A mercadoria não vale a gota de sangue de nenhum de nós

Quando a lama tóxica que irrompeu da barragem da Vale em Brumadinho (MG), em seu caminho de destruição, chegou às margens da aldeia Pataxó Hã-hã-Hãe, o cacique Hayó afirmou: “o nosso rio está morto. Estamos com o coração ferido, pois agora não temos como sobreviver”. Diante dos cadáveres dos peixes e do próprio rio Paraopeba, a aldeia – que ali se fixou na tentativa de escapar da hostilidade enfrentada em seu local de origem – enfrenta agora mais um efeito colateral do mesmo modelo de desenvolvimento que fez de suas terras alvo de disputas.

Em 2015, quando a lama vinha de Mariana, ocorreu o mesmo com as cerca de 126 famílias Krenak que então viviam junto ao Rio Doce. Três anos após o ecocídio, impossibilitadas de seguir suas tradições de caça e peça, as sete aldeias Krenak seguem dependendo da assistência do Estado para obter alimentação antes abundante.

A sanha da mineração também corroeu por longos anos as terras Yanomami, em Roraima, no extremo norte do país. Em livro escrito junto ao antropólogo Bruce Albert[1], David Kopenawa nos conta a história de massacres e resistência de seu povo diante da epidemia que atingiu as aldeias (e o mundo), promovida pelo “povo da mercadoria”. Se é verdade que a luta indígena garantiu a demarcação daquela Terra indígena (TI), é também verdade que as investidas contra ela não cessaram: as denúncias contra o garimpo ilegal na região são constantes e se desdobram também em ataques a povos em isolamento voluntário, como os Moxihatétéa. Além disso, em Roraima enfrenta-se de grilagem de terras a grandes projetos, por exemplo, a construção da Linha de Transmissão de energia, que atravessa a terra indígena Waimiri-Atroari.

Já em Pernambuco, onde vivem os Pankararu, as ameaças de morte tem sido constantes, como denunciaram os indígenas ainda ontem. Ali, são os posseiros que antes moravam na terra já demarcada que levam a cabo a violência.  Quando, em 2018, o pedido de usufruto exclusivo da terra feito pelo povo há 25 anos foi aceito pelo Estado, os posseiros receberam indenização para deixarem o local, mas afirmaram desde o início que as coisas não sairiam conforme o combinado. As palavras já se concretizaram em três incêndios em escolas e postos de saúde indígenas, entre outubro e dezembro do ano passado. Os bilhetes ameaçadores enviados esse ano, por enquanto, não saíram do papel.

Tradição colonial ameaça indígenas

A lista de ataques aos direitos e à vida indígena é longa e acontecem de norte a sul do Brasil, como nos mostra o relatório produzido anualmente pelo Conselho Missionário Indigenista (CIMI), assim como a história de nosso país. A combinação de grandes empreendimentos, apropriação de territórios e racismo institucional é velha conhecida dos hoje mais de 900 mil indígenas brasileiros e, apenas nesse recente 2019, já foram seis as invasões às suas terras denunciadas pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil.

Se os ataques acabam sendo estranhamente parecidos entre si, é bom lembrar que a multiplicidade do que chamamos de “índio” é enorme: atualmente são mais de 300 etnias, com línguas, tradições, relações com a terra muito distintas. Tal diversidade étnica e cultural, assim como o direito originário às terras que tradicionalmente ocupam, negados pela política assimilacionista[2] exercida pelo Estado desde que o Brasil é Brasil, foram finalmente consagrados pelo artigo 231 da Constituição Federal de 88, após muitas mobilizações:

Trecho do documentário Índio Cidadão com a fala de Ailton Krenak sobre o seu discurso na Assembleia Constituinte

É bem verdade que entre a garantia constitucional e a efetivação de direitos o caminho a ser percorrido é longo, em especial quando diante de interesses econômicos das proporções dos que desafiam as vidas indígenas. A falta de prioridade tem sido uma marca das ações do país nessa área, apegado como está às suas tradições coloniais, e se evidencia de muitas formas.

Desmonte da Funai

Uma das maneiras de percebê-la é a partir das análises dos recursos públicos investidos na execução das políticas públicas destinadas a promover os direitos indígenas. A Fundação Nacional do Índio (Funai), principal órgão responsável por efetivar tais direitos, tem sofrido um desmonte sistemático que resulta no minguar de sua capacidade orçamentária, como nos aponta o artigo de Alessandra Cardoso, assessora política do Inesc.

Adicionada à pouca capacidade orçamentária da Funai, a Medida Provisória 870/2019 e os Decretos publicados pelo novo presidente levam a situação do órgão para outro patamar de gravidade. No que tange ao tema desse artigo, a medida provisória de reestruturação do governo e seus decretos complementares comete ao menos dois grandes ataques: retira a Funai do Ministério da Justiça, e a esvazia de suas principais atribuições, transferindo a demarcação e homologação de terras e o licenciamento ambiental para o Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento (MAPA).

Tais proposições implicam em um forte ataque aos direitos constitucionais indígenas e é fundamental que entendamos o porquê. Em primeiro lugar, por uma questão principiológica: as TI são por definição terras da União, de usufruto dos indígenas. Cuidar das terras públicas brasileiras é uma das atribuições do MJ, não havendo assim o que justifique a diferença de tratamento para as TI em relação às outras terras públicas. Além disso, a retirada da Funai do Ministério da Justiça ignora a expertise deste órgão para lidar com os principais desafios enfrentados na área, tais como a crescente judicialização envolvendo as demarcações e os constantes conflitos fundiários que exigem, inclusive, ação sólida e urgente da Polícia Federal para proteção dos indígenas.

Por fim, levar para o MAPA as atribuições de demarcação e homologação de terras, sendo esse um órgão historicamente conectado ao interesse dos ruralistas é, difícil acionar outra expressão, entregar o ouro ao bandido. Da mesma forma, transferir o licenciamento para este mesmo órgão implica em ampliar as influências e lobbys dos grandes empreendimentos, transformando os territórios indígenas em objeto de barganha. Fatiada, distante de suas principais funções e desmontada, a Funai caminha para se tornar figurativa e os casos de violência que aqui já comentamos tendem a se multiplicar e intensificar, pois que a tolerância do Estado para com esses crimes parece se explicitar.

Janeiro Vermelho

Em contraposição às medidas tomadas pelo governo, que muito rápido mostrou a que veio, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) lançou a campanha “Janeiro Vermelho – Sangue Indígena, Nenhuma Gota a mais”, que culminará em atos espalhados por todo país e também em manifestações internacionais de apoio hoje, no dia 31 de janeiro.

O apoio, participação e solidariedade de nós, não índios, é fundamental por um sem número de motivos. Quem sabe o primeiro deles seja o de declararmos, em alto e bom som, que não compactuamos com o etnocídio e genocídio que construíram o país, e que agora parecem querer ainda mais espaço. Quiçá o segundo seja o de não deixar se esvaírem as conquistas da Constituição de 88, para os índios e para todos nós.

Mas talvez o mais importante seja o de afirmar com firmeza que não precisamos ser, como Davi Kopenawa chama os brancos, “o povo da mercadoria”. A sanha do modelo de desenvolvimento que matou e mata rios, terras e povos indígenas é a mesma que retira direitos trabalhistas, acaba com a aposentadoria, mata a juventude negra, distribui lama tóxica em nossas cidades. Como afirma o xamã:

“Todas as mercadorias dos brancos jamais serão suficientes em troca de todas as suas árvores, frutos, animais e peixes. As peles de papel de seu dinheiro nunca bastarão para compensar o valor de suas árvores queimadas, de seu solo ressequido e de suas águas emporcalhadas. Nada disso jamais poderá ressarcir o valor dos jacarés mortos e dos queixadas desaparecidos. Os rios são caros demais e nada pode pagar o valor dos animais de caça. Tudo o que cresce e se desloca na floresta ou sob as águas e também todos os xapiri[3] e os humanos têm um valor importante demais para todos as mercadorias e dinheiros dos brancos.”

A mercadoria não é maior que a gente – e não vale as gotas de sangue de nenhum de nós.

Programação dos atos do Janeiro Vermelho

 

[1] “A queda do céu: palavras de um xamã yanomami” Kopenawa, D & Albert, B. São Paulo, Cia das Letras, 2015.

[2]  Narrativa segundo a qual os indígenas devem ser “integrados à sociedade brasileira”, podendo se “desenvolver economicamente como os demais brasileiros” que fundamenta a entrada do grande capital em suas terras e serviu de motor para os massacres realizado contra os indígenas pelo Estado Brasileiro.

[3] Espíritos que dançam e orientam os xamãs Yanomami.

Processos seletivos

Processo seletivo para contratação de assessor/a na área de Orçamento, Saúde e Acesso a Medicamentos

O prazo para envio de currículos pra a vaga de assessor/a na área de Orçamento, Saúde e Acesso a Medicamentos foi prorrogado até o dia 15 de fevereiro. Lista de selecionados e cronograma de entrevistas serão informados ainda no mês de fevereiro. Acesse o edital e saiba mais sobre a vaga.

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Processo seletivo para contratação de profissional de Planejamento, Monitoramento, Avaliação e Sistematização – PMAS

Selecionados/as para entrevistas e Cronograma

As entrevistas serão realizadas na segunda-feira, 04 de fevereiro de 2019, na sede do Inesc, no Setor Comercial Sul, QD 01, Bloco L, Nº 17, Edifício Márcia, 13º andar (Cobertura), Brasília/DF, CEP 70.307-900 – Tel.: +55 (61) 3212-0200

Selecionados/asHorário da Entrevista
Marcelo Marques de Lima09hs00
Priscila Reis Diniz10hs00
Jaqueline Mendes Nardelli11hs00
Barbara Silva Diniz12hs00
Livia Guilardi14hs00 (Skype)
Paula Kikushi Saraiva Câmara15hs00 (Skype)
Andréia Crispim Rodrigues16hs00

 

Visibilidade Trans 2019: resistências necessárias

Em 2019, o Dia da Visibilidade Trans parece ganhar mais importância do que nunca no Brasil. Se já éramos o país que mais mata pessoas trans e travestis do mundo, pelo menos contávamos com o reconhecimento pelo Estado da necessidade de atuar para reverter este quadro por meio de políticas públicas.

No dia 2 de janeiro, sem o menor pudor, o presidente Jair Bolsonaro assinou a Medida Provisória 870, que não menciona a população LGBTI das diretrizes do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. No dia 10 de janeiro, o Ministério da Saúde retirou de sua página oficial a cartilha de saúde dos homens trans, uma publicação voltada para um público com pouquíssimo acesso à saúde especializada – existem somente 11 ambulatórios voltados para a população trans no país.

Ainda que o novo governo tenha mantido estruturas já existentes, como a Diretoria de Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, vinculada à Secretaria Nacional de Cidadania e o Conselho Nacional de Combate à Discriminação, A MP torna invisíveis os LGBTI, já que outros públicos atendidos pelo Ministério estão citados, como as mulheres, idosos, crianças, adolescentes e jovens, pessoas com deficiência e indígenas. A MP 870/19 tem validade desde sua publicação, e deverá ser aprovada pelo Congresso Nacional ainda em fevereiro, sendo que o texto poderá sofrer mudanças por meio de emendas parlamentares.

De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais – ANTRA, no ano de 2018 foram 163 assassinatos. São mortes sempre cruéis, com presença de tortura, e até mesmo filmagens que são postadas nas redes sociais. Essas vidas brutalmente ceifadas carregam uma simbologia que reforça a exclusão e a discriminação – pois é ao mesmo tempo o extermínio de uma pessoa, de um corpo, mas também uma mensagem social de não aceitação da diferença.

Durante o período eleitoral, assistimos aos discursos de candidatos, políticos e religiosos de vertente conservadora exacerbando a masculinidade violenta, e, ao mesmo tempo, foram registradas diversas denúncias de ataques a pessoas trans e travestis. O que se anunciava com o retrógrado projeto “Escola sem partido”, baseado no fim de algo que nunca existiu, a saber, a “ideologia de gênero”, culminou em um enorme esquema de divulgação de fake news (notícias falsas) ainda sem uma resposta dos Tribunais Eleitorais sobre quem produziu e disseminou esses conteúdos.

A autorização social para a violência, apoiada no machismo e no racismo estruturais de nossa sociedade, ganha legitimidade como política de Estado na medida em que vão sendo publicados atos pelo poder Executivo – sem diálogo com a sociedade – que suprimem direitos ou impõem novas políticas que podem resultar em mais violência com base nas discriminações de gênero.

Da “bela, recatada e do lar”, evoluímos em apenas 2 anos para o modelo de família onde o homem é o centro da sociedade, tendo o direito ampliado à posse de armas com objetivo de proteger seu “patrimônio”, incluídos aí não só os bens materiais, mas também as mulheres e as crianças, vistas não como seres humanos autônomos, mas como suas propriedades. Aprovada por meio de decreto, a ampliação da posse de armas é mais um ato no “pacote de violência” do novo governo, em um país onde mais da metade dos feminicídios são cometidos por arma de fogo. Na primeira semana do ano, os “príncipes vestidos de azul” já tinham assassinado 21 mulheres, dado que pode ter chegado a mais de cem tentativas de feminicídio até o dia 29 de Janeiro. Neste mesmo país, o único parlamentar homossexual assumido, Jean Wyllys, reeleito com 24 mil votos pelo Rio de Janeiro, desistiu da legislatura por temer ser assassinado e decidiu deixar o Brasil. As mensagens recebidas por ele e publicadas na mídia demonstram a forte misoginia e homofobia social: são recorrentes as ameaças de estupro.

O Dia da Visibilidade Trans surgiu em 2004, quando travestis, mulheres e homens trans entraram no Congresso Nacional para lançar a campanha “Travesti e respeito”. Desde então, foram muitas conquistas dos movimentos sociais pela saúde e despatologização, por promoção de políticas voltadas para inserção no mercado do trabalho e por mais presença em espaços de poder. Em 2018, o Tribunal Superior Eleitoral reconheceu o direito ao nome social para as candidaturas, e foi eleita em São Paulo a deputada estadual Erika Malunguinho – mulher, negra e trans.

Se o governo tem como diretriz “Deus acima de todos” e uma ministra que se declara “terrivelmente cristã”, trata-se de uma teocracia, não de uma democracia. Estamos sob a mira de quem não respeita o Estado laico e a Constituição Federal. Estamos nos referindo, portanto, à cumplicidade do Estado na violação de direitos humanos. Mas o 29 de janeiro – Dia da Visibilidade Trans – está vivo e presente para reafirmar a existência de cidadãs e cidadãos trans e travestis, brasileiros e brasileiras, que continuarão a lutar por uma sociedade mais justa, inclusiva, diversa…e menos triste.

 

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Os “dejeitos” da mineração no Brasil

Foto: Maria Júlia Andrade/ Brasil de Fato

Impossível evitar o uso da palavra criada pelo presidente Bolsonaro em seu primeiro pronunciamento sobre o rompimento da barragem da Vale S.A, em Brumadinho (MG), que tragicamente leva centenas de vidas.

A nova palavra funde dejetos com rejeitos, esta última, vale lembrar, assimilada ao vocabulário da grande maioria dos brasileiros há pouco mais de três anos, quando do rompimento da barragem do Fundão, em Mariana. “Dejeitos” descreve bem a grande mineração no Brasil e sua relação com o Estado brasileiro, com as vidas humanas, com os trabalhadores e com o meio ambiente.

O que aconteceu? Como vão responder por esse crime a empresa, cujo lema é “Mariana nunca mais”; o governo federal, que tem uma supostamente boa Política Nacional de Segurança de Barragens e o governo estadual, que licencia a maioria dos projetos e suas barragens.

Não há resposta fácil, ou possível de ser aceita. Nesse momento, cabe uma reflexão febril sobre como excrementos da mineração se multiplicaram tão rapidamente no Brasil nos últimos 15 anos, sob influência do chamado ciclo de commodities minerais.

A Vale S.A manteve firme sua liderança na produção mundial de minério de ferro por mais de década. A produção, que em 2000 era de 123,5 milhões de toneladas, saltou para 366,5 milhões de toneladas em 2017, sendo esperado novo recorde para 2018.

A extração recorde, ano após ano, foi combinada com a redução sistemática dos seus custos de produção graças à sua agressiva terceirização em tempos de flexibilização da legislação trabalhista, entre muitas outras coisas. Aliás, todas as vidas humanas são igualmente valiosas, mas precisamos nos perguntar: quantos trabalhadores terceirizados foram soterrados pela lama grossa? A combinação de produção recorde e custos reduzidos garantiu à Vale a sua classificação em 2019 como a mais valiosa empresa de minério de ferro do mundo.

O Estado brasileiro, por sua vez, apoiou fortemente a redução de custos, estimulando o crescimento acelerado da produção e, logo, a geração de excrementos minerais. Nos últimos 15 anos, a Vale S.A figurou com a quarta empresa que mais recebeu empréstimos do BNDES. Além dos empréstimos subsidiados, a Vale conta, neste caso há mais de 50 anos, com isenção do pagamento do Imposto de Renda de Pessoa Jurídica (IRPJ) para suas operações na Amazônia. Isto, graças aos incentivos fiscais concedidos pela SUDAM, renovados pelo Congresso Nacional no final de 2018 e sancionados pelo Presidente Bolsonaro, descumprindo a Lei de Responsabilidade Fiscal.

Os instrumentos de licenciamento, fiscalização e regulação, sob responsabilidade do Estado brasileiro, deram seguramente sua contribuição à tragédia que estamos vivendo. Quem ainda pode duvidar da relação entre as fragilidades dos licenciamentos conduzidos pelos estados e as deficiências de fiscalização, acentuadas em tempos de penúria fiscal, e o rompimento da barragem? Que governo pode, depois disto, defender veementemente uma ainda maior flexibilização do licenciamento ambiental no país?

A Lei de Segurança de Barragens ou não foi suficiente ou não foi cumprida, possivelmente os dois. Sobre este ponto, cabe lembrar que, segundo a empresa, a barragem que se rompeu estava inativa há três anos, “em processo de descomissionamento”, ou seja, em processo de desativação.

Fica a pergunta: nestes casos, os procedimentos de segurança e fiscalização são os mesmos? Se olharmos os objetivos da Política Nacional de Segurança de Barragens (Lei 12.334 de 2010) vemos que entre eles está o de “regulamentar as ações de segurança a serem adotadas nas fases de planejamento, projeto, construção, primeiro enchimento e primeiro vertimento, operação, desativação e de usos futuros de barragens em todo o território nacional”. O que diz o regulamento no caso de desativação? Ele foi cumprido?

Respostas não repõem vidas, mas elas precisam ser dadas, pela empresa e pelo Estado brasileiro. O que temos é uma tragédia humana criminosa, recorrente e sem precedentes na história da mineração no Brasil, que aparece surrealmente como produto do crescimento assustador do volume de “dejeitos” produzidos pela mineração.

Talvez, tais excrementos minerais, aprisionados por centenas de barragens, espalhadas em sua maioria por Minas e Pará, estejam se rebelando: os do Fundão estimularam os do Feijão. Estes últimos, por sua vez, talvez tenham também sido estimulados pelo desgosto do esquecimento, provocado pelo processo de desativação.

Assim, ressentidos e revoltados, romperam ferozmente estruturas de contenção, avançaram violentamente e em bloco rumo à liberdade e ao reconhecimento, passando por cima de vilas, povoados e alojamentos de trabalhadores que, tragicamente, reuniam humanos responsáveis pela sua criação.

No Brasil de hoje, dia 25 de janeiro de 2019, tudo soa tão surreal e trágico que o limite entre a realidade e a fantasia perde sentido.

Como chegamos à era Trump – nos EUA e no Brasil

É impossível não traçar paralelos diante da surpreendente eleição de Jair Bolsonaro para a presidência do Brasil em novembro de 2018 e a eleição de Donald Trump no final de 2016 nos Estados Unidos. Tanto que a imprensa internacional passou a chamar o então candidato Bolsonaro de Brazilian Trump para facilmente traduzir a seus leitores e audiência o que ele significava. Afinal, eram os dois participantes de processos eleitorais democráticos e que se apresentavam orgulhosamente antidemocráticos com discursos populistas antidireitos.

Ambos foram eleitos ancorados em uma agenda de retrocessos em direitos, agudização das medidas de austeridade e promessas de avanço na agenda neoliberal, assessorados fortemente por familiares. Além disso, também se identificam e se unem pela própria aliança entre os dois países, buscada em nome dos interesses dos grupos que circundam os dois presidentes.

Em um momento de convergência das crises econômica e climática, de dificuldade dos sistemas internacionais de proteção de direitos em fazer com que seu papel seja reconhecido e garantido, ambos utilizaram a insatisfação para vender uma agenda de mais austeridade e mais conservadorismo como resposta à população. Sem muitas propostas concretas, mas com um discurso destrutivo cuidadosamente construído, ambos venderam soluções simples para um momento de enorme complexidade. Deixaram analistas e ativistas surpreendidos.

Acreditava-se, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, que haveria um despertar e que algo aconteceria para impedir a eleição de lideranças professando discursos de ódio, incitando animosidade e violência e ameaçando a institucionalidade. Os índices de rejeição eram altíssimos e, mesmo assim, não o suficiente para impedir que chegassem ao cargo.

Contudo, o choque de suas eleições não são casos isolados. Vemos processos semelhantes sendo postos em marcha na Hungria e nas Filipinas, em eleições locais pela Europa, em que a agenda de desmanche de direitos e defesa de valores conservadores estão surpreendendo ativistas e analistas que confiavam que o patamar de institucionalidade que alcançamos não seria desafiado a esse ponto. Nunca antes tivemos lideranças orgulhosas de não quererem fazer parte do jogo democrático, de quebrarem regras mínimas de respeito (e demonstrarem desprezo) às instituições e nos falta preparo para responder à altura.

Começamos por ter dois presidentes eleitos que não conquistaram a maioria dos votos. O sistema estadunidense de votos facultativos e de colégio eleitoral não premia a maioria numérica de votos, mas a maioria de colégios eleitorais. Trump recebeu 46.4% dos votos vaĺidos (62.984.825) contra 48.5% (65.853.516) de sua oponente Hillary Clinton, mas eles significaram 306 colégios eleitorais contra apenas 232 para Clinton. O mesmo aconteceu no Brasil, onde o voto é obrigatório: no segundo turno, 57.797.073 pessoas votaram por Bolsonaro enquanto 89.504.543 não votaram por ele.[1]

E o mesmo também ocorreu na Hungria, nas Filipinas e com o Brexit no Reino Unido. Não foi a maioria que votou pelos retrocessos, embora não tenha conseguido transformar essa oposição em ação concreta para barrar os projetos reacionários em curso em prol de proteção a direitos garantidos. Nas Filipinas, vemos que o apoio a esse novo discurso de recuperação de valores conservadores ligados à igreja e à família, de combate ao crime com mão firme, de combate à corrupção apesar de ser bastante corrompido, tem tração suficiente para durar para além do mandato de uma liderança eleita com essa plataforma e deve se estender para eleições futuras. Na Hungria já dura oito anos o governo autoritário de Viktor Orban e novamente a maioria não foi capaz de conter o avanço de sua agenda.

Cobertura da mídia tradicional

No Brasil, com a intensa atuação dos familiares de Bolsonaro nas eleições presidenciais, além dos cargos no legislativo que seus filhos lograram garantir – um filho senador, um filho deputado federal e um filho vereador no Rio de Janeiro que não foi eleito deputado federal porque desistiu da candidatura – cria-se uma dinastia e seus filhos tem se portado publicamente como representantes do presidente, inclusive em declarações sobre decisões em temas de política externa. A falta de preparo de sua família para tratar de temas delicados e com enormes consequências, como a mudança da embaixada brasileira em Israel para Jerusalém, causa espanto.

Uma das explicações para o sucesso da família Bolsonaro em sua campanha foi o uso da internet. O presidente eleito se ausentou de quase todos os debates eleitorais, participando de apenas dois antes mesmo da candidatura de Fernando Haddad ser definida[2]. Após a definição de Haddad como candidato do PT em substituição ao ex-presidente Lula, impedido de concorrer, e o atentado sofrido por Bolsonaro no dia 6 de setembro, ele não participou de debates, apenas entrevistas e teve bastante tempo dedicado a si pelos jornais, revistas e canais de televisão no Brasil durante todo o período entre sua alta hospitalar e o restante da campanha eleitoral. Ficou clara a falta de equilíbrio no tempo fornecido a cada um dos dois candidatos do segundo turno e de forma gritante, os jornais evitavam chamá-lo pelo que é: um populista de extrema direita[3] e forneceram plataforma para que o candidato pudesse expor suas ideias calamitosas com roupagem de “controversas” e “polêmicas”.

Nos Estados Unidos, a cobertura da mídia também impactou positivamente a campanha de Donald Trump. Em pesquisa realizada pelo Kennedy School’s Shorenstein Center da Universidade de Harvard, logo após o pleito, a cobertura realizada pela grande mídia no país foi considerada corrosiva, por ter trazido majoritariamente notícias negativas. De acordo com o autor do estudo, Thomas Patterson, a cobertura negativa tem e teve consequências partidárias.

“A mídia tradicional destaca o que há de errado com a política sem nos mostrar o que estaria correto. É uma versão da política que premia um certo jeito de fazer política. Quando tudo e todos são relatados como profundamente errados e cheios de falhas, não faz sentido fazer distinções, o que acaba premiando quem possui mais falhas. Civilidade e propostas sensatas não fazem mais parte das manchetes, o que dá voz àqueles que têm talento para a arte da destruição.”[4]

E completa ainda lembrando que apesar da direita dizer que a mídia é majoritariamente liberal, os ataques aos governos fazem com que a mídia reforce o discurso antigoverno e anti-política da direita.

Trump recebeu cerca de 15% mais cobertura que Clinton na campanha eleitoral de 2016, de acordo com o mesmo estudo. Não há números para quantificar a atenção extra recebida por Bolsonaro na campanha eleitoral no Brasil, mas seguramente é algo ao redor do mesmo patamar ou acima dele. Duas redes de televisão de alcance massivo cortejaram o candidato com o intento de tornarem-se a “Fox News do Brasil”. Uma delas – concessão a uma grande liderança evangélica e também dona de um portal de notícias – criou regras internas que impediam críticas a Bolsonaro e fomentavam notícias negativas contra Haddad, levando uma editora de notícias sênior a se demitir. Ficou claro durante a campanha que a mídia tradicional brasileira não só estava participando das eleições, como estava apostando em um candidato ser eleito e decidiram por cortejá-lo, esperando estar em suas graças em um eventual governo.

Importação da tática das fake news

A imprensa brasileira tem um terrível histórico de intervenção em processos eleitorais e dessa vez, não foi diferente. Mas ela não foi o único canal que desequilibrou a disputa eleitoral. Assim como nos EUA, a capilaridade das redes sociais foi essencial para reduzir a altíssima rejeição dos eleitores ao candidato e transmitir notícias falsas – as famosas fake news. O uso dessa tática de desinformação foi tão bem sucedido nos EUA que foi importado para outros processos eleitorais e sempre com as digitais de Steve Bannon, o estrategista das direitas e ex-coordenador de campanha de Trump.

Bannon soube se aproveitar do fato de que à época 65% dos adultos[5] nos Estados Unidos utilizava redes sociais (hoje esse número é estimado em 71%[6]) e aliou-se à infame empresa Cambridge Analytica para criar uma estratégia que logrou garantir a Casa Branca à Donald Trump e seu grupo a partir do uso de Google, Snapchat, Twitter, Facebook e Youtube. A principal ferramenta no entanto foi a utilização do Facebook, que forneceu (de forma irregular) dados de milhares de usuários que permitiram direcionar mensagens de campanha. A falta de controle do Facebook, aliada à estratégia da Cambridge Analytica, foi extensamente documentada em reportagens que revelaram a relação entre a manipulação das redes sociais e a eleição de Trump.

A empresa foi criada a partir de experimentos de um professor de psicologia na Universidade de Cambridge, quando a universidade se recusou a permitir que seus experimentos fossem utilizados para fins comerciais. Primeiro surge a Global Science Research em 2014; mas a coleta de dados feita por Aleksandr Kogan é feita através de uma empresa chamada Strategic Communication Laboratories (SCL) que possui uma divisão eleitoral que promete utilizar mensagens direcionadas a partir de dados para entregar sucesso eleitoral. Seu braço nos EUA é a Cambridge Analytica que recebeu enormes investimentos de investidor bilionário Robert Mercer, apoiador de Trump e aconselhado por Steve Bannon. Além dos investimentos no desenvolvimento da empresa, Mercer também colocou à disposição da campanha de Trump enormes somas para que a empresa fosse contratada. Steve Bannon era também funcionário da CA e meses após garantir que seus laços com a empresa tinham sido cortados, cheque da campanha de Trump por serviços da CA foram entregues em um endereço de Bannon em Los Angeles.

O fato é que estima-se que cerca de 100 a 185 mil pessoas tenham preenchidos questionários e disponibilizado seus perfis para coleta de dados sem saber que isso levaria a uma rede que alcançou cerca de 30 milhões de perfis do Facebook e possibilitou que usuários fossem mapeados sem seu consentimento. Cada like e cada post foi analisado por operadores buscando meios de influenciar as eleições nos EUA. No Reino Unido, a CA está sendo investigada pelo Parlamento pela sua atuação possivelmente ilegal na campanha pelo Brexit; de acordo com declarações do ex-diretor da empresa ao parlamento britânico em março desse ano, “pode-se dizer razoavelmente que o resultado do referendo teria sido diferente.”

E enquanto o impacto da CA em si nas eleições estadunidenses é difícil de medir, o uso do próprio Facebook pela campanha, não. A campanha de Trump nunca escondeu o seu uso estratégico, utilizando 80 % do seu orçamento de campanha para mídias digitais no Facebook:

“Joel Pollak, editor do Breitbart, escreveu em suas memórias da campanha sobre os ‘Exércitos de Amigos de Trump no Facebook’ ultrapassando os portões da mídia tradicional. Roger Stone, um colaborador antigo de Trump, escreveu em suas memórias da campanha sobre o foco geográfico em cidades para espalhar a falsa notícia de que Bill Clinton havia tido um filho fora do casamento, e selecionando quem receberia baseado em preferências em música, grupo etário, cultura negra e outros interesses urbanos”.

Além disso, há toda a questão levantada pela investigação do promotor especial Robert Muller sobre a possível interferência russa no processo eleitoral, pela compra de anúncios no Facebook e por possivelmente terem hackeado o Partido Democrata. Mas no fim do dia, Facebook auxiliou a campanha pela ferramenta que é. No Brasil,

As eleições de 2018 representaram uma mudança de paradigma sobre campanha política vigente no país desde 1989, provocada pelo efeito da Operação Lava-Jato no sistema político. Aceitando o forte processo de deslegitimação que a Lava Jato lhe impôs, o sistema político realizou fortes modificações na estrutura das campanhas políticas. Entre estas, vale a pena destacar a redução do período de campanha, do tempo gratuito na TV e do bloco de propaganda gratuita no horário nobre. Todas estas alterações podem ser entendidas dentro de uma lógica de redução dos elementos de debate públicos nas campanhas políticas. Acrescente-se a estes elementos a diminuição da campanha de rua e dos comícios. Com menos atividades públicas, abriu-se, pela primeira vez desde 1989, campo para a campanha exclusivamente privada, como a de Bolsonaro, centrada quase exclusivamente nas redes sociais – ele tinha muito pouco espaço no horário eleitoral gratuito – e no interior das redes, naqueles circuitos mais privados possíveis como é o caso das listas de WhatsApp.” 

Como nos EUA, a estratégia de comunicação da campanha da direita investiu pesadamente no uso das redes sociais. Segundo dados, o Brasil tem 62% da população utilizando redes sociais – Youtube, Facebook e Whatsapp em ordem de usuários (60, 59 e 56% da população utiliza essas redes) e possui o segundo maior tempo diário dedicado a redes sociais no mundo – 3h e 39 minutos, apenas atrás da Filipinas.

Além disso, os brasileiros e brasileiras têm um grau muito baixo de confiança nas instituições[7]. A pesquisa realizada pelo Instituto da Democracia em março de 2018 revela que a confiança nos partidos políticos está em seu nível mais baixo desde 2006, e que apenas 19% dos entrevistados estão satisfeitos com a democracia no Brasil e mais de 80% estão insatisfeitos ou muito insatisfeitos. Isso já era algo apontado há muitos anos pela Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político, que criou propostas para democratizar o sistema político, para além do eleitoral e ampliar a qualidade da democracia no país. Com o envolvimento de partidos políticos em escândalos de corrupção e com a política aberta de barganhas no Congresso e nos corredores do palácio presidencial, tem sido difícil para a população crer que essas agremiações vão proteger o interesse público. Sem mencionar o papel que tiveram em extensivas negociações para a candidatura de Bolsonaro e apoio à sua agenda no primeiro e/ou segundo turno, negociando princípios para se tornarem parte da base do próximo governo.

Mas esse cenário de uso intenso de redes sociais e pouca confiança em instituições, torna-se solo propício para que discursos cuidadosamente construídos como antiestablishment e sinceros, e notícias falsas, sejam espalhadas de forma capilar. As mensagens são criadas sob medida para os perfis, definidos pelas redes sociais a partir de likes e compartilhamentos, sem contar o reforço que essas mensagens recebem de bots e de perfis falsos. Vimos isso claramente durante a campanha de Bolsonaro quando menções a apelidos dados ao candidato nas redes sociais geraram reações desmedidas em notícias sem nenhum conteúdo eleitoral. O melhor exemplo é um tuíte de uma notícia da Folha de São Paulo sobre um clássico dos botecos, o bolovo, que foi bombardeado por comentários em apoio ao candidato.

O que estudiosos têm dito com cada vez mais veemência é que a influência das redes sociais está desequilibrando processos democráticos e comportamentos através da manipulação. Recentemente, o autor de “Likewar: the Weaponization of Social Media”, P.W. Singer, afirmou categoricamente que “a maioria das pessoas não têm a consciência de que é constantemente manipulada por campanhas políticas e de marketing na internet —muito pouco do que ocorre hoje nas redes, seja um vídeo viral, uma hashtag ou foto, é espontâneo.”

Voltando ao fato de que no Brasil a confiança nas instituições é extremamente baixo e que temos um uso intenso de redes sociais, a campanha eleitoral de desenrolou muito mais em canais privados do que em debates públicos. E uma particularidade do Brasil são a prevalência de grupos de familiares e amigos no Whatsapp, que se entende se olhamos para o fato de que nas pesquisas sobre confiança nas instituições: família, amigos e igreja contam com alto grau. Vimos essa ferramenta ser utilizada de forma massiva para espalhar conteúdos falsos, principalmente a partir de setembro, e como essas mensagens provém de amigos e familiares, o nível de confiança nelas é maior do que se chegassem por outras vias.

Mesmo com os desmentidos sobre as notícias falsas relacionadas a Haddad, elas continuaram circulando. Parte disso foi a confiança das pessoas nas mensagens recebidas e repassadas e parte foi a manipulação ilegal da ferramenta em um esquema desvelado por jornalistas[8].

Como paralelo entre os dois processos eleitorais, podemos afirmar que foram candidatos eleitos sem a maioria dos votos, com campanhas que colocam o foco nas redes sociais, que tiveram apoio da mídia tradicional – explícito como no Brasil ou colateral como nos Estados Unidos. Também foram processos que se aproveitaram da liberdade de expressão para manipular informações, criaram mensagens emotivas e alimentaram o medo de seus eleitores através de canais privados, se aliando a agendas socialmente conservadoras para arregimentar apoio. Em ambos os casos, as igrejas neopentecostais tiveram um papel fundamental em apoiar e direcionar as mensagens das campanhas e dos governos. Isso fez com que ambos saíssem de seus nichos, de eleitorados específicos, e virassem figuras apoiadas por uma parcela expressiva, mesmo com suas falas machistas, racistas e retrógradas.

No Brasil, o processo eleitoral ainda teve como componentes importantes: a ingerência da mão pesada do poder judiciário com as ações politicamente motivadas da Operação Lava-Jato e com as decisões acovardadas do Supremo; e dos interesses econômicos das empresas privadas (desde Facebook ao grande agronegócio), das igrejas e de seus aliados, como a bancada BBB e outros que desconhecemos. Sabemos de seu diálogo com Steve Bannon e de sua desmedida admiração pelos Estados Unidos, mas não temos elementos suficientes para analisar que interesses estão por trás da candidatura de uma figura política que tem 30 anos de carreira sem destaque algum.

Na esquerda faltou emoção

Mas e a esquerda nos processos eleitorais desse tipo, como se comportou? Uma reflexão de uma ativista dos EUA reforça a importância de compreender as narrativas em jogo:

“Quando a esquerda finalmente se deu conta de quão ressonante e popular Trump era, respondeu da única forma que uma instituição que se orgulha de ser correta e superior poderia fazer: fazendo checagem de dados das afirmações e ações dele. Ao invés de se engajar com as emoções reais que atraíram as pessoas a ele, ridicularizaram seus apoiadores e ignoraram suas realidades emocionais. Enquanto Trump falou de sentimentos e valores e pintou o quadro de um mundo que genuinamente ressoava com as pessoas e apaziguava seus medos. Não se pode checar dados de um sentimento. Esperamos que isso sirva de lição”. E complementa: “a esquerda gastou muito pouco tempo no que realmente motiva politicamente as pessoas: valores, sentimentos e comunidade”.

A campanha da direita, nos dois países, foi muito mais emotiva do as campanhas de seus adversários. Trump e Bolsonaro certamente encamparam a imagem de homens comuns, indignados com as crises em seus países – econômica e social nos EUA, também política no Brasil e de valores comportamentais. Suas respostas para problemas complexos foram simplistas e no caso de Bolsonaro, estreitamente ligadas a valores conservadores; suas explicações passam por falta de Deus, falta de autoridade na família, e falta de patriotismo como causa das mazelas da vida cotidiana dos brasileiros e brasileiras. Mas ele não oferece solução, apenas aponta o problema, como Trump.

À oposição a eles e demais representantes da política tradicional faltou oferecer explicações que tivessem ressonância com as classes médias e classes populares. O problema é que discutir isso, pressuporia também desvelar a relação nada republicana entre partidos políticos e representantes de grandes lobbies e interesses econômicos. As portas giratórias entre os que ocupam altos postos governamentais de alto interesse público e altos cargos corporativos, as campanhas eleitorais financiadas com recursos privados, a captura corporativa de espaços de debate e decisão de interesse público em prol de lucro de poucos grupos econômicos, o papel dos bancos, da mídia e a relação deles com a vida pública. Mostrar que a corrupção é certamente um problema grave, mas não é ela que priva a maioria da população de viver em condições melhores com seus direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais atendidos.

“Nos Estados Unidos de Donald Trump e no Brasil de Bolsonaro, o capitalismo financeiro quebra e destrói relações sociais e vida associativa, provocando desorientação e isolamento do indivíduo. E, novamente, é dito a ele que o fracasso é culpa dele – e não de um sistema injusto. É uma estrutura fascista, sim, de novo tipo. Que está se internacionalizando e que vive do mesmo tipo de desrespeito e desumanização que fazia o fascismo anterior. Que quer dizer que o outro, por pensar diferente, merece morrer. E a classe média, que sempre odiou o pobre, agora está se sentindo mais à vontade para expressar, explicitar esse ódio. No fim, o ódio é exatamente o que o fascismo produz.”[9]

Ideologia de gênero e globalismo

Para a direita criar respostas às crises que vivemos, nos EUA, no Brasil e no restante do mundo também, cada vez mais comum é levantarem dois temas: ideologia de gênero e globalismo como as origens dos males que sofrem nossas sociedades. A ideologia de gênero não é nova e é um conceito vazio e maleável às necessidades do discurso conjugando de forma esdrúxula feminismo, teorias LGBTI e comunismo; Sonia Correa faz um histórico importante da construção de suas origens desde meados da década de 90 e seu uso nas esferas internacionais e na política internacional sobre questões de gênero. Ela recupera em seus escritos como a ideia foi formatada em negociações internacionais e nas altas esferas teológicas, em princípio na Igreja Católica, mas que hoje conta com a adesão de outras forças religiosas e também com apoio de um amplo espectro da sociedade: de biomédicos, psicanalistas, extremistas de direita, e até políticos da esquerda.

“Acima de tudo, os proponentes da agenda anti-gênero mobilizam lógicas e imaginários simplistas e constituem inimigos voláteis – aqui as feministas, lá os gays, acolá os artistas, por lá os acadêmicos, em algum outro lugar os corpos trans – alimentando pânico moral que distrai as sociedades de temas estruturais que deveriam estar sendo debatidos, como as crescentes desigualdades de gênero, classe, raça e étnicas.”

O mesmo acontece com o globalismo, sendo utilizado como conceito para defender valores cristãos, apresentado como a globalização econômica capitaneada pelo marxismo cultural, segundo definição do próximo Ministro de Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo[10]. O termo antigo, datado da década de 40 foi recuperado por Steve Bannon e seus discípulos, mas foi inicialmente identificado com o projeto expansionista nazista, depois utilizado para nomear atores internos nos EUA que poderiam colocar em risco a soberania nacional dos EUA ao apoiarem políticas internacionais, como em temas migratórios no pós-guerra. A semente do termo vem carregada de preconceito e se coloca como oposição aos projetos de interesse nacional – nos EUA, o “America First” e no Brasil, “Brasil acima de todos, Deus acima de tudo”.

O fato dos EUA capitanearem uma política como America First, muitas vezes imoral e egocêntrica, como no caso da separação de famílias, abre caminho para que outras lideranças deem passos antes inimagináveis diante do sistema internacional e diante dos próprios Estados Unidos. America First nao significa necessariamente apoio a outras lideranças, significa que o país não expressará sua desaprovação diante de políticas autoritárias. Enquanto não houver oposição direta à Trump, o que acontece em cada país, não o interessa – exceto nos países alvo dos discursos (de ataque ou defesa) da direita: Irã, Israel e Venezuela.

Para as sociedades civis dos EUA e do Brasil, e de outros países governados por líderes autoritários ou se encaminhando para que sejam, essas são más notícias. A militância desenvolvida há décadas, mas com maior profissionalização desde a década de 90 já está sofrendo ataques no que chamamos de redução ou encolhimento dos espaços democráticos e que tendem a ser intensificados. As organizações e movimentos sociais que lutam por direitos estão sendo nomeados os inimigos do progresso e o discurso de ódio contra ativistas têm crescido de forma perigosa. Vimos durante a campanha eleitoral no Brasil os ataques a jornalistas e ativistas crescerem de forma assustadora; vimos também que antes mesmo que o novo presidente assuma, há movimentação intensa no congresso para aprovar legislações como o ajuste da lei antiterrorismo para criar mecanismos de reprimir e encarcerar o dissenso.

Nos EUA, resistência no Congresso e legislaturas locais

Nos Estados Unidos, a eleição de Donald Trump gerou um movimento extremamente interessante de mulheres que organizou células locais e catalisou inúmeras candidaturas ao Congresso e legislaturas locais, alcançando um recorde de mulheres eleitas – 107 das 435 cadeiras, além do importantíssimo e oportuno controle do Congresso pelos democratas. O importante disso é que a partir de 2020 o congresso passará por um processo de redefinição dos distritos eleitorais[11].  Atualmente, uma estratégia posta em prática pelo conselheiro do ex-presidente George W. Bush, Karl Rove, chamada RedMap – Redistricting Majority Project – continua rendendo frutos para os republicanos nas eleições, mesmo recebendo menos votos, conseguem garantir o controle de distritos disputados.

A definição do distrito pode ser um atributo dos legisladores estaduais que recorrem a softwares e dados dos eleitores para definir quais são os limites dos 435 distritos congressionais do país, cada um representando aproximadamente 711.000 pessoas. Gerrymandering é o nome da prática de desenhar o distrito de acordo com interesses partidários para garantir o controle de um assento. Os republicanos, liderados por Rove, colocaram essa estratégia em prática depois de terem adquirido o controle do Congresso em 2010 e pressionado estados nos quais a legislatura estava encarregada do processo de redistritamento, para assumir o controle do processo e redesenhar as linhas distritais. Os democratas não esperavam por isso e nada como isso havia sido tentado antes, não nesta escala.

Normalmente, o gerrymandering usa duas técnicas: packing e cracking no inglês, algo como concentrar e pulverizar. No chamado packing, o partido encarregado do redistritamento tenta concentrar os eleitores do partido rival em poucos distritos para minimizar suas oportunidades de garantir assentos. No cracking, blocos de eleitores da oposição são distribuídos em muitos distritos variados para alcançar o mesmo objetivo, reduzir as chances do partido opositor. “Em preparo para o próximo censo, os democratas criaram um plano semelhante ao do RedMap. Eles o chamam de Advantage 2020, e dizem que esperam financiá-lo no valor de setenta milhões de dólares. Os republicanos, por sua vez, anunciaram o RedMap 2020. Seu objetivo de gastos? Cento e vinte e cinco milhões de dólares”.

Mas, além dos enormes investimentos que estão sendo feitos no futuro desenho dos distritos, pela primeira vez desde 1950, o Censo dos EUA planeja perguntar a todos que moram nos Estados Unidos se são cidadãos quando realizarem seu próximo censo decenal em 2020. Já imaginando que alguns imigrantes podem evitar responder à pergunta, o governo Trump quer tentar usar outros registros do governo para preencher as informações necessárias. E esse processo afetará fortemente o processo de redistritamento, os próximos 10 anos de política americana e como o orçamento é alocado aos estados – estimados US $ 800 bilhões por ano em fundos federais.

No Brasil, debate sobre reforma eleitoral e representação

No Brasil, o debate sobre reforma eleitoral e mudanças no modelo de representação deve crescer em 2019. Isso porque em outubro de 2017, o Congresso aprovou novas regras colaterais, mas não conseguiu apoio suficiente para avançar na discussão para adotar um novo modelo de votação. Houve bastante pressão de figuras conhecidas e de partidos de situação para que o voto distrital misto fosse adotado. Nele, diferente do que acontece hoje, com voto proporcional em lista aberta, os eleitores/as teriam candidatos/as apoiados pelos partidos em cada um dos distritos e o restante deles em listas pré-ordenadas.

Os defensores desse modelo alegam que ele pode facilitar maior controle social sobre a atuação dos parlamentares e aproximar eleitores de seus representantes. Entretanto, ele beneficiaria as figuras conhecidas e grandes partidos em detrimento da oportunidade de novos candidatos/as e partidos menores concorrerem de forma equilibrada. O MDB, partido que esteve na base de apoio de todos os governos desde 1989, não importando o espectro político de cada um deles, seria o maior beneficiado por esse modelo, o que mostra que seriam necessários muitos ajustes para que pudesse de fato aproximar a sistema político da população. Além do que, causa preocupação pensar que as atuais lideranças desse partido estariam a cargo de definir os distritos eleitores no Brasil, abusando do gerrymandering.

A reação das resistências

Há muito com o que se preocupar, mas também há muitos passos sendo tomados na direção correta. Temos visto que os movimentos sociais e ativistas têm conseguido cada vez mais fazer com que suas mensagens de solidariedade e justiça cheguem a públicos que não necessariamente os escutaria. Iara Pietricovsky disse em uma troca de mensagens, “eles trarão de volta a ideia do humanismo e da solidariedade, ou seja, são re-humanizantes (para nossas sociedades).”[12]

A reação da resistência tem conseguido conjugar de forma muito mais eficaz o que ocorre nas redes sociais e nas ruas e ocupar espaços como a direita fez com as campanhas eleitorais. A movimentação em torno da campanha de Haddad no Brasil, nas últimas semanas de outubro, deu uma amostra do que será possível fazer – tanto nas ruas, como nas redes através dos enormes grupos de mulheres formados e que estão criando núcleos locais de debate e apoio a ações, no Brasil e fora.

Há muito sendo feito. O fim de períodos igualmente sombrios sempre se deu por ação popular, por grupos e movimentos que não se intimidaram e criaram estratégias criativas e poderosas para quebrar regimes que não tinham o interesse público como princípio norteador. Não será diferente agora; há muito sendo feito nos Estados Unidos, no Brasil e em outras partes, para que grupos se articulem, ajustem mensagens e possam proteger nossas sociedades de maiores estragos e nos devolver a uma lógica de defender e garantir direitos conquistados para ampliá-los e universalizá-los e não mantê-los reféns de outros interesses.

 

*Ana Cernov é ativista de direitos humanos engajada na proteção dos espaços democráticos e em iniciativas para a construção de movimentos e defesa de justiça e igualdade. Atualmente milita no Coletivo por um Brasil Democrático em Los Angeles. Foi assessora da Coalizão para Ação Cívica Vuka! e antes disso, liderou o programa Sul-Sul da Conectas Direitos Humanos de 2014 a 2016. Trabalhou por 15 anos com sindicatos, movimentos sociais, organizações religiosas e ecumênicas e agências de desenvolvimento no Brasil e na América Latina. Possui bacharelado em Relações Internacionais e Mestrado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Esse artigo não reflete necessariamente uma opinião institucional e traz apenas a perspectiva pessoal da autora.

 

Bibliografia:

Avritzer, Leonardo. “Fake News legitimadas por grupos de família e igreja explicam eleição de 2018”. O Globo, 7 de dezembro de 2018, disponível em: https://blogs.oglobo.globo.com/ciencia-matematica/post/fake-news-legitimadas-por-grupos-de-familia-e-igreja-explicam-eleicao-de-2018.html, acesso em dezembro de 2018.

Bump, Phillip. “All the ways Trump’s campaign was aided by Facebook, ranked by importance”, The Washington Post, 22 de marco 2018, disponivel em: https://www.washingtonpost.com/news/politics/wp/2018/03/22/all-the-ways-trumps-campaign-was-aided-by-facebook-ranked-by-importance/?utm_term=.2a293558315a, acesso em dezembro de 2018.

Carty, Nicole. “Our movements are powerful. The institutional left is not the solution. Here is what we should do next.”, novembro 2016, disponível em:

https://medium.com/@nicolecarty/our-movements-are-powerful-92d6788bbbd5, acesso em dezembro de 2018.

Cernov, Ana & Pousadela, Inés.”¿Son las mujeres la última línea de defensa contra la deriva autoritaria brasileña?” Democracia Abierta, 6 de outubro de 2018, disponível em: https://www.opendemocracy.net/democraciaabierta/ana-cernov-in-s-pousadela/son-las-mujeres-la-ltima-l-nea-de-defensa-contra-la-deri acesso em dezembro de 2018.

Conectas. “SUR – Revista Internacional de Direitos Humanos, edição no 26o, dezembro de 2017. Disponível em: http://sur.conectas.org/revista-impressa-edicao-26/, acesso em dezembro de 2018.

Correa, Sonia. “Gender Ideology: tracking its origins and meanings in current gender politics”, The London School of Economics and Political Science – Engenderings Blog, dezembro de 2017, disponível em: http://blogs.lse.ac.uk/gender/2017/12/11/gender-ideology-tracking-its-origins-and-meanings-in-current-gender-politics/, acesso em dezembro de 2018.

Illing, Sean. “Author explains why Democrats will struggle to win the House until 2030”. Vox, 3 de junho de 2017, disponível em:

https://www.vox.com/conversations/2016/10/5/13097066/gerrymandering-redistricting-republican-party-david-daley-karl-rove-barack-obama, acesso em dezembro de 2018.

Ingraham, Christopher. “This is actually what America would look like without gerrymandering”. The Washington Post, 13 de janeiro de 2016, disponível em: https://www.washingtonpost.com/news/wonk/wp/2016/01/13/this-is-actually-what-america-would-look-like-without-gerrymandering/?utm_term=.450058bb5ce8, acesso em dezembro de 2018.

Instituto da Democracia. “A Cara da Democracia”. Marco de 2018, disponivel em: https://www.institutodademocracia.org/a-cara-da-democracia acesso em dezembro de 2018.

Kolbert, Elizabeth. “Drawing the Line – How redistricting turned America from blue to red”. The New Yorker, 27 de junho de 2016, disponível em: https://www.newyorker.com/magazine/2016/06/27/ratfcked-the-influence-of-redistricting, acesso em dezembro de 2018.

Sayuri, Juliana. “Entrevista: “A esquerda foi singularmente incapaz e burra nessas eleicoes”, diz Jessé Souza, The Intercept Brasil, 18 de novembro de 2018, disponivel em: https://theintercept.com/2018/11/18/jesse-souza-entrevista/, acesso em dezembro de 2018.

Schwartz, Mattathias. “Facebook failed to protect 30 million users from having their data harvested by Trump Campaign affiliate”, The Intercept, 30 de marco de 2017, disponível em: https://theintercept.com/2017/03/30/facebook-failed-to-protect-30-million-users-from-having-their-data-harvested-by-trump-campaign-affiliate/, acesso em dezembro de 2018. Em português em: https://theintercept.com/2017/03/31/o-facebook-nao-protegeu-30-milhoes-de-usuarios-de-terem-dados-acessados-por-uma-das-empresas-da-campanha-de-trump/

Youngs, Richard (editor). “The mobilization of conservative civil society”, Carnegie Endowment for International Peace, 2018.

https://carnegieeurope.eu/2018/10/04/mobilization-of-conservative-civil-society-pub-77366, acesso em dezembro de 2018.

We are Social & Hootsuite. “Global Digital Report 2018”, 9 de janeiro de 2018, disponível em: https://digitalreport.wearesocial.com, acesso em dezembro de 2018.

 

 

[1]  Os dados do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) apontam que 47.039.291 votaram por Haddad e um número muito expressivo de pessoas escolheu não votar em nenhum dos dois candidatos: 42.465.252 abstenções, ou votos brancos/nulos, somando assim os 89.504.543 eleitores que não votaram por Bolsonaro nessas eleições.

[2] Durante vários meses as pesquisas de opinião foram sistematicamente lideradas pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, candidato do PT, mesmo se encontrando ele preso após um julgamento politicamente motivado, encabeçado por um juiz que passa a ser ministro da Justiça de Bolsonaro. Como a condenação de Lula ainda poderia ser revogada em segunda instância, o Comitê de Direitos Humanos da ONU instou o governo a garantir seu direito de se candidatar à presidência, chamamento também feito pela Mesa de Articulação de Associações Nacionais e Redes de ONGs da América Latina, entre muitos outros. Entretanto, em tempo recorde, o STF decidiu que o pedido da ONU estaria em conflito com a lei da Ficha Limpa e no dia 11 de setembro passado decidiu impedir a candidatura de Lula e aceitar sua substituição pela do seu candidato à vice, Fernando Haddad, ex-prefeito de São Paulo e em grande medida desconhecido do eleitorado nacional.

[3] O Jornal Nexo ouviu pesquisadores e escritores internacionais para explicar o lugar que o deputado e capitão reformado ocupa no espectro ideológico mundial e o posicionar na extrema direita. Veja em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2018/10/17/O-que-%C3%A9-extrema-direita.-E-por-que-ela-se-aplica-a-Bolsonaro

[4]Tradução da autora de trecho de entrevista ao autor do estudo, trazida neste artigo: https://www.politico.com/blogs/on-media/2016/12/report-general-election-coverage-overwhelmingly-negative-in-tone-232307

[5]  Dados de 2015 de pesquisa realizada pela Pew Research Center http://www.pewinternet.org/2015/10/08/social-networking-usage-2005-2015/

[6] Dados da pesquisa Global Digital Report 2018, realizada pelas agências We Are Social e Hootsuite e divulgada em janeiro de 2018. https://digitalreport.wearesocial.com

[7] Dados da pesquisa “A Cara da Democracia no Brasil”, realizada em março de 2018, que tem como objetivo produzir um retrato atualizado de como o brasileiro enxerga a democracia no país e como se apropria de informação política. Veja em: https://www.institutodademocracia.org/a-cara-da-democracia

[8]https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/entenda-as-irregularidades-envolvendo-uso-do-whatsapp-na-eleicao.shtml

[9] https://theintercept.com/2018/11/18/jesse-souza-entrevista/

[10]https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/11/contra-o-globalismo-e-o-pt-conheca-frases-do-novo-chanceler-brasileiro.shtml

[11]https://www1.folha.uol.com.br/colunas/patriciacamposmello/2018/11/precisamos-falar-de-gerrymandering-e-hegemonia-republicana-no-legislativo.shtml

[12]  Troca de emails entre a autora e a ativista Iara Pietricovsky do INESC em 8 de dezembro de 2018.

>>> Leia a versão em inglês do artigo:

Nota pública em defesa dos povos indígenas

O Inesc vem a público, se somando ao movimento indígena, às organizações indigenistas e de defesa de direitos humanos, para reiterar que as medidas prometidas a uma parcela de eleitores e agora praticadas pelo governo brasileiro sob o comando de Jair Bolsonaro afrontam cruelmente os direitos dos povos indígenas, duramente conquistados e assegurados constitucionalmente.

À violência do discurso de campanha se seguiram medidas de desmonte estrutural da política indigenista brasileira, cujo pilar básico é o direito dos povos indígenas às suas terras, sem o que sua autonomia e sua reprodução física e cultural estarão fatalmente inviabilizadas.

Qual o sentido da transferência da atribuição de identificação, delimitação, demarcação e registro das terras tradicionalmente ocupadas por indígenas da FUNAI para o Ministério da Agricultura, expressamente a serviço dos interesses do agronegócio, senão o de inviabilizar de vez processos de demarcação?

Qual o sentido da desvinculação da FUNAI do Ministério da Justiça, seguida da atribuição ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos de uma vaga competência relativa aos “direitos do índio, inclusive no acompanhamento das ações de saúde desenvolvidas em prol das comunidades indígenas, sem prejuízo das competências do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento”?

Desmontar as estruturas responsáveis pela política indigenista e colocar a demarcação sob o julgo de uma estrutura burocrática poderosa e que sempre a combateu serve a que propósito, senão o de destruir aqueles que se considera inimigos? Mas por quê e de quem os povos indígenas do Brasil são inimigos? De onde vem a motivação ideológica e econômica que tem servido para animar o discurso e agora a prática revanchista do governo Bolsonaro?

Tamanha é a violência do discurso e das medidas adotadas pelo governo Bolsonaro já no seu primeiro dia, por meio da Medida Provisória N° 870 de 2019, que não permite outra leitura que não a de que, sim, os povos indígenas estão sendo tratados pelo governo brasileiro como inimigos. Por um governo que deve governar para todas e todos e que tem a atribuição constitucional de proteger os direitos indígenas. Resta saber o quanto os pesos e contrapesos, no Congresso Nacional e no Judiciário funcionarão, para fazer valer a Constituição brasileira.

Da parte do Inesc, que esse ano completa 40 anos de luta pelos direitos humanos, reafirmamos o nosso compromisso incondicional com os povos indígenas, as defesas de seus territórios e modos de existência. Como preconiza o artigo 231 da Constituição federal: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.” Não há, portanto, o que que discutir acerca dos direitos dos povos originários. O que nos falta é tirá-los cada vez mais do papel.

 

Trabalhe no Inesc

 

O Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) divulgou nesta quarta-feira (09) a abertura de processos seletivos para preencher duas vagas no Instituto.  Ambas as contratações são em regime CLT, com duração de um ano. O prazo para envio das candidaturas é até o próximo dia 29/1. 

Um dos editais prevê a contratação de um/a assessor/a na Área de Orçamento, Saúde e Acesso a Medicamentos. O Inesc atua na promoção do direito à saúde, especialmente no que se refere ao acesso a medicamentos, com os seguintes objetivos: elaborar e analisar o Orçamento Temático Federal de Acesso a Medicamentos; produzir e divulgar informações referentes a questões como inovação, financiamento e parcerias público-privadas; incidir, junto com outros, por maior transparência e governança na área de saúde com ênfase no acesso a medicamentos; e formar organizações parceiras em orçamento e acesso a medicamentos. O/a profissional contratado deve ajudar o Inesc a alcançar esses e outros objetivos.

O outro edital é referente a contratação de  profissional de Planejamento, Monitoramento, Avaliação e Sistematização (PMAS). O Inesc busca aperfeiçoar seu sistema de PMAS e, para tal, precisa do apoio de profissional com experiência na área.

Os resultados da pré-seleção de candidatos/as para a etapa de entrevistas serão publicados no site do Inesc no dia 31 de janeiro. As entrevistas serão realizadas entre os dias 01 e 07 de fevereiro. O resultado final será publicado no site do Inesc até 11 de fevereiro de 2019.

Acesse os editais e saiba como participar dos processos seletivos:

Forus: uma agenda positiva para 2019

Iara Pietricovisky também integra a direção executiva da Abong e o colegiado de gestão do Inesc.  O Forus é uma rede global inovadora que capacita a sociedade civil para uma mudança social efetiva. É uma organização que reúne 69 Plataformas de ONGs Nacionais (PON) e 7 Coalizões Regionais (CR) da África, América, Ásia, Europa e Pacifico – juntas representando mais de 22.000 organizações.

Assista ao vídeo e confira o artigo:

Vivemos tempos difíceis. De um lado um mundo, no limiar de uma explosão de um sistema político predominantemente autoritário e fascista (a não política) e do outro, de uma economia cada vez mais neoliberal, totalitária, que concentra riqueza e homogeniza. Sem falar do risco iminente das consequências do aquecimento do Planeta.

Diante desse cenário preocupante, o papel do Forus é, antes de tudo, ressaltar os princípios inspirados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, do Pacto Internacional relativo aos direitos econômicos, sociais e culturais; dos Acordos da Agenda 2030 e o da Biodiversidade e Clima. Trata-se também de agir numa agenda internacional positiva para além das que estão configuradas pelas Organizações das Nações Unidas (ONU) e tentar montar o quebra-cabeça do poder no mundo contemporâneo.

O Forus, então, pretende contribuir para outra abordagem da política de modo a transformá-la num espaço real de construção de valores, da ética, do direito de oposição e no qual o conflito contribui para a democracia. A democracia que queremos deve abarcar e valorizar a diversidade, a participação, a igualdade, a liberdade de ser e estar, a livre circulação. Não nos dobramos à servidão voluntária estimulada pelo medo histérico de um mundo real que se desenha na violência, na exclusão e nos imobiliza.

O papel do Forus também é o de buscar uma linguagem comunicacional inclusiva e global, onde todas e todos se sintam reconhecidos nas suas singularidades. O Forus pretende lutar contra as novas formas de dominação que emergem das mídias sociais e das novas tecnologias de comunicação, por exemplo, contra aquilo que atualmente se denomina como fenômeno do “firehosing” com o uso massivo de “fake news”, o que representa um risco real às democracias.

Manter o contato com as nossas bases (organizações e representantes da sociedade civil) é um outro desafio para Forus.  Isso implica que nos encontremos, cara a cara, graças às nossas formações e trocas diretas com nossos agentes; implica continuarmos conectados para criar fortes laços e cuidar uns dos outros.

É igualmente importante aprofundar a Iniciativa Global do Forus, que pretende ser uma das contribuições para contrapor a tendência mundial, promovendo um ambiente internacional favorável para o campo da cidadania mundial, tanto no aspecto político como do financiamento.

Como o Banco dos Brics irá atuar?

*Publicado originalmente no site da Carta Capital

Muitas pessoas indagam por que o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD ou Banco dos BRICS) é importante. As razões são diversas e, por vezes, contraditórias.

São vários os argumentos positivos, especialmente ancorados numa proposta bastante inédita: trata-se de instituição multilateral de desenvolvimento do Sul e para o Sul. Integrado pelos países dos BRICS – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul –, até agora o NBD tem emprestado somente para si. Existem movimentos para ampliar os sócios do Banco, que pode ser qualquer país integrante das Nações Unidas, mas a liderança continuaria sendo do Bloco.

A governança da instituição é inclusiva e democrática na medida em que os sócios têm igual peso, não importando o tamanho de sua economia. Os aportes de recursos são em montantes iguais e as decisões ocorrem por consenso ou maioria simples, um país um voto.

A centralidade de sua atuação está voltada para a promoção do desenvolvimento sustentável com ênfase na infraestrutura, um dos principais gargalos dos emergentes e dos países mais pobres. Neste sentido, se propõe a atender as reais necessidades de seus clientes, alinhado com os acordos de clima e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), entre outros.

Seguindo a narrativa do respeito mútuo e da observância da soberania nacional, os projetos são analisados e aprovados pelo Banco a partir dos padrões e leis locais, chamados de sistemas países. Com isso, diminuem as condicionalidades, medidas fortemente criticadas pelos países do Sul em relação aos empréstimos de instituições multilaterais tradicionais, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI).

Observa-se, ainda, preocupação em utilizar mecanismos financeiros adequados às realidades dos seus sócios. O NBD também busca ser “verde” do lado do funding. A primeira captação no mercado foi por meio de um bônus verde em renminbis, o que significa que os recursos dele derivados devem ser aplicados, obrigatoriamente, em projetos considerados verdes por padrões internacionais.

Há o compromisso de manter uma estrutura enxuta, eficiente e conectada com os países. O ciclo dos projetos pretende ser célere. Em apenas três anos de atuação efetiva, foram aprovados 26 projetos no valor total de U$ 6,5 bilhões. O NBD recebeu rating AA+ da S&P e da Fitch, consolidando progressivamente sua inserção nos mercados financeiros globais. Além disso, foi aberto o primeiro centro regional do Banco na África do Sul e o segundo, no Brasil, deverá entrar em operação em 2019.

Por fim, mencione-se uma abertura à interação com organizações da sociedade civil. Até o momento ocorreram diversos diálogos com Vice-Presidentes do Banco, em reuniões bilaterais ou às margens dos encontros anuais do Banco. Além disso, foram realizadas duas reuniões na sede do Banco com organizações da sociedade civil e a direção do NBD.

Mas, nem tudo que brilha é ouro! Os desafios que o NBD enfrenta não são de pequena monta. Existem muitas dúvidas sobre tratar-se de uma institucionalidade de nova geração, capaz de contribuir para um desenvolvimento efetivamente inclusivo e sustentável.

O que garante que os projetos colaboram para a consolidação de uma infraestrutura sustentável?

Aqui tem-se pelo menos dois problemas que dificultam uma resposta clara à pergunta. Em primeiro lugar até hoje não são de domínio público os critérios utilizados pelo Banco para conceituar “infraestrutura sustentável”. Assim, por exemplo, no Brasil apoiam-se projetos de energia eólica que mesmo sendo considerada renovável, a depender de como é produzida, pode gerar impactos sociais e ambientais expressivos. Na Índia, o NBD financia projetos de construção de estradas que reproduzem as mazelas do setor da construção civil local. São exemplos concretos de iniciativas que pouco resultam em sustentabilidade social e ambiental dos povos e comunidades daqueles países.

O segundo problema diz respeito à falta de transparência do Banco. Não somente não existem informações sobre o ciclo dos projetos aprovados, como o NBD não responde às demandas de informação apresentadas por estudiosos ou organizações da sociedade civil. Diante da fragilidade dos critérios e da ausência de informações, é impossível saber se, de fato, os projetos contribuem para a promoção de uma infraestrutura sustentável.

O que garante que os projetos são de qualidade?

Neste caso as incertezas também avolumam-se. A argumentação de que os mecanismos legais dos países protegem os projetos não se sustenta, especialmente considerando as notícias sobre empréstimos duvidosos. Menciona-se o caso de financiamento de U$ 300 milhões à empresa russa Sibur para melhorar a segurança ambiental de um complexo petroquímico na Sibéria. Essa companhia é controlada por três oligarcas do círculo íntimo do presidente Putin. Contando com muita influência política e econômica, estão acima da lei, e a prestação de contas se limita ao chefe do Executivo russo. Destaque-se, ainda, o apoio à empresa estatal sul-africana Transnet para expansão do porto de Durban, envolta em denúncias de corrupção.

Esses exemplos revelam não somente as limitações dos sistemas país, bem como a fragilidade das salvaguardas por parte do NBD. Põem em risco a reputação do Banco como reprodutor das velhas práticas dos bancos multilaterais de desenvolvimento tradicionais.

Qual a inovação do NBD em relação à inclusão e ao combate às desigualdades?

No que se refere à desigualdade de gênero, a atuação do Banco é praticamente inexistente. Organizações articuladas na rede BRICS Feminist Watch têm apresentado diversas propostas, como a de criação e implementação de uma Política de Gênero. O NBD alega não ter recursos para tal, revelando a falta de prioridade e o claro descumprimento dos ODS, especialmente o ODS 5, de “Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas”.

Quanto ao enfrentamento das desigualdades nos países, tampouco existem evidências de que seja de fato uma preocupação do Banco, uma vez que não há qualquer mecanismo de escuta das comunidades, especialmente as afetadas pelos projetos.

É importante destacar que a ausência de políticas de gênero e de mecanismos de participação social acaba reforçando práticas discriminatórias existentes, impossibilitando a progressiva realização de direitos humanos e a conquista da sustentabilidade.

O enfrentamento desse conjunto de desafios urge – falta de transparência, fragilidade dos critérios de sustentabilidade, insuficiência dos sistemas país, pouca inovação social, ausência de políticas de gênero e de participação social. Do contrário, mantendo somente a prioridade de aprovação quantitativa de projetos em tempos recordes, pode comprometer seriamente a qualidade e a credibilidade de uma instituição que (ainda) tem tudo para dar certo.

A essas ambivalências e ambiguidades que rondam o NBD soma-se um novo e temeroso desafio, que é o papel que o governo do presidente Bolsonaro irá desempenhar. Corre-se o sério risco de o Banco ser considerado produto do “marxismo cultural” e, portanto, resultar no seu esvaziamento ou, mesmo na retirada do Brasil da iniciativa. Alea jacta est!

 

Nathalie Beghin é integrante do Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), da Rede Brasileira de Integração dos Povos (REBRIP) e do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI).

Nada a celebrar em Katowice

Após um esforço gigantesco por parte dos negociadores, foi anunciada, na noite de sábado, a aprovação do  “Livro de Regras” do Acordo de Paris. São 156 páginas que expressam um acordo fraco, apesar do esforço para acomodar os mais diferentes interesses dos países membros. Esse foi um dos eixos principais que marcou a COP24, em Katowice, Polônia.

Uma vez mais, a aparente alegria apresentada ao final dos trabalhos, na verdade, não conseguiu esconder a profunda frustração e a angústia generalizada.  Estarmos perdendo a batalha e sabemos disso. O relatório dos cientistas não deixa dúvida: os cenários mais graves desenhados por eles são os que estão se confirmando. Então, me pergunto, celebramos o quê?

No âmbito político, governos se mostram incapazes de agir com rapidez e independência dos interesses corporativos. Tensões entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento permanecem e dificultam resoluções sobre financiamento, que continua sendo um debate interrompido.  Por exemplo, durante o Diálogo de Alto Nível – realizado em paralelo ao debate do financiamento, numa tentativa de encontrar novos caminhos –  os representantes do sistema financeiro foram claros em seu recado: o dinheiro só virá quando destravarem as condicionalidades que dificultam seu investimento.

O Diálogo de Talanoa, que pretendia ser um intercâmbio de experiências de forma a disseminar as boas práticas e, assim,  aumentar a ambição dos países, tampouco funcionou conforme o esperado. A ambição ficou guardada em alguma gaveta para, quem sabe, reaparecer no próximo ano no Chile, durante a COP25.

Acrescente-se a esse desatino geral o papel vergonhoso do Brasil, que sai de uma posição de liderança progressista neste debate para se submeter aos governos que estão identificados com a ultradireita mundial – e que vem questionando as evidências científicas. Esse retrocesso, sem dúvidas, influenciaram as (in)decisões finais da COP24.

Por fim, cabe ressaltar um aspecto positivo, que foi a aprovação do documento final da “Plataforma dos Povos Indígenas e Comunidades Locais”.  Existe uma resistência, em especial de grupos indígenas da África e Ásia, de integrar ao texto o conceito de “comunidades locais”. O argumento é que isso poderia prejudicar o reconhecimento da  especificidade do conhecimento dos povos indígenas.  Desta forma, o debate ainda continuará até 2020.

No European-American Blog, o sociólogo húngaro Tom Kando apresenta 13 pensamentos ou crenças no post intitulado “O Dogma de Kando – Segunda Parte”. Ressalto aqui duas de suas idéias que me parecem expressar o nosso dilema contemporâneo:

“ A ciência distingue entre a verdade e o erro, e por esse meio, aumenta-se o conhecimento. O ser humano avança por meio do conhecimento. E o montante total do conhecimento é infinito.”

“Ao mesmo tempo, as religiões organizadas tem sido a causa principal das mortes em massa ao longo da história. Os outros motivos principais para a guerra e o assassinato massivo tem sido a exploração econômica e o tribalismo/nacionalismo, que são a hostilidade intra e extra grupos, o ‘ódio’ aos outros.”

Ao que parece, nesse fluxo e refluxo da história da humanidade, antevemos uma era de negação do conhecimento cientifico e a adoção de uma crença religiosa por meio do acirramento do ódio ao diferente, como forma de mascarar os verdadeiros interesses do capital. O poder econômico é invisível, porém dirige atentamente todos esses processos.

A Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC sigla em inglês) não está imune a este fenômeno. Ainda que o painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC na sigla em inglês) mostre a urgência em agir contra o aquecimento, o mundo da política resiste numa narrativa parcial, pobre e religiosa, que já está promovendo o caos.

 

Fortalecendo o Corre: jovens fazem imersão em Brasília

No início deste mês, jovens integrantes do projeto Juventudes nas Cidades, que em Brasília foi apelidado como “Fortalecendo o Corre”, fizeram uma imersão de dois dias em uma chácara no entorno do Distrito Federal.

Com o tema “Todo corpo periférico é um quilombo urbano”, a imersão teve como proposta metodológica oficinas que aprofundaram temas como diáspora, masculinidades, feminilidades e quilombismo, reafirmando a importância do resgate histórico e conceitual de diversos temas e pautas que estão sendo discutidos no projeto.

Os e as participantes do “Fortalecendo o Corre” integram coletivos ou organizações que são ligados à arte, cultura e empreendedorismo. O projeto tem o objetivo de reunir coletivos de jovens para enfrentar as desigualdades nas grandes cidades brasileiras. O Inesc é a instituição referência do projeto em Brasília, mas ele também acontece em Recife, Rio de Janeiro e São Paulo, onde é executado pelas ONGs Fase, Ibase, Ação Educativa, Instituto Pólis e Oxfam Brasil.

A Oficina “Territorialidades conceituais rumo a malungagens civilizatórias”, facilitada por Layla Maryzandra (pedagoga e educadora popular),  trouxe um resgate histórico sobre a diáspora e como isso afeta a sociedade atual.

Fotos: José Bernardo

A Oficina “Femilinidades em Kriô”, facilitada por Cristiane Sobral, teve como objetivo a discussão das diversas feminilidades existentes, assim como fugir da associação do feminino à mulher e do masculino ao homem.

Quilombismo para se aquilombar, malungagem para prosseguir – planejamento de práticas e atividades de formação”, facilitada por Layla Maryzandra, a oficina de encerramento da imersão trouxe a importância de se pensar coletivamente para traçar estratégias futuras no âmbito do projeto e no âmbito social a partir do contexto político atual.

Durante os dois dias de imersão, os e as participantes debateram, interagiram e construíram juntos momentos plurais e democráticos.  A reunião contou também com atividades diversas, além das oficinas, como programação para as crianças, facilitada pelo educador Walisson de Sousa; sarau da resistência, que contou com a participação dos e das artistas participantes do Corre e com o lançamento do novo disco de Markão Aborígene; batalha de rap, feira de troca, momentos na fogueira, café da manhã literário, entre outros. Todo o encontro foi pensado coletivamente, por meio da metodologia de grupos de trabalho em que cada “GT” fica responsável por pensar e gerenciar um aspecto da imersão, como a comunicação, logística ou autocuidado.

A imersão foi rodeada de afeto, momentos de autocuidado e comunhão, trazendo reflexões importantes para o grupo e fortalecendo os corres de cada um e cada uma que ali compartilharam histórias, vivências e afetos.

Veja como foi:

Gastos tributários de empresas no Brasil: 2011 a 2018

Uma Cidade em Crônicas: encarando números na Estrutural

A publicação reúne pequenas crônicas sobre a cidade Estrutural, trazendo a vida e a experiência na cidade em suas múltiplas dimensões, para além dos estereótipos, ressaltando a potência criativa e resistente das pessoas que lidam diariamente com um nível alarmante de desigualdade.

O livro foi realizado com o apoio do Inesc e da Oxfam Brasil, e é um desdobramento do Mapa das Desigualdades, que em 2106 levantou indicadores de desigualdade em três regiões do DF: Samambaia, São Sebastião e Estrutural.

8 de Março para Luana e Veronica

Luana Barbosa dos Reis e Veronica Bolina não foram esquecidas. No entanto, a invisibilidade social que cerca a morte da primeira e prisão da segunda fazem parte da lesbofobia e transfobia, ao lado do racismo, determinantes das relações em nossa sociedade.  A múltipla violação de direitos humanos pelas quais elas passaram são tijolos a mais na construção de uma sociedade racista e machista que cala diante de tamanha violência. O silêncio é quase generalizado, seja na imprensa de massa, seja nos próprios veículos alternativos de mídia, com poucas e exceções. Cabe aos movimentos LGBTI, ao lado de familiares e amigos, buscar manter a vivas suas histórias.

Neste 8 de Março, Dia Internacional das Mulheres, trago-as lado a lado neste texto porque elas têm algo em comum: são mulheres negras periféricas que sofreram violência policial por não estarem de acordo com as normas hegemônicas de gênero. Se tradicionalmente o 8M marca a luta das mulheres por direitos, é na conjuntura política do avanço das forças conservadoras e aprofundamento das desigualdades econômicas que o chamado de Angela Davis desde os Estados Unidos revela a urgência de uma reorganização das resistências a partir dos movimentos de mulheres. E estes movimentos devem incluir as mulheres lésbicas e as mulheres trans, além de tomar o racismo como uma pauta central.

No Brasil, uma visão crítica permeia o 8 de Março, na medida em que a data não seria representativa da diversidade de mulheres e das formas diferenciadas de como as violações de direitos as impactam.  É bom lembrar que essa crítica [legítima] também foi feita internamente ao feminismo enquanto movimento social e na produção acadêmica, daí a emergência de feminismos no plural. No caso da convocação à greve, chama-se a atenção, também, para o fato de que as mulheres mais pobres não podem simplesmente “parar”, com perigo de perderem os empregos ou o dia de ganho em suas atividades produtivas.

As críticas antes e hoje são positivas e geram efeitos, e podemos compreender o próprio processo de construção deste 8 de Março como um momento de reafirmação de lutas específicas, como os movimentos de mulheres negras, do campo, indígenas, bissexuais, lésbicas e trans; mas também das latinas em relação às negras norte-americanas, e destas em relação às feministas brancas e assim sucessivamente: o fato é, a mobilização de mulheres em 2017, está ganhando visibilidade e adesão, além de estar produzindo muito debate sobre as desigualdades.

Homenagem à Luana Barbosa  mulher trans assassinadaLuana Barbosa dos Reis foi espancada por ser lésbica, “considerada masculina” pelos policiais que a revistaram. Ela se negou a ser violada – pois somente uma policial feminina poderia revistá-la de acordo com a lei –, disse ser mulher, mostrou os seios, mas seu feminino, sua maternidade [ela tinha um filho de 14 anos], seus estudos, seus conhecimentos sobre seus direitos, nada disso fez diferença para os agentes de “segurança”. Mesmo após o pedido de investigação imparcial feito em Nota pública do Alto Comissariado de Direitos Humanos das Nações Unidas para América do Sul e da ONU Mulheres Brasildestacando o risco de impunidade de um caso emblemático de racismo e a lesbofobia, em fevereiro deste ano o caso foi arquivado pela Justiça Militar por ausência de provas materiais de crime militar, e agora será investigado pela Polícia Civil.

Veronica Bolina foi torturada por ser travesti. Em que pesem acusações sobre ela, pelas quais está presa, nada justifica o espancamento e exposição de suas fotos na internet. Seu rosto foi transfigurado e seu corpo nu fotografado pelos próprios agentes policiais, que disponibilizaram as fotos na internet. A última notícia que encontrei sobre Veronica na internet é de maiode 2016, e traz uma importante reflexão sobre as constantes violações às quais são submetidas travestis e transexuais no sistema carcerário brasileiro.

Luana e Veronica foram vítimas de violência porque não se encaixavam nos discursos de sexo e gênero dominantes. O feminino é construído como “falta” ou “ausência” em nossa sociedade, a opressão do patriarcado contra a qual lutam os movimentos de mulheres. Quando o feminino se descola da norma, subvertendo e exigindo o poder sobre o corpo monopolizado pelas autoridades médica e jurídica (geralmente masculinas e brancas), tem-se uma negação do sujeito ainda maior.

Foto Verônica Bolina
Reprodução/Instagram

Ou seja, se às mulheres cis brancas heterossexuais são negados direitos fundamentais, no caso de mulheres lésbicas e mulheres trans a negação é total. Se acionamos a Judith Butler em diálogo com Beatriz Preciado, podemos dizer que a mulher lésbica e a mulher trans, ao se colocarem no mundo assumindo suas identidades e desejos, apesar da opressão e violência, apesar da negativa social em vê-las como pessoas, de alguma forma rompem com as epistemologias dominantes do gênero, do sexo, e por consequência, do controle. A norma é o masculino [branco], o regime político dominante é o heteronormativo.

Como eram lidas Luana e Veronica? O gênero é, ao lado da raça e da classe, uma classificação construída socialmente, necessária ao controle dos corpos para o capital. É na experiência colonial que estas categorias começam a se entrelaçar, por isso a interseccionalidade responde às nossas questões mais urgentes relativas às desigualdades na atualidade. As identidades sexo-diversas, em trânsito, onde masculino e feminino são mais deslizantes e resistem ao binarismo, a construção e poder sobre si, respondem resistindo e pautando a estrutura hegemônica que informa os gêneros. Com os povos escravizados, Luana e Veronica também compartilham a diáspora negra. Eram mulheres negras e periféricas. O racismo é estruturante de nossa sociedade e trata-se de um sistema de exploração e reprodução de privilégios. No caso de Veronica, ainda lhe é imputada a “loucura”, como forma de reafirmar seu caráter “agressivo” e “perigoso”, como se a criminalização dos corpos negros não fosse a própria norma social no Brasil [e nos Estados Unidos]. Em suma, Luana e Veronica foram lidas, no momento das agressões [e provavelmente em outros momentos] a partir de opressão de gênero, de classe e de raça. O fato de serem elas uma mulher trans e uma mulher lésbica interseccionam ainda mais sua vulnerabilidade social.

Se buscamos informações sobre a violação de direitos de mulheres negras, mulheres trans e mulheres lésbicas, podemos compreender como Luana e Veronica eram vulneráveis ao que lhes ocorreu. Segundo a ONG Transgender Europe (TGEU), entre janeiro de 2008 e março de 2014, foram registradas 604 mortes de pessoas trans no país, o que coloca o Brasil entre os países que mais mata transgêneros, transexuais e travetis no mundo. Somente em 2016 foram 144, de acordo com a Rede Trans Brasil. A Liga Brasileira de Lésbicas (LBL) estima que cerca de 6% das vítimas de estupro que procuraram o Disque 100 do Governo Federal em 2012 eram mulheres lésbicas. E, dentro desta estatística, havia um percentual considerável de denúncias de estupro corretivo. O Mapa da Violência 2015 elaborado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), aponta um aumento de 54% em dez anos no número de homicídios de mulheres negras, passando de 1.864, em 2003, para 2.875, em 2013. No mesmo período, a quantidade anual de homicídios de mulheres brancas caiu 9,8%, saindo de 1.747 em 2003 para 1.576 em 2013.

O que significam estas violências e mortes sistemáticas, pouco divulgadas na mídia, pouco apuradas pelo sistema de justiça? Significa que estas violências são autorizadas socialmente, e autorizadas também pelo Estado.

As lutas das mulheres lésbicas e mulheres trans vem dizer à sociedade que as amarras de gênero da nossa sociedade, iniciadas com a chamada nomeação primária dada pelos médicos (é um menino, é uma menina), e legitimada pelas instituições familiar e jurídica, não encontram eco na realidade das múltiplas possibilidades de vivenciar o masculino e o feminino.

As lutas das mulheres negras vem dizer que elas estão em luta contra o racismo e pelo bem viver à revelia do racismo que as oprime desde sempre, contra o racismo institucional e a violação de direitos. Assim, ao lado das mães, irmãs e companheiras dos jovens negros assassinados cotidianamente no país, Luana e Veronica também são a face feminina do genocídio da juventude negra no Brasil. Elas sofreram grave violência em situações onde a polícia estava presente. Uma lésbica negra, uma mulher trans negra.

Muito se tem falado sobre crise civilizatória no campo da esquerda. Colunistas, acadêmicos, ativistas. No entanto, não sei se por ingenuidade ou cinismo, pois essa crise civilizatória é bastante anterior, e a conjuntura política atual vem revelar como as estruturas coloniais, como o patriarcado e a escravidão, uma vez não descontruídas, seguem determinando nossas relações sociais. Um exemplo disso é a “nova escravidão” da qual nos fala Angela Davis, ao denunciar o encarceramento em massa dos corpos negros como atividade lucrativa; mas também ao denunciar a militarização das relações sociais em todo o mundo. Aqui no Brasil, tristemente, mas não inesperadamente, o método tem sido o mesmo.

De forma legítima, as mulheres negras elegeram o 25 de Julho como o seu dia, e as pessoas trans tem o seu dia da visibilidade, 29 de janeiro. No entanto, Luana e Veronica devem ser trazidas à tona, à visibilidade, neste “mês da mulher” e em qualquer outro espaço e data de luta e resistência que questionem os poderes estabelecidos. É pela visbilididade lésbica, é pela visbilidade trans, é contra o racismo e pelo bem viver.

*Quem escreve este texto é uma mulher cis lésbica de classe média. Trata-se de uma contribuição que se apequena diante de Luana e Veronica, e do que suas histórias representam. Agradeço a generosidade de Antonella, Caetano e Ludmila, que dialogaram sobre a limitação do lugar de fala, mas também sobre a necessidade de dar visibilidade às mulheres lésbicas negras e às mulheres trans negras neste 8 de Março.

Mapa das Desigualdades 2016

Feito em um processo participativo em 3 Regiões Administrativas do Distrito Federal – Estrutural, Samambaia e São Sebastião – nos meses de outubro e novembro, o Mapa tem por objetivo desvelar as desigualdades das cidades e populações periféricas em relação ao Plano Piloto da capital, apresentando uma sistematização diferenciada e acessível dos indicadores oficiais destas regiões.

Produzido pelo Movimento Nossa Brasília e Inesc, com apoio da Oxfam Brasil. 

Eleições 2016: No Brasil, mulheres negras não têm vez na política

A análise do perfil das candidaturas para as Eleições 2016 revela, mais uma vez, o sexismo e o racismo das estruturas de poder no Brasil. Das 493.534 candidaturas em todo o Brasil, sendo 156.317 candidaturas do sexo feminino, apenas 14,2% (70.265) são mulheres negras concorrendo ao cargo de vereadora e 0,13% (652) ao cargo de prefeita – considerando-se “negra” a somatória das variáveis ‘pretas’ e ‘pardas’. Se considerarmos somente as candidatas que se auto-declararam ‘pretas’, o número é ainda menor: 0,01% (60) para prefeitura, 0,03% vice prefeitura (135), 2,64% (13.035) se candidataram ao cargo de vereadora.

Com relação aos homens negros (‘pretos’ + ‘pardos’), eles representam 28,8% das candidaturas para prefeitura, 30,1% para vice prefeitura e 33,4% para vereador. Os partidos que mais têm candidaturas de mulheres negras (pretas + pardas) são o Partido da Mulher Brasileira (PMB) e Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU): 23,6% e 20,4% respectivamente. Entre os grandes partidos, a proporção de candidaturas de mulheres negras (pretas + pardas) é a seguinte: 16,4% no PT, 13,8% no PSB, 13% no PDT, 12,3% no PSDB e 12,1% no PMDB. Considerando apenas as candidatas que se auto-declaram ‘pretas’, os números são ainda menores: 4,5% no PT, 2,4% no PSB, 2,3% no PDT, 2,2% no PSDB e 2% no PMDB.

O estado que tem mais candidatas negras (pretas + pardas) é o Amapá (25,2%), seguido do Acre (25%) e Pará (24,9%).

De acordo com o IBGE, São Paulo, Bahia e Minas Gerais são os estados que mais têm mulheres negras em sua população: nestes, a proporção de mulheres negras candidatas, para todos os cargos em disputa nas Eleições 2016, é de 7,8% em São Paulo (6.678), 24,0% em São Paulo (8.759) e 15% em Minas Gerais (11.724).

Os dados também demonstram a tendência à sub-representação de mulheres em geral (brancas, pretas, pardas, amarelas e indígenas): em todo o país, temos 12,6% para candidaturas ao cargo de ‘prefeita’, 17,4% para ‘vice-prefeita’ e 32,9% para ‘vereadora’ – ou seja, 87,4% das candidaturas a prefeituras de todo o país é composta por homens. É importante ressaltar que as mulheres representam 51,04% da população brasileira e que cota mínima obrigatória para os partidos para candidaturas femininas é de 30%. Quase todos os partidos cumpriram a cota legal – embora nenhum tenha atingido 50% –, exceto pelo PCO, que possui 29,4% de suas candidatas mulheres. Mas quando observada a distribuição entre os cargos, esse comportamento se mantém somente para o cargo de vereador. Para prefeitura, somente os partidos PMB, PSTU e NOVO têm 30% ou mais de candidatas mulheres, e para a vice-prefeitura, apenas o PMB atingiu essa cota.

No que se refere aos indígenas, foram 1.702 candidatos em todo o Brasil (0,3% do total de candidatos), dos quais 29 para o cargo de prefeito e 1.613 para os cargos de vereador. Candidatos que se declararam indígenas às prefeituras estão no Acre, Amazonas, Bahia, Ceará, Pará, Paraíba, Pernambuco, Rio de Janeiro, Roraima e Rio Grande do Sul.

Tratamento da base de dados do TSE: Luciana Guedes

As mulheres negras (pretas + pardas) experimentam os piores indicadores sociais hoje no Brasil, apesar de grandes avanços recentes como a diminuição da pobreza extrema por meio de políticas de segurança alimentar e nutricional, de transferência de renda, de elevação real do salário mínimo e de aumento da formalização da mão de obra, entre outras. Neste grupo, as pretas ainda são as mais vulnerabilizadas pela desigualdade social brasileira. O Mapa da Violência 2015: Homicídios de Mulheres no Brasil, produzido pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), a pedido da ONU Mulheres, demonstrou que as negras também são as maiores vítimas da violência doméstica e violência letal: o índice de homicídios cresceu 54,2% entre 2003 e 2013, ao passo que o das mulheres brancas caiu 9,2%. A população carcerária de mulheres no Brasil também tem crescido aceleradamente (567% entre 2000 e 2014), e as mulheres negras representam 68% das mulheres encarceradas hoje no Brasil (Fonte: Conselho Nacional de Justiça, 2015). Outro dado dramático de contexto das relações raciais no país é o fato de que convivemos com uma média de 25 mil jovens negros homens mortos ao ano por arma de fogo (fonte: Mapa da Violência, 2014) – a morte do jovem negro impacta diretamente a vida de suas mães, filhas, esposas. A boa notícia neste cenário é que as jovens negras também conquistaram espaços sociais positivos. A partir de políticas públicas afirmativas e de inclusão social, a presença das jovens negras aumentou nas universidades nos últimos anos.

O mundo do trabalho é uma das dimensões mais importantes da vida social, especialmente do ponto de vista da autonomia econômica e de realização individual. O racismo e o sexismo também operam nessa dimensão da vida social: estudo recente do IPEA revela que as mulheres negras ganham, em média, 40% da remuneração dos homens brancos.

Em 2015, as mulheres negras demonstraram para o país que seguirão com suas demandas nas arenas de participação na vida política: a Marcha de Mulheres Negras, que contou com mais de 30 mil mulheres, trouxe a Brasília a agenda anti-racista, contra a violência e pelo bem viver. Na ocasião, marcharam em direção a um Congresso Nacional que tem apenas 56 mulheres, sendo 12 mulheres negras (11 eleitas para a Câmara e 1 para o Senado). Atualmente, convivemos com um Ministério sem nenhuma mulher, em um governo que cortou o orçamento da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) e para direitos humanos, tornando o Ministério da Justiça um órgão voltado somente para a ação policial. Os dados das candidaturas às Eleições 2016 demonstram, mais uma vez, que os espaços de poder institucionalizados continuam fechados para as mulheres negras no Brasil.

Em 2014, o Inesc publicou análise semelhante para as eleições daquele ano. O “Perfil dos Candidatos às Eleições 2014: sub-representação de negros, indígenas e mulheres: desafio à democracia” revelou que, apesar de as candidaturas das mulheres cumprirem então a cota de 30% prevista em lei, ainda continuavam sendo minoria em todos os partidos políticos. E no quesito racial, as candidatas pretas e pardas, bem como as indígenas, também não tinham espaço.

PPA da crise: bonito no papel, inviável na prática

O novo Plano Plurianual (PPA) do Governo Federal é mais uma notícia frustrante para quem olha para as políticas públicas, especialmente o orçamento, com a lente da promoção de direitos humanos. Ao lado da LOA 2016, o que já havia sido antecipado pelos contingenciamentos de 2015 (Decretos 8.456 e 8.580), e pela reforma ministerial, agora se materializa em um PPA bonito no papel, mas inviável na prática.

O Inesc alertou a sociedade com relação ao Decreto 8.456 publicado em maio de 2015, que retirou quase R$ 70 bilhões do orçamento da União – ou, mais precisamente, R$ 69.945.614.216,00 bilhões, o que corresponde a 22% do total. Destacamos os cortes em algumas agendas estratégicas para a promoção de direitos, como Educação (23,7%), Igualdade Racial (56,3%), Direitos Humanos (56,3%), Desenvolvimento Agrário (49,4%) e Pesca(78,6%). Visando “preservar a meta fiscal”, o governo contingenciou novamente os recursos em novembro daquele ano: mais R$ 10,7 bilhões e mais R$ 500 milhões de emendas parlamentares.

Depois da tesourada orçamentária, algumas pastas foram extintas da estrutura federal com a MP 696/2015, como a Secretaria Geral da Presidência, justamente a instância responsável pela interlocução com a sociedade civil, que tanto clamou por diálogo nas ruas em junho de 2013. Outras tiveram importância diminuída, perdendo o status de Ministério, como a de direitos da população negra (SEPPIR) e mulheres (SPM), que passaram a pertencer a um só órgão, juntamente com a ex-Secretaria Nacional de Direitos Humanos (SDH): todos agora estão reunidos no Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos. O Conselho Nacional de Juventude (Conjuve) também passou a ser vinculado a este Ministério, bem como as funções da Secretaria Nacional de Juventude (SNJ), mas a mesma foi subsumida no processo de enxugamento da máquina, causando justificada indignação dos movimentos sociais ligados à agenda da juventude, especialmente aqueles que atuam no combate ao extermínio da juventude negra e na promoção do bem viver das jovens mulheres negras.

Agora, a cereja do bolo: o novo PPA – que define a estratégia e prioridades do Governo Federal para o período de 2016 a 2019 –, e a Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2016. Se, por um lado, o PPA, batizado de Desenvolvimento, produtividade e inclusão social, apresenta diversos objetivos, iniciativas e metas para a promoção de direitos de mulheres, jovens, quilombolas, indígenas e outros grupos que necessitam de políticas específicas de inclusão social e promoção de direitos, por outro, a LOA 2016 torna inviável a execução destas políticas.

Por exemplo, em 2015, o orçamento da SEPPIR era de aproximadamente R$ 65 milhões e foi para R$ 27 milhões com o primeiro corte; com o segundo contingenciamento, foram ceifados outros R$ 17,5 milhões. Na LOA 2016, esta Secretaria conta com R$ 37,5 milhões de recurso inicial: uma redução de aproximadamente 40% em relação ao originalmente programado pelo Governo em 2015 (Site Siga Brasil, acesso em 12/02/2016). Imagine quando vier o decreto de contingenciamento previsto para março de 2016! Isso para articular toda a agenda de promoção da igualdade racial e superação do racismo no país em diversos órgãos.

Até o momento, há recursos para algumas ações importantes, como os R$ 120 milhões destinados às bolsas permanência no ensino superior (ação que teve boa execução em 2015, de aproximadamente 90%), que sabemos ser uma política voltada para graduandos do sistema de ações afirmativas, seja por raça/cor, seja por classe social (advindos de escolas públicas). Por outro lado, temos um exemplo dramático: em 2015, a ação 4324, de Atenção à Saúde das Populações Ribeirinhas da Amazônia, teve recurso autorizado de R$ 39 milhões, mas R$ 20 milhões não foram gastos, não por corte orçamentário, mas por ineficiência do pacto federativo. Este ano, a LOA prevê somente R$ 15 milhões para esta ação.

Com relação à questão fundiária, a ação 210Z, que visa o reconhecimento e titulação de territórios quilombolas, passou de cerca de R$ 30,4 milhões em 2014, para R$ 29,5 milhões em 2015, e R$ 8 milhões em 2016. Já quanto às políticas de desenvolvimento sustentável e assistência técnica, a ação 210Y, que pretende apoiar o desenvolvimento sustentável de indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais em todo o país, contará com somente R$ 1,6 milhão. Em 2015 o valor autorizado foi de R$ 1,7 milhão, já insuficiente para o desafio. Na prática, esta ação não sofreu corte no ano passado, mas apenas R$ 308 mil reais foram executados. Esta baixa execução tem sido denunciada pelo Inesc há anos, é um problema seríssimo que vem se acumulando e que agora poderá ser agravado: não há estrutura para execução destas políticas em nenhum nível (faltam servidores em número e capacidade técnica, integração com prefeituras, tecnologia e controle social do recurso que vai para os municípios). Ou seja, se a política pública já não chegava às populações-alvo mesmo em períodos de “vacas gordas”, agora mesmo é que se estará negando sua condição de existência e reprodução cultural.

E então, podemos nos perguntar: para que tanta energia gasta na elaboração de um “PPA Temático”, voltado para os direitos, se na prática não haverá recurso para executar nada do previsto? No ano passado, o Governo promoveu o evento “Dialoga Brasil PPA”, onde reuniu o Fórum Interconselhos para um debate sobre o Plano, e apresentar uma agenda para participação no orçamento em 2016. Na época, apontamos que não era possível chamar este momento de consulta pública, uma vez que não foi pensada uma metodologia de efetiva participação dos conselheiros. Também ressaltamos um aspecto positivo verbalizado pelo então responsável pela Secretaria Geral: a apresentação de uma nova agenda de participação que seria iniciada em agosto de 2015, até julho de 2016, com previsão de novos fóruns, devolutivas regionais, e atividades para os gestores, como a criação de metodologia para participação social na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e Lei Orçamentária Anual (LOA).

Bom, não há mais Secretaria Geral e esta participação não foi efetivada na construção das leis orçamentárias de 2016. Está aberta uma consulta online para a LDO 2017, mas sabemos que, apesar de ser uma ferramenta válida, tem baixo alcance para a sociedade em geral. O Fórum Interconselhos se reunirá novamente em março, em nova edição do Dialoga Brasil PPA. Será importante pautar novamente a institucionalização do Fórum e buscar informações sobre a efetividade desta “agenda participativa” em relação ao orçamento, que no momento virou lenda.

O que temos de fato são cortes orçamentários em agendas fundamentais para a população brasileira e recursos garantidos para pagamento de juros a banqueiros. Nenhuma sinalização com relação à reforma tributária, à justiça fiscal, nada que incremente a arrecadação para execução de políticas públicas, seguimos na toada do capitalismo global, concentrando renda ao invés de tentar distribuí-la. Será que o Governo conseguirá combinar “crescimento econômico” com “inclusão social”, como preconiza o PPA, em um país onde os pobres (e a classe média) pagarão a conta do ajuste fiscal?

Para consultar o PPA, veja:

Anexo I – Programas Temáticos

Anexo II – Programas de Gestão, Manutenção e Serviço ao Estado

Anexo III – Empreendimentos Individualizados como Iniciativas

Quanto vale a igualdade racial?

Em maio, o governo federal anunciou cortes no orçamento da União no montante de quase R$ 70 bilhões – ou, mais precisamente, R$ 69.945.614.216,00, o que corresponde a 12% do total. Conforme ressaltou o Inesc, o decreto 8.456 penalizou desproporcionalmente órgãos que executam políticas públicas essenciais para garantir a redução sustentada das desigualdades no Brasil, chegando a percentuais de duas a três vezes superiores à média do corte.

É lamentável constatar que, apesar dos enormes avanços na construção de políticas públicas voltadas para a promoção da igualdade racial na última década, o Governo cortou 56,3% dos recursos da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (Seppir). A Secretaria terá apenas R$ 28,7 milhões para cumprir sua missão de coordenar, articular e avaliar políticas afirmativas de promoção da igualdade racial, além de executar ações como a de Fomento ao Desenvolvimento Local para comunidades remanescentes de quilombos e outras comunidades tradicionais. Considerando que o orçamento da Seppir representa menos de 0,1% do orçamento geral da União, trata-se, na prática, do sucateamento deliberado deste órgão.

Outros ministérios “vítimas” do corte são também responsáveis por implementar políticas de promoção da igualdade racial, que compõem a análise do Inesc Orçamento Temático da Igualdade Racial: a Educação sofreu redução de 23,7%; o Desenvolvimento Agrário, 49,4%; e a Saúde, 10%. Esses órgãos, em 2014, não conseguiram executar todo o seu orçamento, isso inclui diversas ações voltadas para o combate ao racismo e desenvolvimento de povos e comunidades tradicionais. Por exemplo, o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) executou apenas R$ 180.295,00 do Plano Orçamentário de ATER para comunidades quilombolas (Programa 2012/Ação 210O), o que corresponde a 2% dos R$ 8.500.000,00 autorizados; a Atenção à Saúde das Populações Ribeirinhas da Região Amazônica (2015/4324) executou pouco mais da metade do recurso autorizado de R$ 21.700.000,00; e a Implantação de Espaços Culturais da Cultura Afro-brasileira (2027/14U2), do parco recurso de 360 mil reais, executou somente R$ 51.000,00, o que corresponde a pouco mais de 14%.

O contexto requer uma séria discussão sobre justiça fiscal e transparência. Quem financia a política pública é a sociedade, por meio de impostos e contribuições, certo? Pois bem, no Brasil, mulheres negras pagam proporcionalmente mais impostos que os demais grupos da população – isso se chama injustiça fiscal. O dado é do estudo do Inesc coordenado por Evilásio Salvador: de acordo com o pesquisador, “os 10% mais pobres da população, compostos majoritariamente por negros e mulheres (68,06% e 54,34%, respectivamente) comprometem 32% da renda com os impostos, enquanto os 10% mais ricos, em sua maioria brancos e homens (83,72% e 62,05%, respectivamente) empregam 21% da renda em pagamento de tributos”.

Soma-se à injustiça gerada pela estrutura ultrapassada do sistema tributário brasileiro o fato de que a sonegação de impostos tornou-se um crime comum e com poucos casos de punição exemplar. Vejam o caso da “lista swissleaks”, que revelou nomes de brasileiros com contas no banco HSBC na Suíça, indicando fraude fiscal: ou seja, dinheiro não declarado por ilustres cidadãos, menos impostos pagos para financiamento das políticas públicas. Em 2014, a estimativa de rombo aos cofres públicos foi de R$ 500 bilhões, segundo dados do Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional (Sinprofaz), o que correspondeu a cerca de 30% da arrecadação e 10% do PIB – equivalente ao orçamento da Previdência Social para o mesmo ano.

O argumento corrente é que os cortes no orçamento são necessários para o pagamento da dívida pública: mas são mesmo? De certa forma, a composição da dívida pública é um tanto quanto controversa, e diversos analistas e políticos têm defendido o seu aditamento, não o seu pagamento. Até mesmo porque, uma grande fatia é usada para pagar os juros da dívida, não a própria, uma bola de neve alimentada com muita política e “economês”, mas pouca transparência. Trata-se, portanto, de prioridades políticas com relação ao recurso do Estado, em que as políticas sociais são sacrificadas para o pagamento de uma dívida que nem mesmo sabemos como evoluiu a este ponto.

Igualdade racial é pra valer, defende a Seppir. Se for assim, o governo precisa entender que para fazer valer os direitos da população negra brasileira e promover a igualdade racial, é preciso ter orçamento garantido para a execução das políticas públicas.

Arrocho fiscal detona direitos dos que mais precisam

O governo federal anunciou na última sexta-feira (22/5) o maior corte orçamentário da sua história. O decreto 8.456 retirou quase R$ 70 bilhões do orçamento da União – ou, mais precisamente, R$ 69.945.614.216,00 bilhões, o que corresponde a 22% do total.

O corte “na carne” penalizou desproporcionalmente órgãos que executam políticas públicas essenciais para garantir a redução sustentada das desigualdades no Brasil, chegando a percentuais de duas a três vezes superiores à média do corte, que foi de 22% do total. Isso vai na contramão não só das promessas de campanha do governo Dilma, mas também do cumprimento de metas de realização de políticas públicas estabelecidas legalmente no seu Plano Plurianual e até dos compromissos históricos do PT.

Os dados não deixam dúvidas:

  • Ministério da Educação teve um corte de 23,7% dos recursos discricionários, o que representa R$ 9,25 bilhões em valores absolutos, sobrando R$ 39,4 bilhões. Isso poderá afetar programas importantes tais como o Prouni, Programa Nacional do Livro Didático ou bibliotecas nas escolas.
  • Secretaria de Promoção da Igualdade Racial teve um corte de 56,3% dos recursos discricionários. Com isso terá apenas R$ 28,7 milhões para cumprir sua missão de coordenar, articular e avaliar políticas afirmativas de promoção da igualdade racial, além de executar ações como a de Fomento ao Desenvolvimento Local para comunidades remanescentes de quilombos e outras comunidades tradicionais.
  • Secretaria de Direitos Humanos teve um corte de 56,3% dos recursos e com isso terá apenas R$ 131,9 milhões para executar ações de promoção e defesa dos direitos da pessoa com deficiência, de idosos, de crianças e adolescentes, entre outras que cabem ao órgão.
  • Ministério do Desenvolvimento Agrário teve um corte de 49,4% dos recursos e com isso terá apenas R$ 1,8 bilhão para executar políticas públicas estratégicas para a agricultura familiar e a segurança alimentar, como a Assistência Técnica e Extensão Rural – ATER e a reforma agrária.
  • Ministério da Pesca e Aquicultura teve um corte de 78,6% dos recursos. Com isso terá apenas R$ 154,5 milhões para executar ações como o “Fomento à Produção Pesqueira e Aquícola” que implementa planos como o de apoio à renovação da frota artesanal.

Além desses cortes, também sofrerão redução, em montantes não especificados, os recursos financeiros estratégicos para a reforma agrária e agricultura familiar que são: i) Concessão de Crédito para Aquisição de Imóveis Rurais ; ii) Investimentos Básicos – Fundo de Terras e Concessão de Crédito-Instalação às Famílias Assentadas.

Para tornar o arrocho ainda mais dramático, ressaltamos que o que sobra para ser executado ainda estará em parte comprometido com o pagamento de despesas anteriormente assumidas pelo governo, que são os restos a pagar. Com esses cortes, a implementação de políticas públicas essenciais para garantir direitos para quem mais deles precisa está obviamente comprometida.

É essencial que o governo tenha capacidade de dialogar com a sociedade sobre o significado prático dos cortes orçamentários na vida das pessoas. Para isso, é urgente que os dirigentes das pastas ministeriais explicitem como os cortes serão processados internamente em cada órgão. Quais programas, ações e compromissos deixarão de ser cumpridos?

Veja aqui tabela com a totalidade dos cortes.

Democracia em disputa: como a Casa Grande se renovou nas Eleições 2014

As Eleições 2014 foram emblemáticas: alguns dizem ser a mais disputada desde 1989, outros que se elegeu o Congresso mais conservador desde 1964. O fato é que foram eleições que sucederam importantes processos políticos e mudanças sociais: se, por um lado, o Brasil tem os melhores indicadores sociais de toda sua história, por outro, diversos setores da sociedade que já vinham reivindicando melhorias em serviços públicos e na qualidade de vida, mais transparência das instituições e respeito aos direitos humanos no campo e na cidade, foram às ruas em protestos no ano de 2013. Os movimentos por direitos dividiram as ruas com novas agendas e formas de organização, entidades de classes, e também com grupos neoconservadores.

O fato é que todos os interesses se organizaram durante o processo eleitoral, como ouvi nas palavras de uma ativista: “Julho estava em disputa”. Marina Silva não foi capaz de criar uma terceira via, e a polarização entre PSDB e PT se efetivou de maneira inédita, com rachas no PSB e no protopartido Rede Sustentabilidade. O candidato tucano buscou catalisar insatisfeitos, mas acabou trazendo consigo grupos da sociedade brasileira que se encontravam “dentro do armário”: aqueles que não suportam os direitos das domésticas, a transferência de renda para os pobres, a juventude negra nos shoppings, a democratização das universidades, o acesso generalizado aos aeroportos. A resposta foi uma mobilização social em rede, que se concentrou em disseminar os avanços dos governos petistas, mas salientando o “voto crítico” e a necessidade de abertura urgente de diálogo com a sociedade civil. A velha e hegemônica mídia se superou mais uma vez na postura “dois pesos, duas medidas”, cumprindo seu projeto de esvaziamento do debate público. O Brasil do Pré-Sal e dos BRICS virou o centro das atenções, e os interesses em jogo tornaram o cenário tenso e imprevisível.

Dilma ganhou as eleições. Mas o recado das forças econômicas e conservadoras se deu nas urnas, com o aumento das bancadas ruralista, neopentecostal e militar (“bancada da bala”) no Congresso Nacional, que coroou esta vitória dias depois derrubando, na Câmara, o Decreto 8243/2014, que regulamenta os mecanismos de participação social previstos na Constituição de 1988. Estamos em meados de novembro, e nenhum dos grupos ativos durante o período eleitoral se desmobilizou, muito antes pelo contrário – seguem realizando caminhadas, reuniões e articulações nas redes sociais.

Diversos institutos de pesquisa e organizações da sociedade civil monitoraram o processo eleitoral, analisando diferentes aspectos. O Inesc, integrante da “comissão de frente” da Reforma Política, analisou o perfil das candidaturas com relação às variáveis sexo, raça/cor e idade, a fim de jogar luz sobre as desigualdades no Parlamento – principalmente considerando que pela primeira vez na história os candidatos tiveram que se auto-declarar quanto a sua raça/cor.

Abaixo, seguem os resultados deste estudo, bem como outras reflexões que sugerem como a democracia no Brasil ainda carrega o fantasma do colonialismo e suas relações de exploração, e como devemos compreender a “Eleição das Eleições” como um marco de disputa em torno de modelos civilizatórios, disputa esta que os partidos deixaram a reboque nos últimos anos.

Perfil do Poder

Em setembro deste ano, o Inesc apresentou análises sobre o perfil das candidaturas às Eleições 2014, no Seminário Desigualdades no Parlamento: Sub-representação e Reforma do Sistema Político. O evento contou com a participação de pesquisadores e de representantes de organizações e movimentos sociais (Ipea, Cfemea, Apib, AMNB, SOS Corpo, FNDC, LBL, OAB, e outros), onde foi discutido o perfil dos candidatos e candidatas no que se refere ao sexo, raça/cor e faixa etária, e como este perfil variou segundo estados e regiões do Brasil, bem como em relação aos partidos políticos. Entende-se que a representatividade é importante por diversos fatores: para garantir a participação dos diferentes segmentos da população nos espaços de poder, para combater o racismo e as desigualdades de gênero, e também para que todos os grupos se vejamnestes espaços e se sintam capazes de transformá-los.

Algumas previsões feitas naquele momento se cumpriram: as candidaturas de mulheres, negr@s, indígenas e jovens, quantitativamente menores, não tiveram sucesso na corrida eleitoral, revelando sub-representação em todos os níveis e cargos. Como apontado em recente artigo, para o cargo de deputado federal, foram eleitas somente 51 mulheres (9,9%) do total de 513 deputados(as) eleito(as), ao passo que se elegeram 462 homens (90,1%); no Senado foram 5 mulheres (18,5%) e 22 homens (81,5%). Considerando então o Parlamento como um todo (540 cargos), as mulheres representam 10,37%. Das mulheres eleitas, 11 se declararam negras  – 10 na Câmara e 1 no Senado –, o que representa apenas 2% do total.

Importante ressaltar que em setembro, antes do deferimento de todas as candidaturas, os partidos estavam cumprindo a cota de 30% de equidade de gênero imposta pela Lei 9.504/97: porém, analisando agora a base de dados com as candidaturas válidas, os partidos chegaram a 28,7%, e além disso, estas candidatas não conseguiram chegar ao poder. Deve ser dito, ainda, que a cota apenas determina o mínimo (30%), mas o ideal seria ter paridade entre homens e mulheres em todas as etapas do processo eleitoral. Seguindo a tendência observada nas Eleições 2010, em que as mulheres candidatas representaram 22% e as eleitas 9,2% de um total de 567 cargos, houve corte entre as candidatas (28,7%) e o número efetivo de mulheres eleitas (10,37%).

A novidade é que o mesmo ocorreu com os negros e negras: como inferimos no momento da análise das candidaturas, a maioria das candidaturas destes segmentos não se elegeu. Dos 43,7% de candidaturas deferidas para todos os cargos até o dia das eleições, somente 24% se elegeram. Isso ocorre devido ao racismo, tanto institucional – no caso dos partidos não investirem nestas candidaturas, em detrimento de candidaturas de homens brancos –, quanto entre grupos ou indivíduos, uma vez que pode ocorrer discriminação racial no ato de escolha do candidato, ou seja, no voto.

No que diz respeito às candidaturas de jovens, eles representavam somente 6,8% do total de candidaturas para os cargos de Deputado Estadual e Federal (para Governo, Senado e Presidência, a idade mínima obrigatória é superior a 29 anos). Somente 3,9% se elegeram – embora representem 35,5% da população.

O resultado observado no Congresso Nacional se reflete nos Estados: nas candidaturas a governador somente 1 mulher foi eleita – 20 mulheres concorreram, contra 169 homens. Foram eleitas, ainda, 7 vice-governadoras.

No caso do cargo a deputado estadual, foram 73,43% brancos e 26,18% negros; indígenas e amarelos somaram 0,39%. As deputadas estaduais eleitas foram 11,1%. Das mulheres negras que se candidataram ao cargo de deputada estadual (2011), 35 se elegeram. Os estados que mais elegeram mulheres negras foram o Amapá (8), e a Bahia (5). O partido que mais elegeu negros em termos proporcionais foi o PCdoB (46,16% das candidaturas do PCdoB), mas em termos absolutos foi o PT (56 deputados estaduais negros eleitos). Elegeram-se, ainda, 2 indígenas para o cargo de deputado estadual – 83 se candidataram, 75 tiveram a candidatura deferida até a data da eleição.

Homens brancos, com idade entre 30 e 59 anos, seguem sendo a maioria esmagadora em todos os cargos e partidos políticos.

Burlando a ficha limpa e a Lei de Cotas de Gênero

Outro fator que revela esta persistência das forças tradicionais em permanecer no poder são as formas de burlar avanços na legislação eleitoral. Vejamos como dois artifícios identificados nestes pleitos expressam a força do patriarcado. O primeiro deles, com relação à ficha limpa, em que os candidatos “ficha suja” utilizaram familiares para “burlar” a lei e manter seus grupos no poder, lançando candidaturas de irmãos, filhos e esposas. O caso mais emblemático é o de Suely Campos (PP), única governadora eleita nestas eleições e primeira mulher eleita para este cargo em Roraima – ela teria se candidatado no lugar do marido ficha suja, Neudo Campos. No DF, José Roberto Arruda (PV), que teve a candidatura impugnada em setembro pelo TSE-DF, lançou Flávia Arruda, sua esposa, como vice da chapa de Frejat.

Outro exemplo do sexismo/machismo presente nos partidos são as candidaturas previamente impugnáveis de mulheres: na primeira parte da análise feita pelo Inesc, identificamos que 62 delas (0,8%) não tinham idade para concorrer aos cargos pleiteados, ou, seja, teriam suas candidaturas indeferidas em algum momento. Entre setembro e o dia das eleições, o número de mulheres candidatas caiu de 7598 para 6572 em outubro. Há relatos, também, de candidatas que não receberam nenhum voto, ou seja, não teriam recebido o próprio voto nas urnas. Estas situações podem revelar um artifício dos partidos para cumprir a cota de gênero, mas sem de fato empoderar as mulheres e garantir o acesso aos espaços de poder.

Democracia e pós-colonialismo à brasileira

Relações de parentesco contaminando a esfera pública, hegemonia de poder do homem branco em espaços de tomada de decisão e racismo institucional: as Eleições 2014 revelaram o potencial da “Casa Grande” em se renovar – não só como símbolo ou metáfora, mas como concretude das relações centro/margem, perpetuando privilégios de uns em detrimento da violação de direitos de outros. Essa “pós-colonialidade” à brasileira é caracterizada pela impermeabilidade das instituições públicas aos processos democráticos de fato.

O Brasil precisa promover profundas reformas – a do sistema político, mas também do judiciário e tributária: não podemos aceitar que em nosso país a justiça seja seletiva, contribuindo para a violação de direitos de indígenas, jovens negros e comunidade LGBT; nem tampouco que os pobres paguem mais impostos que os ricos. Precisamos, urgentemente, regular anossa mídia, para que as pessoas tenham informação de qualidade. Os mecanismos de participação social devem ser aperfeiçoados, efetivos. As ruas, ou ao menos uma grande parte das pessoas que ali estavam, pedem mais direitos, mais equidade social. Nossa democracia carece, portanto, de libertar-se.

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