRÁRIA
Programa
PL
Autografo
Dif. (Autógrafo – PL)
ASSENTAMENTOS PARA TRABALHADORES RURAIS
965.231.000
956.449.600
-8.781.400
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL DE PROJETOS DE ASSENTAMENTO
1.997.421.726
1.913.625.570
-83.796.156
GERENCIAMENTO DA ESTRUTURA FUNDIÁRIA E DESTINAÇÃO DE TERRAS PÚBLICAS
78.402.600
80.211.359
1.808.759
GESTÃO DA POLÍTICA DE DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO
34.950.000
30.910.000
-4.040.000
AGRICULTURA FAMILIAR – PRONAF
264.991.011
267.966.809
2.975.798
APOIO ADMINISTRATIVO
496.381.383
473.366.126
-23.015.257
CRÉDITO FUNDIÁRIO
580.440.817
517.100.824
-63.339.993
PAZ NO CAMPO
12.300.000
10.300.000
-2.000.000
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL DE TERRITÓRIOS RURAIS
245.436.000
229.634.630
-15.801.370
BRASIL QUILOMBOLA
77.800.234
62.320.188
-15.480.046
EDUCAÇÃO DO CAMPO (PRONERA)
67.576.471
55.016.472
-12.559.999
CONSERVAÇÃO, MANEJO E USO SUSTENTÁVEL DA AGROBIODIVERSIDADE
1.250.000
1.250.000
0
ASSISTÊNCIA TÉCNICA E EXTENSÃO RURAL NA AGRICULTURA FAMILIAR
395.990.350
365.083.550
-30.906.800
CIDADANIA E EFETIVAÇÃO DE DIREITOS DAS MULHERES
29.500.000
19.300.000
A maioridade de um país
Uma nação não se faz pela irracionalidade. Pode ser levada a aventuras, mas não se constrói por ímpeto, pela angústia ou pela descrença. Um país, pelo contrário, se faz pela esperança e pela utopia de ser fértil e fincar a crença na prosperidade. Este, aliás, é um dos princípios do Estado Moderno: sustentar a crença individual num futuro melhor.
Nestes últimos dias, a ação selvagem de alguns jovens, que nos impele a descrer no projeto humano, parece convidar ao irracionalismo, irmão gêmeo da selvageria. Uma trama que a mente humana, de tempos em tempos, cria e que faz o errado parecer certo.
A discussão, importante e necessária, sobre a redução da maioridade penal está mergulhada em forte comoção e pode servir a interesses não muito claros e inconfessos. Há muita desinformação a respeito. Uma das questões encoberta pela comoção que envolve o debate atual é a tradição latina sobre desenvolvimento humano.
Nossa cultura é oposta à tradição jurídica da Inglaterra e EUA. Para estes dois países (há alterações importantes em curso) crianças e adolescentes acusados de autoria de atos infracionais podem ser punidos. Foi publicado, no Brasil, um importante livro intitulado Gritos no Vazio: a história de Mary Bell, de autoria de Gitta Sereny, que relata os equívocos desta concepção jurídica e sociológica. O livro trata da prisão de uma pré-adolescente que assassinou duas crianças. Um fato real e dramático. A tradição e cultura latina é mais comunitária e menos individualista. Baseia-se na convicção que o processo educacional não é uma virtude individual, mas uma responsabilidade da coletividade. Na prática, isto significa que uma criança não possui responsabilidade sobre o que faz, não tem maturidade intelectual suficiente para compreender a gravidade de seus atos.
Muitos estudos da psicologia comprovam esta tese. Há estudos de anglo-saxões, inclusive, como Lawrence Kohlberg, seguidor de Piaget, que comprovam esta tese. Por este motivo, atos de crianças são imputados aos seus pais ou responsáveis. São eles que assumem a responsabilidade dos seus atos. No caso dos adolescentes, a situação é mais complexa. Eles não são adultos, mas não são mais crianças. Os latinos sugerem que eles sejam considerados responsáveis, mas não imputáveis. Na prática, significa que eles sabem o que fazem, mas ainda estão em processo de amadurecimento. Eles já têm, inclusive, maturidade física para ter filhos e para dirigir carros, mas a sociedade considera que não têm maturidade intelectual para efetivar esta realidade. Seus atos infracionais não são julgados tendo por fim uma pena, mas uma medida socioeducativa, de caráter essencialmente pedagógico. É verdade que parte do sistema judiciário, fundado na lógica criminal, sente dificuldades em compreender a lógica pedagógica. Mas é importante destacar, assim mesmo, que nesta tradição a sociedade adulta entende que há, ainda, uma última ação a ser desenvolvida para com esta pessoa que está em processo de formação.
Os argumentos pela diminuição da maioridade penal incorrem no erro de idealizar a idade e desconsiderar o processo de amadurecimento do ser humano. Desconsidera situações cotidianas, como o julgamento que fazemos sobre um ato incorreto de uma criança e nossa postura sobre o mesmo ato cujo ator é um adulto. A expectativa sobre o comportamento de um é absolutamente distinta em relação ao outro, justamente porque a idade define a compreensão de mundo e de responsabilidade sobre ele.
Jean Piaget, desde os anos 30 do século passado, desenvolveu pesquisas que revelaram que os seres humanos se desenvolvem moralmente por estágios. Demonstrou que uma criança respeita regras não porque compreende sua função e natureza, mas porque teme ser punida ou perder o carinho de quem lhe ensina a regra. Tempos depois, já sabe empregar a regra no convívio com seus pares de idade, mas ainda não tem a compreensão sobre justiça. Na adolescência, já constrói esta noção, mas em fases mais complexas, gradativamente, de compreensão. Enfim, amadurece moralmente aos poucos. E amadurece, como outro psicólogo procurou provar (Lev Vygostsky), a partir de estímulos externos, que devem ser programados, no caso dos educadores. Tratar adolescente como adulto é um erro que coloca em xeque não apenas nossa cultura, mas a própria esperança na vida e na vida social.
[1] Sociólogo, 44 anos, Doutor em Ciências Sociais, Coordenador do Instituto Cultiva e membro do Comitê Executivo Nacional do Fórum Brasil do Orçamento. Coordenou pesquisa sobre sistema de atendimento ao adolescente autor de ato infracional em Minas Gerais. E-mail: ruda@inet.com.br . Site: www.cultiva.org.br
Impressões sobre a Cúpula Social de Cochabamba
A Cúpula Social pela Integração dos Povos foi uma das reuniões da sociedade civil organizada mais interessantes, coloridas e politicamente construtivas. Reuniu, em especial, a América do Sul, mas com ampla presença latino-americana, além de representantes europeus, norte-americanos e, em menor escala, asiáticos. Não sei se houve representação da África, a conferir. O mais interessante é que pela primeira vez os grupos e movimentos ali reunidos não estavam se preparando para se opor ou protestar nas ruas contra a Conferência da Comunidade Sul-Americana de Nações – CASA.
Mas, olhando para o conjunto das organizações e movimentos sociais da América do Sul, que era o objetivo primeiro desta reunião, ficou evidente a riqueza política, a consciência de que se está gestando algo novo no cenário político regional e, por conseqüência, novas provocações e possibilidades para as nações da região. Países, com diferentes dinâmicas sociais, políticas e históricas. Em comum, a permanente exploração e expropriação de seus recursos naturais e humanos. Integraram-se ao mundo como periferia do capitalismo.
A Conferência trouxe a evidência de como uma dada realidade nacional pode interferir e ajudar na politização de outro espaço nacional. A Bolívia, sede do encontro, tem sido um dos países mais fortes na referência política dos movimentos sociais, organizações não-governamentais e de parlamentares do campo da esquerda progressista. Ela vem politizando de uma maneira inédita e renovada toda a região e inspirando o mundo.
Juntaram-se, de forma concentrada nas mais de três mil pessoas representando organizações da sociedade civil atuantes em diferentes campos e temas, movimentos camponeses, de mulheres, indígenas, Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros – GLBTs, aliás com uma visibilidade fantástica ao lado dos Quéchuas e Aimaras da Bolívia e Equador; Guaranis, do Paraguai; Mapuches, do Chile e, para acrescentar, os camponeses da Via Campesina, organizações de pequenos agricultores familiares. Faltaram os indígenas do Brasil? Um colorido, uma diversidade e uma beleza humana de tal força e energia que poucas vezes foram experimentadas nos vários Fóruns mundiais desde o Fórum Social Mundial em Porto Alegre até a Cúpula Social de Integração dos Povos que ocorreram em outros espaços do planeta por mim experimentados. Um verdadeiro ato cultural na busca da emancipação, da autonomia, soberania e na construção de caminhos democráticos mais profundos e mais que isso: a construção de uma cidadania sul-americana. Experimentar olhar para nossas faces não européias e admirar sua força e beleza, agilidade e colorido em seu pequeno porte é uma experiência de viver a alteridade, a construção do orgulho de ser cidadão e cidadã latino-americana em oposição ao “branco” que se impôs como padrão de beleza, inteligência e dominação. Que capturou povos e sonhos para impor sua visão de mundo.
Os temas fundamentais debatidos se estruturaram em torno do debate da integração. Como criar e pensar a cidadania regional sul-americana? O Instituto Americano, local onde se realizou a Cúpula Social, ficou recheada de gente, de manifestações, debates analíticos, construção de propostas e de estratégias políticas que pudessem ampliar, fortalecer, aprofundar as relações intra e entre regiões. América do Sul e América Central e Caribe, América do Sul e África.
Infra-estrutura, energia com ênfase nos recursos hídricos, migração, emprego, militarização, integração comercial solidária, sustentabilidade ambiental, gênero, povos indígenas, agricultura familiar, entre muito outros temas assinalados e debatidos demonstrando o tamanho da complexidade e diversidade de temas que o eixo integração exige. Como construir novos valores que permitam o desenvolvimento de outra lógica no processo de integração, uma lógica não predatória do meio ambiente, não deletéria das relações entre os povos e que se construa com base em uma complementariedade das cadeias produtivas dos diversos países?
Entre vários debates voltados para a discussão da integração foram apresentados alguns pontos que merecem nossa reflexão:
1) Existe um consenso que vivemos na região um momento bastante privilegiado para o debate da integração regional, tanto nos espaços da sociedade civil organizada e movimentos sociais como nos espaços governamentais e parlamentos da região. Entretanto, eles encerram muitos paradoxos e contradições, segundo os vários debates realizados na Cúpula.
Percebe-se uma forte tensão entre uma direita conservadora, que quer aprofundamento do modelo existente, e uma outra onda muito forte e inédita que está buscando outros caminhos, outros valores, outra base produtiva e cultural para a região e para o mundo. De um lado, Brasil, Bolívia, Venezuela, Argentina, Uruguai, Equador (mais recente) e Chile liderando, com diferentes matizes e intensidades a chamada nova esquerda e de outro, Peru, Colômbia, Paraguai, entre outros, liderando o aprofundamento conservador e aprofundando relação subalterna aos EUA.
Entretanto, este movimento para a centro-esquerda não garante que as propostas e valores demandados pelos movimentos sociais, sindicatos e ONGs do campo democrático progressista sejam efetivamente implementados por esta nova esquerda sul-americana. Ao contrário, as experiências têm demonstrado que mudanças mais estruturais que reduzam a imposição do capital e das grandes corporações sobre nossos governos e, como conseqüência, sobre nossas políticas públicas ainda estão longe de serem vislumbradas. Lula inseriu o combate à pobreza na agenda internacional, Kichner mostrou que é possível enfrentar a lógica do Banco Mundial e FMI, enquanto Chavez vem adotando uma política mais agressiva antiimperialista. A grande novidade está vindo da Bolívia, com Evo Morales na luta pela soberania e autonomia, invertendo a lógica do uso da terra e dos recursos naturais e quem são os beneficiários. Porém todos se posicionando mais coerentes com uma visão de um socialismo de mercado.
Do lado da sociedade civil, os grupos se organizam na tentativa de ampliar a consciência cidadã sobre o agravamento da situação econômica e os riscos ambientais determinados pelo atual modelo de desenvolvimento, assim como a fragilidade das instituições democráticas. Procuram romper barreiras e diferenças para ampliar sua capacidade de mobilização e comunicação de massa. Esse parece estar entre os desafios prioritários do movimento anti-globalização econômica. Existe um reconhecimento de uma nova circunstância regional para o debate da integração, porém cheia de incertezas de como fazê-la. Da mesma forma, se reconhece que uma alternativa não nasce de repente, mas de um processo que vai acumulando forças e experiências para produzirem mudanças.
Desta forma um outro desafio prioritário deste debate é sair do espaço da resistência e se tornar propositivo, arriscar posições e alternativas que experimentem outra lógica, não só na elaboração e implementação de políticas inclusivas no âmbito nacional, mas também, na construção de propostas supranacionais que fortaleçam a região de forma solidária e complementar em todos os planos da relação humana e não só a comercial. Foi fundamentalmente disso que se falou em Cochabamba.
A região traz, desde a década de 90, um aprofundamento de um modelo de integração baseada na expansão comercial de modelo exportador, com crises sistemáticas que ampliam a competição entre os países, muito mais do que gerando sinergias. Dessa forma, os países entram na competição internacional em conflito uns contra os outros. A ALCA não aconteceu, mas em contrapartida, uma série de Acordos Bilaterais (TLCs) foram firmados pelo Chile, Peru, Colômbia, Uruguai, entre outros, o que produz contradições e fragilidades imensas na construção de uma comunidade sul-americana.
É certo que nenhum país sozinho é capaz de enfrentar a lógica das corporações transnacionais que atuam sobre seus territórios ou mesmo enfrentar os conflitos entre as chamadas translatinas. Existem conflitos e competição na região em uma relação que expressa profundas assimetrias também. De certa forma, uma reprodução do que ocorre no plano global entre os países centrais e periféricos.
A região mudou politicamente e também no seu campo produtivo. A industrialização vem se reduzindo e o mercado de monoculturas de soja, açúcar, entre outras, vem tomando conta das áreas rurais e produzindo mais competição entre os países. As velhas categorias camponesas não servem mais para se entender o que está acontecendo na área rural que é ocupada por agricultores que pensam dentro de uma lógica empresarial, são mais empresários do que pequenos ou médios produtores. Cada vez mais menos pessoas ocupam o campo e as tarefas se segmentam e se mercantilizam. Esse é outro camponês que está sendo forjado. Essas contradições precisam ser analisadas com profundidade pelos movimentos rurais e urbanos.
Dentro da Comunidade Sul-Americana acumulam-se tensões advindas da insistência em manter relações fundadas nas relações meramente comerciais; dependência internacional, etc. As alternativas possíveis passam pela construção de uma comunidade sul-americana que se coordene e se complemente em sua cadeia produtiva, quer seja industrial ou agrícola. Buscar formas ecológicas de produção agrícola, tecnologia limpa para produção de energia, preservação da água como bem público e com uso racional. Pensar a soberania dos povos e nações vinculadas às idéias de complementariedade produtiva, cultural e econômica. Construir uma cidadania regional, aprofundamento democrático com parlamentos nacionais atuantes no plano regional e com processos fortemente participativos.
Essas foram questões apresentadas por vários painelistas durante a Cúpula Social pela Integração dos Povos ocorrida em Cochabamba, Bolívia neste final de ano. Temas fortes e que mostram o tamanho do problema que temos que enfrentar enquanto cidadãos e cidadãs desta região.
Do Ponto de vista dos Movimentos de ONGs
Outros debates foram desenvolvidos para tentar enfrentar o desafio das estratégias de comunicação e articulação com movimentos sociais, sindicatos e organizações não governamentais de outros continentes e intra-região. Muitos mapas das regiões e seus problemas de enfrentamento às imposições do neoliberalismo e seus mecanismos de pressão foram apresentados e desenvolvidas propostas de aproximação sobre eles. Neste sentido, África e Europa foram identificados como parceiros políticos fundamentais para a região.
Um dos maiores desafios tem ligação direta com os instrumentos e mecanismos de comunicação com objetivo de enfrentar o poder da chamada grande mídia. Como democratizar a informação, como criar linguagens que permitam entendimento dos debates internacionais na vida direta das pessoas? Houve análises sobre a iniciativa da Telesur da Venezuela e a possibilidade da criação de veículos de massa alternativos entre vários debates.
Debate dos Parlamentos no Contexto da Cúpula
A participação dos parlamentos nos processos de negociação comercial, entre outros, também foi tema de debate durante a Cúpula. Houve discussão sobre como valorizar o poder legislativo, mas, mais que isso, de como desenvolver um debate consistente para a criação de instituições legislativas regionais que possam construir uma cultura política que promova uma cidadania regional. Estiveram presentes deputados e senadores do Brasil, Paraguai, Uruguai, Bolívia, Argentina, além de representantes de organizações não-governamentais movimentos sociais e organizações internacionais.
Pensar o parlamento do MERCOSUL, Parlasul, Parlamento Andino, ou um parlamento da comunidade sul-americana que tenham como objetivo pensar os interesses e possibilidades solidárias e complementares para um projeto regional. Como produzir sinergias e integração entre as instituições sub-regionais? Como fortalecer processos de participação efetiva e forte dos movimentos sociais e organizações da sociedade civil no debate da cidadania regional, na defesa dos DHESCAS? Como enfrentar os tratados comerciais e as propostas de infra-estrutura que estão se dando na região e trazer a discussão para os parlamentos? Enfim, muitos desafios.
Como pauta concreta, a criação de uma Frente Parlamentar Solidária nos parlamentos nacionais para atuarem como a semente de um grupo que pense essa cidadania regional sul-americana e, a partir dela, aprofundar a Frente Parlamentar Interamericana e de movimentos sociais para buscar caminhos alternativos às instituições existentes que não operam, são escoadouros de dinheiro público e que se burocratizaram totalmente.
Para enfrentar este debate, foi eleito um tema aglutinador: a matriz energética, em especial a água. Este tema permitiria desenvolver estudos e pesquisas de opinião dentro dos parlamentos para colocar o problema e começar o desenvolvimento de um pensamento articulado e regional sobre questões fundamentais como a soberania, a sobrevivência, o modelo produtivo e a construção de compartilhamento solidário, só para citar algumas questões que estão inseridas no debate da matriz energética e do uso da água. Outros temas foram levantados: migração, infra-estrutura, militarização, direitos humanos, direitos do trabalhador, etc.
Essa iniciativa busca construir, no marco desse novo ambiente de possibilidades da região, integrar os parlamentos no debate e trazer os conteúdos e acúmulos dos movimentos sociais para dentro dos parlamentos.
Mais do mesmo
Mais do mesmo
Evilásio Salvador*
O governo federal anunciou, no mês de maio, a segunda etapa da sua política industrial, denominada Política de Desenvolvimento Produtivo. Ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), é reservado um papel central e estratégico para implementação das diretrizes da política industrial. O plano envolve desonerações tributárias que chegarão a R$ 21,4 bilhões até 2011, incluindo medidas de equalização para a redução dos juros dos empréstimos do BNDES e a eliminação da incidência do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) de 0,38% nas operações de crédito do banco. Portanto, serão mais recursos do orçamento público para a instituição, que tem como uma das principais fontes de receitas a contribuição social do Programa de Integração Social (PIS), oriunda do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT).
A função primordial do banco na política industrial será imprimir mais velocidade e agilidade no processo de liberação de empréstimos, com crédito barato, a grandes grupos empresariais. O BNDES deverá investir, no período de 2008 a 2010, R$ 210,4 bilhões no financiamento da indústria e dos serviços. Entre os objetivos desse investimento, destacam-se: o aumento na capacidade produtiva do país, a inovação e modernização do parque industrial do país, e o aumento no volume de exportações. A ampliação de recursos e incentivos fiscais para o banco, no âmbito da política desenvolvimento produtivo, não veio acompanhada de maior transparência e de aumento no controle social da instituição.
A política de desenvolvimento produtivo está muito longe do ideal de desenvolvimento proposto pelos representantes de organizações e movimentos sociais no âmbito da Plataforma BNDES. Ou seja, não é o desenvolvimento pactuado em bases equânimes e justas nos termos em que se dá a produção e a distribuição das riquezas, gerado a partir dos potenciais e recursos das pessoas, comunidades, povo e território ecossocial.
Também não contribui para a defesa do desenvolvimento sustentável, levando-se em consideração os custos sociais, ambientais e financeiros no curto, médio e longo prazos. Ao contrário disso, na parte que cabe ao BNDES no projeto governamental, há uma vaga menção de uma ação direcionada ao setor bioetanol de “controle ambiental no licenciamento, implantação e operação das usinas e fiscalização no cumprimento da legislação trabalhista e ambiental”.
Ao que tudo indica, o passado vai se repetir no futuro: o banco concederá crédito subsidiado ao custo dos cofres públicos, sem transparência e controle social para grandes projetos industriais, que submetem a base material da produção e da reprodução sociais à lógica do lucro rápido.
Os ganhos serão apropriados privadamente e os custos arcados pelo orçamento público, sustentados por uma carga tributária regressiva. Não há na política industrial ou cumprimento de metas claras, sustentáveis social e ambientalmente, além não haver compromisso com a melhoria do nível de vida da maioria da população brasileira. Assim como não será priorizada a produção e distribuição equânime, no mercado interno, de bens e serviços sociais.
A conjuntura em que se insere a política de desenvolvimento produtivo coloca a premência da adesão efetiva do BNDES aos princípios da transparência e do controle público, realizando interlocução permanente com as organizações da sociedade civil e dos movimentos sociais brasileiros.
*Economista, é assessor de política fiscal e orçamentária do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).
Reforma agrária e o PNDH-3
Brasília, terça-feira, 19 de Janeiro de 2010.
O PNDH-3 não é uma proposta descolada da vontade social. É resultado de um processo que mobilizou milhares de técnicos, autoridades governamentais, representantes e militantes de todos os setores da vida ativa nacional.
A Confederação Nacional da Agricultura, organização patronal presidida pela senadora Kátia Abreu, representante da Bancada Ruralista, não se conforma que a reforma agrária esteja entre as ações do PNDH-3. A reforma agrária, como uma política que garante a função social da propriedade rural, ultrapassa o poder de imaginação dos latifundiários.
O acesso à terra para este setor só pode ocorrer entre iguais.
As propostas de execução da reforma agrária estão no PNDH-3 como uma política de garantia do acesso à terra e à moradia para a população de baixa renda e de grupos sociais vulnerabilizados.
As ações definidas são as seguintes: fortalecer a reforma agrária; mapear as terras públicas; sanear os serviços notariais de registros imobiliários; garantir as terras indígenas; assegurar às comunidades quilombolas a posse dos seus territórios; garantir o acesso à terra às populações ribeirinhas, varzanteiras e pescadoras.
Não há nada de novo nestas propostas. O novo seria o governo executá-las plenamente.
Uma renovação é a proposta de integrar de forma harmoniosa as ações entre os diversos ministérios. A atuação interministerial tem dado bons resultados em alguns setores, como o da saúde, educação e programas de segurança alimentar.
Além disso, a sociedade civil tem o papel essencial de acompanhar a execução física e orçamentária das ações e pressionar para que as metas sejam cumpridas.
Há mais de dez anos as organizações sociais e sindicais do campo exigem o assentamento imediato de milhares de famílias acampadas em beira de estradas; assistência técnica; fim da grilagem de terras; e atualização dos índices de produtividade. Neste período, de FHC a Lula, os governos apresentaram avanços tímidos.
O numero de famílias assentadas no ano passado foi um dos mais baixos da década.
A execução orçamentária da função agrária não ultrapassou 50%.
As denúncias sobre grilagens de terras, em especial na Amazônia, são repetidas pela mídia a cada recorde de desmatamento ou queimada. No entanto, o governo desconhece onde estão as terras públicas e devolutas. Há uma sobreposição de títulos irregulares registrados em cartórios.
Por isso, qualquer proposta de mapear as terras públicas da União e sanear os serviços notariais, cancelando os títulos e registros irregulares, é bem-vinda.
A reforma agrária, que objetiva acabar com o minifúndio e o latifúndio, não é uma política apenas para os sem-terra ou com pouca terra mas um programa de reordenamento da estrutura fundiária. A Constituição federal registra que as terras públicas e devolutas serão compatibilizadas com o plano nacional de reforma agrária (artigo 188). Para isso, se faz necessário determinar quais são as terras indígenas e as quilombolas e quais as áreas de proteção ambiental permanente necessárias para manter o equilíbrio ambiental e a sustentabilidade dos biomas nacionais.
Neste sentido, o PNDH-3 avança ao garantir regularização e desintrusão das terras indígenas, além de assegurar às comunidades quilombolas a posse e a titulação dos territórios, preservando os sítios de valor simbólico e histórico.
Além de possibilitar às populações de várzeas, ribeirinhas e pescadoras o acesso aos recursos naturais para sua reprodução física, cultural e econômica.
Edelcio Vigna, assessor político do INESC.
(Artigo publicado nos jornais “O Globo” e “Jornal do Brasil’).
A participação das mulheres na Reforma Política
A PARTICIPAÇÃO DAS MULHERES E A REFORMA POLÍTICA[1]
Maria Betânia Ávila
Socióloga
Coordenadora do SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia
Membro da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB)
Este é um tema difícil, sobretudo se queremos extrapolar os marcos nos quais ele já está colocado. O conceito de participação política tem sido, hegemonicamente, utilizado para tratar da participação nos espaços da democracia representativa, e como corolário da participação que se realiza através dos partidos políticos. Por outro lado, a Reforma Política também tem sido tratada, sobretudo, como relativa à democracia representativa, aos partidos e com foco no sistema eleitoral.
Portanto, extrapolar esses dois marcos, requer um certo esforço e também um risco de seguir em um caminho que não está, já de saída, assegurado.
No entanto, acho importante tentar essa errância porque minha questão é a seguinte. O que podemos fazer como ação e reflexão políticas neste processo da Reforma Política, que impactem nela e extrapole para além dela. Isto é, para o movimento feminista essa é uma ocasião histórica de mobilizar, pautar debates, estabelecer alianças, enfrentar conflitos de forma a se colocar como sujeito no processo da Reforma e, ao mesmo tempo, pensar para além disso os desafios políticos que o feminismo deve enfrentar para avançar na participação política das mulheres que, com certeza, não estarão realizados, nem poderão se encerrar, no âmbito dessa Reforma. Ela poderá, de alguma maneira, contribuir para um processo que requer uma revolução mais longa e permanente para democratizar a democracia. A mobilização e a reflexão em curso podem ser elementos de acumulação de forças para enfrentar o contexto atual e para construir novas estratégias. Por isso, meu objetivo aqui, não é construir um panorama nem nomear os fatos históricos que envolvem a participação das mulheres mas levantar questões que suscitem um debate para ação feminista no atual contexto. Quero, portanto, trazer alguns pontos como contribuição para o debate, que são, apenas, breves reflexões.
Para as mulheres essa Reforma Política se realiza em um contexto absolutamente marcado pela desigualdade das relações entre homens e mulheres, em todas as dimensões da vida social e de maneira particular, que é o nosso ponto aqui, na esfera da política. Os homens são hegemônicos nos espaços de poder, nos partidos, nos movimentos sociais mistos, mesmo quando as mulheres são majoritárias, o poder é hegemonizado pelos homens, e no movimento sindical também, que considero parte dos movimentos sociais mas que, certamente, constitui uma força política com expressão muito própria.
Para o feminismo se colocam muitas questões. O feminismo tem uma grande conquista, do meu ponto de vista, que é a instituição das mulheres como sujeito. O feminismo é o movimento que mais contribuiu para a ruptura com a perspectiva do sujeito único da história, e essa é uma questão política estratégica. Por outro lado, colocou em questão a ordem dominante ao expor, criticamente, a dominação e a exploração das mulheres neste sistema. Claro que o feminismo tem várias correntes, e dentro delas algumas confluências, fronteiras mais rígidas e outras mais borradas, mas estou tomando como minha referência do feminismo as correntes políticas que estão embasadas na teoria crítica ao sistema capitalista e patriarcal, e comprometidas com as lutas anti-racistas e contra a homofobia. Mas, essa não é uma questão que eu vou tratar aqui, ficam apenas algumas observações.
A superação da desigualdade das mulheres e os direitos das mulheres são hoje causas legitimadas na sociedade, mas essa legitimação não é entendida da mesmo forma por todas as correntes políticas e teóricas, evidentemente. Do ponto de vista de muitos setores dentro e fora do feminismo, essa legitimação é um ganho paulatino e sem contradições. Para outros, essa legitimação deve ser tomada como um momento de acumulação de forças para mostrar as contradições e avançar dialeticamente nos processos de transformação. E é nessa última perspectiva que eu acredito que deve ser colocada a questão da Reforma Política.
Pois, se pensarmos a Reforma só como uma oportunidade de abrir mais espaço para as mulheres, individualmente, ocuparem espaços de poder nos parlamentos, nos governos e nos partidos, será uma perspectiva que não questionará os marcos que estão dados na mídia, no parlamento, na maioria dos partidos, e mesmo nas análises acadêmicas que aparecem via imprensa e outros meios.
Mas, se pensarmos a Reforma a partir das contradições do contexto social e da relação entre feminismo e poder político, certamente iremos mais longe no questionamento.
A relação com os partidos neste debate é fundamental, uma vez que são os partidos políticos os sujeitos condutores do processo e, em última instância, aqueles que definirão os resultados. A correlação de força exige uma imensa capacidade de mobilização dos movimentos sociais para interferir nesse processo, e os partidos serão aí também os catalizadores de toda ação voltada para os trabalhos no Parlamento.
O movimento feminista contemporâneo nasce dentro de um processo geral de radicalização da esquerda, dos movimentos de contra cultura, e com uma forte crítica às formas autoritárias e hierárquicas da política. Os partidos de esquerda radical tinham, nesse contexto, como perspectiva a revolução, a tomada do poder, etc. O movimento feminista criticava os partidos de esquerda, mas se alinhava na sua perspectiva insurreicional, no sentido de uma ruptura radical como meio de superação do antagonismo com a ordem estabelecida. Mas, ainda assim, com críticas ao método da prática política definida como revolucionária. O movimento tinha uma defesa radical da autonomia, uma crítica muito forte ao conceito de poder por este estar sempre pensado como sistema de hierarquia e mando. As feministas estavam no movimento, e muitas também estavam nos partidos. Havia um acirrado debate sobre a dupla militância x autonomia, os conflitos eram grandes, mas o debate era vigoroso e estratégico para os dois campos, do partido e dos movimentos. Superada a perspectiva insurreicional dos partidos de esquerda, a partir dos anos 1980, todos eles, ou pelo menos a maioria, tomou o caminho da democracia representativa como forma de alcançar o poder, e a crítica à democracia burguesa ou liberal, representada nessa forma de democracia, foi perdendo a densidade e hoje, praticamente, não existe ou é incipiente. Quanto ao feminismo como movimento, a questão da participação e do poder também não estão, de certo, inteiramente redefinidas.
A questão do poder não foi recolocada do ponto de vista teórico-político como um debate no interior do próprio movimento feminista, isto é, entre as diversas correntes ou pelo menos entre as diversas articulações e, neste ponto, estou me referindo ao Brasil. O debate entre feministas nos partidos e feministas no movimento autônomo perdeu espaço, e se se faz, não tem qualquer impacto sobre as estratégias dos partidos ou dos movimentos, pelo menos não temos qualquer referência pública sobre isso.
De outro lado o movimento feminista é publicamente cobrado a mostrar resultados na ocupação dos lugares de poder pelas mulheres. Isso se faz, em geral, a partir de uma visão sobre participação política apenas como aquela feita através dos partidos para ocupar os espaços do poder no sistema institucionalizado, que não levam em conta a importância da organização das mulheres como movimento, nem tampouco suas estratégias e objetivos. Aliás, esse é um problema sério sobre participação política e poder, que nos leva à relação entre política e produção de conhecimento.
Dentro do movimento feminista a questão das mulheres pode ser colocada a partir de várias posições, sem uma precisão clara quanto à definição teórico-política. A questão das mulheres pode aparecer como supra-partidária, supra-partidária dentro do campo da esquerda, ou ainda ser defendida como supra-partidária em geral. Essa e outras questões deveriam constituir pontos para a construção de alianças, no movimento e entre movimentos e partidos. Dentro dessa variação, muitas vezes não é possível distinguir quando se trata de um método de acumulação de forças e luta por hegemonia, ou quando se trata de um princípio político feminista
Para mim, uma estratégia fundamental de poder é o fortalecimento do movimento de mulheres. É pelo crescimento e radicalização do movimento que a questão do poder se coloca, para alcançá-lo, para transformá-lo. Movimento forte é poder, e aliança entre feministas dentro dos partidos e nos movimentos é estratégica para defesa das bandeiras do movimento, mas também como uma forma de fortalecimento das mulheres no interior dos partidos.
É possível enfrentar essa Reforma sem construir alianças no interior do movimento feminista com outros movimentos sociais e com os partidos? Para isso temos que construir os mecanismos de relação democrática entre partidos e movimentos e ainda no interior do próprio movimento. E assim sendo, este seminário, do meu ponto de vista, é uma contribuição nesse sentido.
Para o feminismo a democracia direta sempre foi uma questão de organização da prática política mas também como uma questão teórica sobre a perspectiva de transformação que deve ser levada em conta. As mulheres estão massivamente nos movimentos sociais, nos mecanismos de democracia participativa. De um ponto de vista teórico político eu defendo que sem fortalecer esses três níveis de democracia, representativa, direta e participativa, não há como democratizar a democracia. Mas, indo além, o grande desafio é o fortalecimento da Democracia Direta e Participativa, porque, assim, se estende o processo de participação, e se cria bases para um processo mais profundo de transformação. A própria democracia representativa não conseguirá avançar sem uma movimento político mais intenso que extrapole o sentido da luta política para além do período eleitoral e supere esse sistema, no qual uma minoria tem acesso ao poder de decisão e a maioria com direito ao voto que delega esse poder, é totalmente subtraída dos meios de participação nas decisões políticas. Como se na relação eleitor/a x eleitos/as, através do voto, se esgotasse toda capacidade de luta e resistência social. Sendo essa relação candidatos/as x eleitores/as intensamente mediada pelo poder econômico e pelos meios privados de comunicação, os quais fazem parte desse poder econômico.
No Brasil e nos países ocidentais em geral, a demanda por cotas e por paridade, entre homens e mulheres exige um aprofundamento da reflexão sobre “os desafios e as escolhas políticas do feminismo atual” (Varikas,). Segundo Varikas, a demanda por paridade na França e as discussões que levanta, trazem para o âmago do debate político uma das contradições mais flagrantes da democracia histórica: a incapacidade manifesta, apesar de ter sido instituída a igualdade de direito e do sufrágio universal, de integrar, no âmbito da democracia representativa a metade da população formada de cidadãs.
As experiências de democracia direta no Brasil, através de referendo, plebiscito, consulta popular, são inexistentes ou raras e, quando aconteceram, foram extremamente instrumentalizados através da grande imprensa pelos mesmos setores que detém o poder sobre os processos da democracia representativa. Nestes processos, os movimentos sociais e o movimento feminista em particular, mesmo tendo tomado posição, não conseguiram ou não se propuseram a ter uma ação de impacto no processo de debate. A democracia participativa, tão importante no final dos anos 1980 como perspectiva de democratização do processo político brasileiro, resiste a duras penas, e em alguns casos está capturada pelos interesses do poder executivo, e em outros está restrita como campo de decisão a questões ou a definições de políticas periféricas que envolvem o uso de recursos destinados a pequenas obras nas áreas pobres das cidades. Experiências importantes existem, não estou negando isso, e as mulheres participam ativamente desses processos, mas quero ressaltar que, mesmo quando consideradas exitosas, essas experiências de democracia participativa são de pouco alcance em termos de capacidade de decisão e que apesar da presença massiva das mulheres, há desigualdade de poder com os homens.
No entanto, considero que é um compromisso histórico do feminismo a defesa de formas mais diretas de participação política e mais democratizadas de exercício de poder. A idéia da esfera política como um espaço “a priori” da igualdade, é uma visão liberal e, além disso, formalista da igualdade. Mas é, sobretudo, uma falsa idéia de igualdade.
Como estamos tratando de relações sociais e políticas, não é o caso de buscarmos apenas nos espaços da participação política as razões da manutenção de tamanha desigualdade. É necessário compreender a força das estruturas que sustentam e reproduzem as desigualdade de gênero e as condições sociais de acesso à esfera política.
Quem está na esfera pública, tem necessidades privadas. São as mulheres, no modelo capitalista de duas esferas dicotomizadas, as responsáveis pela satisfação dessas necessidades. Portanto, estando ou não no mercado de trabalho e na atividade política, as tarefas domésticas continuam sendo, basicamente, de sua responsabilidade. A dupla jornada funciona concretamente como um fator que bloqueia ou dificulta o acesso das mulheres à esfera pública. A superação desse impedimento tem sido, historicamente, garantida na relação entre as próprias mulheres que, através de diferentes tipos de relações produzem os meios que garantem, com mais ou menos dificuldades, os deslocamentos entre esfera privada e esfera pública. Portanto, para pensar a participação política deve-se levar em conta que as mulheres, além de diferentes, como ressaltam as correntes pós-modernas, são também desiguais.
Quando se trata de mulheres pobres, que no caso brasileiro são majoritariamente mulheres negras, a falta de recursos materiais aliada a outros fatores, como a violência sexual e doméstica, torna ainda mais difícil o exercício da cidadania política das mulheres. Para se pensar em uma esfera política igualitária é importante pensar no acesso a essa esfera pública, caso contrário as desigualdade e discriminações existentes nas sociedades vão funcionar como impedimentos invisíveis e a dificuldade de participação pode ser percebida como um atributo das mulheres. Isto é, a desigualdade social, perversamente, se transforma em um déficit do sujeito.
A história desse país é marcada por profundas desigualdades sociais e teve como elemento central na formação do poder político burguês, que instituiu o Estado Nacional, o ideário positivista que justificou, através de argumentos naturalizadores da vida social, as formas de dominação exercidas sobre as mulheres, sobre a população negra e as classes pobres. A manutenção da pobreza foi uma prerrogativa dos modelos de desenvolvimento econômico, que se sucederam ao longo dos tempos, os quais estiveram sempre sustentados em formas de exploração de classe, de raça e de gênero. O Brasil ainda é um dos países com maior índice de concentração de renda do mundo.
Elementos deste processo histórico estão presentes, até hoje, em todas as dimensões da sociabilidade em nosso país. São exemplos disso: os interesses patrimonialistas, que tiveram grande peso na conformação do Estado Brasileiro e ainda influenciam relações políticas, e a presença majoritária de mulheres, sobretudo, de mulheres negras, nos extratos mais pobres da população. A própria relação entre exploração sexual das mulheres e o exercício do poder foi, desde a origem da colonização, um mecanismo da violência patriarcal extremamente utilizado, e que até hoje se reproduz através dos “ modernos” meios capitalistas de mercantilização do corpo das mulheres. Com essas questões, quero também ressaltar a relação entre economia, cultura e política, como dimensões indissociáveis.
Se as relações de poder estão presentes em todas as dimensões da vida social, é estratégico pensar que o acesso à participação política das mulheres se configura, ela mesma, como um campo de luta para o movimento de mulheres.
Questões Finais.
Portanto, considero que da organização original – lembrando que tomo os anos 60 do século XX como marco do feminismo contemporâneo – que tinha como objetivo o confronto com a “velha ordem social” sem mediações ou metas, o movimento feminista tem, hoje, uma responsabilidade historicamente adquirida de construir uma democracia na qual as mulheres participem integralmente. Isto implica, inclusive, em reconsiderar os significados dos próprios conceitos de cidadania e democracia.
Novas grades de análises que não encaixem a diversidade dos processos políticos dentro dos modelos teóricos clássicos são necessárias. Que rompam com um modelo teórico que só considera a participação a partir dos partidos e dos mecanismos legais, e só aí encaixa a participação das mulheres, e, geralmente, de forma descritiva, deixando de fora as lutas cotidianas que as mulheres fazem desde as aldeias mais remotas até as grandes manifestações mundiais, essas ficam fora do escopo. Além disso, muitas vezes, as mulheres aparecem como personagens, ou como números, que ocupam lugar nas estruturas políticas, mas as análises não dão conta das relações sociais e das estruturas que sustentam a desigualdade apontada nos próprios dados. São dados e estudos importantes, claro, mas insuficientes para sustentar as necessidades de um projeto político de emancipação das mulheres. A produção de conhecimento é uma dimensão fundamental do poder. Aí também pode haver enquadramento ou transformação. É necessário construir categorias de análises que tornem mais inteligíveis os processos políticos conduzidos pelo movimento de mulheres e outros movimentos sociais, os quais articulam outras formas de organização e participação, como também produzem visões críticas à forma hegemônica de exercício do poder político.
A filósofa Françoise Collin (1992) assinala que, de uma maneira geral, o acesso dos/as recém chegados/as à cidadania implicará sempre na redefinição da cidadania, ela mesma, e do espaço político-social. Segundo ela, uma entidade já constituída não pode pretender assimilar pura e simplesmente as/os recém-chegadas/os, sem se deixar questionar por elas e por eles. Concluindo dessa forma, que o partilhamento não é, jamais, puramente adicional. Isto é, que a história não se realiza por simples adesão.
No Brasil, o movimento feminista contemporâneo se organizou ainda sob o regime militar, e está, desde a sua origem, envolvido no processo de democratização do país. Neste contexto, o movimento feminista se situou, historicamente, no campo da esquerda. Isso significa que sua perspectiva de luta sempre deve ser a da transformação social. Considero que o feminismo foi e deve continuar sendo revolucionário no combate à ordem dominante e avançar na reflexão crítica que pode orientar as estratégias políticas para o enfrentamento dessa ordem.
Parece que ainda não houve o tempo, mas as condições necessárias parece que estão dadas, para que as feministas se situem frente aos novos desafios da democracia política, para daí pensar a relação entre a prática revolucionária de origem – antagonista e insurreicional – e a prática de confronto e negociação dos conflitos na esfera pública, como um processo que articula as várias formas de democracia política. O desafio é manter a radicalidade ao produzir reformas.
Acredito que a prática feminista pode aportar uma grande contribuição ao clássico debate sobre a relação entre reforma e revolução, pois desde a origem levou para essa discussão uma contribuição importante. Por exemplo, sempre apontou as insuficiências e desvios da democracia representativa e sempre mostrou apego à democracia direta. A questão do poder, que na origem foi negada por uma grande maioria de correntes feministas, enquanto aspiração ou como instrumento da prática política, hoje deve estar, e está, sendo repensada, mas, deve ser repensada criticamente, e segundo minha visão, sem aceitar os meios de lidar com poder que predominam no sistema político em vigor.
Collin, Françoise, La démocratie est-elle démocratique? in; La Societés des Femmes, Les cahiers du Grif, Bruxelles, Editions Complexe, 1992
Varikas, Eleni; Refundar ou Reacomodar a Democracia? Reflexões críticas acerca da paridade entre os sexos. In: Estudos Feministas, N.1/96, IFCS/UFRJ, Rio de Janeiro, 1996
[1] Palestra proferida no Seminário “Democratizar a democracia: a reforma política e a participação das mulheres” Brasília, 27 e 28 de março de 2007. Promoção: Fundação Perseu Abramo e Fundação Friedrich Ebert Organização: Secretaria Nacional de Mulheres do PT, Marcha Mundial de Mulheres, Articulação de Mulheres Brasileiras e Secretaria Nacional da Mulher Trabalhadora /CUT.
Reforma Política ampla, democrática e participativa
Muito se tem falado — e não é de hoje — em reformas no Brasil. Mas pouco se fala sobre a natureza dessas reformas. Geralmente as reformas são apresentadas como a solução de todos os problemas e mazelas do país. Foi assim com a reforma da previdência, é assim com a reforma tributária. Não é diferente com a chamada reforma política. Ficamos com a sensação de que se a reforma que “está na moda” não for feita, o Brasil corre o risco de acabar na próxima semana.
Antes de mais nada precisamos analisar a natureza de cada reforma. Por exemplo, na reforma da previdência não houve a preocupação em como incluir os milhões de brasileiros e brasileiras que estão fora do sistema previdenciário e sim em uma reforma para tirar direitos conquistados pela luta dos/as trabalhadores/as, desmontar o conceito de seguridade social da Constituição de 1988 (saúde, previdência e assistência social) e, principalmente, em como desmontar o sistema público de previdência e incluir as regras de mercado numa política de proteção social. A reforma tributaria não é pensada com o objetivo de tornar o sistema tributário brasileiro mais justo e sim equalizar as disputas das três esferas de governo pelos recursos. O sistema tributário brasileiro está entre os mais injustos do mundo, pois faz com que quem ganha menos contribua mais e quem ganha mais contribua menos, ferindo o princípio constitucional da progressividade das tributações (quem mais ganha, contribui mais).
Com a reforma política não é diferente. Ela é vista como uma forma de equalizar as disputas de poder pelos grandes partidos. Por isso, tem um caráter apenas da reforma do sistema eleitoral e não a reforma de quem exerce o poder, de como se exerce o poder, em nome de quem se exerce o poder e quais os mecanismos que se tem de controlar o poder. Enfim, a reforma política deve ser a reforma do poder e não apenas do sistema eleitoral (que é conseqüência do sistema político que ai temos).
Tradicionalmente, no Brasil, a reforma política entra na pauta do Congresso e do Executivo em momentos de escândalos, crises políticas ou de fragilidade da hegemonia do grupo que está no poder. Foi assim na ditadura militar quando o poder da Arena foi ameaçado pelo MDB que podia ter a maioria parlamentar. O poder de plantão resolveu a questão conseguindo novos deputados e senadores arenistas, através da criação de novos estados, seja por desmembramento dos existentes ou transformação dos territórios em estados. Sem falar nos senadores biônicos.
Na verdade o que está sendo chamado de reforma política não passa de uma reforma do sistema eleitoral, num momento de forte questionamento e desgaste da vida e da atuação política partidária.
A verdadeira reforma política não se reduz a reforma do voto, dos partidos ou da representação, mas sim a reforma das instituições políticas e do Estado, criando uma nova forma de se exercer o poder e com mecanismos de controle público do Estado. A verdadeira reforma política devia partir da necessidade da ampliação dos espaços de participação cidadã e dos sujeitos politicos, isso é, deveríamos estar discutindo a democracia representativa, combinado com a democracia participativa e direta. Enfim um novo modelo de democracia, que reconheça as diferentes formas de se fazer política e os seus diferentes sujeitos.
José Antônio Moroni, membro do colegiado de gestão do Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos), da diretoria executiva nacional da ABONG (Associação Brasileira de ONGs) e do CDES (Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social).
A crise financeira e os desafios da cidadania
O capitalismo vivencia mais uma crise de proporções globais e comparada por muitos à ocorrida na década de 1930. A crise teve origem na festa do crédito imobiliário e no refinanciamento dos empréstimos hipotecários norte-americanos sem lastro no mundo real, atingindo inicialmente bancos de investimentos, seguradoras e os mercados financeiros, para logo a seguir se espalhar para os demais setores da economia dos EUA e já atingindo a Europa e o Japão.
Entre os desdobramentos previstos para a economia global, encontra-se uma recessão de tamanho ainda indefinido, mas que cobrará seu preço nos níveis de emprego e renda. As medidas tomadas nos EUA e na Europa no sentido de devolver a confiança aos mercados através de massivas injeções de recursos públicos no sistema financeiro podem vir a reduzir o tombo e estabilizar os solavancos das últimas semanas, mas o paradigma que formou a festa financeira das últimas décadas se encontra irremediavelmente abalado. Alguns chegam a falar, com certo otimismo, em fim do neoliberalismo.
A origem da crise está na bolha especulativa dos mercados financeiros, que desde meados dos 1970, sob a égide da globalização financeira e do neoliberalismo estão absolutamente sem regulação e controle do Estado. Algumas das operações são muito próximas à fraude, atraindo aplicadores para produtos financeiros de alta rentabilidade, mas descolados do mundo real. Esse processo criou um intenso movimento especulativo que se ancorava em uma base “podre” destinada cedo ou tarde a cair, como é o caso do mercado das chamadas “subprimes”, ou seja, ações originadas nas hipotecas imobiliárias com baixa cobertura real, disseminadas na última década sem transparência em relação aos riscos nelas contidos.
Mas o setor que sofreu impacto imediato, especialmente nos EUA, foi o da seguridade social, na medida em que parte importante da proteção social e da garantia de direitos no capitalismo contemporâneo foi transformada em um “produto financeiro” colocado à venda no mercado pelos fundos de pensão. Esta é uma das conseqüências diretas das reformas liberalizantes no sistema de proteção social. A privatização dos benefícios da seguridade social se constituiu, afinal, em um dos principais corolários do modelo neoliberal, tornando as aposentadorias de milhares de trabalhadores refém das crises financeiras internacionais.
O momento é, sem dúvida, de muitos desafios e também de oportunidades para se estabelecer novos marcos regulatórios e mecanismos multilaterais de governança do sistema financeiro global. A ladainha ideológica de uma auto-regulação dos mercados foi por água abaixo, mas os parâmetros do que teremos no lugar ainda não estão definidos. A transição de poder nos EUA e as duas candidaturas em disputa também deixa entrever visões bastante distintas sobre o papel do estado. Tudo isso deverá ter um peso significativo após a estabilização da situação. No Brasil, o governo brasileiro, apesar da retórica de avestruz adotada inicialmente, tomou finalmente medidas para liberar mais recursos ao sistema bancário, flexibilizando as exigências dos depósitos compulsórios das instituições financeiras, entre elas a edição, em 7/10/2008, da Medida Provisória 442, que “dispõe sobre operações de redesconto pelo Banco Central do Brasil e autoriza a emissão da Letra de Arrendamento Mercantil”. Na prática a MP é uma espécie de “cheque em branco” para autoridades monetárias assegurarem níveis adequados de liquidez no sistema financeiro, por meio de operações de redesconto em condições especiais aos bancos, aceitando como pagamento os ativos das instituições financeiras, sendo os possíveis prejuízos apropriados no balanço do BC. A rapidez e agilidade com que o orçamento público brasileiro é usado para socorrer o mercado financeiro é uma amostra da influência dos bancos no domínio da agenda econômica do nosso país.
Por outro lado, este cenário também traz imensos desafios para organizações da sociedade civil e movimentos sociais brasileiros comprometidos historicamente com a defesa de direitos. Um primeiro grande desafio é a reafirmação e a ampliação dos direitos sociais e humanos previstos na constituição e na legislação infraconstitucional. Como sempre acontece em momentos de aperto, cresce o coro em defesa de mais cortes de gastos públicos com risco de impacto nas áreas essenciais à garantia de direitos fundamentais. É essencial que esta discussão seja feita à luz do dia e com a consciência de que o Brasil deve avançar e não retroceder nas políticas de redução das desigualdades, em especial aquelas voltadas para as mulheres e os negros.
Este é também momento de defesa radical da democracia na esfera econômica. Torna-se necessário assegurar a participação da sociedade nas definições e nas decisões sobre os rumos das políticas econômicas. Um bom caminho é ampliar o Conselho Monetário Nacional (CMN), que decide sobre as políticas monetária, cambial e de crédito e regulamenta a formação, funcionamento e fiscalização das instituições financeiras. O CMN também decide as metas para a inflação que é base para a decisão do Banco Central sobre a da taxa básica de juros da economia. O Conselho já chegou a ter 28 representantes, em 1987, mas a composição atual limita-se aos três representantes do governo (Ministério da Fazenda, Ministério do Planejamento e Banco Central).
Finalmente, este é o momento de repensar um modelo econômico que se mostra generoso com a especulação financeira e insensível aos impactos sociais e ambientais decorrentes da lógica implacável do lucro a qualquer custo. O controle social democrático e o papel do estado sobre os gastos públicos precisam ser fortalecidos.
* Por Átila Roque, do Colegiado de Gestão do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e Evilásio Salvador, Assessor de Política Fiscal e Orçamentária do Inesc.
PAC ou IIRSA Nacional?
O discurso de lançamento do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) feito pelo presidente Lula — prometendo um crescimento sustentável (não usou esta palavra) de pelo menos 5% ao ano do Produto Interno Bruto (PIB) e afirmar que o desenvolvimento não se deve realizar em prejuízo da democracia — não foiunanimidade entre as organizações da sociedade civil. Tanto as entidades empresariais como as organizações sindicais apresentaram ressalvas.
O governo prevê investimentos da ordem de R$ 503,9 bilhões em quatro anos. A maior parte virá das empresas estatais (R$ 436 bilhões). Para 2007, há um montante de R$ 77 bilhões, em investimentos públicos, no orçamento da União, sendo R$ 49 bilhões de responsabilidade das empresas estatais e outros R$ 26 bilhões de aplicação do governo (orçamento fiscal e da seguridade social). É um projeto que conta, em grande parte, com recursos da iniciativa privada e a forte utilização das Parcerias Público-Privadas (PPPs). Até o momento, as PPPs não foram apropriadas pela iniciativa privada como um bom negócio. Há, também, uma série de restrições dos segmentos de esquerda, inclusive internacional.
Avaliamos que o programa está sendo implementado no sentido de auxiliar a execução de diversos projetos que estão programados no âmbito da Iniciativa de Infra-estrutura Sul-americana. É, digamos, a parte nacional da IIRSA. Alguns cientistas políticos estão indicando que o PAC pode indicar uma retomada do modelo no qual o Estado é provedor do desenvolvimento. Dessa forma, estaria sinalizando com a volta do Estado interventor na economia. Mas, o PAC pode entrar pelo caminho do insustentável e contradizer todos esses pareceres caso decisões, como as do Comitê de Política Monetária (COPOM) se multipliquem. A decisão do COPOM de diminuir o ritmo de redução da taxa de juros SELIC foi uma ducha de água fria no clima criado pelo presidente Lula a favor do crescimento do país Ao fixar a taxa em 13%, reduzindo somente 0,25%, o Comitê diz a quais interesse está servindo. Num clima de busca de apoio ao setor produtivo para investir mais e gerar mais empregos, reforçar os interesses do capital financeiro e especulativo é no mínimo um contra senso. É a luta da usura contra a produção, contra o crescimento.
O PAC foi apresentado não como um programa de governo, mas como um programa de Estado. Ambiciona-se que seus marcos não se delimitem somente a um mandato governamental, mas que se estendam por um largo tempo. Tanto o ministro da Fazenda, Guido Mantega, como a da Casa Civil, Dilma Rousset, se expressaram favoráveis à necessidade de o governo deixar um portfólio de projetos aos governos futuros.
O presidente Lula disse que o país deve acelerar seu crescimento, mas com responsabilidade e não como a música da jovem guarda em que entrávamos a 120 por hora na Rua Augusta. Naqueles dias, recordo, parávamos a quatro dedos da vitrine ou do desastre (mesmo nas curvas da estrada de Santos). Esperamos que o governo também possua bons freios para proteger, em especial, os segmentos mais vulneráveis da população. Pensamos nas populações indígenas, quilombolas, ribeirinhos e agricultores familiares e camponeses que sofrerão diretamente o impacto das obras programadas.
Neste sentido, o PAC não aborda nenhum programa de desconcentração da terra, em especial no Norte onde se concentram imensas áreas griladas. Onde a violência do latifúndio faz do trabalhador livre, escravo. Determina quem vive e quem morre. Sem nenhuma medida de desconcentração de poder a oligarquia agrária vai se apropriar, em grande parte dos R$ 8,1 bilhões que serão aplicados na melhoria e construção de estradas. As terras dos latifúndios serão valorizadas e o que era improdutivo passará a valer moeda corrente no mercado de capitais.
O PAC está divido em cinco blocos: as medidas de investimento em infra-estrutura, de estímulo ao crédito e financiamento, investimento institucional, desoneração tributária e medidas fiscais de longo prazo. O portfólio de infra-estrutura é o mais importante para o governo. Por isso, a sociedade civil e o Ministério Público devem se manter alerta, pois as obras, em geral, envolvem um alto grau de risco de corrupção, malversação e desvio de recursos públicos. O ministro Mantega expôs a possibilidade de o governo investir cerca de R$ 24 bilhões neste setor — equivalente a 1% do PIB. Se com isso o governo espera alavancar o PAC, imagine o quanto o país poderia avançar se investisse os R$ 166 bilhões que serão pagos de juros e serviço da dívida pública, este ano.
Dos outros blocos do programa, o que causa maior preocupação é o que diz respeito às leis ambientais. O presidente Lula fez uma declaração infeliz. Afirmou que as atuais leis ambientais estavam travando o desenvolvimento. O ministro Mantega, em sua exposição, reforçou tal declaração afirmando ser necessário melhorar o marco regulatório das leis ambientais para “abrir caminhos para que o investimento possa se realizar”. Esperamos que este sentimento bandeirante de “abrir caminhos” não ocorra com ônus ambiental e dos recursos naturais.
A apresentação do PAC como um programa de Estado é uma iniciativa importante. Lamentamos que ele tenha vindo à luz somente no segundo mandato e não no primeiro, onde as possibilidades de avançar seriam mais realistas. Além de observar a falta de ritmo política do governo, questionamos se os próximos governos terão a mesma avaliação das necessidades conjunturais.
Acreditamos que as organizações da sociedade civil do campo democrático se alinham à necessidade de um projeto de governo que impulsione o desenvolvimento nacional com justiça social. Avaliamos que a manutenção do crescimento do país em índices irrisórios, como os das duas últimas décadas, promoverá um acúmulo insustentável de injustiças sociais e de assimetrias regionais. Neste contexto, quem está sustentando os déficits nacionais são as classes economicamente menos favorecidas e as desigualdades regionais estão se ampliando em vez de diminuir as suas margens.
Aplaudimos a iniciativa do governo de dizer quais são os seus planos para os quatro anos de mandato, aonde vai jogar força e no que vai investir. Mas, é importante que as organizações sociais mantenham suas antenas ligadas, atentas à fiscalização e ao monitoramente dos projetos do PAC. Seria muito importante que os coletivos sociais promovessem avaliações constantes do desenvolvimento do PAC para manter a sociedade informada e mobilizada.
Estamos ante parlamentares que falam sobre propostas que não leram, com o intuito de preservar a usurpação da soberania popular
NA EDIÇÃO de maio de 1811 do “Correio Braziliense”, Hipólito da Costa fez a seguinte profissão de fé: “Ninguém deseja mais do que nós as reformas; mas ninguém aborrece mais do que nós que essas reformas sejam feitas pelo povo; pois conhecemos as más conseqüências desse modo de reformar; desejamos as reformas, mas feitas pelo governo; e urgimos que o governo as deve fazer enquanto é tempo, para que se evite serem feitas pelo povo”. O grande jornalista teve o mérito de dizer sem eufemismos o que pensava. Hoje, quase dois séculos depois que tais palavras foram escritas, ninguém no meio político ousa dizer-se de direita ou antidemocrata, mas quase todos continuam plenamente convencidos de que o povo é, por natureza, incapaz de exercer a soberania. Esta pertence, por direito imemorial, àquele grupo que, por consolidado abuso de linguagem, insistimos em denominar “a elite”. Admite-se, quando muito, que o povo escolha periodicamente os seus tutores ou curadores. Mas a esmagadora maioria destes, como ninguém ignora, exerce o encargo no seu próprio interesse e benefício. A Constituição Federal de 1988 teve o grande mérito de iniciar o processo de desmontagem desse esquema cínico e perverso, ao afirmar, logo no primeiro de seus artigos, que o povo pode e deve exercer o seu poder soberano diretamente, e não apenas pela eleição de mandatários. Em conseqüência, dispôs expressamente em seu artigo 14 que o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular, tanto quanto o sufrágio eleitoral, são manifestações da soberania popular. Como era, porém, de esperar, esse mandamento constitucional foi desde logo interpretado como fórmula de retórica política, sem nenhum efeito prático. O povo pode continuar a eleger os seus autoproclamados representantes, mas dependerá sempre da autorização prévia destes para votar em plebiscitos e referendos. Foi para desfazer essa fraude oligárquica que a Ordem dos Advogados do Brasil ofereceu várias sugestões ao Congresso Nacional, prontamente transformadas em projetos de lei e propostas de emenda constitucional. Agora, com o anúncio pelo ministro Tarso Genro de que o governo federal apoiaria tais proposições, as reações negativas no Congresso não se fizeram esperar. Ouvidos por este jornal, quase todos os líderes de partidos disseram que retirar do Congresso Nacional a prerrogativa de comandar a realização de plebiscitos e referendos redundaria em concentrar mais poderes na pessoa do chefe de Estado, criando, assim, o risco de institucionalizar o “chavismo”. Sucede que, em ambos os projetos de lei originados na Ordem dos Advogados do Brasil -o de nº 4.718/2004, na Câmara, e o nº 1/2006, no Senado, este apresentado pelos eminentes senadores Eduardo Suplicy e Pedro Simon-, o presidente da República não tem poder de iniciativa nessa matéria. Os plebiscitos e referendos só poderão ser convocados por iniciativa do próprio povo ou de um terço dos deputados ou senadores (o que reforça sobremaneira o poder de fogo da minoria parlamentar contra o rolo compressor governamental). Insinuou-se, também, que, pelo sistema proposto, o povo poderia decidir diretamente em plebiscito a reeleição indefinida do presidente da República. Insinuação maliciosa e falsa, pois, em ambos os projetos de lei, ao contrário do que dispõe a vigente lei nº 9.709, de 1998, as matérias suscetíveis de decisão em plebiscitos são taxativamente enumeradas -e entre elas não consta a reeleição do chefe de Estado. Outros, ainda, declararam-se contrários ao “recall”, tal como proposto, porque ele atingiria tão-só os parlamentares, poupando o presidente da República. Mais uma inverdade: na proposta de emenda constitucional nº 73/2005, em tramitação no Senado, a revogação popular de mandatos eletivos diz respeito não só aos membros do Congresso Nacional mas também ao presidente da República. Aliás, é sempre bom lembrar que esses institutos estão longe de ser novidades revolucionárias. A Suíça conhece e pratica com freqüência o referendo desde o século 15. O “recall” existe em 18 Estados da Federação norte-americana, em alguns deles há quase um século. Em suma, estamos diante de parlamentares que se pronunciam sobre propostas que não leram, com o mal disfarçado objetivo de preservar uma inconfessável usurpação da soberania popular.
FÁBIO KONDER COMPARATO, 70, advogado, professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP, é presidente da Comissão de Defesa da República e da Democracia do Conselho Federal da OAB e fundador e diretor da Escola de Governo, em São Paulo. É autor, entre outras obras, de “A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos”.
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