Mortes no trânsito: governo não prioriza mobilidade no orçamento federal

Relatório da Organização Mundial de Saúde (OMS) noticia que o Brasil ocupa o quinto lugar entre os países com mais mortes no trânsito, atrás apenas da índia, China, Estados Unidos e Rússia. Estamos também entre as 10 nações onde ocorrem 62% das 1,2 milhão de mortes por acidente de trânsito, além de outras 50 milhões de pessoas feridas.

Na maioria das vezes, o “acidente” é causado pela ausência de fiscalização e pela falta de ações de educação, ou seja, uma responsabilidade compartilhada entre Estado e cidadãos usuários de automóveis que desrespeitam o Código de Trânsito. O orçamento federal deveria prever recursos para ajudar a melhorar esses índices trágicos, que afetam também a economia.

Segundo o Observatório Nacional de Segurança Viária, em 2016 (último ano com dados disponíveis), o Brasil perdeu 37 mil pessoas no trânsito e outras 600 mil ficaram com sequelas. Além de onerar o Sistema Único de Saúde (SUS), há consequências para a economia de maneira geral, pois a maior parte das pessoas que perdem a vida ou ficam com sequelas permanentes estão na idade economicamente ativa, são jovens. O mesmo Observatório, utilizando de dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), diz que o Brasil gasta cerca de R$ 52 bilhões por ano com os acidentes, isso com dados conservadores, pois se considerar mortes e invalidez, pagamento de leito hospitalar, previdência, seguro, pode-se chegar tranquilamente a R$ 100 bilhões. E, ainda, 60% dos leitos hospitalares do SUS são ocupados com os acidentes.

Por compromisso com a Década da Segurança Viária (2011-2020), o Brasil teria de reduzir em 50% o número de mortes no trânsito até 2020. No entanto, a um ano do prazo estamos bem longe do cumprimento do compromisso, pois pelos dados disponíveis, entre 2011 e 2016 os acidentes reduziram cerca de 15% apenas. Além disso, ao invés de aprofundarmos medidas de segurança, fiscalização, humanização e educação, o governo atual caminha em sentido contrário, dizendo que o mais importante é o “prazer em dirigir”, e para isso pode-se trafegar em velocidades mais altas, sem o risco de cair na “indústria da multa”. Até a obrigatoriedade de cadeirinha especial para crianças foi questionada pelo presidente da república.

Orçamento em queda

Diante deste quadro, além da proposta estapafúrdia de flexibilização das regras de trânsito propostas pelo governo, há tempos a União vem desmantelando o Ministério das Cidades, especialmente após a aprovação da Emenda do Teto dos Gastos (EC 95) em 2016. Ação que congelou o orçamento, principalmente a parte não obrigatória, ou discricionária, que era a totalidade das ações desse Ministério. E em 2019, o governo o extinguiu, incorporando suas secretarias no atual Ministério do Desenvolvimento Regional e Ministério da Infraestrutura.

Para se ter uma ideia da falta de priorização das ações voltadas para as cidades, dentre elas mobilidade e trânsito, além de saneamento, habitação e demais ações da pauta urbana, o orçamento executado pelo MCidades em 2018, incluindo Pago e Restos à pagar pagos, foi 3,5 vezes menor do que em 2015: caiu de 1,58% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2015 para apenas 0,45% do PIB em 2018.

O Programa Mobilidade Urbana e Trânsito, que compõe parte desse orçamento e hoje está ligado à Secretaria de Mobilidade e Serviços Urbanos do Ministério do Desenvolvimento Regional, é o que traz, ou deveria trazer recursos para educação e fiscalização, além de moderadores de tráfego dentre outros. Vejamos a evolução da dotação inicial orçamentária, entre 2015 e 2019, que mostra uma redução de recursos de 7,6% nesse período:

Se formos ao nível das ações, separando apenas aquelas que se relacionam com educação, fomento à pesquisa para qualificação, moderação de tráfego, prevenção de acidentes e fiscalização veremos que, mesmo com orçamento mais robusto em anos anteriores, poucas eram executadas. E hoje não possuem orçamento, praticamente.

Vejamos na tabela abaixo por ação, de 2015 a 2019. Apesar de terem dotações iniciais, em 2015, apenas 10% foi executado, e somente em educação (Ação 4414), nas demais, nada foi feito. Em 2016, a ação Educação para a cidadania no trânsito nem sequer apareceu e nada foi executado; em 2017, com baixíssimo orçamento e mesmo assim, a ação destinada à educação teve sua execução em menos da metade dos parcos recursos. Em 2018 e 2019 não há nada. Então, podemos ver, por esta pequena amostra, que as ações de educação, moderação, modernização e fiscalização não são prioridades. E não é apenas para o governo federal, pois estas ações também poderiam ser realizadas de forma descentralizada, por projetos, mas os estados e municípios também não se interessam.

No entanto, há inúmeras ações não orçamentárias, financiadas pela Caixa Econômica Federal e BNDES, para obras de infraestrutura novas, que são sempre acionadas. Nossas cidades estão sempre em obra, mas não obras de manutenção, porque estas também são insuficientes, veja-se os casos de queda dos viadutos em Brasília e em São Paulo e a interdição de toda a plataforma da rodoviária do Plano Piloto em Brasília, por não receber manutenção.

Os gestores estão sempre atrás de novas e grandiosas obras rodoviaristas, para mais carros, sem pensar em formas de humanização das cidades, no meio ambiente, ou mais espaços para pedestres, ciclistas, pessoas com mobilidade reduzida. Querem pontes, viadutos, carros. Este é o tal caminho do desenvolvimento sem pensar no mundo que estamos a construir.

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Contingenciamento: quais setores sofreram cortes de orçamento?

R$ 31 bilhões. Este é o valor contingenciado pelo governo Bolsonaro até agora. Mas para onde foram direcionados os cortes exatamente? O Portal de Orçamento do Senado (Siga Brasil) mudou recentemente a forma de divulgar os contingenciamentos, o que permite responder a essa pergunta.

Contingenciamento é prática costumeira dos governos e corresponde ao ajuste das despesas ao volume de receitas arrecadado pelo Tesouro. O encontro de contas acontece por meio dos Decretos de Programação Orçamentária. Até o momento, três decretos foram emitidos pelo governo, nos meses de fevereiro, março e maio.

O problema é que esses decretos contêm informações somente referentes aos cortes por órgão, ou seja, por Ministério, o que torna a transparência “opaca”, na medida em que não é possível visualizar em quais  políticas públicas os ajustes foram feitos.

Desde junho isso mudou. O Siga Brasil passou a divulgar os dados do contingenciamento a partir das classificações orçamentárias (programa, ação, plano orçamentário etc.), tornando possível maior controle social. Na presente nota, todos os dados foram extraídos desse portal, no dia 12 de junho de 2019, com seus valores indexados pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).

É possível agora saber, por exemplo, quais programas foram atingidos com os cortes na Educação e os valores exatos. O levantamento do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) revela que o programa de Bolsa Permanência no Ensino Superior e o de Apoio à Infraestrutura da Educação Básica tiveram 100% de seus recursos congelados. O programa Minha Casa Minha Vida e as políticas de proteção aos direitos indígenas também estão entre os que mais sofreram com os cortes, como veremos a seguir.

Analisando de maneira ampla, os contingenciamentos pouparam áreas governamentais que historicamente possuem muitos privilégios, com o Legislativo e o Judiciário, e atingiram fortemente áreas relacionadas com a garantia de direitos humanos, que já vinham sofrendo com a diminuição de recursos nos últimos anos. Com as atuais prioridades do governo e o Teto de Gastos vigente, poucos serão os recursos para a garantia de direitos das minorias brasileiras.

Contingenciamentos por Função: uma visão abrangente dos cortes governamentais

O contingenciamento afetou praticamente todas as áreas de atuação da União (chamadas de Funções), com exceção das funções Legislativo, Judiciário, Saúde e Reserva de Contingência, como pode ser observado na Tabela 1. Contudo, alguns setores foram mais afetados do que outros.

Quando analisamos as funções que mais contribuíram para o total contingenciado (ver a coluna P2 da Tabela 1), observamos que cerca de um terço foi direcionado a políticas sociais (educação, trabalho, assistência social, direitos da cidadania, segurança pública, habitação, saneamento e organização agrária, entre outras). Entre essas, o maior corte foi na Educação, que sozinha representou 18% do total contingenciando, evidenciando o pouco caso desse governo em relação à realização dos direitos constitucionais.

Outra função atingida foi a de Encargos Especiais, que perdeu cerca de R$ 8,1 bilhões, equivalentes a 27% do total contingenciado. Os maiores cortes nessa função, que aglutina gastos governamentais não-finalísticos, ocorreram na participação acionária do governo em empresas. As empresas atingidas foram a Infraero, a Eletrobrás, a Emegepron, a Telebrás, a Pré-Sal Petróleo, as Companhias Docas do Rio Grande do Norte e de São Paulo e os Correios.

O maior contingenciamento de participação da União no capital de empresas foi o da Eletrobrás, contabilizando R$ 3,5 bilhões de reais, 11,27% do total contingenciado pelo governo em 2019.

E, finalmente, a Defesa também viu seu orçamento encolher em R$ 5,8 bilhões, ou seja, 19% do total contingenciado. Essa área teve aumento de gastos governamentais entre 2014 e 2018, principalmente no que se refere a despesas com pessoal. O contingenciamento da Defesa Nacional, porém, não focou no gasto com pessoal, e sim em investimentos de material bélico, como detalha reportagem do site DefesaNet.

Quando se analisa o que a redução do orçamento representa em relação ao que havia sido inicialmente previsto (ver coluna P1 na Tabela 1), vê-se que a função mais afetada pelos cortes foi a Habitação: o contingenciamento levou mais de 90% dos seus recursos. Tal medida significou, na prática, o desaparecimento do Programa Minha Casa Minha Vida, que está passando por um processo de revisão e foi noticiado que só dispõe de recursos até julho.

A segunda área mais atingida é a dos Direitos da Cidadania, que viu seu orçamento encurtar em 27%. Neste setor estão as políticas relacionadas com defesa dos direitos de minorias e setores vulneráveis da sociedade, como mulheres, população indígena e negra, migrantes, consumidores e pessoas com deficiência. Os programas que mais sofreram com cortes nessa função foram “Justiça, Cidadania e Segurança Pública”, e “Proteção e Promoção dos Direitos dos Povos Indígenas”, que tiveram seus orçamentos contingenciados em 44,9% e 32,86%, respectivamente.

Vamos analisar mais profundamente três áreas relacionas com a garantia de direitos que sofreram com os cortes: educação, políticas para mulheres e políticas para os povos indígenas.

Educação: ações tiveram 100% de recursos contingenciados

A execução orçamentária da educação vem caindo em tempos recentes. Entre 2014 e 2018, a queda foi de 13,5% em termos reais, como pode ser observado no Gráfico 1. No primeiro semestre de 2019, o contingenciamento retirou 5% do que foi autorizado inicialmente.

Quando da aprovação da Emenda 95, conhecida como Teto dos Gastos, houve a promessa de que os setores de Saúde e de Educação não seriam afetados. Mas não é o que os números dizem no caso do MEC.

No âmbito da Função Educação, algumas ações foram zeradas, sendo 100% contingenciadas. Se tal medida não for indicador de que não realizarão as políticas, que outros sinais precisarão dar para que se entenda quais as intenções do governo? Vejamos alguns exemplos.

A ação “Apoio à Infraestrutura da Educação Básica”, direcionada para implantação e adequação de estruturas esportivas escolares, é um exemplo de contingenciamento total dos recursos autorizados. De acordo com o IBGE, em apenas 27% das cidades brasileiras escolas possuem campo de futebol, ginásio, pista de atletismo ou piscina. O Brasil sediou as Olimpíadas com apenas 43 pistas de atletismo e 265 piscinas em escolas, em todo o país. Além disso, as desigualdades regionais ficam explícitas, visto que a maior parte dos equipamentos se concentra nos estados de Santa Catarina, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Ceará e Paraná. Nos estados de Rondônia, Amapá, Pernambuco e Mato Grosso do Sul, não há escolas estaduais com equipamentos esportivos. Apesar disso 100% dos recursos estão contingenciados.

Outra ação com 100% de corte é a “Concessão de Bolsa Permanência no Ensino Superior”. O governo já havia enviado orçamento zerado para esta ação, contudo, houve um esforço no Congresso de se fazer emenda do relator e de comissão para garantir a permanência de indígenas, quilombolas e estudantes de baixa renda nas universidades, que teve todo o recurso suspenso. Como este é um gasto necessário todos os meses, na prática estas bolsas não atenderão ao seu público. O próprio portal do MEC diz que o programa foi instituído para minimizar as desigualdades sociais, étnico-raciais e contribuir com a permanência e diplomação de estudantes em situação de vulnerabilidade socioeconômica. O fato de não se destinar recursos para a ação é um sinal de que as desigualdades vão se ampliar e isso não é preocupação dessa gestão.

As demais ações com 100% de corte relacionam-se com os exames de avaliação da educação básica, Educação de Jovens e Adultos (EJA), educação profissional, dentre outras. Ou seja, nem aquilo que o governo diz priorizar está isento de cortes, como educação profissional, por exemplo. Além disso, cortar recursos da EJA, que é a parte mais fragilizada da educação, é vulnerabilizar ainda mais os vulneráveis, pois sem conclusão da educação básica, a maioria entra para as estatísticas do desemprego.

Casa da Mulher Brasileira teve 54% dos recursos contingenciados

O Inesc vem denunciando há algum tempo o progressivo desmonte das políticas para as mulheres em função de diversas medidas de austeridade, como contingenciamentos e a Emenda Constitucional 95, que congelou as despesas da União por 20 anos. Assim, entre 2015 e 2018, os gastos da Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres (SPM) caíram 65% em termos reais.

Em 2019, foram autorizados R$ 48,2 milhões para o Programa “Políticas para as Mulheres: Promoção da Igualdade e Enfrentamento à Violência”, praticamente metade do que foi alocado em 2017. Destes, R$ 21,5 milhões seriam para o Disque 180, mas foram cortados R$ 4,5 milhões. Esse programa – que é a principal porta de entrada da política de enfrentamento a violência, o número para o qual todas as brasileiras podem ligar em caso de sentir-se ameaçada ou de ser agredida – teve uma redução de 20,7%.

Para se ter uma ideia comparativa, em 2017 o recurso autorizado para o Disque 180 foi de R$ 36,4 milhões e o executado de R$ 31,7 milhões, o que corresponde a 87% de execução. Em 2017 foi autorizado o montante de R$ 39,4 milhões e executado R$ 30,8 milhões (78% de execução). Em 2018 nada foi autorizado, nem gasto.

O Inesc também divulgou que o Relatório Balanço Disque 180, elaborado pelo Governo, não está mais disponível ao público. Na pesquisa que realizamos em 2017, onde citamos o Balanço de 2016, observamos que, em 10 anos, foram 5 milhões de acessos ao serviço, com uma média anual de 500 mil ligações. Tais dados revelam a importância do programa para combater a violência contra as mulheres.

Em relação à Casa da Mulher Brasileira, equipamento fundamental para abrigar mulheres em situação de risco, foram contingenciados 54% dos recursos, já insuficientes, de R$ 1,3 milhão: hoje, são sete unidades construídas que necessitam de verbas para manutenção, e apenas duas em funcionamento, de uma promessa de 27 casas, uma por Estado, presente no PPA – Plano Pluri Anual 2016-2019.

Orçamento Indígena

No que tange aos povos indígenas, as principais ações do programa “Proteção e Promoção dos Direitos dos Povos Indígenas” também sofreram com os contingenciamentos, à exceção da ação destinada à promoção da saúde indígena – que, no entanto, tem passado por outra ordem de desmontes. Tais cortes orçamentários compõem o quadro de etnocídio em curso no país: eles atingem tanto a garantia aos direitos territoriais indígenas como esvaziam políticas de participação, de incentivo à autonomia econômica das comunidades, preservação do patrimônio cultural indígena, além de políticas elaboradas para grupos específicos como os grupos indígenas de recente contato.

Nesse contexto, uma política que sofreu com o contingenciamento foi a “Preservação Cultural dos Povos Indígenas”, destinada a salvaguardar o patrimônio cultural indígena por meio de pesquisas, divulgação e documentação. O corte atingiu 34% de seu orçamento autorizado. Essa política vem apresentando queda constante de seus gastos desde 2016 (ver Gráfico 3). Na ação “Direitos Sociais e Culturais e a Cidadania”, relacionada a instâncias de monitoramento, acompanhamento e participação nas políticas voltadas aos povos indígenas, o corte foi de 31%.

Nessa ação, chama atenção a retirada de R$ 161 mil dos parcos R$ 475 mil autorizados para o Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI), principal órgão consultivo das políticas públicas para os povos indígenas, cujas reuniões estão suspensas desde 2016. Junto com as demais instâncias participativas, o conselho sofreu recentemente o ataque do governo Bolsonaro por meio do Decreto 9.759/19, que extinguiu os órgãos colegiados da esfera pública. A liminar concedida pelo STF no dia 13 de junho suspendeu o efeito da lei para instâncias citadas por lei, como é o caso CNPI, porém  seu esvaziamento segue em curso com o minguar de recursos.

A ação “Gestão Ambiental e Etnodesenvolvimento” sofreu contingenciamento de 35%. Trata-se de ação relacionada à concretização da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI), alicerçada nas reivindicações indígenas e que promove autonomia produtiva para as comunidades em consonância com suas tradições culturais. É também com recursos desta ação que a FUNAI deve fazer o acompanhamento do componente indígena no licenciamento ambiental. O Plano Orçamentário destinado a esse acompanhamento teve 47% de seus recursos contingenciados.

Os cortes de recursos não surpreendem, pois o atual governo advoga sem pudores a expansão do agronegócio e da mineração em terras indígenas. A fragilização de projetos econômicos alternativos como os promovidos pela PNGATI e dos procedimentos de licenciamento de empreendimentos são imprescindíveis para esse projeto.

Ações importantes para as garantias territoriais indígenas também sofreram cortes. A ação “Proteção aos povos indígenas de recente contato” foi contingenciada em 34%, consolidando o desmantelamento da antes admirada política brasileira de proteção aos povos de recente contato e em isolamento voluntário. A falta de investimento em tais políticas tem aumentado as invasões de garimpeiros e madeireiros a esses territórios, muitas vezes resultando em mortes por doenças e assassinatos de grupos indígenas.

Da mesma forma, é preocupante o corte de 38% na ação “Regularização, Demarcação e Fiscalização de Terras Indígenas” em um momento em que os conflitos fundiários e os ataques aos territórios indígenas atingem níveis alarmantes. Os cortes orçamentários caminham junto com as iniciativas em curso de desmontar a demarcação e fiscalização das Terras Indígenas, tentando transferi-las para órgão com interesses claramente opostos à sua realização, o MAPA. Tais iniciativas ocorreram primeiramente por meio da MP 870 e, depois de sua derrota no congresso, pela edição de nova medida provisória. Além disso, se olharmos a execução financeira das ações agora contingenciadas, vemos que há necessidade de recomposição orçamentária para que elas saiam do papel e que, apesar do breve respiro de 2018, a opção pelo contingenciamento prejudicará ainda mais a necessária recuperação da Funai.

 

O que esperar da Política de Responsabilidade Social e Ambiental do BNDES

Criada em 2010 e atualizada de 5 em 5 anos, a Política de Responsabilidade Social e Ambiental (PRSA) do BNDES está passando por nova revisão. O contexto político atual confere ainda mais relevância ao tema: estamos diante de um governo com uma grande disposição de desmontar a política social e ambiental brasileira.

A despeito disso, a consulta pública, que se encerrou em 05 de julho, com o objetivo de ouvir a sociedade para aprimorar os princípios e diretrizes que norteiam as ações socioambientais da instituição, foi protocolar e generalista. O BNDES perdeu mais uma chance de responder a uma antiga e recorrente crítica de comunidades impactadas pelos projetos financiados pelo Banco, organizações e movimentos sociais que há tempos acompanham esta Política, apontam suas fragilidades e a falta de diálogo.

Ainda assim, na avaliação do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), a expectativa, que se agiganta no atual contexto, é que o BNDES não fuja da sua responsabilidade socioambiental. “Isto hoje, mais que nunca, significa não só cumprir a legislação ambiental, mas ir além, influenciando diretamente para uma mudança de práticas e de postura do conjunto dos órgãos públicos envolvidos na realização de grandes obras, desde o federal até o local”, avaliou Alessandra Cardoso, assessora política do Inesc.

Não é pedir pouco, de fato, pois o BNDES é um “braço financeiro” a serviço da política de investimento do governo federal. E a orientação do atual governo, além de tentar criminalizá-lo e sufocar sua capacidade de financiamento, é colocá-lo a serviço da estratégia de privatização. Mas o BNDES é, ainda, um dos maiores Bancos de Desenvolvimento do mundo, tem uma sólida estrutura interna, apesar da sua pouca disposição de diálogo com a sociedade.

Por isto, também, várias organizações somam esforços sistemáticos de avaliação da PRSA do BNDES, seguem acompanhando sua implementação e, inclusive, participam de processos de consulta.

Avanços na transparência, mas é preciso ir além

Para Júlia Cruz, advogada e pesquisadora da Conectas Direitos Humanos, houve melhorias significativas nas políticas de transparência do BNDES nos últimos anos em relação a contratos, valores e operações. No entanto, isso não chegou até a área socioambiental. Os mecanismos institucionais do banco também podem melhorar – e a consulta pública é um exemplo disso, assim como a Ouvidoria e eventos temáticos que o BNDES promove.

“O banco de fato avançou muito, mas essa abertura foi limitada. Para muitos projetos ainda é difícil conseguir documentos sobre a parte socioambiental, isso quando não são negados com a alegação de ser sigilosos. Ou seja: para evitar isso, a transparência socioambiental precisa estar no próprio contrato dos projetos”, afirma Júlia.

Temas estratégicos como mudanças climáticas, conservação da biodiversidade, direitos humanos e questões de gênero não podem ficar alheias à política do BNDES. A população precisa de instrumentos de monitoramento de impactos socioambientais com transparência e participação de grupos afetados. Só assim será possível uma tomada de decisões realmente eficaz sobre a mitigação, compensação e reparação de danos.

O caso de Belo Monte ilustra a dificuldade do BNDES de avançar nos procedimentos de avaliação e monitoramento dos impactos por meio de auditorias independentes e, também, na transparência deste monitoramento. O acesso pela sociedade aos relatórios da auditoria de Belo Monte foram objeto de longa disputa judicial protagonizada pelo Instituto Socioambiental (ISA) que se iniciou em 2014.

Somente depois de três anos, em setembro de 2016, foi firmado um acordo extrajudicial entre o BNDES, Ministério Público Federal e Norte Energia, empresa responsável pela construção da hidrelétrica de Belo Monte. Pelo acordo, a empresa foi obrigada a divulgar em seu site os relatórios produzidos pela auditoria independente. Contudo, essa não passou a ser uma prática do Banco para outros projetos.

Critérios mais claros e medidas objetivas para aprovar financiamentos

Organizações sociais tem insistido no tema da revisão dos critérios para o financiamento de grandes obras, que foi a tônica da atuação do BNDES na última década, sobretudo hidrelétricas. Esses projetos, obsoletos na maior parte do mundo, geram altíssimo impacto socioambiental e não dão o retorno esperado mesmo do ponto de vista puramente econômico.

É preciso aprimorar os mecanismos de governança para checagem sistemática do histórico de quem pleiteia recursos do banco. A falta de medidas objetivas é grave. Por exemplo: levantamento realizado pelo Inesc revelou que o banco emprestou, entre os anos 2000 e 2016 quase R$ 90 milhões para empresas e pessoas físicas que integram a Lista Suja do Trabalho Escravo nos estados da Amazônia Legal. É imprescindível que esses empreendedores cumpram a legislação sobre a proteção ambiental e os direitos humanos;

É importante que estas salvaguardas sejam passíveis de avaliação pelo público externo quanto à sua eficácia, além de possibilitar espaços de consulta para sua atualização periódica e mecanismos de recebimento de denúncias e investigação sobre eventuais desvios de conduta por parte de empreendedores e próprio BNDES.

Por isso, uma aplicação efetiva de suas diretrizes socioambientais exige, por exemplo, a criação de processos de avaliação dos impactos socioambientais por meio de auditorias externas independentes, construídas a partir de parâmetros definidos em diálogo com os afetados e tornadas públicas.

Entre as fragilidades da PRSA do Banco, está a chamada “Política do Entorno” do BNDES que, basicamente, estabelece como parte do contrato para projetos de elevado impacto socioambiental a obrigação de inclusão de subcréditos sociais. Esta tem sido a resposta do Banco para o problema dos impactos gerados pelas obras – não mitigados ou compensados pelo licenciamento e exponenciados pela ausência de políticas públicas.

Para Alessandra Cardoso, assessora do Inesc, os subcréditos sociais não resolvem o problema dos impactos sociais. Para ela, “a política socioambiental do BNDES deveria responder ao complexo desafio de contribuir para a redução das fragilidades do licenciamento ambiental (permanentemente sob ataque e risco de rebaixamento), assim como das fragilidades do próprio monitoramento do cumprimento das legislações ambientais, trabalhistas e de direitos humanos”.

Fundo Amazônia e Fundo Verde do Clima: que caminho o BNDES quer seguir?

O Fundo Amazônia, criado em 2008 para prevenir, monitorar e combater o desmatamento e que já recebeu mais de R$ 3,4 bilhões da Noruega e Alemanha para centenas de projetos em parceria com estados, municípios, universidades e o terceiro setor, corre o risco de acabar.

O BNDES é responsável pela gestão do Fundo, cuidando da captação de recursos, da contratação e do monitoramento dos projetos apoiados.  Na avaliação de Brent Millikan, diretor do Programa Amazônia da International Rivers, apesar de uma série de dificuldades, a experiência com o Fundo Amazônia representou um avanço para o BNDES, que provou ser capaz de atuar na área ambiental em parceria com comunidades e organizações da sociedade civil.

No entanto, isso ainda não entrou de forma permanente no DNA do banco. E as políticas radicais do governo Bolsonaro e do ministro Ricardo Salles, colocado no Meio Ambiente para atender aos interesses dos ruralistas, colocam em xeque a existência do Fundo e a experiência exitosa do BNDES e de outros atores públicos acumulada nos últimos anos.

Ao mesmo tempo em que o Fundo Amazônia corre risco, o BNDES acaba de se qualificar para apresentar projetos no “Green Climate Fund”. O fundo é uma iniciativa da ONU e financia projetos para enfrentar a mudança climática nos países em desenvolvimento.

A habilitação era uma das prioridades do período do Joaquim Levy no comando do banco, que pediu demissão do cargo de presidente do BNDES em junho, após conflitos com Jair Bolsonaro e o próprio ministro Salles.

Depois de afirmar que o Fundo Amazônia “teria irregularidades” nos contratos, Salles foi prontamente desmentido por Levy, que garantiu que todos os contratos e projetos do Fundo foram auditados e nunca nenhuma irregularidade foi encontrada. Assim, abriu-se a porta também para o desentendimento com Noruega e Alemanha, que não aceitam mudanças na governança do Fundo e o fato de Salles querer usar os recursos para indenizar fazendeiros que possuem imóveis em áreas de proteção ambiental.

Enquanto isso, com a entrada no Fundo Verde do Clima, o BNDES terá acesso a recursos para projetos de baixa emissão de carbono. Até o momento, mais de 100 projetos já foram aprovados em 97 países, representando um valor superior a US$ 5 bilhões.

Ou seja: diante desses passos contraditórios, qual direção o BNDES e o governo Bolsonaro querem tomar na área socioambiental?, pergunta Millikan.

“O BNDES está querendo ser um player internacional com acesso a fundos especiais para implementar coisas que são interessantes para o Brasil. Ao mesmo tempo tem um governo com uma visão arcaica de que o meio ambiente é inimigo do progresso, tentando a imitar as posturas de Donald Trump. Esse tipo de posição coloca em risco uma série de oportunidades que o BNDES tem de melhorar”, afirma o diretor da International Rivers.

Diante da ameaça de extinção do Fundo Amazônia, a Associação dos Funcionários do BNDES (AFBNDES) e a Associação dos Servidores Públicos do IBAMA e ICMBio (ASIBAMA) criaram uma campanha em defesa do Fundo para esclarecer a população e pressionar para que o projeto seja mantido.

Segundo o manifesto da campanha, “o Fundo Amazônia não é um projeto de governo, mas uma conquista da sociedade brasileira, fruto de negociações internacionais climáticas, cujo consenso gira em torno da construção de um modelo economicamente sustentável na Amazônia que inclua, em sua concepção, os interesses dos povos originários e tradicionais que vivem para e pela floresta em pé”.

Uma lei que protege a infância, protege a sociedade inteira

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completa 29 anos neste dia 13 de julho e muito pouco se conhece dele. Embora a sociedade se divida entre os que o defendam e os que o condenam, uma parcela ínfima da população leu este marco jurídico tão importante para o Brasil, grande referência para o mundo.

Elaborado a muitas mãos, o ECA é uma lei que nasce com uma essência democrática, levando em consideração perspectivas de especialistas de diversas áreas (direito, educação, sociologia, antropologia, psicologia…) e, fundamentalmente, contou com a participação de crianças e adolescentes de todo o Brasil. O Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) também participou ativamente na mobilização da população, unindo esforços ao Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR) e incidindo na redação de propostas.

Nasce com o ECA o princípio da proteção integral. A ideia é garantir que crianças e adolescentes tenham um desenvolvimento pleno e feliz, com reais chances para que suas potencialidades encontrem ecos na vida.

O Estatuto cria e estrutura o Sistema de Garantia de Direitos com o princípio da articulação entre as políticas públicas para assegurar o que está escrito na lei, prevenir as suas violações e garantir a responsabilização dos violadores. Fiscalizar o poder público torna-se uma tarefa obrigatória para quem quer garantir a efetivação do que está preconizado no ECA.

ECA sob ataques

Em tempos de recrudescimento da violência do Estado, seus efeitos são, não apenas o embotamento de talentos, mas a morte física e simbólica de humanidades. Não se trata apenas de uma afronta às pessoas, a violência do Estado é nitidamente o desprezo deliberado pela lei. Exemplos temos de sobra.

Estamos entre os países que mais mata adolescentes no mundo. Segundo o Unicef, morrem 31 crianças e adolescentes assassinados por dia no Brasil, sendo que a grande maioria das vítimas são meninos negros, moradores de periferia e que se encontram fora das escolas. Muitas destas mortes são provocadas pela ação violenta de uma polícia racista e despreparada.

O estímulo ilimitado ao porte de armas é, sem dúvida, um perigo real às vidas de populações já desprotegidas.

No campo da educação, por sua vez, ao se proibir ou inibir o trato de temas como sexualidade e identidade de gênero na escola impede-se a realização de uma das estratégias mais importantes para o enfrentamento à violência sexual, um fenômeno que tem promovido estragos irreversíveis a uma população imensa de crianças e adolescentes. A educação de gênero tem o objetivo de educar para a compreensão sobre diferenças e construir uma cultura na qual o respeito seja a tônica principal.

Ainda na área da educação, o atual governo defende disciplina e hierarquia em detrimento do livre debate como se o exercício da troca de ideias fosse doutrinação. Ledo engano. A doutrinação se dá no silenciamento das vozes e na imposição de uma verdade única.

Quanto aos adolescentes envolvidos com atos infracionais, encontramos uma realidade estarrecedora. O governador do Rio de Janeiro Wilson Witzel, por exemplo, declarou que ao serem liberados da medida socioeducativa de privação de liberdade, 400 adolescentes “não poderão frequentar escolas” por serem ‘problemáticos’. Tal pronunciamento contradiz os preceitos do ECA e do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo que apontam a educação como o eixo mais importante para melhorar a relação adolescente/sociedade e determina que todas as políticas públicas devem se articular para acolher os egressos do sistema. Problemático é um governo que não cumpre o seu papel e trata com descaso uma juventude abandonada várias vezes pelo poder público.

Trabalho infantil

O ECA é incisivo quanto à proteção contra o trabalho infantil, e defende a profissionalização como direito. Ignorando o Estatuto, o presidente da república afirma ser a favor do trabalho infantil, talvez uma das mais graves violações de direitos. É no trabalho precoce que crianças perdem a infância, são mutiladas, exploradas, ficam expostas a doenças laborais, muitas trabalham em condições análogas a de escravos. Mesmo o trabalho glamoroso traz estresse e prejuízos à saúde física e mental. O trabalho infantil interessa principalmente a quem lucra com ele. Crianças que trabalham perdem o tempo de brincar, de ir para a escola, praticar esportes, fazer teatro, ler, soltar pipa, fazer palavras cruzadas, correr e se relacionar com seus pares.

Uma lei que protege a infância em sua plenitude protege a sociedade inteira. Vivemos em comunidade e uma parcela não pode ser violentada sem que o conjunto sofra. Sem lei estamos entregues à barbárie, sem referências para a construção de uma sociedade ética e para a dignidade humana.

Finalizo com as palavras do Jonhatan (Itapoã, 11 anos), “o ECA veio igualar ricos e pobres, pretos e brancos e garantir que todos nós tenhamos os mesmos direitos. O ECA é uma conquista nossa!”. Lutemos por ele.

Johnatan Alves do Nascimento, 11 anos, estudante do 6º ano, fala sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em oficina no Centro de Ensino Fundamental Dra. Zilda Arns (Cef Zilda Arns) no Itapoã, Brasília.

>>> Leia os outros textos da parceria Inesc e Armandinho:

A infância não pode esperar: criança não trabalha!

Educação pública numa democracia moribunda

O Estatuto é um só, as infâncias são muitas

 

 

Palavra livre, democracia forte

“A palavra aborrece tanto os Estados arbitrários, porque a palavra é o instrumento irresistível da conquista da liberdade. Deixai-a livre, onde quer que seja, e o despotismo está morto.” – Rui Barbosa

É com profunda preocupação que as organizações abaixo assinadas têm acompanhado as ofensivas voltadas a jornalistas e a diversos veículos de comunicação no Brasil.

Tem se tornado recorrentes as declarações e ações, por parte de atores políticos e setores da sociedade, que desqualificam e atacam o trabalho realizado pela mídia no país. Há um clima de cerceamento da liberdade de expressão que busca calar profissionais no exercício de seu ofício quando divulgam informações ou emitem opiniões contrárias aos interesses ou às preferências políticas deste ou daquele grupo.

Foi este o caso com Rachel Sheherazade, que teve sua demissão pedida por um dos principais patrocinadores do veículo de imprensa para o qual trabalha. Episódio semelhante se passou com Marco Antonio Villa, comentarista afastado de sua emissora de rádio (da qual se demitiu na sequência) em virtude de críticas que contrariavam a direção da emissora. O mesmo tendo ocorrido com Paulo Henrique Amorim, ao que tudo indica afastado de seu programa de TV em razão de divergências políticas. Recebemos, aliás, com grande pesar a notícia de seu falecimento na última quarta-feira (10), cientes de que o jornalismo brasileiro perde uma figura de relevo e notável por seu compromisso com o exercício das liberdades de expressão e de imprensa.

Alimentam e agravam o clima de constrangimento de liberdades, atos protagonizados por força do Estado. Como o pedido feito pelo ministro do STF Alexandre de Moraes de retirada do ar de conteúdos publicados pelo Crusoé e O Antagonista em março deste ano, a proibição, imposta pelo Presidente do ICMBio, de que chefes de Unidades de Conservação conversem com o jornalista André Trigueiro e as suspeitas mais recentes de uso da máquina do Estado na tentativa de intimidar Glenn Greenwald em função da série de reportagens do The Intercept Brasil sobre a Operação Lava Jato.

Isso para citar apenas alguns dos fatos inquietantes sobre as condições de atuação da imprensa e dos jornalistas nesses últimos tempos.

Não é à toa que, segundo o Ranking Mundial da Liberdade de Imprensa 2019 elaborado pela organização Repórteres Sem Fronteiras, o Brasil teve queda em sua colocação e está em “situação sensível” quanto à liberdade de imprensa em seu território. A Artigo 19, por sua vez, produziu uma síntese de situações de risco à atuação da imprensa nos 100 primeiros dias do governo.

As liberdades de expressão e de imprensa são essenciais para o bom funcionamento de qualquer democracia. Não importa se as ideias ou as notícias vão ou não contra nossas posições políticas ou preferências ideológicas, é preciso reagir a cada tentativa de cerceamento de liberdade de expressão e de imprensa. Como determina o art. 220 da Constituição Federal, “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição” e fica “vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística” (§ 2º).

Precisamos estar atentos. A propensão a restringir liberdades civis de oponentes, inclusive da imprensa, é um dos elementos comuns da derrocada das democracias identificadas por Steven Levitsky e Daniel Ziblatt em seu livro Como as Democracias Morrem.

Em uma sociedade marcada cada vez mais pela intolerância ideológica e pela disseminação de notícias falsas para manipular o debate público, a missão de cultivar e defender a livre expressão de ideias e a liberdade de imprensa torna-se ainda mais premente.

Assinam esta nota as seguintes organizações:

Abong – Associação Brasileira de ONGs

Ação Educativa

Associação Tapera Taperá

Atados

Casa Fluminense

CEDAPS

CENPEC Educação

Delibera Brasil

Frente Favela Brasil

Fundação Avina

Fundaçāo Tide Setubal

Geledés – Instituto da Mulher Negra

Gestos – Soropositividade

Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para Agenda 2030

Imargem

INESC – Instituto de Estudos Socioeconômicos

Instituto Alana

Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor – Idec

Instituto Cidade Democrática

Instituto Construção

Instituto Ethos

Instituto de Defesa do Direito de Defesa

Instituto de Desenvolvimento Sustentável Baiano

Instituto de Governo Aberto

Instituto Physis- Cultura & Ambiente

ISER – Instituto de Estudos da Religião

Instituto Sou da Paz

Instituto Update

Livres

Move Social

Movimento Boa Praça

Observatório do Terceiro Setor

Open Knowledge Brasil

Oxfam Brasil

Pacto Organizações Regenerativas

ponteAponte

Programa Cidades Sustentáveis

Pulso Público

Rede Conhecimento Social

Rede Feminista de Juristas – deFEMde

Rede Justiça Criminal

Rede Nossa São Paulo

Rubens Naves Santos Jr. Advogados

Szazi, Bechara, Storto, Rosa e Figueirêdo Lopes Advogados

Transparência Brasil

E os seguintes parlamentares:

Alexandre Padilha PT/SP

Andreia de Jesus PSOL/MG

Áurea Carolina PSOL/MG

Bancada Ativista PSOL/SP

Bella Gonçalves PSOL/MG

Cida Falabella PSOL/MG

Felipe Rigoni PSB/ES

Marina Helou REDE/SP

Paulo Teixeira PT/SP

Randolfe Rodrigues REDE/AP

Rodrigo Agostinho PSB/SP

Indígenas ocupam a Sesai e pedem a saída da secretária de saúde indígena

Restabelecimento da autonomia de gestão, normalização dos repasses mensais, renovação de contratos emergenciais de transporte, fim da perseguição a lideranças indígenas, transparência no orçamento, retorno da participação social e a reativação dos conselhos que foram extintos arbitrariamente.

Estas são as principais reivindicações dos 115 indígenas que ocupam a sede da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) em Brasília desde a noite de terça (9). Vindos do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI)  Litoral Sul, que abrange os estados do Rio Grande do Sul, São Paulo, Santa Catarina, Paraná e Rio de Janeiro, os indígenas pedem a saída da secretária Silvia Waiãpi, nomeada em abril por Jair Bolsonaro.

A expectativa é que novas comitivas de povos indígenas de outras regiões do país cheguem no decorrer da semana a Brasília.

Retrocessos sem fim

A gestão Bolsonaro tem colecionado atritos com o movimento indígena desde que assumiu o poder em janeiro. Junto com o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, que é da bancada ruralista do Mato Grosso do Sul, e da nova secretária da Sesai, as ameaças e retrocessos se acumulam.

Logo no início do ano, em fevereiro, o desmonte do Mais Médicos atingiu especialmente os povos indígenas, como o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) mostrou em levantamento exclusivo. Em março, a mobilização indígena precisou ir às ruas em todo o país para evitar o fim da independência da SESAI e a municipalização da saúde.

Em abril, durante o Acampamento Terra Livre, Waiãpi foi nomeada e o atraso do repasse financeiro para as entidades que atuam na saúde indígena causava um caos no atendimento. A participação social também sofreu um duro baque com o fim do Conselho Nacional de Política Indigenista, o Fórum de Presidentes do Condisi (Conselho Distrital de Saúde Indígena), e outras instâncias relevantes. Em maio, Bolsonaro alterou a SESAI por decreto, extinguiu o Departamento de Gestão, eliminou o caráter social na administração e forçou, na prática, a municipalização.

“Depois que a Silvia entrou, a secretaria sofreu um verdadeiro desmonte. Hoje, os distritos não têm mais autonomia para poder fazer o trabalho. Eles não municipalizaram a saúde, mas desmancharam a secretaria. Se você não tem autonomia de gestão, você não toma decisão. A impressão é que a SESAI acabou”, afirma Kretã Kaingang, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil para a Região Sul.

Sem qualquer plano de gestão apresentado até o momento, a avaliação é que a SESAI se tornou um “elefante branco” e agora depende exclusivamente das decisões tomadas a portas fechadas no ministério.

Esta soma de promessas não cumpridas e retrocessos impostos à força foi o que levou à ocupação atual da Sesai e o pedido pela saída da secretária Silvia Waiãpi. Mobilizados, os indígenas prometem só deixar a sede da Secretaria depois que a situação for finalmente resolvida.

Perseguição a líderes indígenas

Kretã Kaingang também enumera uma série de outros problemas, como a perseguição a líderes indígenas por parte de Waiãpi, que teria um perfil autoritário.

A secretária entrou com um processo contra Issô Truká, liderança da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e do Condisi, e também acionou na justiça outras lideranças.  “É uma perseguição muito grande, não é dessa maneira que se dialoga. Ela é uma pessoa muito autoritária e não quer ouvir. Com todo o respeito que ela merece por ser uma indígena, de gestão pública e de política ela não entende nada, ela não sabe o que é a palavra diálogo”, afirma Kretã.

No DSEI Litoral Sul, que tem uma população de 23 mil indígenas de 11 etnias diferentes, a situação tende a piorar bastante a partir de agosto. O contrato com a empresa que presta o serviço de logística de transporte para os pacientes e profissionais da saúde se encerra em 30 de julho. Uma nova licitação precisava ser concluída até esse prazo, mas até hoje nada foi feito. Agora não há mais tempo hábil, informam as lideranças.

Com isso, indígenas que, por exemplo, precisam fazer hemodiálise até 3 vezes por semana em cidades próximas, gestantes que necessitam de pré-natal e crianças com atendimento especial estarão prejudicadas. O contrato, que deveria ser renovado em abril, por um acordo entre Ministério Público Federal, Ministério da Saúde e povos indígenas, está em risco pela demora excessiva por parte da Saúde.

“Isso dá a impressão de que é realmente uma política de genocídio. Passou o tempo, não responderam, guardaram aqui. Licitação não é uma coisa simples. As empresas que prestam o serviço também têm receio de assumir compromisso com esse governo porque os repasses atrasam sempre”, diz Kretã.

A frota de veículos atende os povos Guarani, Xetá, Kaigang, Terena, Tupi-Guarani, Krenak e Pataxó. A maioria dos profissionais que realiza o atendimento e mora na cidade, como médicos, dentistas, enfermeiros, também ficarão sem transporte.

O problema se arrasta pelo menos desde o fim de 2018, quando o diretor do Departamento de Gestão da Saúde Indígena (DGESI), agora extinto, Márcio Godoi Spindola, se comprometeu com o pleno funcionamento do transporte na região. Na época, a promessa era de que o orçamento disponível para 2019 seria de 22 milhões. Além do problema emergencial no DSEI Litoral Sul, todo a definição orçamentária da Sesai está sendo feita sem diálogo e transparência por parte de Waiãpi.

Governo ignora justificativas para reativar conselhos

Outro problema grave é que o governo Bolsonaro ignorou todas as três justificativas enviadas pelos povos indígenas para reativar o Fórum de Presidentes dos Condisi, que havia sido extinto por decreto, junto com centenas de outros conselhos e instâncias participativas. O prazo, de até 28 de junho, foi cumprido. As solicitações, no entanto, não foram aceitas.

“Todas as nossas justificativas foram ignoradas. Na verdade, eles não querem ser fiscalizados pelos povos indígenas. Precisamos sim fiscalizar o nosso orçamento, ter transparência e controle social em todas as áreas. Com a extinção do Fórum dos Condisi, tudo é o ministro que decide. Isso é muito ruim”, afirma Kretã.

Enquanto isso, o Ministério da Saúde liberou em um dia, na última segunda-feira, R$ 1,1 bilhão em emendas parlamentares para agradar aos deputados e garantir a aprovação da reforma da Previdência.

O ministro Mandetta (DEM) reconheceu sem pudor que a liberação desse montante, na véspera da discussão sobre a reforma da Previdência na Câmara, foi “um esforço” pela aprovação da proposta.

Nota da Sesai

Em resposta à reportagem, o Ministério da Saúde, por meio da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), declarou em nota que “não há atraso em repasses para Distritos Sanitários Especiais de Saúde (DSEIs). A secretária Sílvia Waiãpi tem priorizado o diálogo direto com os povos indígenas por meio de visitas às unidades de saúde indígena e às aldeias para verificar, pessoalmente, as condições de atendimento.

A Sesai também afirmou que “a autonomia dos DSEIs permanece inalterada e o atendimento efetivo aos indígenas segue sendo executado dentro da normalidade”.

Não há caminho para o cumprimento da Agenda 2030 no Brasil

O Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) se prepara, ao lado de organizações parceiras da sociedade civil, para apresentar uma análise da implementação dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) no Brasil durante os eventos paralelos do Fórum Político de Alto Nível nas Nações Unidas (HLPF) sobre a Agenda 2030, em Nova York.

No próximo dia 17/7, as organizações apresentam o relatório Spotlight 2019, uma das avaliações independentes mais abrangentes da realização da Agenda 2030. O Inesc contribuiu ativamente na construção da análise da situação do Brasil. Texto de Ana Cernov, ativista de direitos humanos, Iara Pietricovisky, do colegiado de gestão do Inesc, e Nathalie Beghin, coordenadora da assessoria política do Inesc, mostra que os impactos negativos do congelamento de gastos e política de austeridade fiscal seguem comprometendo a viabilidade de políticas públicas necessárias para atender os compromissos da Agenda 2030. Contudo, as autoras constatam que, “nada preparou a sociedade civil para o tipo de retrocesso que está experimentando com o novo governo que tomou posse em janeiro de 2019”.

Os cortes na educação, as consequências da reforma trabalhista, o aumento do trabalho infantil e da desigualdade social, e as ameaças aos acordos internacionais e sistemas de proteção ambiental são alguns dos objetos de análise no texto que será apresentado em Nova York. “Não apenas Jair Bolsonaro, seu gabinete e aliados estão alimentando os discursos antidireitos e antidemocráticos que o elegeram, mas estão também talhando o caminho para a destruição da proteção dos direitos humanos, alcançada por meio da mobilização e do engajamento com a sociedade civil”, alerta o relatório. Leia o texto em português aqui.

O Inesc também contribuiu com uma análise detalhada, feita pela assessora política Cleo Manhas, sobre o objetivo “educação de qualidade” (ODS 4), que revela como a Emenda Constitucional do Teto dos Gastos (EC 95) tem deixado muitas crianças fora da escola, principalmente em regiões mais vulneráveis. Disponível em português aqui.

“O novo governo, apesar de seu compromisso anterior, não apresentará um Relatório Nacional Voluntário neste HLPF, o que torna este esforço das organizações da sociedade civil ainda mais relevante”, apontou Iara Pietricovisky. “Agora, além da falta de financiamento para alcançar os objetivos acordados internacionalmente, estamos diante de um problema ainda maior: a destruição das nossas instituições”, concluiu. A diretora do Inesc  participará de outras agendas do Fórum para contribuir com a análise e monitoramento dos ODS representando também a Forus International e a Abong.

Sobre a Agenda 2030

Em 2015, chefes de Estados, incluindo o Brasil, reunidos na sede das Nações Unidas, decidiram pela aprovação da Agenda 2030, com 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, em 169 metas, que visam à erradicação da pobreza extrema, ao combate à desigualdade e à injustiça e à contenção das mudanças climáticas.

Sobre o Relatório Spotlight

O Relatório Spotlight é publicado pela Rede de ONGs Árabes pelo Desenvolvimento (ANND), Centro para os Direitos Econômicos e Sociais (CESR), Alternativas de Desenvolvimento com Mulheres para uma Nova Era (DAWN), Fórum Global de Políticas (GPF), Serviços Públicos Internacionais (PSI), Social Watch, Sociedade para o Desenvolvimento Internacional (SID), e Third World Network (TWN), apoiado pela Friedrich Ebert Stiftung.

Será apresentado em Nova York no evento paralelo do HLPF intitulado “Como os ODS podem prosperar em contextos políticos adversos?”, às 8h15 (horário de Nova York).

Outras agendas da sociedade civil no HLPF 2019

A Forus International, organização global que também é presidida por Iara Pietricovisky, estará envolvida em 4 eventos paralelos principais no HLPF 2019:

  • Renovando a ambição da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável – Perspectivas da Sociedade Civil sobre os princípios para uma revisão bem-sucedida do HLPF: dia 11/7,  Sala de Conferência 1 na sede da ONU, de 13h15 a 12h45 (hora NY)
  • Empoderamento da sociedade civil para relatos e ações no ODS 16: dia 12/7, Embaixada da Coreia do Sul, a partir das 9h30 (hora NY).
  • O poder da associação: desbloquear a promessa de parceria para aumentar a força da sociedade civil no avanço da Agenda 2030:  dia 15/7, das 9h às 23h, Sala Berta Cáceres, Fundação Ford.
  • Criação de revisões voluntárias nacionais inclusivas: promoção da participação de múltiplas partes interessadas nos ODS: dia 17/7, sede da Fundação Ford, das 14h00 às 16h.

A Forus está dedicando uma página especial de seu site para a cobertura de suas atividades no HLPF.

O Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030, do qual o Inesc também faz parte,  estará na programação dos eventos paralelos do HLPF 2019 com a mesa redonda “How can the SDGs thrive in adverse political contexts?”, no dia 17/07, na sede da World Vision International.

Violações na Operação Lava Jato são denunciadas a relator especial da ONU

As violações ao princípio da independência judicial registradas na Operação Lava Jato foram denunciadas a Diego García-Sayán, relator especial das Nações Unidas sobre a independência judicial dos magistrados e advogados, nesta terça-feira (02). O informe foi realizado pela Articulação Justiça e Direitos Humanos (JusDh) – que reúne 25 entidades -, pela Associação Juízes para Democracia (AJD), Associação Latino-americana dos Juízes do Trabalho (ALJT), Terra de Direitos, Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), a Justiça Global, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e o Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social (Cendhec).

No documento, as organizações demonstram preocupações com o Estado Democrático de Direito em razão da violação ao princípio da independência judicial na condução da Operação Lava Jato.

Uma série de reportagens divulgadas no início de junho pelo portal The Intercep ampliou a preocupação das entidades.

No texto, as organizações pedem que o relator solicite informações e envie recomendações ao Estado brasileiro, e que permaneça acompanhando o caso. E destacam a gravidade da situação: “A independência judicial constitui a segurança de que todas as pessoas podem contar com um Judiciário forte e imparcial, que garanta a realização do modelo de sociedade contido na Constituição. (…) Daí decorre a garantia de que ninguém será processado e condenado a partir de pressões externas ou da vontade subjetiva de quem está investido nesse poder de Estado”.

Denúncias internacionais

As violações cometidas dentro da Operação Lava Jato também foram denunciadas no diálogo interativo em torno do informe apresentado pelo Relator na 41ª Sessão Ordinária do Conselho de Direitos Humanos da ONU, no último dia 24 de junho. Na ocasião, Diego García-Sayán, o relator especial, destacou que juízes e procuradores devem evitar qualquer atividade política partidária que afetem a imparcialidade ou que seja inconsistente com princípio de separação dos poderes.

Assassinato de reputação: sigamos em busca de dissensos democráticos

Não há consenso no debate acadêmico sobre a liberdade de expressão e seus limites. Há relativo consenso, no entanto, de que este debate se organiza em torno de duas proposições distintas, protagonizadas por Ronald Dworkin, por um lado, e Jeremy Waldron, por outro. Dworkin defende que a liberdade de expressão deve ser garantida de modo amplo, não devendo ser cerceada pois todo argumento pode ser combatido por meio de argumentos contrários. Seria próprio ao regime democrático o dissenso e, portanto, a liberdade na expressão seria fundamental inclusive para que a coletividade disponha de referências sobre a multiplicidade de visões de mundo. Nesta perspectiva, caso se limitem certos discursos, qualificando-os como odiosos, perder-se-ia a oportunidade de argumentar contrariamente a eles, carecendo assim da possibilidade de justificação da recusa de certos modos de agir e de se relacionar dos quais se discorda em princípios morais.

Contrariamente, a proposição de Waldron é a de que o discurso de ódio, por exemplo, não deve ser entendido como livre expressão do pensamento, já  que carregaria em si potencial danoso e decorreria em efeitos materiais lesivos a seus destinatários, devendo, portanto, ser evitado por meio de cerceamentos à liberdade de expressão.

Ainda que não seja fácil dirimir tais controvérsias acadêmicas e na interpretação do Direito, fato é que o Código Penal estabelece limites para a liberdade de expressão, incidindo sobre a tipificação de enunciados como ilícitos passíveis de julgamento e de reparação na forma da lei. É o caso dos crimes contra a honra, que violariam o direito à dignidade. São três os tipos penais em nosso ordenamento jurídico: a calúnia (atribuição de crime sem provas); a difamação (disseminação de representações desqualificadoras sobre alguém, violando assim sua integridade moral ou reputação), e a injúria (violação da reputação de um sujeito decorrente da anunciação direta de uma ofensa dirigida à sua pessoa). A existência destes tipos penais, contudo, não resolve a controvérsia sobre os limites na liberdade de expressão, já que pressupõe o julgamento da expressão sobre alguém após sua  enunciação.

 O discurso de ódio, o governo Bolsonaro e o assassinato de reputação

O discurso de ódio não é de fácil tipificação. A fronteira entre o direito à expressão de opinião e o direito a não ser ofendido pela opinião de outra pessoa, ou seja, o caráter subjetivo da injúria, recai também sobre a tipificação do discurso de ódio contra grupos sociais. Existem divergências epistemológicas sobre a pertinência ou não da limitação do direito à expressão, em tempo em que também se faz necessário refletir sobre os efeitos decorrentes das palavras dirigidas com intencionalidade de provocar danos.

Exemplo de tipificação do discurso de ódio é a injúria racial, pois por meio das palavras se coloca em ato o racismo, discriminando por meio da violação dos direitos associados à honra e à dignidade. Importante mencionar que o discurso de ódio, a difamação, a calúnia e a injúria racista podem decorrer, inclusive, em outras formas de discriminação, tais como perda de emprego por demissão ou mesmo abandono do cargo por assédio, rompimento de vínculos com pessoas, grupos e/ou instituições decorrentes da deterioração da reputação, entre outros. Recentemente, o entendimento jurídico dos limites da liberdade de expressão foi estendida, na lógica da tipificação do racismo e os modos como pode se praticar por meio da fala, para a população LGBT, em importante decisão da suprema corte brasileira. No geral, no entanto, o discurso de ódio se mantém como de difícil tipificação, e contamos com uma proposição legislativa que tramita no Congresso Nacional, apresentada pela Deputada Federal Maria do Rosário.

Podemos refletir sobre este dissenso no entendimento do discurso de ódio a partir da prática do assassinato de caráter ou de reputação. No contexto estadunidense, a expressão “assassinato de caráter” tem sido acionada para se referir a expressões de difamação agravadas, que consistiriam em tentativa de destruir a representação moral de um sujeito ou de grupos sociais por meio de narrativas depreciativas ao seu respeito. O assassinato do caráter é praticado por meio de uma campanha de difamação dirigida a uma pessoa, instituição ou a um grupo social. Trata-se de ação deliberada, ou seja, premeditada e intencionada, visando o prejuízo do objeto da difamação.

O assassinato de reputação envolve a disseminação de informações inverídicas, e/ou distorcidas, visando consequências na lógica da perda de outros direitos, tais como trabalho, participação política, liberdade de associação, entre outros. A pessoa, grupo ou instituição que se torna objeto de uma campanha para que seu caráter seja destruído pode perder imediatamente direitos, sem que haja tempo hábil para a verificação do caráter ilícito das expressões que a condenaram ao descrédito público. Isso significa que estamos diante de uma prática organizada para o agenciamento da precarização do gozo de outros direitos, tendo como consequências discriminações não passíveis de reparação por meio indenizatório senão como medidas paliativas diante dos agravos decorrentes da campanha difamatória. Como reparar a destruição de reputação de uma pessoa, por exemplo, que decorreu na impossibilidade de inserção no mercado de trabalho, ou que se materializa em conteúdos que permanecerão durante muitos anos no ciberespaço?

Como efeitos das campanhas de difamação voltadas para o assassinato de caráter ou de reputação, podemos citar o rompimento de vínculos sociais, a privação do direito à participação em condição isonômica em organizações e agravos à saúde mental, no caso de sujeitos e grupos sociais. O assassinato de caráter de uma pessoa ou de um grupo social, no limite, pode decorrer na perda do direito à vida. No caso de instituições, consequências decorrentes das campanhas de difamação podem se traduzir na perda de oportunidades que colocam em risco a manutenção da organização, levando à sua liquidação, ou no caso de instituições públicas, à supressão da manutenção de setores, programas e projetos.

Podemos identificar que o governo Bolsonaro adota a estratégia do assassinato de reputações como forma de legitimar seus próprios posicionamentos políticos. A campanha política fora organizada em torno da destruição da reputação não apenas do ex-presidente Lula e da ex-presidenta Dilma, mas também do candidato Fernando Haddad. Em uma perspectiva mais ampla, o bolsonarismo tem apostado no assassinato de reputação de ativismos políticos, no geral, e mais especificamente daqueles voltados à defesa dos direitos relativos à terra, à preservação de culturas e saberes de povos tradicionais, da preservação do meio ambiente, dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos.

Para tanto, organiza junto a seus aliados e apoiadores uma campanha permanente de destruição da reputação de movimentos sociais tais como Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), movimentos sociais dos povos indígenas, movimentos feministas, movimentos negros, movimentos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais. Para tanto, deturpa informações para acusá-los de criminosos, conspiradores contra a pátria, terroristas, oportunistas que visariam regalias em benefício próprio, invertendo perversamente a lógica dos privilégios de sua cultura branca, patriarcal, racista e misógina, ávida por explorar e manter as desigualdades econômicas que também são tão profundamente marcadas por determinações sociais da iniquidade.

Em busca de consensos sobre a manutenção dos dissensos democrático

Em tempos de ódio disseminado como o que nos encontramos, faz-se urgente a reflexão coletiva sobre ponderações éticas no uso da palavra enunciada para expressar dissenso. Faz-se imprescindível que possamos pactuar coletivamente, por meio do debate público permanente, as responsabilidades éticas no uso da palavra diante das posições contrárias, promovendo responsavelmente a permanência dos dissensos democráticos. A ruína da democracia é também passível de imaginação em uma sociedade em que, legitimamente e sem amplo debate crítico, se apela para o extermínio do direito à dignidade de pessoas, grupos ou instituições.

Precisamos nos preocupar com a questão de que o assassinato de reputação ou de caráter não é uma estratégia que tem sido apenas usada pelo governo Bolsonaro, consistindo em uma prática que tem se tornado relativamente comum entre movimentos sociais e ativistas, mesmo à esquerda. Exemplo disso são os escrachos públicos como estratégia para a exposição de denúncia ou afirmação de divergência política e de princípios.

Podemos pensar que o escracho sistemático e organizado é uma forma de assassinato de reputação que tende a se assemelhar a uma perspectiva punitivista diante de injustiças. Por outro lado, precisamos defender o Estado democrático de direitos, interpelar as instituições públicas para que cumpram sua função investigativa e judicial, reservando à coletividade amplo direito à participação política nos mais diversos espaços, o que implica direito à liberdade de expressão para todas as pessoas, diante dos mais variados conflitos e dissensos, inclusive entre movimentos e grupos sociais.

Tendemos a polarizar de modo binário as divergências políticas, mas a democracia exige que abramos vetores para multiplicidades, requerendo, assim, que vozes possam circular em jogos permanentes de interpelação recíprocas. Acusações sumárias, muitas vezes organizadas em campanhas para a destruição do caráter de uma pessoa, grupo ou instituição, não coaduna com uma perspectiva de justiça em que se garante amplo direito de defesa, de associação e de participação paritária. Finalizo esta reflexão fazendo um apelo para que, especialmente ativistas de direitos humanos, renunciem ao escracho e às campanhas de escracho como estratégia de afirmação do dissenso, procurando caminhos de interpelação junto às pessoas, grupos e instituições das quais discordam, ou mesmo diante das quais haveria necessidade de expor insatisfação, entendimento de violação ou prejuízo sofrido, de modo a promover reflexão e mover resposta, diante da qual acordos se estabelecem nos termos de limites e possibilidades a criar conjuntamente.

Não precisamos adotar as mesmas estratégias daqueles dos quais discordamos em princípios. Isso também significa que não precisamos destruir quando nos sentimos de algum modo destruídas, que não precisamos ferir como resposta ao nosso próprio ferimento. O que poderia mover transformação é romper o ciclo estabelecido da violência e, mesmo que não possamos evitá-la absolutamente, podemos decidir não praticá-la como estratégia política.

 

*Tatiana Lionço é doutora em Psicologia e professora da UnB.

 

Jovens do sistema socioeducativo organizam evento para homenagear as mães

No mês de homenagem às mães, socioeducandos da Unidade de Internação do Recanto das Emas (Unire), organizaram um encontro especial com suas famílias. Foi a primeira vez que os jovens participaram ativamente no planejamento e na produção de uma atividade como esta. Cerca de 30 mães e responsáveis estiveram no evento e tiveram um dia de encontro e homenagem.
Na programação pensada pelos socioeducandos foi prevista a produção de artesanato, bolo, e apresentações musicais para os familiares. Esses adolescentes que estão cumprindo medida socioeducativa participam do projeto Vozes da Cidadania do Onda – Adolescentes em Movimento pelos Direitos, uma iniciativa do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). A atividade contou também com o apoio e articulação da escola e gestores públicos.

“Talvez esse evento seja uma semente de possibilidades socioeducativas. Foi bonito ver o engajamento, responsabilidade e trocas dos jovens no processo de construção do evento”, avaliou Thaywane Gomes, mestranda em psicologia na UnB e educadora do projeto Onda desenvolvido na unidade.

Thaywane conta que o retorno educativo da atividade reverberou fortemente por toda a unidade, mas principalmente na vida dos jovens diretamente envolvidos (?). O fato de trabalhar em prol de um objetivo comum impactou diretamente no comportamento dos internos dentro do módulo, por exemplo.

“Os desafetos, problemas pessoais, ansiedade, ódio, apatia e uma infinidade de sentimentos que fazem ‘pesar a cadeia’ foram deixados de lado. Entra em campo a afetividade e cuidado com quem cuida, mesmo quando o mundo desacredita do seu filho” relatou Thaywane.

A mãe de um dos socioeducandos, conta que a atividade trouxe conforto e segurança para os familiares. “Isso acalma a alma, nos ajuda a amar mais nossos filhos”, desabafou. Na oportunidade, também foi feito um convite do Inesc para continuidade dos diálogos com as famílias e foi consultado sobre quais temas e assuntos gostariam de discutir.

Participação transformadora

A medida socioeducativa de internação tem como objetivo construir junto aos jovens projetos de vida que visem novas possibilidades e caminhos a serem trilhados. É nisto que acredita Thallita de Oliveira, psicóloga e educadora social do Inesc. Ela conta que esse plano deve passar necessariamente pela construção da autonomia e valorização da identidade e valores de cada jovem. A educadora diz que “não é possível fazer educação emancipadora sem a participação autônoma dos sujeitos envolvidos e mais interessados no processo”.

A socioeducação no Distrito Federal tem experimentado a prática pedagógica e transformadora da participação de adolescentes e jovens. O Inesc, com a iniciativa Onda, por exemplo, desenvolve uma série de atividades de arte, cultura e comunicação em quase todas as unidades de internação.

Todo esse trabalho contribui no processo dos jovens de olharem para si, se reconhecerem e se valorizarem enquanto sujeitos de direitos. “Possibilita que meninos e meninas cumprindo medida de privação de liberdade percebam a potência que têm para construir trajetórias diferentes daquelas que foram possíveis até o momento”, afirma Thallita.

Os encontros e oficinas oferecidas pelo projeto Vozes da Cidadania/Onda trabalham temas como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), participação social, cidadania democracia, desigualdades e orçamento público. A metodologia utilizada agrega fundamentos da educação popular, arte-educação e educomunicação. Música, fotografia, filme, roda de conversa e pintura são alguns recursos utilizados na busca da construção de novas perspectivas de jovens marcados por estigmas e trajetórias de conflito com a lei.

 

Pedido global por mais transparência em saúde

Dentre os vários tópicos debatidos durante a 72ª Assembleia Mundial da Saúde (AMS), que aconteceu em maio, em Genebra, um dos mais controversos foi sobre transparência. Apesar de toda a polêmica, uma resolução que pedia mais clareza no mercado de medicamentos, vacinas e outras tecnologias em saúde foi aprovada e considerada um avanço pelas organizações da sociedade civil.

A resolução foi proposta inicialmente por Itália, Grécia, Malásia, Portugal, Sérvia, Eslovênia, África do Sul, Espanha, Turquia e Uganda, e outros países somaram seu apoio ao longo das negociações, incluindo o Brasil. Realizada anualmente, a AMS é o órgão decisório da Organização Mundial da Saúde (OMS) e conta com a participação de delegações de todos os países que integram a Organização das Nações Unidas (ONU).

A decisão inédita dos países surge devido a um dos principais problemas globais em saúde atualmente: o alto preço dos medicamentos. Os gastos com saúde são centrais em qualquer país, devido a seu grande volume e ao vasto número de necessidades que precisam ser atendidas. Os medicamentos são um componente significativo deste gasto, e o preço elevado vem colocando os orçamentos, inclusive dos países de renda mais alta, em situação crítica.

Nem sempre os preços pagos pelos ministérios da Saúde e os praticados pela indústria são disponibilizados de forma clara. Além disso, a indústria adota diferentes preços entre os países, sendo criticada por não considerar a discrepância de renda entre eles. Ademais, o preço varia na medida em que o produto passa pelas etapas da cadeia produtiva, da empresa produtora até chegar ao paciente, passando por distribuidoras e farmácias. A transparência com relação aos diferentes preços, e a disponibilidade de informação que permita realizar comparações entre as etapas e países, pode facilitar o acesso aos produtos em saúde, ao estimular mercados globais funcionais e competitivos.

Negociação complicada

O processo de negociação da resolução foi longo e conturbado. O texto inicial foi proposto pelo ministro da Saúde italiano em fevereiro e, em abril, recebeu apoio de diversos países para entrar na pauta da AMS. Inicialmente, ele incluía medidas concretas e avançadas para maior transparência relativa a quatro pontos: custos de pesquisa e desenvolvimento (P&D), resultados de ensaios clínicos, patentes de medicamentos e preços.

No entanto, recebeu grande oposição de países com forte presença da indústria farmacêutica, em especial Alemanha e Reino Unido, que propuseram diversas alterações visando diluir seu conteúdo.  A discussão em plenário da resolução foi adiada até o último dia da Assembleia, em 28 de maio, e quase foi transferida para 2020.

As organizações do movimento por acesso a medicamentos acompanharam o processo de perto, lançando no início de maio uma carta aberta que alertava para a tentativa de alguns países de desandar os avanços para maior transparência. No documento, os delegados eram convocados “a defender uma resolução que seja eficaz em capacitar os governos e o público a ter maior transparência e acesso mais igualitário à informação, a fim de ter maior poder em lidar com a crise no preço das tecnologias médicas”. As assinaturas de mais de cem grupos e indivíduos mostram a importância do tema e do apoio existente. A sociedade civil desempenhou papel importante nas negociações.

Um dos principais avanços da resolução foi a concordância de que os Estados membros devem tomar medidas apropriadas para compartilhar publicamente informações sobre preços. Todavia, em relação à divulgação de custos e resultados de ensaios clínicos, foi adotada uma linguagem que reforça sua natureza voluntária.

De acordo com declaração do Médicos Sem Fronteiras, a resolução é um primeiro passo bem-vindo para corrigir o desequilíbrio de poder que existe hoje durante as negociações entre os compradores e vendedores de medicamentos, dando aos governos as informações de que precisam para negociar de maneira justa e responsável pela saúde de seus povos. No entanto, apesar de ser o resultado de uma mobilização histórica, a resolução não é suficiente. É necessário saber a margem de lucro das empresas, os custos de produção e dos testes clínicos, quanto investimento é realmente aplicado pelas empresas e quanto é financiado pelos contribuintes e grupos sem fins lucrativos, que não são abordados.

A mobilização da sociedade civil e o engajamento nas redes foi tão intensa que incomodou alguns países, que solicitaram que a OMS revise suas regras para o envolvimento de ONGs e de outros “atores não-estatais” em reuniões públicas.

Transparência também a nível nacional

A transparência é fundamental para maior eficiência e responsabilidade (accountability) na execução das políticas públicas. Assim, a discussão sobre este tema nos fóruns globais reverbera também à nível nacional. Por exemplo, o estudo do Inesc sobre a execução orçamentária do Ministério da Saúde brasileiro mostrou um crescimento contínuo dos gastos com medicamentos nos últimos anos.

De acordo com o estudo, entre 2008 e 2015, o Orçamento Federal do Acesso a Medicamentos no Brasil (OTMED) aumentou 64,9% em termos reais, uma elevação muito superior à observada no orçamento da Saúde, de 36,7% no mesmo período. Assim, a participação percentual do OTMED no orçamento do Ministério da Saúde, que passou de 11,6% para 14,6% no mesmo período, se aproximava da média calculada para os países de renda média-alta, que é da ordem de 15%.

Além disto, os gastos tributários com medicamentos e produtos químicos e farmacêuticos passaram, em termos reais, de R$ 6,17 bilhões em 2014 para R$ 7,63 bilhões em 2015, um aumento real da ordem de 23,5%.

Transparência é o ponto central para saber se esses incentivos se convertem em benefícios para a população.  Jogar luz sobre o mercado de medicamentos e dos preços praticados em compras públicas também é imprescindível para garantir a eficiência e controle social destes gastos.

Combustíveis fósseis ganharam R$ 85 bilhões em subsídios em 2018

O governo federal concedeu R$ 85 bilhões em subsídios no ano passado para auxiliar os produtores de petróleo, carvão mineral e gás natural no país, assim como garantir aos consumidores um preço menor na aquisição desses produtos. Este é o resultado do estudo Subsídios aos Combustíveis Fósseis no Brasil em 2018: Conhecer, Avaliar, Reformar, lançado pelo Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos), nesta segunda-feira (17).

Para chegar a essa cifra, a organização somou todo o dinheiro que deixou de entrar nos cofres públicos – devido aos inúmeros regimes especiais de tributação e programas de isenção de impostos –, mais os recursos oriundos do Orçamento da União para incentivar a atividade.

“Queremos ampliar o debate sobre a necessidade de tantos subsídios, sobretudo neste momento em que a economia passa por graves problemas, o corte dos gastos públicos virou pauta recorrente na política e o mundo assiste aos impactos sociais e ambientais causados pelos combustíveis fósseis”, afirma a pesquisadora Alessandra Cardoso, assessora política do Inesc.

“Com essa publicação, damos continuidade ao trabalho iniciado em 2018, quando apresentamos o balanço de subsídios aplicados entre 2013 a 2017 no setor, com o objetivo de conhecer, avaliar e reformar possíveis distorções neste cenário”, completa Nathalie Beghin, também autora do estudo. Ela lembra que R$ 85 bilhões equivalem a 2,8 vezes o orçamento do Bolsa Família ou 24 vezes o valor repassado ao Ministério do Meio Ambiente (R$3,49 bilhões) no ano passado.

Subsídios ao consumo e à produção

O levantamento dividiu os subsídios voltados à produção e ao consumo de combustíveis fósseis. No primeiro caso, estão os regimes tributários especiais, com destaque para a suspensão da cobrança de impostos como IPI e PIS/Cofins às empresas beneficiárias do Repetro (Regime Aduaneiro Especial de Exportação e de Importação de Bens destinados às Atividades de Pesquisa e de Lavra das Jazidas de Petróleo e de Gás Natural). No total, os benefícios concedidos aos produtores de petróleo, gás e carvão natural respondem por 27% dos subsídios ou R$ 22,89 bilhões no ano.

“Importante lembrar que a aprovação do regime tributário especial para as petroleiras e a renovação do Repetro ocorreram no contexto de grande produção no Pré-Sal, beneficiando não apenas a Petrobras, como também as empresas estrangeiras”, alerta Alessandra.

De acordo com o estudo, alguns campos de exploração de petróleo e gás não só poderiam ser rentáveis sem os subsídios, mas também seriam capazes de contribuir com R$ 22,89 bilhões em impostos. Esses recursos representam, por exemplo, cerca de 25% da economia (R$ 92 bilhões) que o governo pretende alcançar em dez anos cortando direitos de aposentados rurais, conforme proposta de reforma da previdência enviada ao Congresso Nacional.

Já os subsídios ao consumo, que atingiram R$ 62,24 bilhões ou 73% do montante total, abrangem a diminuição das alíquotas para diesel e gasolina do PIS/Cofins (perda de R$ 2,88 bilhões) e da Cide (R$ 47,4 bilhões). A situação se agravou com a greve dos caminhoneiros, há cerca de um ano, quando o governo diminuiu o preço do óleo diesel em R$ 0,16/litro. Na ocasião, foi aprovada uma subvenção (recursos orçamentários ou gastos diretos do Orçamento da União) de até 9,5 bilhões para compensar os produtores, dos quais foram gastos R$ 4,81 bilhões em 2018. Somam-se ainda as contribuições pagas pelos consumidores nas contas de consumo de energia.

“Os subsídios ao consumo de combustíveis fósseis, tanto para transporte como para geração de energia, representam uma grande despesa para os cofres públicos, distorcem o sistema de preços, não levam em conta os elevados custos ambientais e sociais associados ao seu uso e dificultam a busca de alternativas”, enfatiza Alessandra.

O que propomos?

Diante desses números, o estudo do Inesc propõe: a) aprovação de uma lei que torne pública quais empresas se beneficiam de renúncias e seus valores; b) discussão com a sociedade sobre a relevância dos subsídios aos combustíveis fósseis; c) acordo para o estabelecimento de uma metodologia de mensuração desses subsídios; d) divulgação das informações sobre tipos de renúncias, como o Repetro; d) participação das discussões sobre o tema no G20. Além desses objetivos, o Inesc segue pautando suas atividades com o intuito de tornar transparentes certos dados estatais. Hoje sabemos muito pouco sobre quem recebe os subsídios e quais os valores recebidos por eles. O sigilo sobre eles impede a sociedade de saber se os benefícios prometidos estão sendo efetivos e se valem a pena. Trazer esses números à tona é evitar a corrupção, combater os privilégios, diminuir a injustiça e reduzir as desigualdades no Brasil.

SOBRE O Inesc – O Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) é uma organização não governamental, com sede em Brasília, que atua na promoção dos direitos humanos e da democracia e tem como principal instrumental de trabalho o orçamento público. O Inesc integra a Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong).

 

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Assessoria de Imprensa – Agência Pauta Social

Julia Rezende – julia@pautasocial.org

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Subsídios aos Combustíveis Fósseis no Brasil em 2018: Conhecer, Avaliar, Reformar

Estudo do Inesc revela total destinado aos setores de petróleo, gás e carvão por meio de isenção de impostos, regimes especiais de tributação e até verba garantida no Orçamento. Com essa publicação, damos continuidade ao trabalho iniciado em 2018, quando apresentamos o balanço de subsídios aplicados entre 2013 a 2017 no setor, com o objetivo de conhecer, avaliar e reformar possíveis distorções neste cenário.

A infância não pode esperar: criança não trabalha!

É provável que no dia 12 de junho, Dia Mundial de Combate ao Trabalho Infantil, uma criança lhe ofereça flores ou chocolates no bar, e que um adolescente vigie seu carro enquanto você sai para celebrar o também dia dos namorados. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad Contínua), de 2016, o Brasil tem cerca de 1,8 milhão de crianças e adolescentes (5 a 17 anos) em situação de trabalho infantil – o que mostra que nós estamos em descumprimento da lei e naturalizando um problema que deveria ser prioridade absoluta de luta.

A Constituição Federal de 1988 afirma que é dever da família, da sociedade e do Estado “assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” (art. 227).

Assim, somos todos responsáveis por garantir que a infância e adolescência sejam resguardadas, assegurando proteção e espaços favoráveis ao seu pleno desenvolvimento. O não enfrentamento e a não erradicação do trabalho infantil são crimes. Compreende-se por trabalho infantil toda forma de trabalho realizado por crianças e adolescentes abaixo de 14 anos.  Dos 14 aos 16, é permitido trabalhar apenas na condição de aprendiz.

Perfil socioeconômico do trabalho infantil

Historicamente, o Brasil tem um legado de violências à infância. Desde os tempos de colônia, um recorte social foi feito, tolerando que crianças indígenas e negras fossem levadas ao trabalho, escancarando uma estrutura classista vergonhosa. O trabalho infantil constitui-se como mecanismo de sobrevivência às desigualdades sociais, ora como alternativa para garantir a renda familiar, ora para alcançar condições de consumo de itens que se estabelecem como elementos de inclusão social em determinados grupos, como roupas de marca, celulares e outros.

Essa realidade, em si, é um indicador latente de que o país falhou em políticas de inclusão socioeconômicas, pois as crianças e adolescentes hoje em situação de trabalho infantil são filhos de pais que estiveram na mesma condição, uma herança de violação à infância e exclusão de direitos.

De acordo com o Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e proteção ao Adolescente trabalhador, o perfil socioeconômico das famílias das crianças e adolescentes, entre 5 a 17 anos, em situação de trabalho infantil, revela que 49,83% têm rendimento mensal per capita menor que 1/2 salário mínimo e 27,80% inferior a 1 salário mínimo, o que prova que o trabalho infantil tem relação direta com a pobreza. Portanto, a partir desses dados, é possível concluir que 77,63% das crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil são de famílias vulneráveis, com renda per capita inferior a 1 salário mínimo.

E se a pobreza no Brasil tem cor, o trabalho infantil também. Segundo dados da PNAD/IBGE Contínua 2016, entre as crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil, 64,1% são negras.  Isso é uma das comprovações da formação sócio histórica estruturada nas relações de poder racista, classista que seleciona os corpos, as cores que terão oportunidade de vivenciar a infância.

“Vai trabalhar, vagabundo!”

Uma narrativa assimilada pela cultura do país é que: “é melhor estar trabalhando do que vagabundando na rua”, o que se apresenta como elemento para justificar o trabalho infantil. Pois bem, a questão é que essa narrativa se aplica apenas aos menos favorecidos economicamente, em sua maioria crianças e adolescentes negras. Tal conduta ignora de forma violenta a condição do corpo infantil e adolescente, compromete seu pleno desenvolvimento, cria e estabelece mecanismos contínuos de uma vida de exclusão.

Se o trabalho enobrece e “dignifica o homem”, no que se refere às crianças, ele mortifica suas possibilidades de uma vida digna, visto que essa situação limita, restringe ou até impede o acesso a direitos como saúde, educação, profissionalização, convivência familiar e comunitária. Ademais, o corpo infantil e adolescente, se estiver trabalhando, não desfruta de espaço e tempo oportuno para se desenvolver em suas dimensões “físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade” (art. 3 ECA).

Crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil pagam um alto preço, tanto com seus corpos, quanto com suas mentes. Suas capacidades de criar, imaginar, experienciar e ter perspectivas ficam prejudicadas, rompendo com possibilidades de construções cognitivas e psicopedagógicas. Essa ruptura impactará esses sujeitos durante a vida adulta.

Romper o ciclo das desigualdades para erradicar o trabalho infantil

O Brasil assumiu o compromisso de erradicar o trabalho infantil até 2025. No que se refere a nossa legislação, temos leis que colocam a infância e adolescência na centralidade das políticas públicas e sociais e favorece o respeito às diversas infâncias e adolescências. No entanto, os retrocessos que estamos testemunhando ao longo do ano de 2019 impactam essas políticas.

Cortes nos recursos destinados à educação, assistência social e à fiscalização do trabalho escravo, são ações que contribuem para a invisibilização das crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil, violando direitos fundamentais.

Por que trabalha uma criança? Se a conclusão é que seja para garantir sua sobrevivência, tem-se aqui a ausência da responsabilidade como sociedade. Há, portanto, urgência em cumprir a legislação e exigir que a infância seja prioridade na execução e planejamento do orçamento público. Um esforço sério ao enfrentamento do trabalho infantil exige uma dinâmica de políticas integradas, com enfoque na redução das desigualdades sociais e combate à pobreza, visto que o trabalho infantil segue como uma herança na família de baixa renda. Segue também lado a lado com a baixa escolaridade.

Cada criança e adolescente em situação de trabalho infantil é um indicador vivo que falhamos em assegurar direitos, comprova que o Estado não conseguiu romper com o ciclo de desigualdades, tão pouco garantiu condições de inclusão desses sujeitos.

A infância não pode esperar, ela tem urgência em viver, ocupar cidades, campos, aldeias, e quilombos, tecer, descobrir e experienciar sua identidade real, que são o riso, o brincar, o aprender e ensinar, com as cores, o afeto, a convivência familiar. Ela está em todo lugar nos provocando e nos inspirando a tecer dias melhores. O futuro da infância não é a vida adulta, o futuro da infância é o presente, é presença.  A nós, cabe a responsabilidade de garantir a presença de seus direitos de forma a respeitar seu tempo, seu desenvolvimento. Criança não trabalha!

De igual modo, cabe atenção e reflexão sobre como nosso país tem concordado com a criminalização da adolescência, sem, contudo, observar o grupo alvo desse discurso, pois mesmo o termo adolescente é negado aos adolescentes periféricos, eles seguem nas narrativas como “de menor”. Adolescência não é crime, adolescência pede proteção, estímulos, incentivos, educação, cultura, arte, direito à saúde, à cidade, à sua identidade sociocultural e profissionalização.

Aos adultos desse país está dada a responsabilidade em monitorar e cobrar pela efetivação dos direitos das crianças e adolescentes, que não podem esperar. A eles e elas nenhum direito a menos, proteção integral.

>>> Leia também outros textos da parceria Inesc e Tirinhas do Armandinho:

Educação pública numa democracia moribunda

O Estatuto é um só, as infâncias são muitas

Vaga para assessor (a) na área socioambiental

Está aberto processo seletivo para contratação de assessor (a) na área de Políticas e Direitos Socioambientais com ênfase na Amazônia. O (a) profissional atuará na análise e ações de incidência em políticas, medidas e processos relacionados à temática dos direitos socioambientais e sua relação com investimentos na Amazônia.

A contratação é em regime CLT, com duração de um ano. O prazo para envio das candidaturas é até o dia 19/07/2019.

Acesse o edital e saiba como participar do processo seletivo:

Entenda como funciona o financiamento da educação básica no Brasil

Com sinal vermelho ligado no que diz respeito ao financiamento da Educação, é importante entender de onde vêm os recursos que mantém a política de ensino no país. O Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), por exemplo, é um dos mais importantes instrumentos de sustentação da educação básica. Aprovado em 2006, fruto da luta do movimento social, a validade do Fundeb é somente até dezembro de 2020, o que precisa ser revisto com urgência.

Neste momento, há propostas em tramitação no Congresso Nacional com a intenção de perenizar o Fundeb. São elas, a PEC 24/2017, PEC 65/2019 e PEC 15/2015, esta última já está sendo analisada pela Comissão Especial na Câmara dos Deputados, as duas primeiras estão no Senado Federal. Caso não se aprove a sua ampliação ou perenização, a educação básica estará em sérios riscos, pois estados e municípios não têm autonomia financeira para arcar com os custos. Se a União não aportar o principal, a educação pública será uma mera lembrança, antes mesmo que consigamos a tão sonhada qualidade.

O que diz a Constituição

O financiamento da Educação, a partir da Constituição Federal (CF) de 1988, passou a sofrer menos intempéries, visto que o legislador garantiu o mínimo necessário, ou seja, 18% para a União e 25% para Estados e Municípios.

Além disso, no artigo 211, parágrafo primeiro, está dito que “ A União organizará o sistema federal de ensino e financiará as instituições de ensino públicas, federais e exercerá, em matéria educacional, função redistributiva e supletiva, de forma a garantir equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade do ensino mediante assistência técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios.”

O que significa isso de fato?  18% e 25% sobre o que?

A CF estabelece em seus artigos de 157 a 162, que o sistema tributário deve ser partilhado pelas esferas de governo, visto que no Brasil é o governo federal quem mais arrecada. Desta forma, parte da arrecadação da União é transferida para Estados e Municípios e parte da arrecadação dos Estados é transferida aos Municípios. Esses repasses são feitos para diminuir o impacto das grandes diferenças de arrecadação e para aumentar o poder de investimento de Estados e Municípios, levando em consideração que a União arrecada aproximadamente 70% dos tributos, os Estados perto de 25% e os Municípios em torno de 5%.

Sistema tributário e Educação

No Brasil há três categorias de tributos: impostos, taxas e contribuições. Os impostos são muito importantes, pois, por meio deles, o governo obtém recursos que custeiam quase todas as políticas públicas.  As taxas são tarifas públicas cobradas para fornecimento de algum serviço, tal como documento, ou segunda via de certidões e passaportes, por exemplo. As contribuições de melhoria são cobradas do contribuinte que teve, por exemplo,  seu imóvel valorizado por alguma benfeitoria. E as contribuições sociais e econômicas, de competência da União. As sociais são para cobrir gastos da Seguridade Social e as econômicas para fomentos de certas atividades econômicas.

Para o cálculo dos 18% garantido para a União custear a educação, são computados apenas os impostos, conforme estabelecido pelo parágrafo 212 da CF, que diz que a União aplicará nunca menos de 18% e os Estados e Distrito Federal e os Municípios, nunca menos  que 25% da receita resultante dos impostos e transferências constitucionais. E, ainda neste mesmo artigo, está dito que o ensino fundamental terá o acréscimo da contribuição social do salário-educação, recolhidos pelas empresas (a emenda 53 de 2006 modificou isso, acrescentando as outras etapas de ensino).

A fórmula de cálculo é a seguinte: só após os repasses obrigatórios para os fundos de participação de Estados e Municípios (FPE e FPM), e depois, dos Estados para os Municípios, é que as porcentagens são retiradas do bolo restante. Isso ocorre para não haver dupla contabilização.

Os recursos transferidos são destinados à Manutenção e Desenvolvimento do Ensino (MDE), conforme o disposto no artigo 212 da CF, regulamentado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB). As atividades suplementares, tais como merenda, uniformes, dinheiro direto na escola são financiados com outros recursos administrados pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), com recursos provenientes, dentre outras fontes, do salário-educação, recolhido pela União, que repassa uma parte para Estados e Municípios.

O que significa a Manutenção e Desenvolvimento do Ensino (MDE)? O que está dentro disso?

Apesar de vaga, a expressão MDE diz respeito a ações específicas, que focam diretamente o ensino. Ações estas especificadas pela LDB, artigo 70. São elas:

  • Remunerar e aperfeiçoar os profissionais da educação;
  • Adquirir, manter, construir e conservar instalações e equipamentos necessários ao ensino (construção de escolas, por exemplo);
  • Usar e manter serviços relacionados ao ensino tais como aluguéis, luz, água, limpeza etc.
  • Realizar estudos e pesquisas visando o aprimoramento da qualidade e expansão do ensino, planos e projetos educacionais.
  • Realizar atividades meio necessárias ao funcionamento do ensino como vigilância, aquisição de materiais…
  • Conceder bolsas de estudo a alunos de escolas públicas e privadas.
  • Adquirir material didático escolar.
  • Manter programas de transporte escolar.

Outras fontes de financiamento

Além dessas receitas, há outras fontes, tais como o salário-educação, que é recolhido das empresas, sobre o cálculo de suas folhas de pagamento. Essa receita é dividida entre União, Estados e Municípios. Quem arrecada a contribuição é o INSS, que fica com 1% a título de administração e repassa o restante para o FNDE, que desconta 10% e divide os 90% da seguinte forma:

A União fica com um terço dos recursos mais os 10% do FNDE. Os outros dois terços dos 90% ficam com Estados e Municípios, em razão direta ao número de matrículas de cada ente federado, de acordo com o censo escolar do ano anterior.

Além do salário-educação, o FNDE possui verbas oriundas de outras contribuições sociais. O Fundo desenvolve alguns projetos importantes, por exemplo: Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE), Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), Brasil Alfabetizado, Apoio ao Atendimento à Educação de Jovens e Adultos (Fazendo escola/PEJA) e Programa Nacional de Apoio ao Transporte Escolar (Pnate).

Fundeb em risco

Os fundos – o Fundef, criado em 1996 para manutenção e desenvolvimento do ensino fundamental, e o Fundeb, substituindo o anterior a partir de 2007 e visando à educação básica como um todo – representam uma tentativa de racionalização do gasto educação. Podemos dizer que além da vinculação de recursos, conforme explicado acima, há a subvinculação.

A transição do Fundef para o Fundeb significou o aumento da complementação da União aos fundos estaduais, de R$ 492 milhões, em 2006, para cerca de R$ 14 bilhões, em 2019. Neste ano, estima-se um aporte total para o fundo de aproximadamente R$ 150 bilhões, sendo a principal fonte de recursos para a educação básica no Brasil.

Como sempre houve um subfinanciamento da educação, ao Fundeb foram acrescidos novos recursos, como os oriundos do IPVA, por exemplo, que ampliou o financiamento, mas ampliou também o número de alunos atendidos, não equacionando, ainda, a questão do sub-financiamento.

O cálculo do Fundeb também é feito de acordo com o número de matrícula na educação básica pública de acordo com os dados do último censo escolar, feito anualmente. Dividi-se o montante pelo número de matriculados para se obter o valor aluno e em seguida repassar aos Estados e municípios a parte que cabe a cada um. Aqueles que não atingirem o valor mínimo por aluno deverão ter complementação da União. Já se verificou que a União, em muitos momentos, subdimensiona  o custo por aluno para não ter de efetuar a complementação para os diversos estados que não conseguiriam atingir o piso.

>>>Leia também:

Educação precisa de investimentos, não de mitos

Em defesa da educação, contra o desperdício da experiência

 

 

Produção nacional de insumos é chave para acesso a medicamentos

No último dia 23, foi aprovado pela Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados (CSSF) o Projeto de Lei 10096/18, que altera a Lei nº 8.080/9, para dispor sobre a produção nacional de insumos farmacêuticos ativos estratégicos para o tratamento de doenças negligenciadas.

De acordo com o texto do PL e o parecer da CSSF, um dos principais motivadores para sua elaboração foi a recente escassez de penicilina no mercado brasileiro frente ao aumento do número dos casos de sífilis. Foi necessária a adoção de medidas para evitar a falta do medicamento, como por exemplo, a autorização do Ministério da Saúde para aumentar o preço e estimular o mercado. Outros países também enfrentaram problemas com o desabastecimento de penicilina.

Isso porque a penicilina tem baixo valor comercial, por ser um princípio ativo antigo, de amplo uso e barato. Com isso, as empresas farmacêuticas não têm interesse em fabricá-lo, já que seu retorno financeiro é baixo. A orientação pelo lucro é ponto central do problema das doenças negligenciadas (como dengue, Chagas, tuberculose, hanseníase, malária entre outras).

O parecer da Comissão sintetiza o quadro: “o problema (das doenças negligenciadas) é particularmente grave em relação à disponibilidade de medicamentos, já que as atividades de pesquisa e desenvolvimento das indústrias farmacêuticas são principalmente orientadas pelo lucro, e o retorno financeiro exigido dificilmente seria alcançado no caso de doenças que atingem populações marginalizadas, de baixa renda e pouca influência política, localizadas, majoritariamente, nos países em desenvolvimento, como o Brasil ”.

O estudo do Inesc  sobre os recursos federais destinados à assistência farmacêutica (2013-2017) mostra que apesar do lucro das empresas farmacêuticas atingir cerca de cem bilhões de reais, e do setor receber subsídios fiscais de quase 10 bilhões de reais, isso não se traduz em redução do preço do medicamento para o consumidor final. A indústria farmacêutica não sentiu os efeitos da crise no Brasil, que levou a diversos cortes e contingenciamentos, inclusive na área da saúde. Mesmo assim, recursos públicos não deixaram de ser canalizados para esse setor em volumes vultosos e crescentes.

Considerações sobre o  PL

O PL estabelece, então, que os laboratórios farmacêuticos públicos deverão produzir os insumos ativos destinados a estas doenças. Quando a produção pública dos insumos não for possível, será autorizada a celebração de parcerias ou convênios com o mesmo objetivo.

Produzir princípios ativos nacionalmente é importante para evitar riscos de desabastecimento e diminuir a vulnerabilidade ao mercado e ao cenário internacional. Um diferencial brasileiro positivo é a existência de laboratórios farmacêuticos públicos que podem realizar esta atividade. Um bom exemplo da importância destes laboratórios e da produção pública local foi a política de combate a AIDS, na qual só foi possível oferecer tratamento – e não apenas a prevenção – de forma ampla, pois o país detinha a competência para produzir localmente.

O Brasil pôde, nesse sentido, usar esta competência para usufruir das flexibilidades estabelecidas no acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (mais conhecido por sua sigla em inglês, TRIPS). Uma delas é a licença compulsória, que permite a produção ou a importação de um medicamento genérico, forçando a concorrência e a queda dos preços. Essa medida foi utilizada apenas como uma ameaça no Brasil na década de 1990 e no início da década seguinte, o que levou a consideráveis reduções de preços dos medicamentos diante da possibilidade concreta de produção do genérico por laboratórios públicos nacionais, caso a licença fosse concedida[1].

Todavia, é necessária a atenção a dois pontos que não são detalhados no PL: a definição de doenças negligenciadas e as possíveis parcerias. Doenças negligenciadas é um termo amplo, que pode incluir diversos tipos de enfermidades e com diferentes prioridades. Como o PL tem o objetivo especifico de evitar o desabastecimento de insumos de baixo interesse comercial, é necessário que o texto da lei estabeleça isso de forma explícita.

Parceria deve ser para a independência

Sobre as parcerias, o texto aponta que caso os laboratórios públicos não tenham condições de fabricação destes insumos, eles podem procurar parceiros “para a adaptação de sua linha produtiva e aquisição de tecnologias e processos” e que o “Poder Público fica autorizado a financiar, estimular, promover e buscar parcerias nacionais e internacionais”.

O objetivo principal dessas parcerias deve ser de capacitar o laboratório público oficial a realizar de forma independente a produção dos insumos. Assim, deve-se priorizar aquelas que visam a plena transferência da tecnologia para as instituições públicas e não apenas a aquisição pontual de insumos ou processos de empresas privadas. Visa-se assim a autonomia de fato em relação a produtores internacionais e à volatilidade do mercado, além de estimular a concorrência. Este ponto também deve ser registrado de forma explícita no texto.

A proposta será analisada ainda, em caráter conclusivo, pelas comissões de Finanças e Tributação e de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara federal.

Alinhamento internacional

No último dia 24, em Genebra, na Assembleia Geral da Saúde, seis agências internacionais assinaram a “Declaração interinstitucional sobre a produção local de medicamentos e outras tecnologias relacionadas com a saúde”. Elas se comprometeram a trabalhar “de forma colaborativa, estratégica e holística em parceria com governos e outras partes relevantes para fortalecer a produção local”, com base nos respectivos conhecimentos e mandatos.

A Organização Mundial de Saúde (OMS), a Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial (UNIDO), a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e o Fundo Global reiteraram com a declaração que a produção local e a transferência de tecnologias são elementos cruciais para promover a inovação, capacitação e melhorar o acesso das populações à medicamentos e tecnologias em saúde. Além disto, enfatizaram a sua importância no contexto de desabastecimento global.

[1] ABIA, 2016. Mito vs Realidade: sobre a resposta brasileira à epidemia de HIV e AIDS em 2016. Disponível em http://abiaids.org.br/wp-content/uploads/2016/07/Mito-vs-Realidade_HIV-e-AIDS_BRASIL2016.pdf

Educação precisa de investimento, não de mitos

Será que todas as pessoas entendem a diferença entre universidade, centro universitário e faculdade? As universidades, obrigatoriamente, precisam ter o tripé de ensino, pesquisa e extensão; os centros universitários podem ter, mas não obrigatoriamente; as faculdades também estão dispensadas do tripé e, em geral, não fazem pesquisa nem extensão. Outra particularidade das universidades é que elas devem ter programas de mestrado e doutorado, além de uma qualificação mais rigorosa de seu corpo docente, com maior número de mestras (es), doutoras (es) e pós-doutoras (es). Dos centros universitários também é exigido mais pós-graduadas (os). Já as faculdades podem ter mais especialistas na composição do quadro de docentes.

Só com essa explicação inicial, fica nítido que quem faz pesquisa são as universidades. E no Brasil, a maioria delas é pública. De acordo com o Censo Escolar produzido pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), 87,9% do total da rede de ensino superior é composta por instituições privadas. No entanto, 53% das universidades são públicas, onde se produz a maior parte das pesquisas e das atividades de extensão, que resultam, dentre outras coisas, em políticas públicas como o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid).

Pibid sem verbas

O Pibid é uma ação, dentro da Política Nacional de Formação de Professores do Ministério da Educação (MEC), que pretende (ou pretendia) oferecer aos discentes, na primeira metade do curso de licenciatura, uma aproximação prática com o cotidiano das escolas públicas de educação básica e com o contexto em que elas estão inseridas.

O programa concede (concedia) bolsas a alunos de licenciatura participantes de projetos de iniciação à docência desenvolvidos por Instituições de Educação Superior (IES) em parceria com as redes de ensino.

Os projetos devem (deveriam) promover a iniciação do licenciando no ambiente escolar ainda na primeira metade do curso, visando estimular, desde o início, a observação e a reflexão sobre a prática profissional no cotidiano das escolas públicas de educação básica. O que pode desenvolver uma outra forma de ver o cotidiano das escolas e formar profissionais mais maduras (os) e cientes dos desafios que enfrentarão. Os estudantes bolsistas precisam (precisavam) ser acompanhados por um professor da escola e por um docente de uma das instituições de educação superior participantes do programa.

Essa inciativa foi uma das melhores propostas para pesquisa e extensão voltadas para as licenciaturas, pois colocava as futuras (os) educadoras (es) dentro das escolas, com formação prática aliada à formação teórica, promovendo o desenvolvimento de laços acadêmicos e de afeto com as futuras profissões.

E o que aconteceu com este projeto? Veja na tabela abaixo, retirada do Siga Brasil, com dados da Lei Orçamentária Anual (LOA) para 2019:

 

Ou seja, esse programa não existe mais, o que é bastante contraditório com o discurso do governo de valorização da educação básica. Sem licenciados e pedagogos bem preparados não existe educação básica fortalecida.

Cortes afetam também a educação básica

E quando dizem que o ensino superior está retirando dinheiro da educação básica, sugerindo uma falsa dicotomia entre as esferas da educação, deve-se dizer que o que retirou recursos de toda a educação, incluindo a básica, é a Emenda Constitucional 95 de 2016, que estabeleceu o teto dos gastos. De 2014 para 2018, e medida retirou 8%, em valores reais, da educação básica. Em valores absolutos, atualizados pelo IPCA, foi de R$ 84,1 bilhões, para R$ 76,7 bilhões. Isso considerando que a maior parte do recurso da educação básica é obrigatória e garantida pelo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb).

Além disso, números da tabela abaixo, com dados da LOA de 2019, mostram algumas ações referentes à educação básica que estão com o total ou parte de seus recursos indisponíveis, afetadas que estão pelo corte de recursos que, repito, não é só no ensino superior.

Com apenas alguns exemplos de onde estão incidindo os cortes, a saber, no transporte escolar; na implantação de escolas de educação infantil, que o governo diz valorizar tanto e priorizar; no funcionamento de escolas de educação básica federais, etc, é possível verificar que o discurso do governo não se alinha a prática. Com especial atenção aos livros didáticos, onde houve um corte de mais de mais de 85%, o que inviabilizará a política de distribuição dos livros, afetando enormemente a população mais pobre.

Outro dado relevante é o corte de 60%, conforme tabela abaixo, de bolsas permanência, que seriam para as (os) estudantes mais pobres, além dos indígenas e quilombolas, para que consigam permanecer em seus cursos até o final. Então, é perceptível, olhando para os cortes, dizer que a opção desse governo é pelos ricos e privilegiados, diferente do discurso público.

A cultura e a memória também estão sem valor nas priorizações governamentais, pois já era pouco o que haviam reservado para restauração do Museu Nacional, e virou menos ainda, conforme se constata na tabela abaixo.

A educação resiste

A defesa da educação pública, gratuita e de qualidade sempre esteve no horizonte de lutas da população brasileira, e foram muitos os resultados. De acordo com dados do Inep, o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) dos anos iniciais do ensino fundamental saiu de 3,8 em 2005 para 5,5 em 2015; e dos anos finais de 3,4 para 4,5. Desde a Conferência Nacional da Educação, em 2010, nos manifestamos pedindo 10% do PIB para a Educação. Com esta luta, o movimento social garantiu este índice no Plano Nacional de Educação (PNE), que agora está sendo rasgado junto com a Constituição.

Ainda precisamos avançar muito, mas, infelizmente, estamos primeiro lutando para manter o que já conquistamos e ainda remando contra a maré de desinformação e fake news sobre educação disseminada pelo próprio governo.

>>> Leia também: Em defesa da educação, contra o desperdício da experiência

Projeto Onda promove debates e oficinas sobre a temática racial em escola do Itapoã

Na manhã do dia 16/05, a campanha “Por Que Não Amar?”, iniciativa do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), parou a rotina escolar do Centro Educacional (CED) 01 do Itapoã (DF)  para discutir racismo no Brasil. Com a voz retumbante da cantora Nãnan Matos; a arte colorida do grafiteiro Odrus, além de oficinas e rodas de conversa, os alunos promoveram um evento que celebra a cultura e resistência negras.

Além da divulgação dos produtos da campanha, as (os) adolescentes organizaram oficinas sobre a temática racial e rodas de debates, como a sobre o genocídio da população negra, mediada por Rachel Quintiliano, representante do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA). A ação foi apoiada pelo corpo docente da escola que também realizou durante o mês atividades pedagógicas sobre o tema com os alunos e alunas.

Emily Alaz, jornalista e cineasta (diretora do documentário “Kurialuka”) que ministrou uma oficina sobre mídia e racismo defendeu que o debate sobre as questões raciais deve ser tratado como prioridade nas escolas: “Considero importante construir ações focadas no território para se pensar o futuro, principalmente em conjunto com a juventude. Os últimos tempos nos têm feito pensar sobre a solidez das coisas. Campanhas como a Por Que Não Amar precisam ser contínuas em todos os espaços, porque são sementes que abrem caminhos”, disse.

A estudante do CED 01, Ana Flavya Gonçalves Pereira, participou da oficina sobre estética, chamada “Retrato Negro”, com os fotógrafos Danilo do Vale (Kadan) e Jadson Silva e explicou que aprendeu questões sobre a aceitação da beleza natural: “uma coisa que eu não percebia é como a sociedade prega a cultura do embranquecimento. Ações como essa ensinam as pessoas a praticarem o amor e o respeito às diferenças”, relatou a estudante.

Apresentações culturais

O evento CED 01 do Itapoã Contra o Racismo contou também com as apresentações culturais dos cantores Mc Banzo, Victor Machado e Nãnan Matos, além de uma batalha de rima, produto da oficina de rap da cantora Mc Debrete.

“Muitos alunos negros não encontram na escola um local de pertencimento, muitas vidas negras estão paralisadas, estagnadas, por causa do racismo que enfrentamos na rua e na escola. Essa campanha é muito forte, é emocionante. As pessoas precisam entender os motivos que nos une, estamos aqui para mostrar o quão bonito e positivo é ser negro (a)”, declarou a cantora e percussionista Nãnan Matos.

O Projeto Onda pela Paz, impulsionador desse processo, foi agraciado no último ano com o primeiro lugar do Prêmio Itaú-Unicef na categoria “Parceria em Ação”. A campanha “Por Que Não Amar?” se soma à educação em direitos humanos e formação cidadã promovidas pelo projeto, especialmente voltado para o público adolescente do Distrito Federal.

Victória Dias é uma das autoras da ação e agradece a todos que fizeram parte do processo pedagógico e impulsionador da campanha “Por Que Não Amar?”, em especial aos educomunicadores Diego Gonçalves e Luana Pereira, e à assessora política do Inesc Márcia Acioli: “é incrível ser protagonista de um projeto no qual eu me identifico muito. Foi a experiência em que eu mais pude ensinar e aprender ao mesmo tempo. Produzir diversos materiais e me reconhecer em todos é algo maravilhoso. Essa campanha não para por aqui, onde formos teremos a memória de algo bom que aprendemos com essa jornada”.

Fotos: Felipe Mesquita e José Paulo de Oliveira.

>>> Leia também: Estudantes do Distrito Federal lançam campanha contra o racismo na escola

Por decreto, Bolsonaro força a municipalização da saúde indígena

O governo Bolsonaro tem se mostrado um inimigo permanente da saúde dos povos indígenas. Mesmo após enfrentar manifestações em todo o país e do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, garantir que a municipalização estava descartada, o ataque continua.

O Decreto 9.795, publicado na semana passada, apesar de manter a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), como prometido, altera pontos fundamentais para o funcionamento do órgão. Bolsonaro extinguiu o Departamento de Gestão da Sesai e retirou, no texto e na prática, o caráter democrático e participativo da administração da saúde indígena.

Além disso, a nova configuração da Sesai fala repetidamente em “integração com o SUS” na região e nos municípios onde estão inseridos cada DSEI (Distrito Sanitário Especial Indígena). Mais que uma mera mudança textual, vários pontos da competência da Secretaria passam a sofrer a influência direta da rede pública local.

Com isso, o respeito às práticas tradicionais e à independência de gestão dos povos indígenas está ameaçada. As mudanças, polêmicas, ainda estão em debate pelo movimento, por especialistas e mesmo por funcionários da Secretaria. A própria alteração imposta por decreto demonstra a pouca afeição democrática do atual governo. Com os ataques constantes que a saúde indígena tem sofrido desde que Mandetta assumiu o cargo, em abril, as desconfianças são muitas.

Para a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), as mudanças do decreto são uma clara tentativa de forçar a municipalização que já havia sido descartada pelo governo em reunião com as lideranças em março e abril. Na avaliação de Issô Truká, da Apib e do Fórum de Presidentes dos Condisi (Conselho Distrital de Saúde Indígena), as alterações são inconstitucionais e o caminho será entrar com uma Ação Civil Pública contra o Ministério da Saúde. A articulação será feita entre a Apib e a 6ª Câmara do MPF.

“Eles tentaram de forma direta a municipalização e não conseguiram. Pelo decreto, impõe essa integração da Sesai com os municípios para já preparar o terreno para uma mudança definitiva. A essência da Sesai sempre foi trazer o SUS para dentro da saúde indígena e não o contrário. Agora a Sesai passa a ser mera fiscalizadora das ações dos municípios”, avalia Truká.

Na visão do porta-voz da Apib, esta é uma forma de manter o poder decisório da Sesai no gabinete do ministro, com tudo tendo que ser revisto e aprovado por ele. Retirar a participação social, que o texto do novo decreto reforça e que Bolsonaro já tinha feito ao extinguir o Conselho Nacional de Política Indigenista e outros, é ir contra o que a Constituição prevê.

“Essa é mais uma tentativa de matar a Sesai por inanição para justificar a municipalização. O que ele quer é ter o orçamento anual da secretaria para fazer o que bem entender”, entende Truká, que não descarta a possibilidade de novas manifestações de povos indígenas em várias regiões do Brasil, como já ocorreu esse ano.

Reforçando as mobilizações contra a municipalização da saúde indígena, o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), em parceria com a Apib, lançou a cartilha “Orçamento e direito à saúde indígena”. Pautado na educação popular, o material retoma a história de luta que resultou na política nacional de atenção atual e aposta no fortalecimento do controle social para o aprimoramento da política. Exatamente o oposto do que tenta impor o governo Bolsonaro.

Na Sesai, sentimento é de caça às bruxas

Na avaliação de funcionários da Sesai ouvidos pela reportagem que preferiram não se identificar, as mudanças promovem uma verdadeira “caça às bruxas” na Secretaria. Com a extinção do Departamento de Gestão, presente desde a fundação em 2010, dezenas de cargos foram cortados, inclusive de direção. Os postos devem ser repostos somente em parte e sobretudo por militares, especialmente em cargos estratégicos.

Silvia Waiãpi, tenente do Exército empossada como secretária da instituição por Mandetta há 1 mês, estaria perseguindo muitos funcionários que eram da confiança do ex-secretário Marco Antonio Toccolini, que permaneceu no cargo por dois anos.

O expurgo seria uma tentativa de Mandetta em justificar o discurso de que haveria corrupção na saúde indígena, no entanto sem nunca ter provado nada. Desde que assumiu o ministro tem se manifestado publicamente diversas vezes sobre o tema. Toccolini teria resistido às mudanças propostas pelo ministro que, depois, foi obrigado a recuar.

As mudanças bruscas comprometem o funcionamento da Sesai. Sobre o decreto impor a municipalização à força, não há consenso entre os funcionários, com avaliações distintas sobre as consequências. Teoricamente, o decreto não deve impactar de imediato na forma como o atendimento é feito, já que a média e alta complexidade já ficam sob atribuição das redes locais do SUS.

Mais que a disposição ou não em municipalizar, o perfil militar de Waiâpi tem causado desconforto tanto na secretaria quanto nos DSEIS. Muitos deles receberam visitas surpresa da secretária recentemente. Nas visitas, Waiãpi tende a agir com autoritarismo, o que tem desagradado a muitas pessoas. Com orçamento aproximado de R$ 1,4 bilhão por ano, são muitos os interesses que rondam a Sesai e acomodar todos eles seria um dos objetivos do decreto.

O que Bolsonaro alterou na Sesai:

  • Extinção do Departamento de Gestão da Saúde Indígena e de dezenas de cargos, sobretudo no gabinete da Sesai e nos DSEIS.
  • Atribuições do antigo departamento ficam sob a responsabilidade do Departamento de Atenção à Saúde Indígena.
  • Departamento de Saneamento e Edificações de Saúde Indígena foi reestruturado e virou Departamento de Determinantes Ambientais da Saúde Indígena, mas basicamente com as mesmas atribuições.
  • Gestão democrática e participativa foi eliminada formalmente das competências da Sesai.
  • Decreto reforça em diversos momentos a “a integração com as instâncias assistenciais do SUS na região e nos Municípios que compõem cada Distrito Sanitário Especial Indígena”. Medida é vista como forma de forçar a municipalização.

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