Silvia Alvarez, Autor em INESC - Página 15 de 22

Pasta de Damares tem R$ 394 mi. Como a ministra vai utilizar esse recurso?

Muito se tem publicado sobre os cortes orçamentários de políticas para as mulheres. O Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) tem monitorado a alocação de recursos para esta política desde o início do período de austeridade fiscal, intensificado com o Teto de Gastos. Em comparação com o recurso autorizado em 2015, a política de mulheres sofreu redução de 82% em 2018.

Em 2019, o recurso autorizado para o Programa 2016: Políticas para as Mulheres: Promoção da Igualdade e Enfrentamento a Violência foi de R$ 62,5 bilhões. A execução foi de R$ 46 milhões, sendo cerca de R$ 28 milhões em recursos pagos e R$ 18 milhões de restos a pagar, ou seja, recursos comprometidos com contratos de anos anteriores pagos em 2019.

 

Em 2020, o recurso autorizado para o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MDH) foi de R$394 milhões: deste recurso, R$96 milhões é alocado especificamente para as mulheres (24,43% do total). O que isso significa, na prática, para as brasileiras? O Plano Plurianual (PPA) de Bolsonaro e declarações e medidas adotadas pela ministra Damares Alves tem nos dado algumas pistas.

O novo PPA

O novo Plano PluriAnual 2020-2023, elaborado pelo Governo do presidente Jair Bolsonaro, excluiu o Programa 2016: Políticas para as Mulheres: Promoção da Igualdade e Enfrentamento a Violência, e criou o Programa 5034: Proteção à Vida, Fortalecimento da Família, Promoção e Defesa dos Direitos Humanos para Todos. Se o Programa 2016 era destinado somente às mulheres, o novo Programa 5034 é um guarda-chuva para execução de políticas do Ministério, hoje chefiado por Damares Alves, destinadas às mulheres, aos idosos, e pessoas com deficiência.

O PPA é o instrumento de planejamento e organização da ação pública e expressa as escolhas de um governo. Não é coincidência o fato de as palavras racismo, negros e quilombolas terem sido excluídas deste documento em sua versão bolsonarista, adotando uma visão “direitos humanos para humanos direitos”, tão difundida pelo grupo político da extrema direita. Enterram-se três décadas de construção das políticas de igualdade racial e promoção dos direitos dos povos e comunidades tradicionais.

Em relação às mulheres, a construção do novo PPA ignorou o II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (PNPM), construído por meio de quatro conferências nacionais, com participação de mais de 2 mil mulheres em cada edição. Não é possível visualizar as prioridades do II PNPM no PPA 2020-2023, e este tampouco apresenta metas e indicadores para monitorar o alcance dos resultados.

No PPA 2020-2023, o Programa 5034 tem o seguinte objetivo: “Objetivo: 1179 – Ampliar o acesso e o alcance das políticas de direitos, com foco no fortalecimento da família, por meio da melhoria da qualidade dos serviços de promoção e proteção da vida, desde a concepção, da mulher, da família e dos direitos humanos para todos”.

Chama a atenção a exclusão da questão da violência contra as mulheres, por um lado, e a inclusão da “proteção da vida desde a concepção”, por outro. O recado é bastante claro em relação ao tipo de política para as mulheres que será colocado em curso até 2022. Ao retirar a violência do documento que planeja a política pública para as mulheres, focando somente na família, o governo esconde o fato comprovado de que a violência doméstica é sofrida por milhares de mulheres e meninas dentro de suas próprias casas, na maioria dos casos pelos próprios maridos e parentes.

O orçamento no país do fundamentalismo religioso

A Ministra Damares Alves não esconde sua predileção pelo Estado religioso: em recente entrevista, defendeu a “ocupação da nação pelas igrejas”, e afirmou que “Temos falta de casas de abrigo para mulheres vítimas de violência. Por que essas igrejas não fazem uma parceria conosco, cedendo o seu espaço físico para abrigar essas mulheres?”. Em 2019, dos quase R$ 20 milhões autorizados para a construção das casas da mulher brasileira, nenhum recurso foi gasto. Também não houve recurso autorizado para o Disque 180 e o Disque 100, canais voltados, respectivamente, para denúncias de violência contra as mulheres e violação de direitos humanos.

Em 2020, isso muda: ainda que o PPA 2020-2023 invisibilize a questão da violência, o MDH priorizou o tema no orçamento. Dos mais de R$96 milhões autorizados em 2020, voltados especificamente para as mulheres, quase R$25 milhões estão carimbados para “Políticas de Igualdade e Enfrentamento à Violência”; mais de R$71 milhões são para a “Construção da Casa da Mulher Brasileira e de Centros de Atendimento às Mulheres em Fronteira Seca”; e mais de R$ 35 milhões para os dois canais de atendimento. Estas três ações somam cerca de R$132 milhões em recursos.

Se o problema de recursos, então, parece estar superado – pelo menos até o primeiro decreto de reprogramação orçamentária, onde o governo pode decidir contingenciar uma parte destes recursos –, a questão passa a ser: como estas políticas serão implementadas? Será respeitado o princípio de laicidade do Estado nos atendimentos, equipamentos e serviços? A pertinência do questionamento está no fato de que o governo se furtou de apresentar o desenho da política no PPA 2020-2023, embora esteja publicando decretos para regular algumas iniciativas.

É o caso da Casa da Mulher Brasileira, serviço que visa ser a porta de entrada da política pública para mulheres em situação de vulnerabilidade extrema, cujas diretrizes para os convênios estão publicadas no site do MDH, e tem regulamentação no Decreto nº10.112 de 12 de novembro de 2019, que cria o Programa Mulher Segura e Protegida.

Chama a atenção a presença de salas para reconhecimento dos agressores, presença da Polícia Militar e sala para detenção provisória.  Não está explicitado como será o funcionamento dos serviços, mas pela forma como estão organizados os espaços e equipes, trata-se de um equipamento militarizado, para atendimento tanto de mulheres (vítimas), como de homens (agressores).

Ao mesmo tempo, o PPA 2020-2023 reforça a mensagem da defesa da vida desde a concepção em um que país continua se negando a discutir o aborto como saúde pública e social, tramitando Projetos de Lei para criminalizar a interrupção de gravidez em casos de estupro, risco de vida para a mãe e anencefalia do feto, hoje permitidos. Dentro do Programa 5034, a Ação 21AQ: Proteção do Direito à Vida, teve recurso autorizado em 2020 no valor de R$41 milhões – no entanto, não há nenhum documento, até o presente momento, que apresente o desenho desta ação, ou seja, como será implementada.

A maior parte do recurso autorizado do MDH foi para a Ação 21AR – Promoção e Defesa de Direitos para Todos, no valor de R$159 milhões, sem detalhamento de como será gasto: por enquanto, o Plano Orçamentário desta ação ainda consta como “PO – 0000: Despesas Diversas”, podendo ser alterado durante o ano, mas convenhamos, é bastante recurso para ser manejado sem planejamento ou destinação específica.

Atentas e fortes!

A questão das mulheres é central na atual conjuntura política. Em 2018, principais opositoras à candidatura de Jair Bolsonaro organizaram marchas por todo o Brasil dizendo #EleNão. A motivação era baseada no fato do então deputado federal proferir falas sexistas e racistas em diversos espaços, chegando ao ponto de agredir a Deputada Maria do Rosário dizendo que não a estupraria porque ela não merecia, agressão pela qual foi condenado.

Uma vez no poder, o governo Bolsonaro, que conta com militares, olavistas e fundamentalistas religiosos, iniciou uma verdadeira cruzada para disputar a narrativa moral junto à sociedade. A Ministra Damares Alves é uma das que reza esta cartilha com maestria: se enganam os que a resumem a uma doidivanas interessada em vestir meninos de azul e meninas de rosa. Ela tem cumprido uma agenda intensa, que inclui viagens internacionais para combater a “ideologia de gênero” (como na visita à Hungria) e participação em reuniões da ONU, fortalecendo pautas conservadoras.  Sem deixar de fazer o seu trabalho no Brasil, tem ido em busca de parcerias com  estatais, setor privado e setores da igreja e campanhas para adesão aos seus programas sociais. Em 2020, ela terá 394 milhões para sua pasta, o que não é pouco, considerando o atual momento de redução do recurso para gastos sociais.

Neste 8 de março, as mulheres irão às ruas novamente levar suas pautas e demandas. Mais um compromisso se soma à nossa luta, a saber, monitorar o recurso do governo destinado às mulheres, se será executado, e por meio de que programas, ações e diretrizes. Neste cenário, o princípio da transparência e a participação da sociedade são, mais do que nunca, fundamentais.

***ERRATA***

Editamos o texto em 12/3 para corrigir uma informação. Onde se lia:

“Em 2019, o recurso foi recomposto, tendo sido autorizados quase 300 milhões para o Programa 2016: Políticas para as Mulheres: Promoção da Igualdade e Enfrentamento a Violência. No entanto, a execução foi baixíssima, menos de 10%, sendo cerca de 28 milhões em recursos pagos e 46 milhões de restos a pagar, ou seja, recursos comprometidos com contratos de anos anteriores pagos em 2019.”

O correto é:

“Em 2019, o recurso autorizado para o Programa 2016: Políticas para as Mulheres: Promoção da Igualdade e Enfrentamento a Violência foi de R$ 62,5 bilhões. A execução foi de R$ 46 milhões, sendo cerca de R$ 28 milhões em recursos pagos e R$ 18 milhões de restos a pagar, ou seja, recursos comprometidos com contratos de anos anteriores pagos em 2019.”

Orçamento impositivo: briga entre Congresso e Planalto não enfrenta crise econômica

Nas últimas semanas, o orçamento público movimentou o Planalto e o Congresso Nacional. No centro do debate estava o veto do presidente Bolsonaro às mudanças realizadas pelo Legislativo na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2020, que obrigavam o governo federal a liberar os recursos para emendas parlamentares, antes submetidos às negociações com o Executivo.

Os ânimos se acirraram com a declaração do general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência, afirmando que os parlamentares estão fazendo “chantagem” com o governo. Além disso, manifestações contra o Congresso, apoiadas pelo presidente Bolsonaro, foram convocadas para o próximo dia 15 de março (leia a nota do Inesc em repúdio).

Historicamente, as emendas parlamentares, que são uma parte do orçamento federal destinado ao Legislativo, foram utilizadas pelo Executivo para a compra de votos no parlamento. Para citar um exemplo, um dia antes da votação da previdência, em 2019, o governo federal liberou 4,3 bilhões em emendas. A impositividade das emendas de comissão e do relator-geral representam R$ 30 bilhões do orçamento que passariam às mãos do Legislativo, diminuindo o espaço do Executivo para realizar tais manobras políticas.

Essa batalha entre os poderes pelo orçamento acarreta discussões profundas sobre a política brasileira, como a questão da separação de poderes. Contudo, o que não tem aparecido nos debates é o papel fundamental do orçamento público: a garantia de direitos. O Inesc defende que o orçamento público, longe de ser um mero palco da disputa política entre Executivo e Legislativo, deve refletir a diversidade da população brasileira e garantir qualidade de vida para toda a população, especialmente em seus setores mais vulneráveis.

O processo de apropriação do orçamento pelo Legislativo

Em cada Lei Orçamentária Anual (LOA), os congressistas, por meio das emendas parlamentares, garantem uma parcela do orçamento para executar programas e ações presentes na LOA, de acordo com seus interesses. Todos os parlamentares possuem o mesmo valor para execução de emendas.

Em sua criação, essas emendas possuíam caráter autorizativo, como a princípio é o conjunto do nosso orçamento público. Nos últimos anos, porém, o Legislativo foi se apropriando do orçamento da União, ao transformar o caráter das emendas parlamentares de autorizativo para obrigatório, independente das negociações com o Executivo. Em 2015, o Congresso aprovou uma emenda na Constituição (86/2015) tornando obrigatória a execução das emendas individuais, no valor de 1,2% da receita corrente líquida (RCL)[1] do ano anterior. Metade desse valor, porém, deve ser direcionado à área da Saúde, com objetivo de garantir o gasto mínimo constitucional nessa área.

Em 2019, o Legislativo estabeleceu, por outra emenda constitucional  (nº 100/2019), que as emendas de bancadas também deveriam ser obrigatoriamente pagas. O valor fixado a partir de 2021 é de 1% da RCL de 2019, corrigido anualmente pela inflação – para 2020, o valor é de 0,8% da RCL. Outra movimentação importante em 2019 foi a aprovação da Emenda Constitucional (105/2019), que autorizou a transferência direta a estados, municípios e ao Distrito Federal de recursos de emendas parlamentares individuais, flexibilizando e facilitando o acesso a esses montantes.

Por fim, ao aprovar a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) em 2020, o Congresso Nacional estendeu, no final do ano passado, essa obrigatoriedade de execução para todas as emendas parlamentares, incluindo as do relator-geral e as de comissão. Além disso, a mudança fornece um tratamento particular às emendas do relator-geral, que terão de ser empenhadas em no máximo três meses.

Entendendo a disputa pelo orçamento impositivo

A partir dessas ações transcorridas nos últimos cinco anos, aumentou o valor gasto com emendas parlamentares, e a aprovação da LDO 2020 seria a “vitória final”, pois as emendas de relator-geral são as de valor mais expressivo.

Porém, com esse último movimento do Congresso na LDO 2020, o Executivo se mobilizou, vetando a mudança legislativa e alegando que o Congresso estaria controlando parcela demasiada do orçamento público, e, assim, diminuindo o poder do Executivo em definir os gastos do Orçamento da União.

Para além de uma disputa política pontual, esse debate nos leva a questionamentos mais profundos sobre o papel do orçamento público na economia e na promoção de gastos sociais e direitos humanos.  Veremos alguns deles a seguir.

Despesas obrigatórias são sempre negativas?

As despesas do governo se dividem entre obrigatórias e discricionárias. As obrigatórias são aquelas que devem ocorrer independente das vontades do governo, sob risco do Executivo ser processado judicialmente ou ser alvo de um processo de impedimento. O gasto com a Previdência Social e o pagamento de salários aos funcionários públicos são alguns dos exemplos. Receitas vinculadas, por sua vez, ao destinarem recursos a gastos específicos, também são consideradas gastos obrigatórios.

As despesas discricionárias, por sua vez, são aquelas em que o governo tem margem de manobra, podendo alocar recursos anualmente a partir da LOA. Todos os investimentos, por exemplo, são despesas discricionárias – assim como eram todas as emendas antes de 2015. Esse tipo de despesa é o único que pode ser contingenciado, isso é, congelado ao longo do ano pelo Executivo para o ajuste às receitas disponíveis ou para o cumprimento de metas fiscais.

Segundo o Instituto Fiscal Independente, 94% do orçamento para 2020 é de despesas obrigatórias,  sobrando apenas 6% (R$ 126,1 bilhões) para serem manejados. Além disso, os R$ 126,1 bilhões contém um volume relevante de gastos predestinados, como os alocados à Saúde nas emendas individuais. É por isso que os R$ 30 bilhões das emendas do relator-geral, que a partir de 2020 passariam a ser gastos obrigatórios, representam tanto para o orçamento público.

O argumento que mais aparece na mídia e na fala dos políticos é a negatividade dessa rigidez orçamentária, que impediria o gasto com investimentos e a imposição das vontades do executivo na alocação orçamentária. De fato, a retomada dos investimentos públicos é fundamental para o crescimento econômico, e dado que a participação de despesas obrigatórias em relação ao Produto Interno Bruto (PIB) saltou de 89% para 95,4% entre 2010 a 2018, temos um movimento crescente no sentido dessa rigidez.

Esse discurso, porém, abre espaço para medidas radicais e contrárias à justiça fiscal[2]. Isso porque o objetivo primordial do governo com a manutenção das despesas discricionárias é a utilização dos contingenciamentos para o cumprimento das metas fiscais do governo, como o Teto dos Gastos, e não a garantia de direitos.

Por exemplo, as soluções apontadas pelas PECs enviadas por Guedes ao Senado são reducionistas e mantém os privilégios da elite burocrática brasileira. A extinção dos fundos pode ser o caso mais emblemático: em vez de uma revisão abrangente desses recursos, em prol da manutenção daqueles fundamentais para a garantia de direitos, o proposto é a extinção total de todos os fundos não-constitucionais. A produção audiovisual e o desenvolvimento científico e tecnológico são algumas das áreas que serão fortemente afetadas pela extinção de seus respectivos fundos, prejudicando os direitos à cultura e à educação.

As obrigações e vinculações orçamentárias são, em parte, conquistas históricas em prol da garantia de direitos. Os mínimos constitucionais para a saúde e a educação e a criação de contribuições para a salvaguarda da Seguridade Social[3] são reivindicações da sociedade que agora estão ameaçadas pelo discurso simplório de necessidade de redução das despesas obrigatórias.

São necessários, portanto, debates aprofundados sobre o que deve ser gasto obrigatório no orçamento público, com foco na garantia de direitos. Além disso, precisamos de mecanismos eficazes de participação popular, com objetivo de garantir que as prioridades da sociedade estejam no orçamento público, independente de quem o execute, seja Executivo ou Legislativo. No caso específico das emendas parlamentares, portanto, devemos nos perguntar se a obrigação de execução das emendas parlamentares é positiva ou não na ótica da garantia de direitos.

Qual deve ser o papel das emendas parlamentares?

Tradicionalmente, as emendas parlamentares surgiram da necessidade dos deputados e senadores garantirem recursos para seus redutos eleitorais. Os congressistas defendem as emendas ao analisá-las como polos geradores de resultados na ponta. Seu novo caráter impositivo seria, portanto, uma evolução federativa, ao retirar o efeito “toma-lá-dá-cá” das emendas e fortalecê-las como gastos prioritários e obrigatórios do governo federal.

A defesa das emendas parlamentares abre, ainda, uma discussão sobre a divisão de poderes. Adotamos atualmente no Brasil o sistema presidencialista, que considera que o Executivo é, por essência, o executor de políticas públicas, após a aprovação de seus gastos pelo Legislativo. Sendo assim, a imposição das emendas parlamentares seria um desvio dessa divisão, pois o Legislativo passa a deter um controle expressivo de recursos.

Por outro lado, essa movimentação pode ser interpretada como um encolhimento das atribuições do Legislativo, pois direcionaria os esforços parlamentares apenas para a execução de suas emendas. Na análise do consultor do senado Fernando Moutinho: “o Congresso Nacional deveria estar decidindo se vai alocar R$ 5 bilhões para o submarino nuclear ou R$ 2 bilhões para contribuições às Nações Unidas. Se ele se autolimita às emendas, está abrindo mão de decidir sobre 90% para ficar com 1%. Não tem como não achar que tem uma motivação clientelista”.

No foco na garantia de direitos, o ponto principal que devemos analisar, porém, é como as emendas estão sendo gastas. De acordo com matéria do jornal Os Fatos, de 2017 a 2019, a maioria das verbas foram alocadas em saúde, urbanismo, educação, transporte e segurança pública. O “Fortalecimento do SUS” foi o programa orçamentário que recebeu o maior valor em emendas nesse período. Um relatório recente do TCU, entretanto, analisou as emendas entre 2014 e 2017 e concluiu que os recursos não contribuem para melhorar a vida das pessoas, pois as necessidades reais da população são ignoradas em prol de financiamentos a demandas imediatas e a eventos e outras ações de visibilidade do parlamentar. Nesse sentido, o aumento do poder do Congresso na alocação de recursos não seria positivo para a garantia de direitos.

Deixar toda a decisão de gasto para o Executivo, porém, não é a solução para a ineficácia do gasto das emendas parlamentares. O Legislativo tem um poder de representatividade próprio, que deve aparecer nas decisões de gasto, e nada garante que o gasto de um poder é melhor que o do outro. É necessária, desse modo, uma revisão radical das nossas políticas fiscais, em prol da justiça social e da garantia de direitos humanos.

Para além das emendas: como direcionar o orçamento para a garantia de direitos?

A briga por uma parcela do orçamento pequena, mas crucial, para além das questões discutidas aqui, reflete uma lógica do nosso sistema político brasileiro onde o povo é afastado das grandes decisões. Não temos, apesar das demandas e lutas feitas pela sociedade civil, espaços institucionais de participação na definição do orçamento. Além disso, estamos hoje em um cenário de auto amarras, onde as três regras fiscais – Teto dos Gastos, Meta de Resultado Primário e Regra de Ouro – são tão intrínsecas à gestão da política fiscal que praticamente não são questionadas.

O Executivo e o Legislativo brigam por fatias cada vez menores do orçamento públicos, pois sabem que, devido às regras fiscais, o montante de recursos disponíveis para as despesas discricionárias é anualmente reduzido. Não existe espaço para uma política fiscal propositiva, que ataque a crise econômica brasileira e garanta os recursos para gastos sociais. Estamos há cinco anos nos aprofundando no receituário de austeridade, na esperança que o mercado responda à retirada do Estado da vida das pessoas. Os recursos são direcionados à manutenção de privilégios e ao pagamento de juros, com parte do que resta sendo usado para garantir a existência de um sistema político que não representa a diversidade e a riqueza que é o povo brasileiro.

Portanto, a questão não é, como a grande mídia tenta passar, quem tem razão: Executivo ou Legislativo. Nenhum dos dois tem. O que precisamos ter como estratégia é a fundação de um novo sistema político que enfrente todas as formas de desigualdades. Precisamos de um sistema político onde realmente o povo seja o poder e que possa exercer a sua soberania. Sem isso e sem o rompimento com uma política econômica destruidora da soberania nacional, vamos ficar vendo uma eterna briga das elites por um recurso que pertence, em essência, à população.

É por isso que o Inesc propõe, em sua Metodologia Orçamento e Direitos, uma mudança radical em como enxergamos o orçamento público. Precisamos que o orçamento seja financiado com justiça social; que realize direitos de maneira progressiva e com o máximo de recursos disponíveis; e que tenha como princípios fundamentais a não-discriminação e a participação social. Nada além de vontade política impede este olhar ao orçamento público. Para isso, todas as amarras e correntes precisam ser rompidas.

[1] Receita corrente líquida é o somatório das receitas tributárias de um Governo, referentes às contribuições, patrimoniais, industriais, agropecuárias e de serviços, deduzidos os valores das transferências constitucionais.

[2] Justiça Fiscal pode ser entendida aqui como a promoção de justiça por meio da política de gasto governamental e de arrecadação tributária.

[3] A Seguridade Social é composta pela Previdência Social, Assistência Social e Saúde. Ela é financiada principalmente pela Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS).

>>> Leia também: Nota pública em defesa da democracia

 

Nota pública em defesa da democracia

O Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos) se soma às vozes que repudiam os graves ataques – insuflados pelo presidente da República – ao Congresso Nacional e ao Supremo Tribunal Federal (STF). Apesar de todas as críticas que possamos ter a estas instituições, no desenho democrático que construimos com sangue e suor, elas são caras à democracia.  Jair Bolsonaro, como presidente da República,  usa de seu poder e influência para apoiar manifestações com pautas golpistas e autoritárias, mostrando mais uma vez seu desprezo pela ordem constitucional.

A prática de fechamento do Congresso, infelizmente presente na história do Brasil, sempre resultou em retrocessos, perda de direitos políticos e aumento da corrupção. Contra isso, a Constituição Federal de 1988 prevê como crime de responsabilidade atos do presidente da República que atentem contra o livre exercício do Poder Legislativo, Judiciário, do Ministério Público e outros Poderes constitucionais das unidades da Federação (Art. 85).

Ao usar de quaisquer meios para convocar atos contra o Congresso Nacional, o presidente Jair Bolsonaro atenta também contra a soberania do voto popular. Ali estão representantes do povo brasileiro, eleitos para legislarem na casa até o final de seus mandatos, ainda que esse sistema de representação seja frágil e insuficiente.

Não podemos mais tolerar os delírios autoritários do atual governo. É hora de todo o campo democrático se unir pela defesa da democracia e dos direitos humanos. Nosso lugar é nas ruas, nas manifestações do dia 8 de Março, dia Internacional de Luta das Mulheres; do próximo dia 14, que marca os 2 anos do assassinato de Marielle, e do dia 18, em defesa dos serviços públicos e da soberania nacional.

Carnaval também é direito à cidade.

Estava almoçando em um dos tantos shoppings de Brasília, quando me dei conta de que em cerca de 30 anos nossas cidades foram totalmente privatizadas. Os espaços públicos foram fechados com agentes de segurança nas portarias, para evitar que pobres adentrem ao recinto, perturbando o conforto de quem está ali para alimentar o capitalismo, consumindo e fazendo a roda girar.

Então, se “A praça Castro Alves já foi do povo”, não é mais, os espaços públicos estão cada vez mais gentrificados.  Todavia, há uma brecha durante o ano, que permite a democratização desses locais: o carnaval. As pessoas se fantasiam e enchem praças e ruas, misturando classes e raças em um só lugar. Pois carnaval é direito à cidade, é portal aberto para os encontros. Será?

A resposta é sim e não. Há os locais sem cordas, com mistura de linguagens e mensagens. Narrativas diversas, quebra de tabus e preconceitos. Espaços livres de racismo e homolesbotransfobia, que são raqueados, pois até mesmo o carnaval é disputado. Como podemos ver nos abadás, cordas separando a pipoca, transporte público indisponível ou reduzido.

E em Brasília ainda há outro advento, a administração local acredita que apenas o Plano Piloto tem direito à folia. Pois vários e tradicionais blocos de outras partes desse quadrado não recebem fomento para saírem, mesmo que suas histórias se confundam com a própria história da cidade, como é o caso do Asé Dudu, Galinho de Brasília ou Comboio Percussivo, que ficaram sem recursos ou com recursos muito abaixo do que foi pedido. Mesmo fazendo Carnaval na cidade há mais de dez anos e oferecendo muita cultura, aprendizado e música.

Além disso, o Governo do Distrito Federal (GDF) ainda sinalizou um Carnaval que privilegiaria grupos de fora da cidade, em detrimento das tradicionais escolas de samba, como a Aruc do Cruzeiro, que ano que vem completa 60 anos. E com as incontáveis rodas de samba que podemos saborear o ano todo nos diversos pontos do quadrado, passando por Ceilândia, Candangolândia, Taguatinga e por aí vai. E ainda que o GDF tenha desistido do carnaval gourmetizado, não significou mais recursos para os de casa.

A boa notícia é que nos últimos anos, em várias cidades, incluindo Brasília, os blocos saíram do armário, vencendo a privatização dos espaços públicos e botando o bloco na rua, gingando ao som dos tambores, cuícas e chocalhos. Se ao longo do ano as ruas são propriedade dos carros, que ocupam e se apossam do que seria de todas as pessoas, no carnaval há uma ocupação alegre, festiva, combativa, que leva para fora mensagens políticas. Então, carnaval é político, é resistência.

Como promover justiça social por meio da justiça fiscal?

Hoje, 20 de fevereiro, é celebrado no mundo inteiro o dia da justiça social. A data foi criada pela ONU em 2007 para reforçar as metas da organização em prol da erradicação da fome e promoção dos direitos humanos. Esse ano, o dia tem como tema “Fechando a lacuna de desigualdades para alcançar a justiça social” e procura enfatizar a importância da igualdade de gênero e dos direitos dos povos indígenas e migrantes para a justiça social.

O que é justiça social?O Inesc, em sua luta pela justiça social e garantia de direitos humanos, enfatiza há 40 anos a importância de ter um orçamento público e um sistema tributário que reduzam as desigualdades. Isso porque as despesas orçamentárias podem aumentar ou diminuir essas disparidades, dependendo para onde estão direcionadas. Para além do financiamento do gasto público, a tributação tem como função fundamental a redistribuição de renda, o que impacta diretamente a qualidade de vida da população. Portanto, a justiça fiscal, entendida aqui como a promoção de justiça por meio da política de gasto e de arrecadação tributária, é fundamental para a justiça social.

Nesse sentido, apontamos cinco medidas para a melhoria da justiça fiscal e social no Brasil que estão nas mãos dos governos.

 

1 – Promover um sistema tributário mais justo

Cada vez mais, a necessidade de reformar nosso sistema tributário aparece no debate público. As propostas que estão em discussão no Executivo e no Legislativo, porém, não enfrentam um dos maiores problemas do Brasil: a desigualdade. O sistema tributário vigente agrava as distâncias entre pobres e ricos porque é altamente regressivo, pesando proporcionalmente mais na renda dos mais pobres.

Esse fenômeno acontece porque temos uma carga tributária muito elevada de impostos sobre o consumo em detrimento de impostos sobre a renda e o patrimônio. A explicação sobre o que é regressividade e como ela afeta as pessoas mais pobres está nos infográficos a seguir:

O que são impostos regressivos e progressivos?

 

Infográfico O problema dos impostos regressivos

 

Você também pode ver a contribuição do seu imposto para a promoção de políticas públicas na calculadora da Oxfam Brasil, “O Valor do seu Imposto”, e o peso da carga tributária por produto que você paga (com referência nos valores de São Paulo) no aplicativo “na Real”.

 

2 – Priorizar o gasto social no orçamento público

Os gastos sociais são as despesas governamentais destinadas a realizar direitos universais e gratuitos, como a saúde e a assistência social, para atender pessoas em situação de vulnerabilidade econômica, bem como gerar oportunidades de promoção social. Esses gastos podem ser feitos de duas formas: diretamente, como, por exemplo, pelo programa Bolsa Família, ou por meio de impostos, como acontece com a desoneração da cesta básica.

Essas despesas são divididas pelo Tesouro nas áreas de Saúde, Educação, Assistência Social, Habitação e Saneamento; Cultura; Trabalho; Organização Agrária; Previdência Social. Elas nem sempre promovem justiça social – os elevados benefícios de auxilio–moradia do judiciário, por exemplo, estão nesse cálculo – mas indicam as diretrizes básicas de gastos do governo nesses setores estratégicos para a promoção de justiça social. O gráfico a seguir mostra que, entre 2015 e 2019, as despesas orçamentárias nessas áreas caíram consideravelmente, apesar de parte delas ser obrigatória. Por exemplo, os gastos com saúde perderam 11,9% em valores reais entre 2015 e 2019, enquanto despesas com cultura e a organização agrária diminuíram em cerca de 30%.

 

A promoção de justiça social passa necessariamente por gastos governamentais que corrigem as desigualdades. Isso significa que até em momentos de crise econômica, como o que estamos passando desde 2015, o gasto social deve ser protegido, o que não vem ocorrendo.

 

3 – Garantir que os mais ricos paguem seus impostos

Um método para aumentar as receitas governamentais, que normalmente não aparece no debate sobre o equilíbrio fiscal, é o combate às diversas estratégias que os ricos desenvolvem para não pagar seus impostos. A sonegação fiscal, por exemplo, custa ao Brasil R$ 71,5 milhões por hora. Um estudo publicado pelo Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional demonstra que o país vem perdendo mais de R$ 500 bilhões por ano somente com a sonegação de tributos. Ou seja: em apenas dois anos, o prejuízo aos cofres públicos ultrapassa a economia de R$ 800 bilhões prometida ao longo de uma década pela reforma da previdência.

O Estado pode lutar pelo fim da sonegação de diversas maneiras, como o combate aos paraísos fiscais e o fortalecimento das autoridades tributárias. O problema é que os mais ricos mandam parte dos seus lucros para fora do Brasil para não pagarem seus devidos impostos. É necessário, portanto, o fortalecimento da cooperação internacional em prol da regulação das práticas corporativas e dos fluxos financeiros internacionais.

 

4 – Revisar os incentivos fiscais, priorizando aqueles que combatam injustiças

Para além dos impostos sonegados, o governo fornece voluntariamente a redução do pagamento de tributos por meio dos incentivos fiscais. Todos os anos, o governo brasileiro deixa de arrecadar mais de R$ 300 bilhões, cerca de 4% do PIB, concedendo benefícios fiscais a empresas e pessoas físicas.

 

Gráfico 10 anos de reforma da previdência

 

O governo concede esses benefícios com a justificativa de que eles podem estimular investimentos e o crescimento da economia. Mas esquecem de dizer que eles diminuem o orçamento disponível para aplicar em políticas públicas. Além disso, eles podem reforçar a injustiça do sistema tributário brasileiro, pois em parte são fornecidos a grandes empresas, ou ter efeitos negativos na promoção de direitos humanos, como acontece no caso dos incentivos aos agrotóxicos.

Hoje em dia, não sabemos quem recebe esses incentivos e nem o valor, pois estão protegidos por sigilo fiscal. Sem transparência, como nós, cidadãos, podemos avaliar se esses recursos estão beneficiando a sociedade brasileira de forma justa? O Brasil precisa urgentemente passar por um processo de transparência e revisão dos incentivos fiscais em prol da justiça social.

A campanha do Inesc #SóAcreditoVendo luta pela transparência e revisão desses gastos governamentais indiretos.

 

5 – Assegurar que as populações mais vulneráveis sejam priorizadas na política fiscal

Você sabia que as mulheres negras são as mais afetadas negativamente pelo nosso sistema tributário? Isso ocorre devido a nossa regressiva tributação sobre o consumo e o fato das mulheres, em especial as negras, serem a maioria entre as pessoas mais pobres do Brasil. Além disso, um estudo recente com dados da Receita Federal mostrou que elas pagam mais imposto de renda do que homens, pois eles têm uma parcela maior de sua renda como rendimentos isentos de tributação.

A política fiscal pode, e deve, fortalecer as populações mais vulneráveis. De um lado, deve identificar essas disparidades e corrigi-las; de outro, direcionar o orçamento para essas populações por meio de políticas públicas. Um exemplo recente de esforço fiscal para o combate às desigualdades de raça e gênero foi a criação da Secretaria de Políticas para Mulheres e da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, que criaram um conjunto de políticas públicas específicas para essas populações.

O governo brasileiro precisa olhar para a política orçamentária e tributária com o foco nas desigualdades, identificando as barreiras que as pessoas enfrentam por causa de sexo, idade, raça, etnia, religião, cultura, região ou deficiência. Ignorá-las é contribuir para a perpetuação das injustiças.

Ao completar 400 dias de governo, Bolsonaro anuncia seu ataque mais duro aos povos indígenas

Apenas dois dias depois que um despacho oficial do Procurador-chefe Nacional da Funai ratificou a percepção de que, para a nova direção do órgão indigenista, os índios são considerados “invasores” em terras brasileiras, o governo deu novo passo para ofertar terras desses povos a grupos econômicos interessados na exploração mineral, na construção de hidrelétricas, na extração de óleo e gás, na exploração agrícola e pecuária.

Lamentavelmente, tudo isso ocorreu na semana que marca o Dia Nacional da Luta dos Povos Indígenas no Brasil. Datado de 7 de fevereiro, o dia é uma homenagem ao líder indígena Sepé Tiaraju, morto ainda jovem em 1756 durante uma luta sangrenta contra a dominação espanhola e portuguesa no Rio Grande do Sul. O conflito que durou três anos resultou na morte de mais 1.500 indígenas.

Passaram-se 264 anos e aqui estamos nós diante de um governo que não passou uma semana dos seus 400 dias de trabalho sem proferir ataques verbais e golpes institucionais contra os povos indígenas. Utilizando como escudo o perverso argumento de que “trata o índio como ser humano”, não só seu desrespeito e ódio são explícitos, como também são evidentes os interesses que ele representa.

Na semana desta data simbólica, o governo enviou ao Congresso Nacional um projeto de lei que busca regulamentar diversas atividades econômicas em terras indígenas. São atividades, como o mencionado, altamente impactantes do ponto de vista ambiental e social. Em terras indígenas, a abertura para estas atividades vai muito além, é parte do projeto etnocida do Estado brasileiro, que neste governo se aprofunda radicalmente, de destruição sistemática dos modos de vida e pensamento de povos diferentes daqueles que empreendem essa destruição.

A política de morte comandada pessoalmente pelo chefe de governo não responde aos interesses destes povos. Em vídeo publicado em seu Twitter, a coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB)  Sônia Guajajara destaca: “o seu sonho, senhor presidente, é o nosso pesadelo, é o nosso extermínio. Pois o garimpo provoca mortes, doenças, miséria e acaba com o futuro de toda uma geração”. A negação do direito “a qualquer centímetro de terra demarcada” é prova de que governo e povos indígenas encontram-se em lados opostos da história.

Ódio e vilania disfarçados de boas intenções em plena segunda década do século XXI e depois de tantos massacres e violência na nossa história, passada e presente, é o que os povos indígenas recebem neste dia 7 de fevereiro.

Nosso presente e futuro não precisam carregar esta tragédia como uma sina. Se o que se quer é um debate sério sobre como garantir que os povos indígenas tenham direito de escolher o que fazer com suas terras, respeitando suas culturas e seus escolhas, esse, evidentemente, não é o caminho.

A sociedade brasileira não pode se furtar a este debate. E precisa estar junto aos povos indígenas na sua luta pelo direito de existirem e viverem nas suas terras, como quiserem, com o apoio que precisarem por parte do Estado, de dizerem não e de serem respeitados como parte fundamental do que nós somos como sociedade.

Já passou da hora de rediscutirmos os sentidos do desenvolvimento nacional, incluindo a comunidade política na sua complexidade e fazendo escolhas políticas responsáveis a respeito de atividades altamente impactantes e com baixo retorno social para o país. O desenvolvimento baseado na superexploração de recursos naturais precisa, igualmente, passar pelo crivo de um debate econômico sério sobre seus reais efeitos para nós, brasileiros, e para toda a humanidade.

Produção nacional de medicamentos pode evitar desabastecimento de vacinas

Durante sete meses, pais que foram aos postos de saúde não encontraram uma vacina importante para os seus bebês. De acordo com o Ministério da Saúde, o fornecimento da vacina pentavalente foi irregular de junho a dezembro do ano passado por causa de problemas com os fornecedores. Aplicada em bebês de 2, 4 e 6 meses de vida, e com reforço aos 15 meses e aos 4 anos de idade, essa vacina protege contra cinco doenças: difteria, tétano, coqueluche, hepatite B e a bactéria Haemophilus influenza tipo B.

O Brasil compra a vacina por meio do Fundo Estratégico da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), pois não existe laboratório produtor no país. Em julho de 2019, lotes do laboratório estrangeiro que fornecia o medicamento foram reprovados no teste de qualidade do Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde (INCQS, da Fiocruz) e em análise da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Em agosto, o Ministério da Saúde solicitou reposição do produto, mas, naquele momento, não havia disponibilidade imediata no mercado mundial.

O abastecimento só foi regularizado em janeiro de 2020, quando o ministério anunciou a distribuição de 1,7 milhão de doses da vacina pentavalente para os estados

Esse caso traz várias reflexões importantes. Primeiro, sobre a importância de ter uma infraestrutura científica adequada e uma agência reguladora forte, pois elas permitem ao Brasil atuar de forma autônoma e garantir que apenas produtos de qualidade entrem no país.

Segundo, a de que a produção local de medicamentos é fundamental para evitar este tipo de problema. Caso houvesse um fornecedor nacional da vacina, o desabastecimento poderia ter sido evitado ou resolvido de forma mais rápida. O Ministério também reconhece essa solução, pois em outubro de 2019 convocou uma reunião com representantes de laboratórios públicos nacionais com objetivo de traçar estratégias para a produção nacional da vacina pentavalente, em que o secretário de vigilância em saúde afirmou que “um parque produtor forte representa um país forte. É necessário buscar medidas sustentáveis para garantir a oferta de vacinas no SUS e proteger a população contra doenças que podem ser evitadas com efetiva imunização”, e também que é necessário construir uma política de planejamento, expansão e monitoramento da cadeia produtiva brasileira de soros e vacinas.

Orçamento reduzido

Os laboratórios públicos, como o Biomanguinhos da Fiocruz ou o Instituto Butantã, são um patrimônio nacional e um recurso estratégico. Foi por conta deles que o Brasil conseguiu fornecer tratamento gratuito a todos os pacientes HIV positivo. E ter um programa nacional de imunização já erradicou ou evitou que diversas doenças infecciosas acometessem a população brasileira.

Apesar de sua importância, estes laboratórios frequentemente não recebem investimento à altura. Só para citar um exemplo, ao invés de reforçado, o orçamento da Fiocruz foi reduzido em mais de R$ 300 milhões para o ano de 2020. Enquanto isso, estima-se que a indústria farmacêutica recebeu mais de R$ 11 bilhões de incentivos fiscais em 2018.

É importante que o Brasil tenha uma política de inovação e produção de medicamentos que atenda as suas necessidades e prepare o país para evitar este tipo de problema, valorizando os recursos que já tem. Isso garante não só a sua independência do mercado externo, mas também desenvolvimento econômico e tecnológico, bem como a proteção da saúde das próximas gerações.

Inesc participa do Fórum Social das Resistências 2020

Nesta semana, os membros do colegiado de gestão do Inesc, Iara Pietricovsky e José Antônio Moroni, vão a Porto Alegre (RS) e região metropolitana contribuir com as discussões do Fórum Social das Resistências, evento que compõe o processo do Fórum Social Mundial.

Com o lema “Democracia, Direitos dos Povos e do Planeta”, organizações e movimentos sociais do Rio Grande do Sul e do Brasil estarão reunidos entre os dias 21 e 25/01, debatendo estratégias de articulação, ações e iniciativas de resistência frente aos avanços de movimentos fascistas e antidemocráticos no Brasil e no mundo.

Agenda Inesc

Iara Pietricovsky é uma das painelistas da mesa “Direitos do planeta e os bens comuns”, que acontece na quinta-feira (23), em São Leopoldo, no Auditório Central da Unisinos, às 9h. Iara é também presidenta da Forus International e integra a direção executiva da Abong.

José Antônio Moroni vai acompanhar as atividades promovidas pelo Conselho de Educação Popular da América Latina e Caribe (CEAAL), do qual o Inesc é integrante. São elas, a atividade de convergência “Educação universal, democrática e libertadora”, que acontece na quarta-feira (22), no auditório do Simpa, às 9h; e  os “Diálogos da Educação Popular”, na sexta-feira (24), às 10h, no auditório CAMP. José Moroni também vai participar de debates sobre democracia, reforma política e conjuntura.

Saiba mais sobre a 2ª edição do Fórum Social das Resistências e confira a programação completa.

Ser menina é (e sempre foi) muito perigoso no Brasil

Estupro coletivo não é novidade do século 21, não é novidade no país. No Brasil colônia, o estupro era prática cotidiana compreendida como direito por senhores de escravos que violentavam diuturnamente negras e indígenas. O estupro que deu origem à mestiçagem brasileira foi ignorado por muito tempo e a mistura de raças foi amplamente difundida como  fruto de uma cordialidade do povo brasileiro. Cordialidade esta revestida com muito sangue e lágrimas.

Prática comum no cangaço, as meninas, assim como mulheres e idosas, eram alvo de uma macheza covarde, brutal e bestial. Arrancadas de casa ainda meninas (até crianças), eram violentadas até o limite que seus corpos suportavam, não raras vezes por muitos homens, como narra Adriana Negreiros no livro Maria Bonita, Sexo, Violência e Mulheres no Cangaço (2018).

Assim como o estupro coletivo não é recente, também não é fenômeno que podemos localizar somente no campo de uma direita misógina. Refazendo o caminho da Coluna Prestes, Eliana Brum, jornalista e escritora, registra histórias de estupro, saques, assassinatos e tortura – em entrevista a Antônio Abujamra em 2013.

Morte decretada via Facebook

A mais nova modalidade de violência contra meninas de que se tem notícia no Brasil é a execução de adolescentes no Ceará anunciada nas mídias sociais por meio de falsos perfis. Facções criminosas, por um motivo ou outro, decretam pelo Facebook quem deve ser eliminada. As meninas são arrancadas de casa, torturadas com requintes de crueldade e depois brutalmente assassinadas após estupros coletivos.

Percebe-se, portanto, que o estupro é uma prática aceita culturalmente desde que o Brasil é Brasil. A prática perpetua-se por gerações de tal modo que a violência chega a ser invisibilizada por sua naturalização. Há, no mínimo, uma permissão silenciosa; um encorajamento coletivo com inúmeros episódios ‘autorizados’ ou cometidos por juízes, parlamentares e outras autoridades públicas, como prefeitos, médicos e professores. Os exemplos são muitos.

Em comum, nota-se uma desqualificação das mulheres/meninas com termos que remetem à sua sexualidade e ao desejo. Hipócritas, “homens de Deus” as desejam e as desprezam e violentam-nas com suas consciências tranquilas.

A violência contra meninas ganha novos contornos e elementos como uso das redes sociais e o envolvimento do crime organizado, além da desqualificação das mulheres em discursos e pronunciamentos oficiais. “Não estupro você, porque você não merece”, disse o então deputado federal Jair Bolsonaro, hoje presidente da república, como se tal violência pudesse ser admitida em alguma circunstância.

Confusão entre Estado e religião agrava violência

Segundo a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, conhecida por exaltar o sexismo, na ilha do Marajó meninas são estupradas porque não usam calcinha. Sem qualquer preocupação em analisar a complexidade do problema, responsabiliza as próprias vítimas pelo estupro. Nesse sentido, a estratégia para enfrentar o problema pode ser reduzida ao fornecimento de peças íntimas às crianças e os agressores saem ilesos. Já na ONU, na Comissão de Direitos Humanos, o discurso da ministra se restringiu a uma fala genérica pela perspectiva moral e religiosa, se alinhando aos países mais conservadores do mundo e negando todos os tratados de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário.

A confusão entre Estado e religião sempre prioriza pautas de costumes e de controle dos corpos femininos. Evita uma abordagem direta sobre os problemas, portanto, não se age sobre as causas e a tendência é o agravamento das violências.

Pesquisas mostram que o assassinato de meninas tem crescido vertiginosamente no país. Dados do Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência (CCPHA), instituído pela Assembleia Legislativa do Estado do Ceará (AL-CE) – relatório de 2018 – revela que homicídio de meninas cresceu mais de 400% em Fortaleza.

Diante de problemas de tal gravidade é imprescindível que se reúna esforços para prevenir violências, responsabilizar agressores, acolher e cuidar das vítimas. Para isso, se faz urgente determinação política para se estudar as violências e elaborar plano de enfrentamento com um desenho complexo abarcando toda a sociedade brasileira, especialmente as políticas públicas. Todos os segmentos da sociedade devem ser envolvidos para coibir a violência do estupro e a morte por violência, em especial de crianças e adolescentes que têm tido suas vidas exterminadas pela violência. Crianças e adolescentes negras, moradoras das periferias têm suas vidas ameaçadas diariamente.

Todas as vidas importam, vidas negras importam, vidas de meninas importam. O alerta foi dado.

Ano novo, tarifa nova (mais cara, como sempre)

Hoje o Distrito Federal (DF) amanheceu com passagens do Transporte Público Urbano (TPU) 10% mais caras. A justificativa do governo é a de que “é preciso melhorar as contas e manter o sistema em pleno funcionamento”. Na argumentação, o GDF informa que em 2019 o recurso dado às empresas para subsidiar a tarifa foi de R$ 700 milhões, o que não se sustenta quando analisamos o orçamento executado.

Esse total equivale a todo o programa orçamentário mobilidade integrada e sustentável, conforme dados da tabela 1. O que o governador Ibaneis joga na conta da subvenção é, na verdade, os recursos para toda a infraestrutura do TPU, como corredores exclusivos de ônibus e manutenção dos terminais rodoviários, por exemplo.

O montante que o governo dá para as empresas de transporte como subsídio, a chamada “Manutenção do Equilíbrio do Sistema”, é uma cifra muito menor, R$ 175 milhões. Com o aumento da tarifa, o governo projeta economizar cerca de R$ 160 milhões, ou seja, estão, na prática, retirando o subsídio.

Reforma da rodoviária do Plano Piloto

Ao observar a tabela do orçamento, verificamos também que se gastou cerca de R$ 1,3 milhão com a reforma da rodoviária do Plano Piloto. Contudo, há meses as escadas rolantes e elevadores não funcionam, constrangendo e tornando inviável o deslocamento de pessoas com deficiência e idosos, que têm muita dificuldade para acessar o terminal. Limpeza e conservação é algo que não existe. Outra questão é a superlotação e a precariedade dos veículos. Argumentam que as empresas tiveram de gastar mais com ônibus com portas dos dois lados por conta da Estrada Parque Taguatinga (EPTG), algo que estão devendo à população há oito anos e para a qual as empresas não pagaram multa por não respeitarem as regras contratuais.

Embarque por direitos

Ao mesmo tempo em que aumentam a tarifa, justificando que não podem subsidiar as passagens e a própria infraestrutura, reduzem o IPVA, favorecendo e incentivando os automóveis individuais motorizados. Essa política vai na contramão de todas as tendências internacionais que, por motivos sociais e ambientais, tentam reduzir a emissão de gases de efeito estufa.

Em consonância com esse esforço mundial para incentivar o transporte coletivo,  lançamos em outubro de 2019 a campanha “Embarque por Direitos”, pela regulamentação do transporte como direito social. Apresentamos uma proposta de fundo de financiamento ao TPU, que propõe que o coletivo seja financiado pelo individual, por meio de novas alíquotas para os impostos IPTU, IPVA, ICMS da gasolina, de maneira progressiva (quem tem maior renda paga mais).  Este fundo solidário com recursos municipais, estaduais e nacionais permitiria a não tarifação, ou tarifa zero. O que pretendemos é mostrar que é viável transformar o transporte em política pública de fato, ao contrário da política desenvolvida pelo governo Ibaneis, onde o transporte individual motorizado continua sendo priorizado.

O transporte público é um dos itens que mais pesa no orçamento das famílias de baixa renda, que muitas vezes não conseguem procurar emprego por não terem condições de pagar a tarifa. Além de pesar mais nas costas dos trabalhadores informais em tempos de desemprego. Na zona rural em Brasília, por exemplo, mesmo que seja circular interno, a tarifa é a mais alta, R$ 5,50, sem fiscalização por parte do poder público, que deixa todo o sistema por conta das empresas de transporte. Não há transparência com relação à composição tarifária, o valor da tarifa técnica é dado sem que a população acompanhe ou tenha conhecimento de como é feito o seu cálculo.

O Conselho do Transporte Público Coletivo do DF existe, mas sem poder, pois o aumento foi apresentado aos conselheiros dias antes da implantação e, mesmo com voto contrário, foi imposto à população. Então, nem mesmo um conselho pouco representativo tem voz de fato. Não há espaço de participação para a população que utiliza o TPU diariamente.

Seguimos com tarifas altas, qualidade baixa, população desassistida, ampliação de vantagens para a parte da população com maiores rendas e vida dura para quem tem menos, como sempre, aprofundando ainda mais as desigualdades gritantes.

Pouco divulgada, Cúpula dos Povos chilena privilegiou o diálogo com o contexto político local

Entre os dias 2 e 8 de dezembro aconteceu, em Santiago, Chile, a Cúpula dos Povos, evento anual promovido por movimentos sociais e representantes da sociedade civil global como um contraponto à Conferência das Nações Unidas sobre o Clima (UNFCC), onde atuam os governos signatários do Tratado de Paris sobre o Clima, assinado em 2015.

Também conhecida como Conferência das Partes, ou COP, a edição de 2019 foi, desde o início, marcada por uma série de revezes e, finalmente, entrou para a história pela incapacidade das delegações presentes em fecharem acordo sobre um dos pontos mais polêmicos e centrais à arquitetura da governança climática.

Já a Cúpula chilena ficou marcada por intensos protestos e graves denúncias de violações de direitos humanos.

Idas e vindas da COP 25

A Conferência do Clima da ONU discute a crise climática e busca engajar os países no combate ao aquecimento global. Trata-se de um fórum no qual os países se reúnem para discutir medidas de adaptação e mitigação frente às ameaças trazidas pela elevação das temperaturas no planeta.

A 25ª edição da conferência teve uma execução conturbada. Em 2018, logo após as eleições, o presidente Jair Bolsonaro declarou que o Brasil não presidiria nem sediaria, como fora previsto em edições passadas, o evento. Em novembro daquele ano, o governo brasileiro iniciou negociação com o chileno para que o país vizinho assumisse a Conferência. Um mês depois, a decisão foi tornada pública, em um contexto de reconfiguração da aliança continental dos governos de direita e crise dos progressismos latino-americanos.

No entanto, em 31 de outubro de 2019, a praticamente um mês da data prevista para o início da COP, a explosão de uma revolta popular no Chile impôs novo recuo para a realização do evento. Alegando questões de segurança, o Presidente do Chile, Sebastián Piñera,declarou incapacidade para sediar a Conferência em seu país.

Considerou-se, então, momentaneamente, transferir a COP para Bonn, na Alemanha, cidade-sede do secretariado da UNFCCC e onde ocorrem as reuniões preparatórias para o encontro anual. A medida, no entanto, não foi necessária. Uma rápida movimentação do primeiro-ministro da Espanha, Pedro Sanchez, em articulação com o presidente chileno, alterou, mais uma vez o cenário. Com o aval do secretariado da UNFCCC, Madrid foi declarada cidade-sede da Conferência, porém sem reclamar a sua presidência. Esta continuou com Chile, num ato atípico para a história das COP.

O impacto da transferência para a sociedade civil

A Cúpula dos Povos reúne movimentos sociais e ONGs de distintas partes do mundo. Por isso, este pode ser considerado um momento importante para a formação política e intercâmbio de experiências entre as organizações. A sua realização mobiliza grandes esforços tanto para garantir a infraestrutura do evento quanto para assegurar a presença dos participantes no país-sede, onde se promove um conjunto variado de atividades entre debates, intervenções públicas e ações de incidência, além de uma marcha que tem o objetivo de compartilhar com a sociedade o resultado dos dias anteriores de trabalho.

Levando-se em conta o contexto político, optou-se pela realização de duas Cúpulas dos Povos: Uma no Chile, em caráter de solidariedade à mobilização social em curso no país, e outra, em Madrid, cujo objetivo seria acompanhar mais de perto as negociações oficiais e pressionar os governos no sentido da justiça socioambiental.

O resultado desta divisão foi a invisibilidade do primeiro processo, além do esvaziamento de ambas as Cúpulas, na comparação com anos anteriores. As agendas apertadas de final de ano e os altos custos para remarcação de passagens aéreas e hospedagem, reduziram a participação da sociedade civil no evento e levaram ao cancelamento de muitas das atividades previstas.

Para o que ficou de pé, foram realizados debates de alto nível, obtendo-se, ainda, avanços relevantes no que se refere à articulação da sociedade civil em nível global e, particularmente, à divulgação das denuncias relativas a conflitos por terra, ataques a etnias indígenas e a grandes empreendimentos em áreas de florestas preservadas. De modo geral, a democracia e a redução do espaço democrático para a atuação da sociedade civil também foi um assunto de destaque.

Cúpula no/do Chile

Na data de início da Cúpula, o Chile entrava na sua sétima semana de protestos, totalizando quase 50 dias de ocupação das ruas da capital Santiago. A desaprovação do presidente chegou a 84% e o apoio às mobilizações variava, a depender da empresa de pesquisas consultada, entre 70 e 90%. A cidade vivia um clima de entusiasmo, que levou a uma atmosfera amena, de gentileza, solidariedade e esperança, em que pese a força da indignação que pairava no ar.

As reivindicações dos manifestantes envolviam, concretamente, o sistema privado de aposentadorias, educação e saúde, expressando-se, ainda, de modo difuso como descrença em relação à política institucional e aos políticos profissionais. Corria as ruas o burburinho de que o modelo para um projeto neoliberal latino-americano havia ruído.

Ao longo das mobilizações, Piñera adotou medidas para contornar a insatisfação popular. As ruas não cederam. Os chilenos seguiram seu cronograma de manifestações diárias. Finalmente, o presidente abriu o sistema político chileno a uma Assembleia Constituinte. Esta agenda foi amplamente aceita pela população, que passou a se organizar para monitorar e incidir sobre o processo Constituinte.

Neste ponto incidiu a Cúpula. A intensidade do cenário local tornou impossível resistir ao enfoque no processo político chileno, embora esta já fosse uma tendência observada ao longo da preparação do encontro. Assim, a Cúpula acabou se tornando um espaço (riquíssimo) para o compartilhamento das experiências regionais, bem ou malsucedidas, em relação a constituintes recentes, como nos casos da Bolívia, do Equador e da Venezuela.

Neste sentido, um aspecto trazido pelos debates durante a Cúpula foi a responsabilidade política que, agora, cai sobre os ombros da sociedade chilena. Isto porque, o processo Constituinte deflagrado no país será o primeiro após o ciclo progressista, dos governos de centro-esquerda na região, e acontece num cenário de ascensão da extrema direita no mundo.

Como produzir uma Constituição cidadã, capaz de contemplar os direitos dos povos e da natureza, é um resumo possível para as discussões ocorridas no âmbito do encontro. Mais do que um evento que aconteceu no Chile, a Cúpula dos Povos foi plenamente apropriada pelos chilenos e posta a serviço das preocupações políticas locais.

Aqui, outro aprendizado: prevaleceu o olhar enraizado no território para o debate climático, a partir da vida e da experiência dos sujeitos políticos, o que favoreceu uma abordagem transversal dos temas debatidos do local ao global.

Ainda naquela semana, deputados chilenos, com apoio da oposição de esquerda, aprovaram um projeto de lei que criminaliza os protestos. No dia 13 de dezembro, a ONU divulgou relatório que confirmou graves denúncias sobre violações de direitos humanos – incluindo mortes, estupros e tortura de manifestantes – sob comando do governo. O relatório foi divulgado em meio a discussões dos chefes de Estado na COP 25, em Madrid.

Em Madrid, organizações brasileiras tiveram destaque

Em Madrid, organizações brasileiras organizaram evento em defesa dos povos e comunidades tradicionais da Amazônia e pelo Bem Viver. APIB, Grupo Carta de Belém, FASE, Coletivo pelos Direitos no Brasil – Madrid e Maloka denunciaram os retrocessos socioambientais promovidos pela gestão Bolsonaro. Desmonte das políticas públicas para o setor, perseguição política, intensificação dos conflitos agrários e assassinatos de indígenas foram temas do debate.

Nesta edição do evento, a sociedade civil teve o seu acesso aos espaços de negociação restringido. No passado, as organizações sociais, assim como os empresários, compunham a delegação brasileira ao lado dos diplomatas e dos representantes do Executivo. Sob esta condição, embora os representantes não-governamentais não tivessem voto nos principais espaços de discussão, havia certa liberdade para circulação dentro das instalações do evento e, consequentemente, para o acompanhamento dos debates e articulações políticas.

Em 2019, o governo brasileiro não admitiu representantes não-governamentais como membros da sua delegação, restando-lhes o status de “observadores”, com acesso bem mais reduzido no que se refere aos espaços da Conferência. Além disso, do ponto de vista da transparência e da participação democrática, o governo brasileiro não se preocupou em garantir espaços para diálogo e repasses relativos à negociação.

Contudo, este cenário não pode ser considerado surpreendente, entre outras coisas, porque segue a quebra de uma rotina estabelecida de consultas entre os negociadores brasileiros e a sociedade civil. O próprio Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas foi enfraquecido nesta gestão. O atual governo ignora que a construção de um processo doméstico, prévio à realização da Conferência, ou seja, de concertação Estado-sociedade, foi um fator de projeção internacional do país e serviu à redução dos custos de internalização dos acordos externos, contribuindo para uma ação internacional robusta da diplomacia brasileira na agenda climática global.

O encerramento da COP 25

A COP 25 será lembrada como um ponto de inflexão na história da diplomacia brasileira nas COP. Talvez seja possível dizer que esta edição marca o pior desempenho da diplomacia nacional desde o início do evento, há 25 anos. A imprensa internacional fez questão de noticiar a impostura do governo brasileiro, que obstruiu a negociação para um, quase literal, recolhimento de dízimo com base nos resultados de mitigação do país.

Mesmo diante da patente piora dos resultados de mitigação e escandaloso aumento das queimadas e desmatamento, o governo chegou a Madrid para pressionar quanto à possibilidade de legalizar e expandir os negócios com créditos de carbono. No Tratado de Paris, essa possibilidade é regulada pelo Artigo 6º, particularmente, pelos incisos 6.2 e 6.4. Essas linhas regem a introdução de mecanismos de mercado para “abordagens cooperativas”, ou seja, offset, no jargão. Isso significa que se permite a transferência dos resultados de mitigação de um país para outro.

Quando a imprensa menciona a falência do processo negociador da COP 25, refere-se, em especial, ao fechamento da regulamentação do artigo 6º. Do ponto de vista dos movimentos sociais, a dificuldade para concluir um acordo em torno desse ponto pode ser visto por um viés positivo, ainda que por linhas tortas. Pois a posição histórica do campo crítico no debate climático é de rejeição à introdução dos mecanismos de mercado para offset propostos em Paris, conforme se pode ler na nota lançada pelo Grupo Carta de Belém. Esta era a postura historicamente defendida pelo Itamaraty até então.

Embora não tenha sido possível concluir a negociação pertinente ao funcionamento do Tratado de Paris, 2020 abre o período de vigência do novo acordo do clima. Além disso, o próximo ano inaugura uma nova lógica para a implementação das medidas de mitigação climática. O Tratado de Kyoto diferenciava as responsabilidades de mitigação entre países ricos (industrializados) e pobres (extrativistas). O Tratado de Paris, que substitui o anterior, não reconhece essas diferenças. Esta é uma das explicações para que a disputa, agora, envolve a definição dos parâmetros de operação do Artigo 6º.

O modo de funcionamento dos mecanismos de mercado previstos neste capítulo do acordo pode implicar responsabilização dos países mais pobres no que tange ao aquecimento global. O desafio para frente é, portanto, evitar que isso aconteça sem que grandes países poluidores do Sul Global (como Brasil, China e Índia) passem impunes das suas próprias responsabilidades, sobretudo, no que se refere aos efeitos socioambientais destrutivos da indústria extrativista.

Orçamento 2020: quais as previsões para o ano que chega?

O Congresso Nacional aprovou na última terça (17/12), a Lei Orçamentária Anual (LOA) 2020, que estabelece a previsão de receitas e a alocação de gastos do governo federal para o ano que vem. O Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) foi primeiramente entregue em agosto pelo Executivo para o Legislativo, que o aprovou após fazer alterações na forma de emendas. A lei agora vai para a sanção presidencial.

A LOA possui caráter autorizativo, isto é, nada garante que os recursos alocados serão de fato executados, porém, todo recurso gasto precisa ter o consentimento da lei. Baseado na análise do orçamento autorizado, de R$ 3,565 trilhões, faremos aqui seis previsões para 2020:

1. Será o fim da política de valorização do salário mínimo

O documento aprovado estima uma elevação de 2,32% do PIB para 2020, um pouco maior do que o esperado pelo mercado, de 2,25%.  Esse otimismo, porém, pode não se concretizar, considerando que na LOA do ano passado a previsão era de 2,50% e hoje se avalia que será em torno de 1%, ou seja, duas vezes e meia menor do que o alardeado pelo governo.

A previsão generosa com o PIB também não foi traduzida em aumento real do salário mínimo – que corresponde à renda de metade da população brasileira. Nos últimos 20 anos, o salário mínimo cresceu 250% em termos reais, devido principalmente às medidas legais que atrelaram o aumento do soldo ao crescimento do PIB, para além da inflação. A última lei de valorização do salário mínimo foi sancionada em 2011 , renovada em 2015 e expirada em 2019. Como não houve novas renovações por parte do Legislativo, o fim da obrigatoriedade significou o fim da política de aumento do salário real.

Dessa forma, o salário mínimo proposto na LOA 2020 é de R$ 1.031,00, uma correção de apenas 3,3%, que não resulta em ganho real.  Note-se, contudo, que o valor final será estipulado pelo Executivo no início de 2020*.

2. Saúde, habitação e turismo serão valorizados, mas a educação continuará sofrendo

O orçamento de R$ 3,565 trilhões aprovado apresenta adicional de R$ 7 bilhões comparado com o projeto de lei enviado em agosto pelo Executivo. Durante a votação no Congresso, o relator afirmou que os parlamentares conseguiram aumentar os recursos para áreas como saúde e educação.

Com efeito, a análise dos números revela que a saúde foi a área mais favorecida, pois o Ministério da Saúde teve recursos adicionais da ordem de R$ 5,1 bilhões. Os aumentos beneficiam principalmente os serviços de atenção básica e assistência hospitalar e ambulatorial. Houve ainda alocação complementar considerável no Ministério do Turismo, de 379%, com as verbas direcionadas, principalmente, para obras de infraestrutura. Por fim, o Fundo de Desenvolvimento Social, que financia o programa Minha Casa Minha Vida, viu seu orçamento crescer em R$ 188,5 bilhões.

O caso da educação, porém, é menos animador. O incremento autorizado pelo Congresso em relação ao encaminhado pelo Executivo foi de apenas R$ 700 milhões para uma área considerada estratégica para o país. Além disso, o aumento orçamentário concedido pelo Legislativo não compensa o elevado corte proposto pelo Executivo para o ano que vem, quando comparamos com os gastos autorizados para este ano. Em 2018, o orçamento aprovado pelo Legislativo foi de R$ 122,9 bilhões, quase R$ 20 bilhões a mais que o orçamento de R$ 102,9 bilhões que teremos para 2020.

3. Investimento do governo vai subir, mas as estatais continuarão em apuros

No caso de investimentos dos órgãos públicos, o orçamento de 2020 aprovado pelo Congresso autoriza gastos de R$ 40,5 bilhões, maior que os R$ 22,5 bilhões previstos no PLOA encaminhado em agosto pelo Executivo. Esse aumento é considerado positivo pelos economistas, pois os investimentos públicos são gastos governamentais que possuem grandes efeitos multiplicadores, impulsionando o investimento privado e o crescimento econômico.

O cenário para os investimentos das estatais, porém, vai na direção oposta, com o processo de sucateamento proposto pelo Executivo. Não houve alteração no orçamento para as empresas controladas pelo Estado, que tiveram os  cortes de 9,6% no orçamento do BNDES, 30,5% no orçamento dos Correios e 63% no orçamento da Infraero mantidos.

4. A PEC Emergencial tem grandes chances de ser aprovada no Congresso

Como vimos anteriormente, o Congresso autorizou aumento de despesas em algumas áreas do governo, como saúde e investimentos. A LOA ampliou as chamadas despesas discricionárias (sobre as quais o governo tem liberdade para decidir) em quase todos os ministérios. Para fechar as contas, os parlamentares elevaram as estimativas de receita ao mesmo tempo em que diminuíram outras despesas. No que tange às fontes de financiamento, aumentou-se a previsão de receitas da ordem de R$ 7 bilhões, relacionadas ao pagamento de dividendos à União.

Em relação às despesas, a diminuição dos gastos deve-se à aposta na aprovação da PEC Emergencial, um dos projetos de Emenda à Constituição recentemente enviada pelo Executivo ao Senado. A referida PEC prevê medidas para reduzir despesas obrigatórias, e sua aprovação, segundo o relatório da LOA, levará a uma economia de R$ 6 bilhões aos cofres públicos. Essa PEC propõe a redução da jornada de trabalho em até 25% para os servidores públicos, com diminuição proporcional das remunerações, nos anos em que a União descumprir a Regra de Ouro – que é o cenário projetado para o ano que vem. Dada a incorporação do impacto dessa PEC na redução dos gastos com pessoal da presente LOA, é possível concluir que a maioria dos deputados está disposta a votar a favor dessa proposta de Emenda Constitucional.

5. O Bolsa Família está assegurado, mas a previdência rural continuará dependente de nova aprovação do Legislativo

Na análise realizada pelo Inesc sobre o PLOA 2020, explicamos o que é crédito suplementar e a dinâmica política que ele envolve, basicamente uma escolha entre qual recurso está garantido na LOA e qual terá que ser aprovado pelo Congresso novamente em 2020. A LOA, votada pelo Congresso esta semana, prevê despesas no montante de R$ 343,6 bilhões que estão condicionadas à aprovação de crédito suplementar, uma redução quando comparado ao valor proposto pelo Executivo no PLOA.

No projeto encaminhado pelo governo Bolsonaro em agosto, cerca de um terço do programa Bolsa Família estava enquadrado como crédito suplementar. O Legislativo, porém, mudou essa realidade, ao garantir na LOA o orçamento para todo o programa. A Previdência Rural, porém, não teve a mesma sorte: enquanto apenas 8% dos benefícios previdenciários urbanos estarão condicionados, 45% dos benefícios previdenciários rurais vão requer a aprovação do Congresso.

6. Vale a pena lutar pelo orçamento, mas será necessário monitorar sua execução

O Plano Plurianual (PPA) 2020-2023, aprovado pelo Congresso Nacional em dezembro, foi um grande retrocesso em termos de transparência do gasto governamental. Como a análise do Inesc apontou,  programas que detalhavam os gastos da União foram eliminados na proposta enviada pelo Executivo, principalmente nas áreas de direitos humanos e socioambiental.

Graças às ações de incidência da sociedade civil no Legislativo, foram introduzidos ao PPA 2020-2023 os programas “Prevenção e Controle do Desmatamento e dos Incêndios Florestais nos Biomas” e “Proteção e Promoção dos Direitos dos Povos Indígenas”. A partir desses programas, será possível acompanhar a execução orçamentária para essas duas importantes pautas nos próximos quatro anos. Serão alocados, em 2020, R$ 134,1 milhões e R$ 73,3 milhões para cada programa, respectivamente. Porém, em um cenário de desmantelamento dos órgãos públicos e de descaso do Executivo para a agenda socioambiental, a chance dos recursos previstos não serem gastos é muito grande.

Ainda que a LOA aprovada esta semana tenha autorizado aumento de despesas em áreas essenciais, como a da saúde, a execução dos gastos não está garantida. Além disso, a Lei não corrigiu problemas de fundo, relacionadas à desigualdade social brasileira e à falta de vontade do governo em priorizar no orçamento pautas importantes para a garantia de direitos humanos, como mostramos em análises anteriores. Cabe a nós, sociedade civil, monitorar e pressionar para que 2020 não seja tão desastroso quanto o ano que está acabando.

*Atualização: o presidente Jair Bolsonaro sancionou em 31/12/2019 o salário mínimo no valor de R$ 1.039, um pouco maior do que o previsto na LOA. Ainda sim, o reajuste não representa ganho real em relação ao soldo anterior, que era de R$ 998.

Na cidade do maior projeto de minério do mundo, royalties são utilizados sem compromisso com garantia de direitos

Estudo inédito realizado pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), em parceria com a Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA), mostra que em Canaã dos Carajás, no Pará, centro do maior projeto de minério do mundo, o S11D da Vale, os recursos dos royalties da mineração são consumidos em sua maior parte pela administração do município.

A Compensação Financeira pela Exploração do Recurso Mineral (CFEM), como é chamada, responde por 66,30% da receita da cidade, um dos índices mais altos do Brasil, o que mostra a elevada dependência econômica da mineração. Os dados foram apresentados em evento realizado em Canaã nos últimos dias 13 e 14 de dezembro.

Dos R$ 413,5 milhões arrecadados pela prefeitura via CFEM em 2019, cerca de 60% são aplicados na máquina pública e em urbanismo, o que inclui o pagamento de auxílios financeiros, asfaltamento, limpeza urbana e manutenção de prédios, por exemplo.

Para Alessandra Cardoso, assessora política do Inesc, o trabalho que vem sendo feito há dois anos de monitoramento da CFEM em Canaã tem mostrado que a transparência e o compromisso do uso do recurso com a garantia de direitos são ainda uma miragem.

“Ao cidadão comum não é permitido saber para onde está indo este recurso que é a maior parte da arrecadação, que é finito e vinculado a uma atividade que traz inúmeros impactos sociais e ambientais para o município”.

Junto com a implantação do projeto da Vale veio a explosão demográfica: a população de Canaã passou de 11 mil habitantes em 2000 para 53 mil em 2014, quase 5 vezes mais habitantes em apenas 14 anos. Hoje, o município já é segundo em arrecadação da CFEM no estado do Pará e no Brasil, o primeiro é Parauapebas (PA), cidade vizinha.

Com este cenário vieram muitos problemas, como o aumento do desemprego e a ampliação dos conflitos por terra, já que parte da população excluída buscou nas ocupações de terra um caminho para a sobrevivência.

Falta de transparência dificulta pesquisa

Para chegar aos dados, os pesquisadores analisaram o Portal da Transparência da prefeitura. A mudança na forma de apresentar as informações, no entanto, dificultou o trabalho e aponta para falta de transparência da prefeitura na administração de Jeová Gonçalves de Andrade (MDB), o que contraria inclusive a Lei N° 13.540 de 2017.

Somente em 2018 os recursos da CFEM passaram a ser evidenciados nos dados sobre quais fontes pagavam quais despesas. Antes disto, o recurso entrava no bolo das receitas sem especificação da fonte, o que impedia o monitoramento do seu uso. Em 2018, na execução do orçamento de Canaã, a Fonte-CFEM passou a ser marcada com um código específico no detalhamento das receitas. Isto ocorreu por recomendação do Tribunal de Contas dos Municípios, pressionado pela referida lei de 2017.

Contudo, no orçamento de 2019 não foi mais possível identificar quais são as despesas previstas com a fonte CFEM, um retrocesso. Além disso, a prefeitura só disponibiliza os documentos da Lei Orçamentária Anual em formato de imagem, o que impede a busca por palavra-chave que permitiria localizar com muito mais facilidade o recurso da CFEM. Por isso, os pesquisadores precisaram ler os documentos um a um.

Outro problema é o caráter genérico das despesas principais. A natureza das despesas da função administração são as mais diversas possíveis, indo desde a manutenção das secretarias e algumas fundações e promoções de convênios como também a manutenção das moradias oficiais de prefeito e vice-prefeito. Ou seja: há pouco ou nenhum ganho social na forma com que a prefeitura aplica os recursos recebidos.

Giliad Souza, vice-coordenador do Instituto de Estudos e Desenvolvimento Agrário da UNIFESSPA, lembra que a CFEM é um recurso estratégico por ser finito e que são muitas as dificuldades que a população de Canaã dos Carajás enfrenta para entender para onde está indo o dinheiro da CFEM. “Em 2019, a CFEM foi utilizada para financiar a máquina pública, não necessariamente para estimular a diversificação da atividade econômica e a criação de novas iniciativas que dialoguem com a realidade local. A administração municipal não busca superar a dependência da mineração”, diz.

Para 2020, já está garantido na UNIFESSPA um projeto de extensão dedicado para o monitoramento das despesas da CFEM. Também participam da pesquisa pela universidade, Antônia Larissa, mestranda em Planejamento Urbano e Regional; Felipe Ferreira e Jessica Costa, estudantes de economia. A expectativa dos pesquisadores e do Inesc é expandir a pesquisa para outros dois municípios no Pará, em Parauapebas e Marabá.

Também existe a possibilidade de levar esse modelo de análise municipal para outras cidades em estados afetados pela mineração, como Minas Gerais, Goiás e Maranhão, replicando o modelo com parceiros locais.

37% da área de Carajás sob concessão da Vale

O município de Canaã dos Carajás possui uma área de 3.146 km², dos quais 37% estão sob concessão da Vale S.A para exploração mineral, sendo o principal responsável por isso o S11D.

Maior investimento privado realizado no Brasil nesta década, com US$ 14,3 bilhões, o Complexo S11D inclui mina, usina, logística ferroviária e portuária. Depois do rompimento da barragem de Brumadinho em Minas Gerais, a Vale anunciou que está aumentando a produção no Pará para compensar as metas. Com capacidade já instalada de 100 milhões de toneladas/ano, a empresa cogita ampliar o projeto para 150 milhões de toneladas de minério de ferro por ano. A previsão é de que esta mina seja exaurida até 2060.

Com a entrada em operação comercial da mina S11D, a CFEM recebida por Canaã dos Carajás saltou de R$ 19 milhões em 2016 para R$ 40,25 milhões em 2017, para R$ 178,5 milhões em 2018 e R$ 413,5 milhões em 2019, até o dia 16 de dezembro.  O total arrecadado e distribuído depende de três fatores: o volume produzido, o valor do minério que é cotado em dólares americanos e a taxa de câmbio.

O aumento expressivo em 2019 se explica tanto pelo aumento da produção na mina S11 D, quanto pelo fato de que a tonelada de minério de ferro atingiu US$ 100, o maior valor em cinco anos e o dólar frente ao real chegou a  superar R$4,23, recorde nominal.

No Brasil, a extração de minério de ferro responde por 69% da CFEM arrecadada pela exploração mineral. Na sequência vem o cobre, com 7%, o ouro com 5%, e a bauxita – com 3% dos valores arrecadados. Em paralelo aos volumes extraídos e valores gerados por esta exploração, o município de Canaã dos Carajás enfrenta graves problemas de desemprego, desmonte da agricultura familiar, violência, acesso precário a direitos sociais.

Inesc e UNIFESSPA apresentam estudo sobre CFEM em Canaã dos Carajás

A pesquisa desenvolvida pelo Inesc em parceria com Unifesspa pretende, portanto, não somente monitorar a CFEM, mas também contribuir para que a população se envolva em ações de controle social e para a destinação de parte destes recursos para a garantia de direitos.

“O compromisso do Inesc é contribuir para que a população local e os grupos organizados entendam o que é a CFEM e cobrem do poder público não só a transparência, mas também o compromisso com o uso do recurso em políticas que melhorem a vida das pessoas e superem a excessiva dependência da economia local em relação à mineração, pois ela estrangula outras atividades produtivas que são fundamentais para garantir empregos e diversidade econômica”, afirma Alessandra Cardoso.

Declaração conjunta sobre crise do desmatamento e queimadas na Amazônia é divulgada na COP25

Uma declaração conjunta sobre a crise do desmatamento e queimadas na Amazônia, assinada por 110 organizações da sociedade civil, incluindo redes e movimentos sociais, e endossada por parlamentares do Congresso Nacional, foi divulgada, nesta quinta-feira (12/12), na Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP25), em Madri, na Espanha. O documento foi apresentado durante coletiva de imprensa e num evento da Frente Parlamentar Ambientalista.

O deputado federal Nilto Tatto (PT), que preside a Frente, afirmou que o documento é uma provocação a parlamentares e órgãos governamentais “sobre o que é possível e necessário ser feito para que o Brasil cumpra as metas de redução do desmatamento e de emissões de gases de efeito estufa com as quais se comprometeu”.

A carta apresenta os principais desafios que têm preocupado organizações da sociedade civil do Brasil e de outros  países do mundo, que demonstram a necessidade urgente de uma mudança de posicionamento do atual governo brasileiro frente ao aumento alarmante  do desmatamento e das queimadas na região, que ameaça os serviços ecossistêmicos da floresta amazônica e os direitos de populações locais.

O documento critica o “desmonte” das políticas públicas de prevenção e controle do desmatamento na Amazônia e a consequente abertura de espaço para grileiros, garimpeiros e madeireiros ilegais, detalhando as ações e omissões do governo brasileiro que, segundo os signatários, estão diretamente relacionadas ao salto nos altos índices de desmatamento e queimadas registrados em 2019.

Durante o evento na COP25, Márcio Astrini, coordenador de Políticas Públicas do Greenpeace Brasil — uma das organizações que a assinam a carta, ressaltou que o desmatamento da Amazônia está crescendo e que ele não pode ser bem-vindo em nenhuma hipótese. “Se desmatamento trouxesse desenvolvimento, a Amazônia seria o local mais rico e desenvolvido da América do Sul”, disse.

Astrini lembrou que o Brasil sabe como combater o desmatamento e, com medidas concretas, conseguiu, na última década, diminuí-lo em cerca de 80%. Entre elas, ele citou o reconhecimento de áreas protegidas, criação de ferramentas de governança e, especialmente, a mensagem de que o desmatamento não pode ser tolerado. “Tudo isso está sendo demolido pelo atual governo e é por isso que o desmatamento aumentou outra vez. Com a Amazônia, o Brasil tem uma oportunidade, mas, infelizmente, este ano a escolha tem sido de transformá-la em um problema”, afirmou, destacando que os parlamentares precisam trabalhar para impedir o avanço dessa agenda.

Carta pede que governo federal mude sua trajetória

As redes ambientalistas, movimentos sociais e parlamentares que subscrevem a declaração pedem que o atual governo mude sua trajetória e passe a tomar decisões com base na Constituição, nas leis e nos acordos internacionais dos quais o Brasil é parte, entre eles o Acordo de Paris, que une esforços globais para manter o aumento das temperaturas médias do planeta abaixo de 1,5 Cº graus.

Entre as sugestões concretas para o governo federal, estão: retomar o Plano de Ação de Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia (PPCDAm); combater crimes ambientais associados à grilagem de terras públicas, desmatamento, queimadas e exploração ilegal de recursos naturais; e retomar a Comissão Interministerial de Combate aos Crimes e Infrações Ambientais. Outro pedido é pela retirada de pauta todos os projetos de lei, em tramitação no Congresso Nacional, que representam retrocesso na legislação de proteção ambiental do país.

Além disso, a carta aponta para a necessidade de implementar mecanismos efetivos para garantir que as importações de commodities do agronegócio e da exploração madeireira e mineral sejam exclusivamente e estritamente legais e certificadas e que todos os investimentos na Amazônia contribuam para acabar com o desmatamento e fortaleçam uma economia de baixo carbono que respeite e valorize os modos de vida das populações locais.

Os temas do documento foram debatidos durante o seminário “Desmatamento e Queimadas na Amazônia: Tendências, Dinâmicas e Soluções”, realizado no dia 28 de novembro, na Câmara dos Deputados, em Brasília, quando parlamentares, instituições públicas, cientistas e organizações da sociedade civil analisaram características, causas e consequências do que acontece na região.

O deputado Tatto informou, ainda, que a Frente Parlamentar Ambientalista irá estudar como as reivindicações da declaração conjunta de organizações da sociedade civil podem ser traduzidas em ação parlamentar.

Conheça a íntegra da declaração com assinaturas (em português, inglês e espanhol) e assistir a um vídeo sobre o assunto

 

CONTATO DE IMPRENSA

Thaisa Pimpão

thaisapimpao@omundoquequeremos.com.br

Whatsapp: +55 11 99904-0014

Desmatamento e queimadas na Amazônia

Em dezembro de 2019, na COP 25 da Convenção das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC), em Madri, ativistas brasileiros de direitos humanos e ambientais lançaram uma declaração conjunta sobre a crise do desmatamento e queimadas na Amazônia brasileira.

Assinada por 110 organizações da sociedade civil, redes e movimentos sociais, a declaração apresenta uma análise crítica das tendências recentes e fatores de desmatamento e queimadas na Amazônia, bem como consequências para a crise climática global e outros impactos sociais e ambientais. A declaração também apresenta um apelo à ação, destinado a mobilizar a sociedade brasileira e a comunidade internacional para que adotem medidas concretas em defesa da Amazônia e dos direitos de seus povos. A declaração foi emitida em inglês, espanhol e português:

Leia a declaração em português

Leia a declaração em inglês

Leia a declaração em espanhol

A declaração conjunta é resultado também de um seminário intitulado “Desmatamento e queimadas na Amazônia: tendências, dinâmicas e soluções”, organizado pela Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (CMADS) da Câmara dos Deputados no Congresso Brasileiro. O evento foi realizado em Brasília, em 28 de novembro de 2019.

Mais informações sobre o seminário estão disponíveis aqui

O lançamento da declaração conjunta na COP 25 foi acompanhado por um vídeo curto produzido pelo documentarista Todd Southgate, em parceria com organizações da sociedade civil. O vídeo, com versões em inglês e português, inclui imagens da Amazônia e destaques do seminário do Congresso, incluindo depoimentos de representantes de povos indígenas, movimentos sociais, ONGs e instituições públicas.

Falta de transparência e prestação de contas dos benefícios fiscais: um problema latino-americano

A América Latina gasta, em média, entre 10% e 20% da sua arrecadação e 4% do PIB por ano na concessão de benefícios fiscais. Eles são isenções, incentivos, deduções e créditos tributários que reduzem a quantidade de impostos pagos por pessoas físicas ou jurídicas ao governo.

Conhecidos na literatura especializada como gastos tributários por serem de fato gastos indiretos do governo realizados pela política tributária, os benefícios podem ser ferramentas para promoção de investimentos, empregos e crescimento econômico. Porém, o mais recente estudo publicado pelo International Budget Partnership (IBP) chega à conclusão de que hoje, apesar dos países gastarem bilhões de dólares com essa política, a sociedade não tem como saber se os ganhos socioeconômicos prometidos estão se efetivando na região, devido à falta de transparência e prestação de contas dos gastos tributários.

Projeto Lateral

Nos últimos anos, um grupo de organizações da sociedade civil latino-americana representando oito países da região, facilitado pelo IBP, desenvolveu  um projeto para promover pesquisa, incidência e aprender sobre gastos tributárias na América Latina. O grupo, intitulado Lateral, publicou estudos sobre os efeitos dos gastos sobre a desigualdade, além de um manual para ajudar a sociedade civil a pesquisar sobre gastos tributários.

Em seu último estudo, “Contabilizados, mas não responsabilizados: transparência nos gastos tributários na América Latina”, de autoria de Paolo de Renzio, as organizações compararam a transparência e prestação de contas nos informes sobre gastos tributários dos países da região, com objetivo de descobrir e comparar o que é possível saber sobre os incentivos outorgados pelos governos latino-americanos.

As principais conclusões do estudo foram sistematizadas nos infográficos que estão neste texto, como este:

Do ponto de vista contábil, a apresentação de informações sobre despesas tributárias na América Latina é razoável, pois quase todos os governos publicam um relatório anual que inclui dados sobre quais os gastos tributárias existentes e quanto eles representam. A cobertura dos relatórios e o nível de detalhes que eles incluem, porém, variam muito na região. Os países com relatórios mais completos, de acordo com uma série de critérios estabelecidos no estudo, são o Brasil e a Bolívia, enquanto países como Colômbia e Costa Rica ainda possuem um caminho maior a percorrer.

Contudo, do ponto de vista da prestação de contas, todos os países da região deixam a desejar. Os relatórios permanecem, em grande parte, silenciosos sobre vários aspectos-chave dos gastos tributários, incluindo objetivos políticos e medições de desempenho, e não incluem informações sobre os beneficiários e o impacto. Além disso, possuem poucos detalhes sobre os processos por meio dos quais são tomadas decisões em relação à introdução, revisão e avaliação dos gastos tributários.

Vamos, por exemplo, pensar num incentivo fiscal para o setor de construção civil. O incentivo pode impulsionar a construção de infraestrutura no país e, assim, gerar desenvolvimento econômico. Em todos os países comparados nesse estudo, porém, não podemos saber quais são as empresas de construção civil que estão se beneficiando e quanto estão deixando de pagar de impostos. Não existe uma avaliação desse incentivo com o objetivo de entender se houve de fato o incremento na infraestrutura do país. Também não sabemos qual foi o processo de decisão sobre a criação desse incentivo e se não haveriam medidas mais eficazes para gerar o resultado esperado, como o investimento direto do governo em infraestrutura. Na maioria dos países da região, também não sabemos o prazo de vigência do incentivo, podendo ficar décadas sem um processo de revisão desse gasto indireto.

Essa falta de transparência e prestação de contas se configura como um privilégio, pois os gastos governamentais diretos, as despesas orçamentárias, possuem processo de revisão, participação e divulgação de informações muito mais completo e transparente.

E o Brasil?

Como destacado anteriormente, o Brasil possui um dos melhores relatórios de gastos tributários da região, o Demonstrativo de Gastos Tributários, divulgado anualmente pela Receita Federal. A cada ano, a União gasta cerca de 20% de sua arrecadação e 4% do seu PIB com Gastos Tributários. A estimativa de gasto para 2020 é de R$ 326 bilhões de reais, um valor muito próximo ao chamado “rombo da previdência social”. Os benefícios abrangem diversos setores, desde produtores de bebidas açucaradas, como os refrigerantes, até a produção de combustíveis fósseis, privilegiando grandes multinacionais que atuam no país.

Apesar de dispor de relativamente bons relatórios de gastos tributários, o Brasil possui alguns dos mesmos problemas do resto da região no que diz respeito à transparência e à prestação de contas. O governo concede incentivos fiscais com a justificativa de que eles podem estimular investimentos, gerar empregos e contribuir com o crescimento da economia. Porém, não avalia se os benefícios estão realmente promovendo o desenvolvimento econômico e os ganhos sociais que prometem. Além disso, não sabemos quem recebe esses incentivos e nem o valor, pois estão protegidos por sigilo fiscal.

Diante disso, o Inesc, além de participar do projeto Lateral, anima a campanha #SóAcreditoVendo, pela transparência dos Gastos Tributários, além de apoiar a aprovação do PLP 162/2019, que permitirá a divulgação das empresas beneficiárias dos incentivos fiscais e os montantes de impostos que cada beneficiário está deixando de pagar. Sem transparência, como nós, cidadãos, podemos avaliar se esse dinheiro está beneficiando a sociedade brasileira de forma justa e democrática?

Dia Mundial dos Direitos Humanos: #SomosTodosONG

Em resposta ao crescente processo de criminalização das ONGs, ativistas e movimentos sociais, hoje, no Dia Internacional dos Direitos Humanos (10/12), damos início à campanha #SomosTodosONG, a fim de resgatar entre a sociedade civil a importância de sermos livres, para atuarmos na construção de um país melhor. A iniciativa propõe a defesa da democracia, dos direitos humanos e da proteção do meio ambiente.

A campanha é uma iniciativa da Abong  (Organizações em Defesa dos Direitos e Bens Comuns) e da Cardume, das quais o Inesc faz parte. Assista ao vídeo do lançamento:

Leia o manifesto conjunto no Dia Mundial dos Direitos Humanos

QUEREMOS MAIS DIREITOS HUMANOS, PARA TODOS E TODAS!

As organizações signatárias vêm a público para manifestar sua profunda preocupação com os caminhos da política de direitos humanos no Brasil. Em que pese o fato de que a política de direitos humanos nunca fora efetivamente uma política de Estado no Brasil, mas sim de alguns órgãos e setores de determinados governos, o que ora vivemos é um processo de total desestruturação, desmonte e retrocesso nas garantias constitucionais e de direitos humanos, conquistados a partir de muita luta da sociedade civil organizada. O atual governo brasileiro ataca de forma flagrante os compromissos com direitos humanos e age no sentido de desproteger a cidadania. Não há o menor respeito ao princípio da proibição do retrocesso e de investimento do máximo de recursos para a garantia dos direitos humanos. Há um movimento brutal de submissão dos direitos e da vida aos interesses fiscais que, em nome de sanear o Estado, drenam recursos para o capital financeiro especulativo e retiram as condições para o investimento em políticas voltadas aos direitos humanos. Diante deste quadro, as chamadas instituições democráticas brasileiras, não têm sido capazes, não possuem mecanismos ou não querem enfrentar as perdas e os retrocessos que vivemos.

As organizações estão especialmente preocupadas com o abandono dos compromissos constantes no terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) – que, em breve completará 10 anos (publicado em 21/12/2009) -, e com vários outros planos, entre eles, o Plano Nacional de Educação, o de políticas públicas para mulheres, o de igualdade racial, o de promoção da população LGBTQI, o de educação em direitos humanos, entre tantos outros. O anúncio do “Programa Juntos pela Vida: Família e Direitos Humanos”, feito pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos para o período 2019-2023, por meio da Portaria nº 2.467, de 06/09/2019, aponta para prioridades que são muito diferentes daquelas constantes destes compromissos construídos com a participação da sociedade civil brasileira. Há clara sobreposição de propostas de ação e, ainda que as anteriores não tenham sido revogadas, de longe estão entre as prioridades a serem implementadas. Muito nos preocupa também o fechamento e inviabilização dos espaços de participação social, tais como os Conselhos, Comitês e as Conferências, em várias áreas de direitos e políticas. Está claro para nós que a série de ações de restrição orçamentária, estrutural e de autonomia política, são tentativas de desgastar e inviabilizar a atuação efetiva e de denúncia que vem sendo executada pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos. O recente fato da destituição da Procuradora Débora Duprat da função de conselheira no Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e em perspectiva de assumir a presidência do CNDH em 2020, pelo atual Procurador Geral da República Augusto Aras, é uma amostra do desrespeito, autoritarismo e intervencionismo na autonomia deste Conselho.

Além de todas as perdas já ocorridas, nos preocupa profundamente o potencial de projetos e medidas já anunciadas e em andamento que colocam risco a garantia dos direitos humanos e das vidas de muitas pessoas. Entre elas está a afirmação do Estado punitivo constante na proposta do pacote anticrime e o teor do que será aprovado do projeto apresentado pelo governo (já passou pelo Senado e agora vai para a Câmara). Aspectos como o aumento do tempo máximo de cumprimento de pena, de 30 para 40 anos, são vistos por especialistas como um risco que favorece a lógica do encarceramento, num Brasil que já tem aproximadamente 812 mil pessoas presas, conforme dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de julho deste ano. Outra crítica ao projeto diz respeito à criação de um banco de perfil genético para fichar informações de pessoas que passam pelo sistema de Justiça criminal, medida esta, que segundo especialistas, pode ajudar a endossar o preconceito social que atinge ex-detentos, por exemplo. Tão, ou mais grave, é a da insistência do governo em querer garantir o excludente de ilicitude para os agentes de segurança pública, mesmo diante da inconstitucionalidade contida nesta matéria e dos reais riscos à ampliação da ação violenta das polícias, colaborando para o aumento dos confrontos na sociedade, para o avanço no extermínio da juventude negra e pobre das periferias e com a população negra em geral, bem como para o ataque a lideranças e defensores/as de direitos humanos, que fazem luta pela terra, pelos territórios, pela natureza e pelos bens comuns e se encontram expostos a diversas situações de violências.

As propostas de Emendas Constitucionais do Plano Mais Brasil, efetivamente vão na contramão de conquistas históricas, destruindo, inclusive, direitos já garantidos. É grave a proposição de que “será observado, na promoção dos direitos sociais, o direito ao equilíbrio fiscal intergeracional”, sugerido como parágrafo único ao artigo 6º da Constituição Federal. Junto com esta estão as propostas de desvinculação dos recursos, inclusive com mudanças para os recursos previstos para a garantia do direito à saúde e à educação. Estas medidas, somadas a outras e aos impactos da Emenda Constitucional nº 95/2016 agravarão ainda mais os problemas para a garantia e a efetividade dos direitos sociais, com forte impacto na ampliação das desigualdades sociais no país. Esta preocupação se intensifica, com o Plano Pluri Anual (PPA 2020-2023) proposto pelo governo, que não menciona o fortalecimento da democracia e “esvazia os direitos”, uma vez que os recursos previstos para o período na área social são 40% menores do que os recursos previstos para a área econômica, que é objetivamente prioritária em favorecimento aos mais ricos. Ou seja, em nome da “simplificação” e do “realismo fiscal”, os direitos humanos, definitivamente, não estão nos planos do governo brasileiro, a não ser para serem desmontados e atacados.

As organizações também manifestam sua profunda preocupação em relação à participação e aos direcionamentos realizados pelo Brasil nos espaços multilaterais, em especial nos de direitos humanos. Nestes espaços a diplomacia brasileira tem assumido posições que rompem com a tradição brasileira acumulada há décadas, às quais, em grande medida, historicamente afirmaram e se comprometeram com a defesa do universalismo, do avanço das liberdades, da promoção progressiva dos direitos humanos, vide os ataques perpetrados contra documentos e convenções internacionais que versam sobre a defesa da igualdade de gênero, racial, entre outras. Estas posições, que também se traduzem em ações dentro do País, não reconhecem os direitos humanos como proteção e garantia para todos e todas. Elas são seletivas, pautadas por valores conservadores e com forte caráter de fundamentalismo religioso de cunho cristão. Tais posições que se orientam pela defesa de que os direitos humanos são para os “humanos do bem”, os “humanos direitos”, em oposição aos demais seres humanos, caracterizados como minorias, como “bandidos” e apoiadores de bandidos são frequentemente defendidas por setores do governo com argumentos bíblicos distorcidos em detrimento da Constituição. Distorcem o direito à liberdade religiosa para promover o racismo religioso, a misoginia, a LGBTIQfobia, o ódio às populações originárias e tradicionais, a violência e a eliminação daquelas pessoas e grupos sociais que são consideradas expressão do mal, entre elas: mulheres, LGBTIs, indígenas, quilombolas, povos e comunidades tradicionais, negros e negras, juventudes, crianças e adolescentes. Estabelecem falsa dicotomia entre “defesa de valores e direitos da maioria moral e valores e direitos da minoria. Dizem que os valores e os direitos das minorias não podem estar acima dos valores e direitos da maioria. Para a sociedade civil, que recentemente se manifestou contra a recondução da candidatura do Brasil ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, fica a preocupação com a falta de orientação para a atuação na perspectiva da universalidade, da imparcialidade, da objetividade e da não-seletividade, do diálogo internacional construtivo e da cooperação com vistas a aprimorar o respeito, a promoção e a proteção de todos os direitos humanos, de acordo com o Artigo 4º da Resolução nº 60/251 da Assembleia Geral das Nações Unidas.

Finalmente, as organizações signatárias instam as instituições, tais como o Parlamento, o Ministério Público, o Poder Judiciário, a cumprirem com suas responsabilidades no que se refere ao fortalecimento da democracia e ao cumprimento das garantias constitucionais e com os compromissos em direitos humanos. Também manifestam solidariedade aos lutadores e às lutadoras do povo, aos defensores e às defensoras de direitos humanos, às lideranças sociais e políticas, que seguem em luta pelos direitos humanos, de cabeça erguida, com coragem, dizendo “queremos todos os direitos humanos para todas e todas, já!”. Solidarizam-se também com os sujeitos, as lideranças, organizações e povos que estão na resistência e na luta no Brasil e em vários países da América Latina e do mundo. Conclamam à solidariedade interorganizacional no plano nacional e internacional e afirmam que somente a formação de alianças estratégicas de resistência ativa e criativa ajudarão nesta travessia difícil, mas que se alimenta do esperançar dos que há séculos lutam e conquistam espaços de mais igualdade e participação. Afirmam que direitos humanos continuam cada vez mais fazendo sentido como conquistas, razão pela qual seguirão fazendo processos de resistência, luta e de organização no cotidiano, em cada pedaço, em cada canto, em cada mente e em cada coração.

Viva os direitos humanos, viva o dia mundial dos direitos humanos.

Brasil, 10 de dezembro de 2019

Assinam este Manifesto:

1. Articulação para o Monitoramento dos Direitos Humanos no Brasil
2. Movimento Nacional de Direitos Humanos – MNDH Brasil
3. Fórum Ecumênico ACT Brasil – FEACT
4. Processo de Articulação e Diálogo Internacional – PAD
5. Sociedade Maranhense de Direitos Humanos – SMDH
6. Acesso Cidadania e Direitos Humanos
7. Aliança Nacional LGBTI
8. Associação Nacional de Travestis e Transexuais – ANTRA
9. Art Jovem
10. Associação Brasileira de Saúde Mental – ABRASME
11. Associação Nacional de Educadores e Educadoras Sociais – ANEES
12. Articulação de Mulheres Brasileiras – AMB
13. Articulação Nacional de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras – AMNB
14. Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos –
ABGLT
15. Associação Brasileira de Homeopatia Popular – ABHP
16. Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais – ABONG
17. Associação de Apoio à Criança e ao Adolescente – AMENCAR
18. Associação de Mulheres Negras do Acre
19. Associação de Mulheres Unidas da Serra (AMUS)
20. Associação de Pesquisa Xaraiés – Xaraiés
21. Associação dos Amigos do Centro de Formação e Pesquisa Olga Benário Prestes –
AAMOBEP
22. Associação dos Retireiros do Araguaia – ARA
23. Associação Sócio Cultural e Ambiental Fé e Vida – Sociedade Fé e Vida
24. CDDH Pedro Reis
25. CDEs Direitos Humanos
26. Centro Burnier Fé e Justiça, CBFJ
27. Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas – CAA
28. Centro de Apoio aos Direitos Humanos Valdicio B dos Santos (CADH)
29. Movimento Nacional de População de Rua no ES (MNPR-ES)
30. Centro de Apoio as Iniciativas Sociais – CAIS
31. Centro de Defesa da Cidadania e dos Direitos Humanos Marçal de Souza Tupã I/MS
32. Centro de Defesa da Vida Herbert de Sousa – CDHVS
33. Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente Pe. Marcos Passerini
34. Centro de Defesa dos Direitos Humanos Antônio Conselheiro – CDDHAC
35. Centro de Defesa dos Direitos Humanos da Serra/ES
36. Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Londrina e MNDH/PR
37. Centro de Defesa dos Direitos Humanos Dom Tomás Balduíno de Marapé/ES
38. Centro de Defesa dos Direitos Humanos e Educação Popular do Acre – CDDHEP
39. Centro de Defesa dos Direitos Humanos Nenzinha Machado/PI
40. Centro de Direitos Humanos de Cristalândia
41. Centro de Direitos Humanos de Formoso do Araguaia
42. Centro de Direitos Humanos de Palmas
43. Centro de Direitos Humanos Dom Máximo Biennès – CDHDMB
44. Centro de Direitos Humanos Dom Pedro Casaldáliga
45. Centro de Direitos Humanos e Memória Popular – CDHMP
46. Centro de Direitos Humanos Henrique Trindade – CDHHT
47. Centro de Direitos Humanos Maria da Graça Braz
48. Centro de Direitos Humanos Sarandi
49. Centro de Educação e Assessoramento Popular – CEAP
50. Centro de Estudos Feministas e Assessoria – CFEMEA
51. Centro de Estudos, Pesquisa e Ação Cultutal – CENARTE
52. Centro de Referência em Direitos Humanos – UFRN
53. Centro do Negro do Pará – CEDEMPA
54. Centro Dom Hélder Câmara de Educação e Ação Social – CENDHEC
55. Centro Dom José Brandão de Castro – CDJBC
56. Centro Pastoral para Migrantes – CPM MT
57. Centro de Promoção da Cidadania e Defesa dos Direitos Humanos Pe. Josimo
58. Coletivo LESBIBAHIA
59. Comissão Regional de Justiça e Paz de Mato Grosso do Sul – CRJPMS
60. Circulo Palmarino
61. Coletivo Catarinense Memória, Verdade, Justiça
62. Coletivo Feminino Plural
63. Coletivo Mães Eficientes Somos Nós
64. Comissão de Direitos Humanos de Passo Fundo – CDHPF
65. Comissão de Justiça e Paz de Brasília
66. Comissão Pastoral da Terra – CPT
67. Comissão Pastoral da Terra – CPT – MT
68. Comissão Regional de Justiça e Paz de Mato Grosso do Sul – CRJPMS
69. Comitê de Direitos Humanos Dom Thomás Balduíno
70. Comitê de Prevenção e Combate a Tortura do Piauí
71. Conceitos Ecológicos e Etnoecológicos aplicados à conservação da água e Biodiversidade
do Pantanal – CONECTE
72. Conselho Indigenista Missionário – CIMI – MT
73. Conselho Nacional de Igrejas Cristãs – CONIC
74. Coordenadoria Ecumênica de Serviço – CESE
75. Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional – FASE/ES
76. Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional – FASE/MT
77. FIAN Brasil
78. Fórum Municipal de Defesa dos Direitos Humanos de Campinas
79. Fórum de Mulheres do Mercosul – Seção Lages/SC
80. Fórum Direitos Humanos e da Terra – FDHT- Mato Grosso
81. Fórum Mato-grossense de Meio Ambiente e Desenvolvimento – FORMAD
82. Fórum Mato-grossense de Meio Ambiente e Desenvolvimento – Formad
83. Fórum Nacional da Sociedade Civil nos Comitês de Bacia Hidrográfica – Fonasc CBH/MT
84. Fórum de Mulheres do ES
85. Fundação Instituto Nereu Ramos
86. Fundação Luterana de Diaconia – FLD
87. Grupo Arareau de Preservação e Educação Ambiental – Grupo Arareau
88. Grupo de Mulheres Negras Mãe Andresa
89. Grupo Dignidade
90. Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê (Universidade de Brasília)
91. Grupo Identidade LGBT
92. Grupo Pesquisador em Educação Ambiental, Comunicação e Arte, GPEA-UFMT
93. Grupo Semente da Chapada dos Guimarães/MT – Grupo Semente
94. IDEAS – Assessoria Popular
95. Identidade – Grupo de Luta Pela Diversidade Sexual – Campinas
96. Instituto Braços
97. Instituto Brasil Central – IBRACE
98. Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas – IBASE
99. Instituto Caracol – ICaracol
100.Instituto Centro de Vida – ICV
101.Instituto Dakini
102. Instituto de Desenvolvimento e Direitos Humanos – IDDH
103. Instituto de Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais – IDHESCA
104. Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
105. Instituto de Pesquisa e Educação Ambiental – Instituto Gaia
106. Instituto DH
107. Instituto Terramar
108. Instituto Trabalho Digno
109. Instituto Vladimir Herzog
110. Koinonia – Presença Ecumênica e Serviço
111. Marcha Mundial de Mulheres / SC
112. Movimento Nacional de Direitos Humanos – MNDH/SC
113. Movimento Nacional de Filhas e Filhos de Trabalhadoras e Trabalhadores
114. Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua – MNMMR
115. Movimento de Mulheres do Campo e da Cidade/PA
116. Movimento do Espírito Lilás
117. Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB
118. Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST
119. Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST MT
120. Movimento Luta Antimanicomial – ES
121. Núcleo de Estudos Ambientais e Saúde do Trabalhador NEAST ISC
122. Núcleo de Estudos Rurais e Urbanos – NERU – UFMT
123. Observatório da Juventude/ES
124. Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida – OLMA
125. Organização de Direitos Humanos Projeto Legal-RJ
126. Pastoral Carcerária Nacional
127. Pastoral da Juventude
128. Pastoral Carcerária do Regional NE 1 da CNBB – Ceará
129. PASTORAL OPERÁRIA NACIONAL
130. Plataforma Nacional de Crianças e Adolescentes com Familiar Encarcerados. CAFE’s
131. Projeto Meninos e Meninas de Rua – PMMR
132. Rede Internacional de Pesquisadores em Educação Ambiental e Justiça Climática –
REAJA
133. Rede Mato-grossense de Educação Ambiental – REMTEA
134. Rede Afro LGBT
135. Rede Gay Latino
136. Rede SAPATÁ
137. RENAP – Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares
138. SERPAZ – Serviço de Paz
139. Sindicato dos Trabalhadores no Ensino o Público de Mato Grosso – SINTEP MT
140. Sociedade Colatinense dos Direitos Humanos
141. SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia
142. União Nacional das Organizações Cooperativistas Solidárias – UNICOPAS
143. UNA LGBT – União Nacional de Lésbicas Gays Bissexuais Trans Travestis e Intersexos
144. UNISOL Brasil
145. Sindicato dos Psicólogos no Estado do Espírito Santo (SINDPSI-ES)
146. Associação ECCOS
147. ISER Assessoria – RJ

A educação para os direitos humanos desapareceu

A Câmara dos Deputados vota amanhã (10/12) o relatório da Comissão Externa criada para acompanhar o trabalho de gestão e planejamento do Ministério da Educação (MEC). O documento é uma extensa e importante análise, que vai desde a execução orçamentária, até os cargos de direção (DAS 5 e 6), apresentando questões graves sobre o descaso com a política de educação por parte do atual governo, e proporcionando informações que o próprio Poder Executivo não disponibiliza.

Ao apresentar o relatório, o Poder Legislativo realiza um dos seus compromissos de fiscalização das ações governamentais.

Nos debruçamos sobre o documento e destacamos, a seguir, alguns pontos que merecem atenção por serem ilustrativos da ineficiência e retrocesso da atual gestão da pasta, comandado pelo ministro Abraham Weintraub.

Fim da educação para a diversidade

O fechamento da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi), substituída pela Secretaria de Alfabetização (Sealf) é um exemplo, pois a nova secretaria não assumiu todas as ações da antiga e não realizou o que anunciou, que era a tal “alfabetização acima de tudo”, já que as metas do Plano Nacional de Educação (PNE) para alfabetização total e alfabetização funcional não se moveram.

Além de não combater o analfabetismo tal qual a promessa feita, a Sealf não atuou nas áreas de educação indígena, quilombola, jovens e adultos, ribeirinhos, e educação do campo como a Secadi atuava. Essas pautas foram diluídas entre várias secretarias, que ao serem pulverizadas, enfraqueceram. A educação para direitos humanos simplesmente desapareceu.

As duas únicas dotações orçamentárias dedicadas à Educação de Jovens e Adultos tiveram execução de menos de 1% até novembro de 2019, o que indica a descontinuidade das políticas destinadas para este fim. A Política Nacional de Alfabetização proposta por esta gestão estabelece a prioridade da alfabetização indígena por língua portuguesa, contradizendo frontalmente o Estatuto do Índio que determina que ―a alfabetização dos índios far-se-á na língua do grupo a que pertençam e em português, salvaguardado o uso da primeira.

A Secretaria de Articulação com os Sistemas de Ensino (Sase), criada em 2011 depois da Conferência Nacional de Educação (Conae), para ser a guardiã do PNE, também foi extinta. Além do PNE, a Sase lideraria o acompanhamento de estados e municípios, proporcionando a efetivação do Sistema Nacional de Educação, preconizado na Constituição Federal e reforçado pelo PNE, que indicava que até 2016 o sistema precisava ser criado. Ele não foi criado a tempo e agora, provavelmente, não será criado na vigência desse atual Plano, especialmente com o fim da Sase.

Escolas cívico-militares

Ao mesmo tempo em que não está cumprindo com os próprios compromissos com relação à alfabetização, o Ministério já ampliou várias vezes o número de escolas que poderão se tornar “cívico-militares”, no entanto, sem critério algum, ou evidências de que os resultados poderão ser efetivos. E, principalmente, sem participação das comunidades escolares neste processo.

A proposta não é transparente e não diz de fato a que veio, já que separa o pedagógico do disciplinar, criando uma aberração. Além disso, como o relatório reforça, o projeto não está no Plano Nacional de Educação, ao qual a política educacional deveria estar submetida.

No que tange ao planejamento desta gestão até o presente momento nada foi feito e está adiado para fevereiro de 2020, de acordo com os relatores, por estar totalmente submetido ao calendário do Ministério da Economia. Há apenas alguns planos de trabalho pouco consistentes, sem metas, distribuição de responsabilidades, prazos etc. Até porque, houve danças de cargos ao longo de todo ano, com pouca qualidade nas escolhas, muita gente sem experiência na área.

PNE

O PNE possui 20 metas, destas, apenas 4 foram atendidas parcialmente, e desde a sua vigência (2014), 4 não foram descumpridas. Mais grave é a política de austeridade, com o teto dos gastos e agora a PEC do Pacto Federativo, que tornarão impossível o alcance da meta de financiamento ampliado e de criação do Custo Aluno Qualidade (CAQ), que lista os insumos necessários para o cálculo do valor aluno/ano para o Fundeb.

Outra questão relevante destacada no relatório é a dificuldade de mensurar algumas metas do PNE, pois não há dados para vários indicadores, tais como: porcentagem de redes municipais e estaduais com planos de carreira aprovados; porcentagens de docentes do ensino médio com curso superior etc. Metas relacionadas à educação infantil, ensino médio, alfabetização, educação superior, educação integral, dentre outras, ficaram bem distantes do previsto até 2019. No entanto, os projetos apresentados pela atual gestão, nada tem a ver com estas metas do PNE, mostrando total desinteresse por uma Lei aprovada pelo Congresso e respaldada pela população.

Orçamento

Com relação ao previsto no Plano Plurianual 2020/2023 em tramitação no Congresso e prestes a ser votado, não há indícios sobre a correlação do que está proposto com o PNE, que deveria ser o norteador da política, já que vigora até 2024. Além disso, metas e indicadores são insuficientes para um monitoramento verdadeiro da política, seja por parte do Legislativo, seja por parte da população.

A Educação foi a área mais afetada pelo contingenciamento orçamentário. E mesmo que tenha acontecido a liberação de recursos, as políticas foram prejudicadas, atrasadas, descontinuadas. As universidades, por exemplo, foram bastante lesadas, pois o ensino superior detém a maior parte dos recursos discricionários do MEC, sujeitos ao bloqueio.

Mesmo com o desbloqueio, cerca de R$ 1bilhão de reais foram cortados definitivamente, conforme aventado em artigo publicado pelo Inesc em outubro. E além do contingenciamento, em várias áreas e programas a execução foi bastante lenta. O relatório informa que o Pronatec teve apenas 1% do orçamento empenhado e o Programa Dinheiro Direito na Escola 24%. Das 4 mil creches prometidas até 2022, praticamente nada foi realizado no primeiro ano.

O relatório da Câmara dos Deputados é um importante documento de denúncia da não política de educação executada por esta atual gestão, que tem atacado cotidianamente todas as áreas, especialmente, as universidades, alvos de declarações esdrúxulas, falsas e de tentativa de desmonte por parte do ministro totalmente inábil para o cargo que ocupa.

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Em 10 anos, despesas do Ministério da Saúde com medicamentos dobraram

Nos últimos 10 anos, os gastos do Ministério da saúde com medicamentos praticamente dobraram, passando de R$ 9 bilhões em 2008 para R$ 17 bilhões em 2018. O aumento foi proporcionalmente maior do que o do orçamento da Saúde no mesmo período: os recursos do Ministério cresceram 41% em termos reais.

O levantamento foi feito pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), com dados extraídos do portal Siga Brasil, do Senado Federal, em julho de 2019. Com o objetivo de avaliar a alocação de recursos federais na promoção do acesso a medicamentos no Brasil, o Inesc utiliza a ferramenta do Orçamento Temático de Acesso a Medicamentos (OTMED).

Nesta terceira edição, o OTMED traz os dados de 2018 e revisita toda a série histórica da execução financeira do Ministério da Saúde analisada pelo Inesc nestes 10 anos.

O estudo* mostra que o aumento proporcionalmente maior do OTMED em relação ao do orçamento da Saúde em geral pressiona os já escassos recursos destinados para esse setor, inclusive aqueles designados à promoção e à prevenção. Para Luiza Pinheiro, assessora política do Inesc, ainda que o aumento do OTMED seja, a princípio, uma boa notícia, é importe verificar se eles estão de fato ampliando o acesso da população a medicamentos.

“O crescimento do investimento público em medicamentos é importante, tendo em vista as expressivas carências em saúde que acometem grande parte da população brasileira e a centralidade que os medicamentos ocupam no cuidado atual. Contudo, boa parte desses recursos é retida pelas indústrias farmacêuticas e pelo varejo, em sua maioria multinacionais e de grande porte, que têm lucros crescentes mesmo no cenário de crise”, explicou a autora do estudo.

O mercado farmacêutico apresentou crescimento acima do PIB nos últimos anos e foi um dos poucos setores não afetado pela crise de 2008. O setor faturou R$ 69,5 bilhões em 2017.

Gastos por componente

No detalhamento por componente, o Componente Estratégico (CESAF) é o que apresentou maior crescimento no período em termos reais, chegando, em 2018, a um valor duas vezes e meia maior do que o observado em 2008. O Componente Especializado (CEAF) aumentou 53%, enquanto o Componente Básico (CBAF) permaneceu praticamente constante, com elevação de apenas 3%.

O CBAF garante o custeio e a distribuição de medicamentos e insumos essenciais destinados à Atenção Básica, além de ações para a qualificação da Assistência Farmacêutica. A estagnação do orçamento do CBAF pode significar, na avaliação de Luiza Pinheiro, uma priorização da distribuição de medicamentos via programa Farmácia Popular (FP), cujo recurso triplicou, em termos reais, em 10 anos.

“O problema é que o Farmácia Popular não atende pessoas que o CBAF atende. Além disso, o Farmácia Popular, por meio da rede conveniada, acaba beneficiando a rede privada de varejo farmacêutico”, explicou Luiza. “Os programas deveriam ser complementares, mas o que acontece é a opção pela via privada”, completou.

Judicialização da assistência farmacêutica

Os gastos do MS com a judicialização de medicamentos voltaram a crescer em 2018, alcançando a marca de R$ 1,31 bilhão, mas ainda não atingindo o mesmo patamar de 2016, considerando-se a inflação.

De acordo com o levantamento, “o aumento dos gastos com a judicialização nos dois últimos anos está, em grande parte, relacionado com a aquisição de medicamentos de alto custo. Soma-se a isso a necessidade de cumprimento tempestivo das determinações impostas à União pela Justiça. Isso piora com a crise financeira dos estados, fazendo com que o governo federal assuma as obrigações judiciais, devido à obrigação solidária entre os entes públicos”.

Saúde Indígena

O Subsistema de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas recebe por ano, em média, R$1,5 bilhão. Deste total, 1,4% é gasto com medicamentos. O valor investido na saúde indígena é insuficiente para atender de forma adequada os 24 Distritos de Saúde Indígena espalhados por todo o território nacional, considerando as características específicas destas populações e seu acesso.

Recomendações

Ao final do estudo, o Inesc faz recomendações ao setor público com o objetivo de contribuir para a ampliação do acesso a medicamentos, bem como para a redução das desigualdades na realização do direito à saúde no Brasil. Algumas delas: criar mecanismos de promoção da equidade via assistência farmacêutica; fomentar a participação popular, envolvendo a sociedade civil nas questões relacionadas à Assistência Farmacêutica; e debater a efetividade dos gastos tributários, já que o setor apresentou elevações substantivas de benefícios fiscais, passando de R$ 4 bilhões em 2018 para R$ 7,5 bilhões em 2016, último dado efetivo disponível.

Metodologia Orçamento e Direitos

Desde os anos de 1990, o Inesc analisa o orçamento de políticas e serviços públicos com o prisma da realização dos direitos humanos. Para isto, desenvolveu a metodologia Orçamento & Direitos, que foi revisitada e atualizada no ano de 2017, processo que originou a publicação de sua nova edição, disponível aqui.

A metodologia prevê os Orçamentos Temáticos, construídos por meio de agrupamentos de despesas, utilizando-se plataformas de dados abertos oficiais e solicitações de informação, de forma a integrar as rubricas que destinam recursos à promoção do direito que se pretende pesquisar – o que nos permite monitorar séries históricas e acompanhar tendências dentro de um mesmo tema, sem que nos limitemos a uma política ou a um programa específicos.

*ERRATA: substituímos o arquivo do estudo para corrigir alguns erros:

–Na página 10, no Gráfico 1, onde se lia “R$ milhões a preços de 2018” o correto é “R$ bilhões”.

– Na página 19, onde se lia “Não houve aumento no número de ações que justifique a queda do valor, pois elas decrescem desde 2016 (foram 2.639 novas ações em 2016 e 1.240 novas ações em 2018)”,  o correto é “Não houve variação no número de …”.
– Na página 27 , onde se lia “O preço unitário desses medicamentos é muito alto, pois eles custam apenas 3,8% dos produtos comercializados“,  o correto é “pois eles correspondem a apenas 3,8% das unidades comercializadas“.

– Na página 28, onde se lia “Os gastos tributários com o setor também apresentaram elevações substantivas, passando de R$ 4 bilhões em 2018 para R$ 7,5 bilhões em 2016, último dado efetivo disponível”,  o correto é ” passando de R$ 4 bilhões em 2008 para R$ 7,5 bilhões em 2016, último dado efetivo disponível.”

 

Orçamento Temático de Acesso a Medicamentos: série histórica (2008-2018)

Orçamento Temático de Acesso a Medicamentos (OTMED): análise de 10 anos de recursos federais destinados à assistência farmacêutica. Estudo apresenta avaliação das execuções financeiras do Ministério da Saúde com medicamentos de 2008 a 2018.

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