Governo se afasta da Sociedade Civil

 Edélcio Vigna, assessor do Inesc

 

O Governo está encurralando os setores mais vulnerabilizados da sociedade civil, em especial os povos da terra. A ofensiva para desmantelar as legislações agrárias e ambientais está ganhando contornos  dramáticos. As denúncias de violações de direitos humanos de acesso a terra, de mortes anunciadas e de tentativas de assassinatos estão se proliferando tanto na mídia convencional, como nas infovias.

O governo está surdo a qualquer crítica das organizações que eram parceiras fieis de suas políticas e estratégias de gestão. Este afastamento do “político” e do “social” está colocando e risco as conquistas de participação pelas organizações sociais e sindicais.

O governo está aumentando recursos orçamentários em alguns programas, mas não está permitindo que os setores diretamente interessados monitorem e participem da execução das ações. Em outros programas, como no caso do Pronera, o “Manifesto em defesa da Educação no Campo”, do MST denuncia que o governo “já proibiu o pagamento de bolsas aos professores das universidades que desenvolvem os cursos e a realização de novos convênios, além de ter cortado 62% do orçamento previsto para o programa”.

Há um diálogo e um contra-diálogo que se anulam e excluem a participação social. Os interlocutores não se ouvem e os desmandos não só continuam, mas aceleram-se. A reforma agrária está praticamente paralisada. O Código Florestal está sofrendo um ataque cerrado dos ruralistas para neutralizar o poder da legislação de proteger e preservar as matas nativas. Flexibilização ambiental é um eufemismo para desregulamentação em nome do lucro. 

Os recursos naturais, que vão desde as águas de superfície aos minérios do subsolo, passando pela riqueza da biodiversidade, atraem a cobiça e estimulam a violência se não forem urgentemente protegidos pelos Poderes Públicos. São estes Poderes da República que tem o mandato delegado pelo pacto social para intervir, com a força necessária, para garantir a sua preservação. A Constituição Federal em seu art. 20, V, estipula que os recursos naturais são bens da União. No art. 24, IV, § 1º, diz que compete a União legislar sobre os recursos naturais. O art. 91, III, esclarece que compete ao Conselho de Defesa Nacional “propor os critérios e condições de utilização de áreas indispensáveis à segurança do território nacional e opinar sobre seu efetivo uso, especialmente na faixa de fronteira e nas relacionadas com a preservação e a exploração dos recursos naturais de qualquer tipo”.

Dessa forma, os Poderes republicanos não podem se omitir, nem legislar com parcialidade. Se o comportamento contrário prevalecer o tecido social tenderá a se esgarçar. A transparência e a visibilidade da execução e funcionamento da administração pública é um instrumento que a sociedade conquistou e não pode abandonar. Esses instrumentos de controle social ainda não chegaram plenamente aos Poderes da República. O Executivo desenvolveu mecanismos capazes de dar alguma visibilidade aos seus atos. O Legislativo deverá seguir o exemplo, com os escândalos que a mídia vem denunciando. O Judiciário será questionado, em breve, para que dê visibilidade de seus atos administrativos, legais e políticos, pois não há justiça neutra.

A Comissão Pastoral da Terra (CPT) em Nota Pública, pergunta: Quem é o responsável pelas mortes de dois trabalhadores rurais mortos a tiros em Bom Jesus do Araguaia (MT)?” Esses cidadãos morreram em frente às terras que o Presidente da República desapropriou em 2004 e o Juízo da Primeira Vara Federal da Seção Judiciária de Mato Grosso mandou retirar as famílias cadastradas pelo INCRA, que tinha iniciado os procedimentos para a regularização do assentamento. Enquanto os grileiros da Amazônia Legal ganham uma Medida Provisória para regularizar a toque-de-caixa as terras griladas, as famílias sem-terras herdam a violência dos piores tempos da ditadura. Se o poder público não protege os segmentos sociais mais vulnerabilizados, ajuda a violentá-los. A impunidade incentiva o fosso da desigualdade e, torna cúmplices silenciosos todos e todas que se omitem.

A Associação Brasileira pela Reforma Agrária (ABRA) emitiu um “Manifesto contra a absurda e arbitrária sentença Judicial” dada pela Segunda Vara Federal de Presidente Prudente, que apura as supostas irregularidades em cooperativas de assentamentos do Pontal do Paranapanema. Muitos outros manifestos e denuncias poderiam ser citados.

O que interessa questionar é como um governo de esperança pode caminhar para seu último mandato ignorando a própria história? Esta situação esquizofrênica, onde o rosto não se reconhece diante do espelho, perturba todo o corpo provocando a dispersão. A história das organizações sociais brasileiras nunca passou por situação semelhante. A dispersão provocada pela ditadura foi imposta. Esta que nos avizinha é de outro gênero e muito mais prejudicial. Aquela fortalecia a luta, esta enfraquece.

Fundo da Amazônia: breve análise de riscos e desafios

Ricardo Verdum
Antropólogo, assessor do Inesc

Nesta segunda (15) e terça-feira (16) as entidades da sociedade civil que integram a Plataforma BNDES estarão reunidas em Brasília para avaliar os dois primeiros anos de atuação. Estão na pauta desses dois dias de trabalho as dificuldades e os desafios encontrados no diálogo com o BNDES; o conceito de corresponsabilidade do Banco nos danos causados pelos projetos que financia; como fazer avançar a agenda de transparência; e a preparação do primeiro encontro nacional dos atingidos por atividades financiadas pelo BNDES.

Esse texto tem por objetivo indicar, de forma resumida, riscos e desafios hoje percebidos na implementação do Fundo Amazônia (FA), que tem o BNDES como principal agente operador dos recursos financeiros.

O Fundo Amazônia foi criado no dia 1º de agosto de 2008, pelo Decreto No. 6.527. As diretrizes e os critérios de aplicação dos recursos do Fundo foram definidos nas duas primeiras reuniões da Comissão Orientadora (COFA), realizadas respectivamente nos meses de outubro e novembro passado. Uma terceira reunião aconteceu no último dia 29 de maio, quando foi apresentado o acordo de cooperação técnica celebrado entre o Ministério do Meio Ambiente (MMA), o Serviço Florestal Brasileiro (SFB) e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e debatida a participação de empresas privadas como beneficiárias do Fundo.
Não obstante a urgência de incentivos financeiros de promoção da “floresta em pé”, na prática o FA ainda não saiu do papel; além disso, há vários aspectos de ordem prática e, principalmente, política que necessitam ser definidos e qualificados:
1. Causa preocupação a decisão de limitar a atuação do Comitê Orientador do Fundo Amazônia (COFA). Formado por representantes dos governos federal e estaduais e da sociedade civil, ele não tem atribuição de definir quem receberá o recurso disponibilizado pelos doadores nacionais e internacionais. E mais, segundo o Decreto 6.527, ao COFA caberá unicamente tomar ciência da aplicação dos recursos e ter acesso ao relatório anual do Fundo.
2. Outro ponto é a metodologia e os instrumentos a serem utilizados para (1) aprovar as propostas de financiamento, (2) avaliar a execução físico-financeira dos projetos aprovados e (3) medir os impactos sociais e ambientais gerados no curto e no médio prazo, considerando o objetivo de prevenção, monitoramento e combate ao desmatamento, e, principalmente, a promoção da conservação e uso sustentável do bioma amazônico. Até onde sabemos, eles não vieram a público, nem mesmo para apreciação dos membros do COFA.
3. Preocupa-nos a visível fragilidade política, técnica e financeira do Ministério do Meio Ambiente, hoje numa posição subalterna em relação aos interesses do setor ruralista, maior responsável pelo desmatamento da Amazônia, que avança a passos largos dentro dos Poderes Executivo e Legislativo, desrespeitando e desqualificando a legislação ambiental. A aprovação da Medida Provisória 458, na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, coloca em estado de risco o direito coletivo à terra das populações indígenas, quilombolas e tradicionais. Se sancionada, ela incentiva a integração desses solos ao mercado de terras; regulariza e incentiva a grilagem de terras na Amazônia; e cria condições para o o agronegócio expandir a pecuária e as monoculturas de dendê, da cana-de-açúcar e da soja em prejuízo da floresta.
4. Há grande risco de o Fundo tornar-se um meio de mitigar e compensar impactos socio-ambientais de obras de infraestrutura planejadas e em execução na Amazônia brasileira. Ou pior, ser uma “moeda de troca” com as populações locais e organizações da sociedade civil com atuação na região (inclusive representados na COFA) e financiar quem desmata e polui. O risco é real se considerarmos que o BNDES é um dos principais financiadores e provedores de crédito para este tipo de empreendimento no Brasil e na região sul-americana.
5. Preocupa-nos a pressão feita pela iniciativa privada visando garantir seu acesso aos recursos do Fundo. É certo que não há restrição a esse tipo de apoio em nenhum documento oficial do Fundo, mas até o momento predominou o entendimento de que os recursos de doação não deveriam servir para esse fim.
6. Outro risco real é o governo federal utilizar os recursos do Fundo como um substituto aos investimentos que deveria fazer a partir do orçamento público (PPA e LOA), por exemplo: para cobrir os cortes orçamentários de custeio e investimento decorrentes do chamado “contingenciamento”.
7. O ano de 2010 é ano eleitoral no Brasil e é “costume” no país os governantes utilizarem ampla e intensivamente a máquina administrativa e os recursos públicos como meios para eleger e reeleger candidatos de interesse, pressionado principalmente por setores politicamente conservadores, que, no geral, têm sido os maiores responsáveis pelo desmatamento e a degradação da Amazônia brasileira: os ruralistas.

Da perspectiva de quem deseja que o Fundo cumpra com seus objetivos e que não tenha uso político ou uso negativo na região, nos parece ser fundamental que grupos independentes do governo e da iniciativa privada tenham condições de acompanhar e avaliar com isenção a utilização dos recursos financeiros ai alocados. Garantir transparência e capacidade de avaliação independente é importante para o futuro da Amazônia.

 

Quando a criança vira cifra

Márcia Acioli

Há alguns domingos a mídia tem explorado imagens de imensa estupidez desferida contra uma menina, que, por ser criança tem medo como qualquer outra. Chora, se cansa, quer, precisa e tem o direito ao colo da mãe. Não se trata de uma menina qualquer, mas de uma pequena profissional da mídia. Para os adultos, é trabalho que certamente lhe confere prestígio e dinheiro. Os seus pais não estão livres da responsabilidade pela tensão que tem vivido nos últimos dias.

Trato aqui dos episódios em que Maisa, apresentadora mirim da SBT, debate com Sílvio Santos, chora no palco e busca, em vão, o colo e o conforto da mãe, que também pressionada, não pode lhe acolher a tempo. Para agravar a situação o apresentador convoca a platéia para ofender a criança com gritos chamando-a de medrosa. No primeiro dia, temendo um garoto mascarado (que também fica assustado com a situação) ela sai correndo apavorada do palco. No domingo seguinte, ela é debochada e mais uma vez derrama lágrimas diante o seu patrão que não a poupa e continua os abusos iniciados anteriormente. Após se sentir magoada sai correndo de novo, bate a sua cabeça numa câmara, chora bastante, diz que quer a mãe. A produção sutilmente a empurra de volta para o desamparo da exposição pública. Esperta, ela argumenta, mas continua desamparada em situação de extremo constrangimento.   

Se fosse com um adulto o caso seria certamente cruel, envolvendo criança é desumano.

Trabalho infantil é violência. Seja braçal, mecânico ou glamouroso o esforço laboral submete a infância a estresse, a situações de risco, ameaça sua saúde e rouba-lhe o tempo para brincar. Subtrai às crianças o precioso tempo para ficar à toa, para apreciar as formas das nuvens coloridas, tempo para sentir o ventinho no rosto ou para cochichar algum segredo mortal no ouvido de um amigo real ou imaginário. O trabalho de crianças é prejuízo certo e incalculável. Agride a condição de infância. A vida não é rebobinável e este período único e curto da vida escorre pelo ralo.

Não é o caso de bater na mesma tecla embolorada: “lugar de criança é na escola, temos que tirar meninos da rua”. Discurso vazio de sentido. Palavras velhas, gastas que não resolvem todas as situações. Há crianças que frequentam escola, não vivem nas ruas, e estão submetidas ao trabalho e ao estresse do trabalho.

Os fatos envolvendo Maisa nas últimas semanas evidencia o quanto os interesses pelos lucros certos que podem trazer uma menina engraçadinha anula a sua condição humana. A criança passa a ser uma singela máquina de produzir dinheiro, com o relevante aumento de audiência. O que acontece é que, o seu grau de profissionalismo faz com que, aparentemente, dispense os cuidados que qualquer criança exige. O patrão esquece que lida com uma menina pequena e espera dela, cada vez mais empenho, compromisso profissional sem qualquer cuidado com a sua condição de criança.

Com apenas 6 anos de idade ela precisa ser protegida e ter todos os seus direitos assegurados, inclusive ao lazer, ao respeito e à dignidade, que não são direitos secundários ou menores como querem nos fazer crer alguns discursos sisudos e insensíveis.  Não há direito menor.

Fantasiada de Shirley Temple, com cachinhos bem desenhados, vestidos à moda antiga, uma personagem é criada e no lugar de uma educação integral de qualidade a menina é submetida a uma agenda cansativa e desgastante com ensaios e gravações. 

Como a Shirley Temple, assim como a Judy Garland, atriz do Mágico de Oz, Maisa corre sérios riscos de ser escrava de um projeto de adultos ambiciosos, ávidas por ganhos, e ter seu desenvolvimento modelado pelo compromisso com um formato massacrante de sucesso.

Enquanto isso a infância, em estado terminal, definha e pede socorro.

 

Sobre o Aquecimento Global e a Mobilização Solidária e pela Paz.

Juros, spread e muita cara de pau!

Os outros e nosotros

 O outro, o estrangeiro, não é percebido em sua dimensão social e política, ao contrário, é visto no espaço do espetáculo, do folclore e enriquece a mim, como identidade hegemônica. Eu o tolero, mas na verdade não o respeito. Pois se pensarmos sem pré-conceitos, veremos que toleramos o que não está em nossa perspectiva de convivência mais próxima, ou aqueles que não nos são caros, pois ao contrário não toleraríamos, conviveríamos sem problemas de olhá-los nos olhos, não haveria tolerância, pois não haveria a possibilidade da intolerância.

A educação formal, apesar de as propostas multiculturalistas estarem na ordem do dia e em todas as rodas politicamente corretas, aparentemente, acolhe a diferença, todavia, apenas de maneira superficial, sem que haja espaço para a manifestação dessa diferença, ou esperando que ela se revele apenas como alegoria. Ou, ainda pior, acolhemo-la para demonstrar nossos bons sentimentos e uma face conectada com a diversidade da humanidade.

Há, por conseguinte, o refúgio mais confortável, o campo da moralidade, que já está dado e resguardado pelas rodas intelectuais e suas institucionalidades, com discursos já concebidos e aceitos como dentro da verdade da coisa. Ou como bem disse Larrosa “configuram a gramática discursiva de certas camadas sociais devidamente treinadas no politicamente correto”.

A escola, para Larossa, ao invés de demarcar identidades, deveria aceitar a nossa indefinição, ou, como ele diz, nosso estrangeirismo, aproveitar o que de melhor o estrangeiro nos traz, “a possibilidade de nos percebermos também estrangeiros”. Assim, o que seria tolerância, passaria a ser convivência e troca, pois teríamos a oportunidade de compartilhar nossos estrangeirismos. Entendendo que as identidades não são estáticas como nossa compreensão quer perceber, mas estão permeadas por conjunturas, acontecimentos inesperados e interações com outras identidades que podem gerar mudanças.

A convivência pressupõe espaços públicos promotores de encontros. A escola deveria ser um desses espaços, mas está cada vez mais privatizada e fechada por muros. O argumento para o fechamento é a violência urbana, mas sabemos que não é isso, ou não é só isso, o que mais querem preservar são os valores morais trazidos nos ombros há séculos. Uma das instituições que menos se permitiu mudar ao longo da história foi a escola.

A escola formal é a portadora do saber e da legitimidade de ensinar. A ela cabe acolher as crianças e os adolescentes para que eles deixem a condição de “alunos”, ou sem luz, para a condição de iluminados. Mesmo com a crise do paradigma iluminista, esta instituição não abriu mão do seu lugar, daquela que traz a luz, que ilumina. E essa instituição que ilumina, segrega e marca os diferentes ao não acolher a todos com suas diferenças, porém, com direitos iguais.

Os argumentos produzidos socialmente, aos quais me referia no início do texto, que promovem verdades, são utilizados quase sempre contra aqueles que não fazem parte do lado hegemônico da sociedade. Aqueles que muitas vezes são invisíveis, os toleráveis, mas com os quais preferimos não conviver, a não ser quando eles reforçam nosso lado multicultural.

Isso ocorre, por exemplo, quando se discute o aprofundamento da violência urbana, a falta de uma política de segurança pública e a consequente necessidade de aumentar o aparato repressivo, como única alternativa ao caos urbano causado pela marginalidade e que bateu às portas da elite e da classe média. Nesse momento, aquele invisível, torna-se muito evidente, pois se transforma em alvo que devemos atacar.

Alguém tem de ser o culpado pelas mazelas que atravessamos e, certamente, não será um dos meus, será, especialmente, aquele que me incomoda, que quero não ver, mas ele teima em aparecer na minha frente, nos espaços nos quais circulo, deixando um pouco mais cinzento o meu horizonte, causando-me culpa e mal estar, ou nem isso, apenas repugnância. Ele é o violento.

E isso justifica o fato de se defender o aumento das penas, mesmo que não tenhamos cadeias suficientes e que as existentes sejam espaços de maus tratos e desrespeito aos direitos humanos. Mas de que direitos humanos estamos falando? Essas criaturas são desprovidas de humanidade, portanto, sem direitos. Os meninos e meninas de 16 anos já são grandes o suficiente para saberem o que estão fazendo, eles tem de sentir o peso do Estado, mesmo que nunca tenham sentido sua leveza, pois não é novidade que quem cumpre pena são pobres e negros, ou negros e pobres; aqueles a quem normalmente é negado o direito a uma escola de qualidade, uma vida digna, moradia, acesso a transporte público, lazer.

Quando defendem o aumento do aparato repressivo não conseguem perceber que vivemos em uma sociedade repressiva e autoritária desde sempre e isso não resolveu o problema da violência. Prendem o Fernandinho Beiramar em uma prisão de segurança máxima e querem nos fazer crer que ele é realmente o chefão do tráfico, como se não fosse evidente que os grandes “empresários” do setor de narcóticos estão em outros espaços muito mais “ascéticos” e impunes, pois fazem parte do lado hegemônico, da verdade da coisa.

Para os adolescentes o ECA- Estatuto da Criança e do Adolescente- prevê que aqueles que cometem atos infracionais devem ficar em instituições educadoras, que mantenham atividades socioeducativas, para que o processo de amadurecimento do jovem não seja comprometido. E dizem que isso não é o suficiente, pois querem imputar-lhes penas mais severas e mais cedo, aos 16 anos, como se a parte que cabe ao Estado estivesse cumprida e que a sociedade se preocupasse em fazer o controle social dessas instituições.

Nem uma coisa, nem outra, o Estado mantém espaços desumanos, que não educam, apenas aumentam a sensação de segregação social; medidas socioeducativas são celas superlotadas, como a dos presos comuns. A sociedade sente-se aliviada, pois por um tempo ficará livre dos “elementos” e controle social é para aqueles providos de “humanidade”.

Além disso, sempre que ocorre algo com o lado hegemônico da sociedade, volta à discussão sobre a maioridade penal, ou o aumento do tempo de internação dos adolescentes, mas nunca se discute que três anos na vida de um adolescente é muito diferente que três anos na vida de um adulto. O adolescente está se socializando, descobrindo o mundo. O tempo flui com outra intensidade.

Um bom exemplo de que precisamos rever o paradigma repressivo é a quantidade de dinheiro que os Estados Unidos gastam anualmente com a repressão e combate às drogas e conseguem barrar uma quantidade pequena das drogas que entram no país. E para esse combate ultrapassam suas fronteiras e desrespeitam os seus “estrangeiros”.

É fato que desigualdade não é a causa da violência, mas pode-se dizer que a violência quase sempre é a reafirmação da desigualdade– em suas diversas formas de manifestação e não apenas desigualdade social–, a população mais vitimizada não tem espaço para manifestar-se em suas identidades, pois os espaços públicos estão cercados.

A nossa sociedade é secularmente autoritária e de dominação e quando ameaçada manifesta-se de forma violenta. Ouvi isso no seminário “Violência e segurança pública no Brasil: outros olhares, outros rumos” promovido pela ABONG, onde se falou também que temos de mudar a nossa forma de olhar, pois sempre se fala da violência associando-a a pobreza, porque não se falar da violência associando-a a riqueza, que provoca desigualdade, que por si só não é causa da violência, mas é reafirmada por ela. Assim mesmo, dessa forma circular e, para muitos, simplista.

As formas propostas para o combate à violência são sempre soltas e baseadas em visões preconceituosas, discriminatórias e de isolamento do outro. O diálogo não é promovido e a visão nunca é sistêmica, pois uma política pública de segurança pressupõe, também e principalmente, medidas preventivas que passam por ampliação de espaços de convivência e troca.

Assim como há saúde preventiva, devemos propor, Estado e Sociedade, política pública de segurança preventiva, que deve ser associada às políticas sociais, especialmente, de educação. E, como foi dito também no seminário da ABONGª, o contrário de violência não deve ser a segurança e sim a liberdade, por isso a necessidade urgente dos espaços de convivência saudáveis, entendidos aqui como espaços de promoção da sociabilidade capazes de oferecer ambiente educativo e emocionalmente seguro à convivência e à troca entre diversos outros, estrangeiros, em suas diferenças e com possibilidade de construção de outras histórias geradas a partir da interação.

*ABONG- Associação Brasileira de Organizações não Governamentais.

Cleo Manhas

 

Por que mais US$ 180 bilhões ao BID?

Ricardo Verdum*

Em realidade residem dúvidas sobre o pedido feito pela direção do BID na 50ª Assembléia dos governadores da multilateral, em Medellín, de uma recapitalização da instituição em US$ 180 bilhões. Se aprovado pelos sócios, o BID passaria dos atuais US$ 100 bilhões para US$ 280 bilhões.

O principal argumento do grupo assessor que trabalha com o BID na proposta de recapitalização tem sido a de que esse aumento possibilitaria ao organismo multilateral destinar mais recursos aos países-sócios na região latino-americana, num momento de escassez de crédito, podendo chegar a até US$ 15 bilhões em empréstimos ao ano. Sem esta recapitalização os créditos não passariam de US$ 6 bilhões, argumentam. Argumento semelhante vem sendo defendido pelo Brasil, que defende juntamente uma maior participação da iniciativa privada em projetos de infra-estrutura.

Considerando o envolvimento do BID em iniciativas como a IIRSA (Iniciativa de Integração da Infra-estrutura Sul-americana), bem como participação no Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo brasileiro, isto poderá significar um incremento de recursos nos setores de hidroeletricidade e hidrocarburos, estratégicos no e para o desenvolvimento da região. No caso brasileiro, por exemplo, o BID poderia apoiar o fortalecimento da matriz energética brasileira, uma das mais limpas do mundo, auxiliando na re-potencialização da infra-estrutura hidroelétrica já instalada e na ampliação da capacidade de geração de energia alternativa (eólica, solar etc.). A produção de biocombustíveis pode ser também um setor a ser incentivado. Em tempos de busca de redução de gases de efeito estufa, estas alternativas devem ser privilegiadas.

Por outro lado, ao ser indagado durante a reunião com membros de organizações sociais da região no último dia 27 de março, em Medellín, sobre como o Banco pode perder quase US$ 2 bilhões nos últimos meses em aplicações nada transparentes e de alto risco, parecendo desconhecer a crise anunciada desde 2007, o presidente da instituição, Luis Alberto Moreno e outros gerentes simplesmente desconversaram, como se o tema fosse algo de interesse exclusivamente interno da instituição. Ou seja, faz-se necessário o desenvolvimento de mecanismos mais eficientes e eficazes de participação social, transparência e prestação de contas do BID.

Chamaríamos a atenção ainda para a necessidade de o BID ser mais eficiente na aplicação das políticas operativas (OP) destinadas a avaliar os impactos sociais e ambientais dos créditos solicitados pelos governos e pela iniciativa privada. O caso da construção da Usina Hidrelétrica (UHE) Cana Brava, no centro-oeste brasileiro, no estado de Goiás, é um exemplo de negligência do banco, fato esse reconhecido publicamente pela instituição em 2005.

Em não sendo dada a devida atenção a esses pontos, persistirá a dúvida: por que mais US$ 180 bilhões ao BID?

* Antropólogo, assessor do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e membro da coordenação da Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais.

 

Hipocrisia e descaso com crianças e adolescentes

Hipocrisia, Políticas Públicas e Direitos da Criança e do Adolescente

 Márcia Acioli
Ivônio Barros
Lucídio Bicalho

 

Na última semana de setembro, o jornal Correio Braziliense, mais uma vez, escancarou em suas principais páginas a dura realidade da exploração sexual e do abuso contra crianças e adolescentes no centro de Brasília. A mesma realidade de drogas, abuso e exploração que se vê no centro e praias do Rio de Janeiro, no centro de São Paulo, na praia de Iracema, em Fortaleza, no Recife, em Natal, entre outras tantas.

Não é novidade. As crianças e adolescentes estão lá, em todos esses locais, desde há muito. Os passantes não os vêem. Quando muito, desviam deles, como fazem com as fezes dos cachorros ou o esgoto da rua.

São crianças-cocô. É assim que a sociedade os percebem. Como autoridades públicas e governantes não andam à pé pela cidade, nem isso olham.

O horror denunciado revela o descaso com que o Governo do Distrito Federal, o GDF, trata crianças e adolescentes desfavorecidas pela “loteria genética” na capital da república. Não é por ser capital do país que o problema se torna mais grave, mas é por ser o centro do poder que se espera políticas exemplares para o enfrentamento a qualquer forma de violência contra crianças e adolescentes. É obrigação do poder público já ter construído e consolidado políticas eficientes para o enfrentamento à intolerável dizimação da infância.

Nos centros urbanos a concentração é maior. Mas as crianças e jovens estão cheirando cola de sapateiro, tinner, fumando crack e outras drogas pesadas em vários lugares da cidade. E, esses mesmos pontos são os lugares onde são exploradas e abusadas. Os traficantes, policiais, abusadores de toda a espécie sabem disso. Jornais fotografam os carros, com o cuidado de não mostrar suas placas, para não constranger os estupradores e exploradores.

Os adultos que exploram saem invariavelmente incólumes. São pessoas comuns que as violentam, mas protegidas pelos gabinetes de luxo, ou pelo espaço privado de seus carros permanecem intactas. Já para o menino ou para a menina que se encontra nas ruas em situação de exploração e/ou de alta vulnerabilidade os olhares são dos mais intolerantes e discriminatórios, como se fizessem parte de uma outra humanidade que não a dos abastados.

Quando a notícia sai nos jornais, juízes, ministros, governadores, políticos em geral, fazem cara de espanto e prometem agir imediatamente. Eles sabiam. Eram coniventes. Sabem do horror das ruas, mas na mente deles, elas são destinadas a subpessoas ou não-pessoas. Quer sejam elas trabalhadores superexplorados, quer sejam sem-teto, meninos e meninas de rua, pessoas que não freqüentam a “sociedade”.

O GDF já teve um programa exemplar. O governo Cristovam chamou os diversos segmentos: movimentos sociais, universidade e secretarias de governo para conceberem coletivamente o programa Brasília diz não à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. A experiência, ainda por ser aperfeiçoada, foi desarticulada por mera questão de disputas partidárias por ocasião da mudança de governo.

 

A série de reportagens do Correio Braziliense mostra bem o complexo elo entre as diversas formas de vulnerabilidades e de violação de direitos: trabalho infantil, situação de rua, violência doméstica, violência e exploração sexual, tráfico e dependência de drogas. São inúmeras situações que se articulam, configurando cenas de profunda degradação humana; fatos que têm sido sistematicamente denunciados pelas organizações da sociedade civil que vêm exigindo do GDF ações articuladas que dêem respostas concretas ao problema social, bem como a casos particulares que exigem atenção e proteção imediata.  

O governador do Distrito Federal fez publicar no dia 26/9 no Correio Braziliense um artigo que fala da indignação que sentiu e, novamente, de algum lugar entre a hipocrisia e o populismo, diz que sua prioridade é a educação. Mentira. A prioridade deste governo, como do anterior, é o asfalto e o concreto. Movimenta mais dinheiro e reforça a lógica do sistema político e econômico. É o reino do automóvel particular, das empreiteiras, das porcentagens que alimentam caixas de campanha e fortunas pessoais que aparecem da noite para o dia.

Agora, o governo responde aos jornalistas e à parte da sociedade com um programa emergencial. Não irá resolver nada. Nem minimizar o problema. É um pouco de velhas fórmulas, todas focadas na repressão a crianças e adolescentes. Nem os traficantes se sentirão intimidados, não são a eles que o governo procura. Portanto, são respostas que além de insuficientes, trazem vícios de concepção que não ajudam a avançar nas raízes do problema.

Não é uma ação desesperada e histérica que vai dar conta de um mal que avança com o tempo e ganha contornos de violência cada vez mais sofisticados. Hoje o governo é cobrado por uma omissão acumulada ao longo dos anos.

No ano em que o Estatuto da Criança e do Adolescente completa 18 anos, é flagrante o desprezo pelo principal instrumento “garantidor de direitos” deste segmento. Isto é notório quando analisada a execução orçamentária das principais ações do GDF na área do combate à exploração sexual de crianças e adolescentes apurado até o dia 4 de agosto.

O “Programa Sentinela” efetivamente gastou (liquidou) apenas 4,58% (R$ 12,34 mil de R$ 269,98 mil disponíveis para esse programa no ano). O “Programa Social de Atendimento à criança e adolescentes vítimas de Violência e Exploração Sexual” teve 0,0% de execução.

No DF, o Índice de Gini — indicador do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE que mede as disparidades — cresceu em 2007, indo na contramão da tendência nacional. A taxa brasiliense aumentou de 0,571 em 2006 para 0,587 em 2007 — quanto mais próximo o coeficiente for de zero, menores são as disparidades. No Brasil, o Índice de Gini variou de 0,593 para 0,552. Apesar da queda de 7% no nível de concentração no período, o Brasil ainda está entre as nações mais desiguais do mundo.

Enquanto isso, novos viadutos são construídos. Obras e mais obras. E escolas continuam descuidadas. Professores que ensaiam projetos que mobilizam jovens são reprimidos ou removidos para que não possam agir em conjunto, como aconteceu recentemente em uma escola na Asa Norte. Movimentos sociais e entidades da sociedade civil que mostram um pouco de visão crítica são afastadas e impedidas de chegar perto de escolas, em seu lugar estão as organizações cooptadas pelo governo ou ligadas a esta ou aquela liderança política ou religiosa.

Não há prioridade alguma à educação. Os modelos usados são velhos. Quando muito, se reforça programas que vão treinar melhor os jovens para o mercado de trabalho. É para isso que servem, segundo as elites.

Brasília tem a maior renda per capita do país. É um dos orçamentos mais folgados nas áreas de saúde, educação e segurança pública. As cidades são próximas umas das outras. A maior parte do território pertence ao poder público. Todas as condições para que políticas públicas de respeito à dignidade humana fossem desenvolvidas e aplicadas.

Porque nada é feito então? A resposta é simples. Porque não se quer.

Tabela de execução orçamentária

Em defesa da democracia no Paraguai

Em defesa da democracia no Paraguai

 

Edélcio Vigna

 

O Inesc, como uma organização que privilegia nas suas atividades os direitos humanos, na sua atuação junto ao Parlamento do Mercosul, vem repudiar qualquer tentativa de violação contra os princípios democráticos. Lembra a Cláusula Democrática, existente no Protocolo de Ushuaia, que garante o regime em todos os Estados-parte do Mercosul. Sem este sistema de governo, nenhum país poderá ser parte do Mercado Comum.

 

O Inesc soma sua indignação e faz eco com a Associação das Organizações Não-Governamentais do Paraguai e com a Mesa Coordenadora Nacional de Organizações Camponesas, que expressaram apoio ao presidente Fernando Lugo, após a denúncia de um plano de golpe de estado que teria a participação do ex-presidente do país, Nicanor Duarte, além do general Lino César Oviedo.

O presidente do Paraguai, recém-eleito, Fernando Lugo apresentou detalhes dos planos e afirmou que representantes das Forças Militares tinham as informações sobre a tentativa. A notícia repercutiu em todo o país e gerou manifestações de diversos segmentos sociais em favor da manutenção da democracia e do respeito pela vontade popular que elegeu Lugo.

O presidente do Parlamento do Mercosul, o deputado brasileiro Dr. Rosinha, emitiu um documento empenhando seu apoio ao presidente Lugo e a democracia paraguaia.  No entendimento desta Presidência, tal tentativa representa não apenas uma agressão covarde à democracia e ao povo paraguaio, mas também uma ofensa inaceitável contra o Mercosul e, particularmente, contra o seu Parlamento, instituição voltada à consolidação da democracia, no âmbito do bloco?.

 

Veja abaixo a íntegra da nota pública divulgada pelo Parlamento do Mercosul em defesa da democracia no Paraguai:

“Apoio à democracia paraguaia 

A Presidência do Parlamento do Mercosul vem a público manifestar o seu mais veemente repúdio à noticiada tentativa de golpe de estado contra o governo eleito do presidente Fernando Lugo, da República do Paraguai.

No entendimento desta Presidência, tal tentativa representa não apenas uma agressão covarde à democracia e ao povo paraguaios, mas também uma ofensa inaceitável contra o Mercosul e, particularmente, contra o seu Parlamento, instituição voltada à consolidação da democracia, no âmbito do bloco.

A Presidência do Parlamento do Mercosul lembra que o Protocolo de Ushuaia, que instituiu, no contexto dos Estados-parte do Mercosul, bem como nos Estados associados do Chile e da Bolívia, a cláusula democrática do Mercado Comum do Sul, é compromisso inalienável e fundamental para a estabilidade política da região e o processo de integração. Portanto, quaisquer violações dessa cláusula pétrea resultariam na impossibilidade de que o Estado transgressor pudesse permanecer no Mercosul.

A Presidência recorda, ademais, que Carta Democrática Interamericana, firmada no âmbito da OEA, também demanda, de todos os Estados signatários, respeito incondicional às normas e instituições democráticas, bem como compromisso solene com o estado de direito.

A Presidência do Parlamento do Mercosul destaca que os recentes pleitos eleitorais do Paraguai, que resultaram na eleição do Exmo. Sr. presidente Fernando Lugo, transcorreram dentro da mais absoluta normalidade e tiveram alta taxa de participação popular, o que demonstra o atual grau de maturidade da sociedade civil paraguaia e comprova a sólida e insofismável legitimidade das autoridades democraticamente constituídas naquele país.

Por último, a Presidência manifesta a sua mais plena confiança nas instituições e no povo paraguaios e expressa seus votos de prosperidade e paz àquela grande nação. 

Dr. Rosinha

Presidente do Parlamento do Mercosul”

Lamento muito, mas não deu…

A Rodada de Doha da OMC voltou a tropeçar devido à imposição da pauta pelos países desenvolvidos. Os países emergentes, como a China e a Índia, colocaram o pé na porta e não rebaixaram suas ambições diante dos EUA e da União Européia. O Brasil ficou intermediando as propostas e sua liderança na OMC pode ter saído maculada. O que fazer? Voltar-se para a integração sul-americana e cuidar das feridas abertas no âmbito do MERCOSUL. Retomar o trabalho no bloco e aparar algumas arestas que podem ter ficado com a Argentina e Venezuela, que se colocaram frontalmente contra as posições dos países desenvolvidos, enquanto o Brasil buscava um consenso.

Os negociadores seguiram às palpadelas nestes oito dias de rodadas, como se estivessem em um quarto escuro. Receberam as ordens, mas não encontram eco. Suas propostas se chocavam com as dos outros negociadores. Assim, não conseguiam apoio para avançar, mas continuavam repetindo o mantra. Assim, a resistência de cada negociador se esgotou.

Acusado de ser um dos culpados pelo fracasso das negociações da Rodada de Doha, o ministro da Índia, Kamal Nath, afirmou: “Não estamos isolados. Se bloquear uma ronda é não aceitar uma proposta dos países ricos, então que seja assim”. Os países em desenvolvimento demonstraram que as regras do mercado internacional não serão mais elaboradas somente ao gosto dos países desenvolvidos. Com a emergência de novas forças que se projetaram no cenário internacional, a história da globalização não será mais a mesma.

Depois de muitas tentativas de articulação de posições dentro do G7, e entre o G7+Lamy+coordenadores de agricultura/NAMA+outros 30 países presentes ficou claro que as negociações da Rodada de Doha não tinham consenso suficiente para ser fechada. As propostas que buscavam contornar os problemas não foram suficientes para superar as diferenças em temas como produtos especiais, produtos sensíveis, salvaguardas, e quase todo o texto de NAMA (coeficientes, flexibilidades, anticoncentração e setoriais).

A rodada que começou, seu ultimo dia, com uma reunião áspera entre EUA versus Índia e China, terminou na terça-feira. EUA e União Européia não se entenderam com a Índia e China sobre as propostas de salvaguardas em agricultura (Algodão e Bananas) e setoriais em NAMA. Vários outros dissensos agitaram o dia: a Argentina avaliou que o documento de NAMA não servia nem para discussão. O Equador, de um lado, Guiana e Camarões de outro, discutiram sobre o comércio de bananas. O Senegal reclamou dos EUA sobre algodão. Bangladesh e Nepal discutiram com Lesoto e El Salvador sobre erosão de preferências. A Venezuela, Nicarágua, Cuba e Bolívia questionaram todo o processo.

À tarde, enquanto o G7 ameaçava romper as negociações, o diretor-geral Pascal Lamy realizou uma série de consultas temáticas que não chegaram a lugar algum. O ministro Celso Amorim, do Brasil, voltou a declarar que as conversas estavam por um fio. Os EUA e a Índia continuaram o bate-boca publico sobre salvaguardas.

Os informes internos do G7 apontavam uma cristalização de posições entre “orientais” (Índia, China e Japão) e “ocidentais” (UE, EUA, Austrália e Brasil) sobre três temas agrícolas: produtos especiais, salvaguardas e produtos sensíveis. A discussão passou de preços/volumes de comércio para a política. Enquanto a negociadora dos EUA, Susan Schwab, avaliava quantos votos de parlamentares perderia no Congresso a cada percentual de salvaguardas, o indiano Kamal Nath avaliava quantas dezenas de milhões de eleitores perderia nas eleições a cada percentual concedido.

As negociações desta rodada foram tão difícil que até a União Européia saiu rachada. A Alemanha, Reino Unido e Suécia de um lado, França, Itália, Portugal, Grécia, Hungria, Polônia e República Checa de outro, com a Holanda e a Espanha no meio. Fica evidente que, passados sete anos desde o início da Rodada de Doha, a conjuntura política e as disputas de poder tornaram a arena da OMC bem mais complexa. Começando com o reagrupamento do G20 em Cancun, com o NAMA-11 neste último ano, as rupturas internas de interesses dentro da EU e o fim do governo Bush produziram um jogo bem mais complexo, com muitos mais níveis e infinitas posições.  Um olhar para trás, desde o fim da Rodada do Uruguai, onde os países ricos dominavam e se impunham sobre qualquer tema, o colapso desta mini-ministerial corrobora e atesta esta complexidade.

Resta-nos agora esperar para ver qual será o resultado deste retumbante fracasso nas conversações da última semana em Genebra. Qual será o próximo passo?

Bolsa Família

Site Ibase

 

O Inesc reproduz a entrevista realizada com Mariana Santarelli, uma das responsáveis pela coordenação executiva do trabalho.

 

Entrevista: Mariana Santarelli

Flávia Mattar e Jamile Chequer

 

Ibase acaba de concluir a pesquisa “Repercussões do Programa Bolsa Família na Segurança Alimentar e Nutricional das Famílias Beneficiadas”. Entre os objetivos estão o levantamento do perfil das famílias beneficiadas, como adquirem os alimentos e as repercussões do Bolsa Família na segurança alimentar e nutricional. Ao todo, foram entrevistados 5 mil titulares do cartão Bolsa Família, em 229 municípios brasileiros do Nordeste, Centro-Oeste, Norte, Sudeste e Sul. A pesquisa contou também com uma fase qualitativa, na qual foram ouvidos 170 titulares em 15 grupos focais e 62 gestores(as) em entrevistas semi-estruturadas. Um levantamento como este favorece não só a reflexão sobre o Bolsa Família como a proposição de políticas públicas que somem esforços para a diminuição da pobreza e da insegurança alimentar. A pesquisa do Ibase, Mariana Santarelli, fala sobre as fortalezas e desafios do Programa, além de mostrar a situação de beneficiários(as) e a forma como percebem e lidam com o Bolsa Família. Mariana também aponta recomendações para potencializar a iniciativa.

Ibase – Qual a importância de uma pesquisa como essa?

Mariana Santarelli – O Programa Bolsa Família é uma política elaborada para lidar com o problema da fome e beneficia aproximadamente 11,1 milhão de famílias pobres brasileiras. Pela trajetória do Ibase com o tema da segurança alimentar e nutricional, não poderíamos deixar de analisar esta política e em que medida influencia a capacidade das famílias se protegerem da fome. A pesquisa ajuda a compreender como as famílias mais pobres se alimentam e de onde vêm os produtos consumidos, o que nos dá condições para pensar que políticas, entre as que já existem e as que podem vir a ser implementadas, são mais relevantes para garantir o direito humano à alimentação, principalmente em um contexto de crise mundial de alimentos.

Ibase – O Bolsa Família é uma iniciativa eficaz no combate à pobreza?

Mariana Santarelli – Sua finalidade é transferir renda para quem não tem ou tem renda muito baixa. Ele cumpre sua parte. Mas não tem a capacidade de resolver todos os problemas. No Brasil, a pobreza é um fenômeno complexo e tem determinantes que a reproduzem permanentemente. É preciso que, junto com a transferência de renda, tenhamos outras políticas públicas capazes de romper com esse ciclo de geração de pobreza que nega a cidadania a milhões de brasileiros. O que vimos na pesquisa é que a insegurança alimentar grave está fortemente associada à baixa escolaridade, à exclusão do mercado formal de trabalho e à precariedade no acesso a serviços públicos, como saneamento básico. Políticas públicas capazes de atacar estes problemas aumentam as condições das famílias de superar a pobreza.

Ibase – As pessoas beneficiadas ainda vivenciam a fome?

Mariana Santarelli – Adotamos a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia), instrumento utilizado na Pnad 2004, que reflete aspectos do acesso aos alimentos. Os dados mostram que mais da metade das famílias beneficiadas, aproximadamente 6,1 milhões, está em situação de insegurança alimentar moderada ou grave, ou seja, passou por restrições alimentares e até mesmo fome nos meses que antecederam a pesquisa.

Ibase – O Bolsa família contribui para a segurança alimentar e nutricional dessas famílias?

Mariana Santarelli – A pesquisa mostra que os beneficiários fazem uso do recurso para comprar mais alimentos e variar sua alimentação. Para muitos, o Bolsa Família é a única renda regular garantida, o que permite que ao menos o arroz e o feijão estejam garantidos todo mês. Há grande impacto também na variedade, as famílias passam a comer mais carne, leite, legumes e verduras. Por outro lado, também aumenta o consumo de alimentos não-nutritivos e calóricos, como biscoitos e industrializados.

Nos grupos focais percebemos que as titulares, em sua maioria mulheres e mães, sabem o que é saudável, mas pela escassez de recursos acabam optando por uma alimentação que proporciona saciedade. Tendem também a satisfazer os desejos dos filhos, o que é mais do que justificável. O Bolsa Família aumenta o poder de escolha e de compra dos alimentos, o que é ótimo, mas não significa, necessariamente, uma alimentação mais saudável. Por isso, há a necessidade de programas direcionados para a educação alimentar, principalmente nas escolas; de iniciativas que aumentem a oferta de alimentos adequados e pouco consumidos, como legumes, verduras e frutas a preços mais acessíveis; e também de ações de regulamentação da propaganda de alimentos.

Ibase – Qual a percepção das pessoas beneficiadas?

Mariana Santarelli – As pessoas beneficiadas percebem o programa como uma iniciativa que “ajuda, mas não resolve”, o que corrobora a visão do Ibase de que é uma iniciativa importante, mas são necessárias outras políticas para garantir a emancipação das famílias.

Nos grupos focais, observamos que as pessoas beneficiadas preferem garantir a sobrevivência de suas famílias por meio do trabalho a depender do programa. Para aqueles que estão no auge da capacidade produtiva, principalmente homens, ser beneficiário chega mesmo a ser algo que causa vergonha.

Alguns expressam o desejo de receber o benefício para sempre. Este é o caso daqueles que vivem sob as condições mais extremas de pobreza e em municípios onde não há muitas alternativas de inserção no mercado de trabalho.

Há exemplos de como uma fonte estável e regular de renda significa maior possibilidade de planejamento de gastos e, principalmente, segurança. Muitas das mulheres titulares passaram a se sentir mais independentes financeiramente e respeitadas após a inclusão no programa.

Ibase – De acordo com a sua resposta, a alegação de que o Programa gera acomodação não é correta…

Mariana Santarelli – O Bolsa Família não faz com que as pessoas se acomodem e deixem de buscar trabalho, a não ser em casos em que há exploração de mão-de-obra ou quando o trabalho é de extrema precariedade. Nestes casos, é mais do que justificável que as pessoas não se submetam a estas condições. Se o Bolsa Família serve como apoio para isso, é bastante positivo.

Ibase – Quais as principais recomendações do Ibase em relação ao Programa?

Mariana Santarelli – É necessário avançar na definição e na formalização de espaços que estimulem e viabilizem práticas intersetoriais no âmbito do Bolsa Família, nas três esferas de governo. Assim, será gerada capacidade de potencializar o acompanhamento das condicionalidades e fazer avançar iniciativas de geração de trabalho e renda.

Ainda que o programa seja de extrema importância, há uma série de outras políticas, algumas já em curso, que merecem ser melhor exploradas, como a Política Nacional de Alimentação Escolar, que poderia ser estendida ao ensino médio, e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que aumenta a demanda por produtos da agricultura familiar, ao mesmo tempo que provê assistência alimentar às famílias mais vulneráveis.

Há ainda iniciativas que vêm sendo experimentadas, tanto por prefeituras como pela sociedade civil organizada, que possibilitam a oferta de produtos alimentares saudáveis e pouco consumidos a preços mais acessíveis e que estimulam a aproximação de produtores e consumidores. Tais iniciativas poderiam ser mais estimuladas e incorporadas pelos governos locais.

 

Pesquisa Ibase –  REPERCUSSÕES DO PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA NA SEGURANÇA
ALIMENTAR E NUTRICIONAL DAS FAMÍLIAS BENEFICIADAS

O desafio de eliminar o racismo no Brasil

O artigo foi originalmente publicado no site da Oxfam, como um estudo de caso para o Relatório da Pobreza, lançado esta seman

O desafio de eliminar o racismo no Brasil: a nova institucionalidade no combate à desigualdade racial
Alexandre Ciconello

O morro da Providência e suas lições

Ao analisar um dos episódios que mais chocaram a sociedade brasileira, o assassinato de três rapazes do morro da Providência, no Rio de Janeiro, depois de terem sido entregues por integrantes do Exército a um bando de traficantes de um morro vizinho, Atila Roque argumenta que o evento denota “um sinal que ultrapassamos o fundo do poço e nos aproximamos perigosamente das profundezas do horror totalitário”.

A questão da banalização da violência contra jovens pobres e da insuficiência das desculpas apresentadas pelas autoridades aos familiares das vítimas, segundo Atila, representam uma “humilhação para o Estado brasileiro e lança uma mancha sobre o Exército”.

Leia a íntegra do artigo O Ovo da Serpente.

Fantasias racialistas: Em favor do sistema de cotas

O debate sobre a adoção de cotas para estudantes negros nos vestibulares para universidades públicas tem sofrido com argumentos falaciosos difundidos ad nauseam  pelos que se opõem à adoção dessas políticas. Com isso estamos correndo o risco de perder a oportunidade de realizar uma discussão realmente necessária sobre a eficácia das políticas afirmativas para a promoção da igualdade e da justiça social em uma sociedade historicamente marcada pelo racismo.

Um desses argumentos produz a mais perversa das inversões que é a acusação de racistas ou de promotores do ódio racial lançada sobre os defensores das ações afirmativas. Como se o racismo precisasse ser inventado no Brasil.

O que as políticas de cotas fazem é simplesmente reconhecer, com base em pesquisas acadêmicas e séries estatísticas produzidas ao longo das últimas décadas, que o racismo é um fator importante na trajetória de vida e na redução do leque de oportunidades disponíveis às populações de pele mais escura. Uma população que na linguagem do IBGE recebe a denominação de parda ou preta e que na vida cotidiana das pessoas assumem denominações mais diversificadas e nem sempre muito gentis: escurinhos, morenos, sararás, neguinhas. Homens e mulheres que sofrem em graus variados com os preconceitos de uma sociedade que se desejou por muito tempo européia, e não africana, e que elegeu a pele clara — e as características físicas a ela associadas, como os cabelos lisos (e sempre que possível louros), traços faciais “finos” —,  como sinais de beleza e inteligência.

Tentar carimbar isso de “racialização” da sociedade brasileira é um exagero que se presta à exibição narcísica de saberes acadêmicos, mas que nada tem a ver com o mundo da vida. Os eventuais equívocos e erros cometidos na implementação das cotas, poucos se comparados a outras políticas sociais focalizadas, merecem ser discutidos no marco de metodologias que avaliam eficácia e eficiência das políticas públicas.

Da mesma forma, reduzir tudo ao problema da pobreza, opondo cotas às políticas supostamente universais, é negar as conseqüências psicológicas e sociais do racismo, produzindo um falso dilema. As cotas não se opõem à valorização da escola pública ou à necessidade de investir em políticas sociais de caráter universal. Mas propõem uma aceleração do acesso de estudantes negros à educação superior. Elas representam um atalho legítimo para a constituição no curto prazo de uma elite composta de pardos, pretos, cafuzos, morenos ou qualquer definição que se queira dar a essa população de pele escura que se confronta cotidianamente com o preconceito da sociedade. O Brasil precisa de médicos, advogados e, especialmente, professores universitários negros.

As políticas que apenas começam a ser implementadas nas universidades brasileiras adotam modelos diversos, combinam cotas sociais e raciais, e promovem a diversidade em um ambiente universitário em que pretos e pardos estiveram quase sempre ausentes. Cerca de metade das experiências vigentes em universidades públicas, segundo avaliação recente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), adotam cotas raciais e sociais sobrepostas, operando, assim, com dois critérios complementares que devem ser observados simultaneamente para o preenchimento das vagas destinadas aos negros.

Finalmente, a acusação de que os defensores de cotas são teleguiados ou inocentes úteis de fundações internacionais e plagiadores da experiência supostamente fracassada dos EUA causa assombro por ignorar deliberadamente a longa trajetória de luta dos movimentos negros no Brasil, além de apresentar uma narrativa descontextualizada do debate norte-americano. Desde os anos 1930, grupos dos movimentos negros brasileiros apontavam para a necessidade de políticas públicas que garantissem o acesso da população negra à educação e, mais recentemente, no início dos anos 1980, os cursinhos pré-vestibulares para negros e carentes passaram a sublinhar o direito à educação superior. É surpreendente ver intelectuais e acadêmicos tão ilustres subscrevendo visões tão distorcidas.

As políticas de cotas apenas agora começam a ser avaliadas e os primeiros resultados desmentem largamente as críticas que continuam a ser repetidas sem qualquer amparo em dados. Não baixaram a qualidade da universidade, não colocaram “pobre-contra-pobre”, não beneficiaram apenas uma “elite de classe média negra”. Ao contrário, contribuíram para renovar o debate sobre o lugar da educação superior na conquista da cidadania plena e o papel das universidades públicas.

Essa experiência exemplar não deve ser interrompida em nome de fantasias racialistas despropositadas ou, em alguns casos, da defesa de privilégios de grupos que sempre resistiram à incorporação dos negros à vida republicana.

Fantasias racialistas

O debate sobre a adoção de cotas para estudantes negros nos vestibulares para universidades públicas tem sofrido com argumentos falaciosos difundidos ad nauseam  pelos que se opõem à adoção dessas políticas. Com isso estamos correndo o risco de perder a oportunidade de realizar uma discussão realmente necessária sobre a eficácia das políticas afirmativas para a promoção da igualdade e da justiça social em uma sociedade historicamente marcada pelo racismo.

Um desses argumentos produz a mais perversa das inversões que é a acusação de racistas ou de promotores do ódio racial lançada sobre os defensores das ações afirmativas. Como se o racismo precisasse ser inventado no Brasil.

O que as políticas de cotas fazem é simplesmente reconhecer, com base em pesquisas acadêmicas e séries estatísticas produzidas ao longo das últimas décadas, que o racismo é um fator importante na trajetória de vida e na redução do leque de oportunidades disponíveis às populações de pele mais escura. Uma população que na linguagem do IBGE recebe a denominação de parda ou preta e que na vida cotidiana das pessoas assumem denominações mais diversificadas e nem sempre muito gentis: escurinhos, morenos, sararás, neguinhas. Homens e mulheres que sofrem em graus variados com os preconceitos de uma sociedade que se desejou por muito tempo européia, e não africana, e que elegeu a pele clara — e as características físicas a ela associadas, como os cabelos lisos (e sempre que possível louros), traços faciais “finos” —,  como sinais de beleza e inteligência.

Tentar carimbar isso de “racialização” da sociedade brasileira é um exagero que se presta à exibição narcísica de saberes acadêmicos, mas que nada tem a ver com o mundo da vida. Os eventuais equívocos e erros cometidos na implementação das cotas, poucos se comparados a outras políticas sociais focalizadas, merecem ser discutidos no marco de metodologias que avaliam eficácia e eficiência das políticas públicas.

Da mesma forma, reduzir tudo ao problema da pobreza, opondo cotas às políticas supostamente universais, é negar as conseqüências psicológicas e sociais do racismo, produzindo um falso dilema. As cotas não se opõem à valorização da escola pública ou à necessidade de investir em políticas sociais de caráter universal. Mas propõem uma aceleração do acesso de estudantes negros à educação superior. Elas representam um atalho legítimo para a constituição no curto prazo de uma elite composta de pardos, pretos, cafuzos, morenos ou qualquer definição que se queira dar a essa população de pele escura que se confronta cotidianamente com o preconceito da sociedade. O Brasil precisa de médicos, advogados e, especialmente, professores universitários negros.

As políticas que apenas começam a ser implementadas nas universidades brasileiras adotam modelos diversos, combinam cotas sociais e raciais, e promovem a diversidade em um ambiente universitário em que pretos e pardos estiveram quase sempre ausentes. Cerca de metade das experiências vigentes em universidades públicas, segundo avaliação recente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), adotam cotas raciais e sociais sobrepostas, operando, assim, com dois critérios complementares que devem ser observados simultaneamente para o preenchimento das vagas destinadas aos negros.

Finalmente, a acusação de que os defensores de cotas são teleguiados ou inocentes úteis de fundações internacionais e plagiadores da experiência supostamente fracassada dos EUA causa assombro por ignorar deliberadamente a longa trajetória de luta dos movimentos negros no Brasil, além de apresentar uma narrativa descontextualizada do debate norte-americano. Desde os anos 1930, grupos dos movimentos negros brasileiros apontavam para a necessidade de políticas públicas que garantissem o acesso da população negra à educação e, mais recentemente, no início dos anos 1980, os cursinhos pré-vestibulares para negros e carentes passaram a sublinhar o direito à educação superior. É surpreendente ver intelectuais e acadêmicos tão ilustres subscrevendo visões tão distorcidas.

As políticas de cotas apenas agora começam a ser avaliadas e os primeiros resultados desmentem largamente as críticas que continuam a ser repetidas sem qualquer amparo em dados. Não baixaram a qualidade da universidade, não colocaram “pobre-contra-pobre”, não beneficiaram apenas uma “elite de classe média negra”. Ao contrário, contribuíram para renovar o debate sobre o lugar da educação superior na conquista da cidadania plena e o papel das universidades públicas.

Essa experiência exemplar não deve ser interrompida em nome de fantasias racialistas despropositadas ou, em alguns casos, da defesa de privilégios de grupos que sempre resistiram à incorporação dos negros à vida republicana.

Modelo de desenvolvimento predatório e violência: as mazelas da sociedade brasileira

Alexandre Ciconello

O relatório anual da Anistia Internacional divulgado essa semana, mais uma vez expõe as mazelas da sociedade brasileira: violência, impunidade e modelo de desenvolvimento predatório. O recrudescimento da violência policial, especialmente no Estado do Rio de Janeiro, e os impactos das obras do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) são dois destaques do relatório.

A sociedade brasileira pouco tem debatido os impactos sociais do modelo de desenvolvimento e de programas de governo como o PAC, PAS – Plano Amazônia Sustentável ou o IIRSA – Iniciativa para a Integração da Infra-estrutura Regional Sul Americana. As grandes obras previstas como rodovias, ferrovias, portos, hidrelétricas e represas são concebidas com pouca preocupação no que se refere aos impactos socioambientais de projetos de tal envergadura. Na verdade, tais obras atendem aos interesses de grandes corporações e exportadores, vinculados a atividades econômicas concentradoras de renda como o agronegócio, mineração e a produção de biocombustíveis.

Mesmo com a resistência dos movimentos sociais e das populações mais vulneráveis do semi-árido nordestino, o governo insistiu em levar adiante o Projeto de transposição do Rio São Francisco — que beneficiará projetos de irrigação de grandes proprietários rurais — ao invés de implementar políticas alternativas para a região, já elaboradas e que beneficiariam agricultores familiares e pequenas comunidades.

 

O relatório afirma que “a expansão da monocultura, como as plantações de soja e de eucaliptos, a extração ilegal de madeiras e a mineração, juntamente com projetos de desenvolvimento, como a construção de represas e o projeto de desvio do Rio São Francisco, estiveram entre as principais fontes de conflito” em 2007 no Brasil. Aliado a isso, a expansão do setor canavieiro para a produção do etanol tem aumentado os casos de ocorrência de trabalho escravo no país, como o ocorrido em uma fazenda da empresa produtora de etanol no Pará, em 2007, onde mais de 1000 pessoas foram libertadas.

 

A quem interessa esse tipo de desenvolvimento, que expulsa populações inteiras de suas terras; destrói seus modos de vida comunitário e tradicional; seus meios de sustento; desmata a floresta aumentando o desequilíbrio ambiental e climático no mundo; que viola direitos humanos fundamentais como a liberdade e a dignidade. Para onde vão os lucros obtidos por grandes corporações nacionais e internacionais beneficiadas com essas políticas?

 

Esse modelo de desenvolvimento predatório e insustentável ambientalmente tem violado cada vez mais os direitos humanos (civis, políticos, sociais, econômicos e culturais) ao invés de promovê-los. O Brasil ainda se pauta pela lógica antiga de buscar o desenvolvimento econômico a qualquer custo, ignorando as necessidades da população de baixa renda e dos grupos mais vulneráveis. O desenvolvimento humano e a garantia de condições de vida digna para todos/as é posto em segundo plano.

 

Por outro lado, a violência aumenta, especialmente nos grandes centros urbanos. A resposta do Estado tem sido truculenta, como a política de extermínio do governo do Rio de Janeiro. Segundo o relatório da Anistia, a partir de dados oficiais, em 2007, a polícia carioca “matou ao menos 1.260 pessoas(…) Todas as mortes foram classificadas como “resistência seguida de morte”. A maioria dessas pessoas são jovens e negros, que são as vítimas preferenciais dos assassinatos nesse país. Essa é apenas uma dimensão — a mais cruel delas —  de como o racismo opera na sociedade brasileira. Segundo dados do IPEA (2006, p. 80), em 2005, a taxa de homicídios de negros (31,8 por 100.000) era cerca de duas vezes superior à observada para os brancos (18,4), sendo que na região Nordeste — uma das mais pobres do país — a taxa de homicídios de negros era mais de três vezes superior a dos brancos.

 

O governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, após a publicação do relatório, afirmou que não vai mudar a sua política de segurança em razão da publicação do relatório da Anistia Internacional. O pior é que tal atitude é apoiada por outras autoridades públicas. Segundo o relatório, “apesar dos relatos abundantes de violações de direitos humanos cometidas pela polícia, o Presidente Lula e outras autoridades de seu governo apoiaram publicamente certas operações policiais militarizadas de grande repercussão, especialmente no Rio de Janeiro.”

 

Estamos no ano da celebração dos 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. O Brasil ainda não tem muito o que comemorar. A afirmação de que “todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos” ainda não é uma realidade em nosso país e por vezes parece que retrocedemos em vários aspectos.

 

Em dezembro de 2008 será realizada a XI Conferência Nacional de Direitos Humanos com o objetivo de revisar o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) de 2002. Até agosto serão realizadas as conferências estaduais. Violência e Segurança Pública; Desenvolvimento e Direitos humanos, são dois dos seis eixos orientadores do debate em todo o país, refletindo a centralidade que esses dois temas vem adquirindo no debate sobre os direitos humanos no Brasil. É uma oportunidade para que movimentos e organizações avaliem as atuais ações do Estado, propondo e formulando estratégias para o avanço dos direitos humanos, que não irá ocorrer se o Estado continuar a priorizar um modelo de desenvolvimento social e ambientalmente insustentável, predatório e concentrador de renda e uma política de segurança pública truculenta e ineficaz.

 

Para saber mais: Informe 2008 da Anistia Internacional: o estado dos direitos humanos no mundo, em http://thereport.amnesty.org/prt/the-world-by-region

Por que os bancos choram

Le Monde Diplomatique

Há duas razões para a gritaria dos banqueiros, após o aumento de impostos decidido pelo governo. Rompeu-se a lógica de conceder sucessivos benefícios fiscais ao setor financeiro. E fica claro que é possível uma reforma tributária verdadeira, capaz de reduzir a concentração de renda

 

Evilásio Salvador

O ano começou com o mini pacote tributário e fiscal de ajuste das contas públicas, para suprir a perda de R$ 40 bilhões de arrecadação, devido à rejeição da CPMF pelo Senado Federal. As medidas de ajuste anunciadas pelo governo são basicamente três: a) elevação das alíquotas do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) e da Contribuição Social do Lucro Líquido (CSLL) paga pelas instituições financeiras, que passou de 9% para 15%; b) corte de R$ 20 bilhões no orçamento; e, c) a expectativa de uma arrecadação extraordinária de R$ 10 bilhões, em função das mudanças de estimativas da inflação e do crescimento do PIB.

As medidas do governo foram seguidas de manifestação de representantes de entidades da sociedade civil, organizações populares, movimentos sociais, intelectuais e religiosos. Intitulado “Por uma Reforma Tributaria Justa”, o documento apóia uma reestruturação do sistema de impostos e defende a tributação do setor financeiro. Já a Federação Brasileira dos Bancos (Febraban), como seria de esperar, reagiu e criticou a elevação das alíquotas.

Neste artigo, vamos argumentar que o aumento da CSLL paga pelos bancos é uma medida importante. Em primeiro lugar, justiça fiscal significa onerar mais aqueles que têm maiores condições de contribuir com a manutenção do Estado e dos serviços públicos. Todos sabem que o setor financeiro, é um dos mais beneficiados pela política econômica pós-Plano Real. [1]. Ele tira proveito dos três sustentáculos desta política: elevada taxa de juros, superávit primário e câmbio valorizado. O resultado é evidente: ano após ano, os lucros bilionários dos bancos batem novos recordes.

Os privilégios de que desfrutam os banqueiros vêm, aliás, de longa data, como demonstra um estudo desenvolvido pelo professor Ary Minella, em seu livro sobre esta classe social e sua influência política. [2]. Entre as transformações do setor financeiro no país, ao longo dos anos, uma das mais marcantes é sua vinculação crescente à dívida pública interna e aos juros pagos pelo Estado — por meio de operações com os títulos públicos [3]. Além de tranferir-lhes parte importante da renda nacional, o Estado os protege das crises. Vale lembrar, por exemplo, o Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional (PROER), em 1995, uma espécie de “socorro” para recuperar, com fundos públicos, as instituições financeiras então em dificuldades.

O setor mais beneficiado pela política econômica é, além disso, sempre privilegiado com impostos baixos

Porém, apesar dos privilégios desfrutados pelo setor financeiro, uma das questões que mais chama atenção quando se estuda o sistema tributário brasileiro é a baixa tributação dos bancos. Em artigo de nossa autoria, batizamos essa situação de “paraíso tributário dos bancos” [4].

Seria impossível, neste artigo, relacionar a longuíssima série de decisões políticas que tem garantido esta desoneração injusta. Fiquemos nas mais recentes. A partir de 1996, a Lei 9.249 instituiu o conceito de “juros sobre o capital próprio”. Trata-se de uma medida artificial, que favorece os bancos e empresas bastante capitalizadas. Uma parte do lucro apurado pelas pessoas jurídicas é considerada despesa e, em vez de recolhida ao Tesouro — na forma de Imposto de Renda (IRPJ) e CSLL —, pode ser distribuída aos acionistas. É como se as pessoas físicas pudessem, ao fazer a declaração anual de Importo de Renda, deduzir, dos rendimentos obtidos, a remuneração financeira potencial de seu patrimônio.

O favorecimento pode ser constatado em números. Entre 2002 e 2004, os lucros de 216 empresas de capital aberto estudadas pelo jornal Valor saltaram de R$ 3,99 bilhões para R$ 49,72 bilhões — ou seja, multiplicaram-se por 12. No entanto, as provisões para pagamento de IR e CSLL aumentaram apenas seis vezes (de R$ 2,19 bilhões para R$ 12,28 bilhões). [5]. A redução da carga tributária é igualmente expressiva quando examinadas apenas as instituições financeiras. Nos últimos sete anos, seus lucros cresceram 5,5 vezes. Já a tributação — que incide sobre o resultado, e portanto deveria acompanhar este índice — aumentou apenas 2,7 vezes. A CSLL das instituições financeiras, um dos tributos que financia a seguridade social (Previdência, Assistência Social e Saúde), cresceu somente 122,76%.

Estima-se que, só em 2006, o mecanismo permitiu que bancos e empresas deixassem de pagar R$ 22 bilhões, em IR e CSLL. Sozinhos, os cinco maiores bancos nacionais pagaram a seus acionistas, a título de “juros sobre capital próprio” um montante de R$ 6 bilhões. O valor distribuído proporcionou uma redução nas despesas com encargos tributários desses bancos no montante de R$ 2,1 bilhões (IRPJ e CSLL).

Pouco mais tarde, em 2006, outro presente. O governo editou a MP 281, reduzindo a zero as alíquotas de IR e de CPMF para certos investidores estrangeiros no Brasil. As operações beneficiadas pela MP são cotas de fundos de investimentos exclusivos para investidores não-residentes, que possuam no mínimo 98% de títulos públicos federais. Novamente, o grande beneficiado é o setor financeiro. Após a MP 281, vem crescendo o interesse dos bancos estrangeiros com filiais no Brasil em emitir, no exterior, bônus indexados em reais. Eles lançam tais papéis pagando juros abaixo do Depósito Interfinanceiro (DI), e ingressam no país os recursos obtidos, utilizando-se da condição de favorecida de “investidores estrangeiros”. Compram, em seguida, títulos do Estado, remunerados segundo o DI. Ganham a diferença realizando uma operação de arbitragem.

Para que o “andar de cima” contribua, tributar a renda elevada e o patrimônio

Os Boletins de Arrecadação da Receita Federal revelam que, entre 2000 a 2006, os bancos recolheram ao Tesouro, na forma de Imposto de Renda e CSLL, apenas R$ 51,9 bilhões (em média, menos de R$ 7,5 bilhões anuais). Nesse mesmo período, só de Imposto de Renda, os trabalhadores pagaram R$ 233,8 bilhões [6].

Vimos, portanto, que há enorme espaço para uma maior tributação do sistema financeiro. Ainda que os bancos possam repassar parte de aumento de custo aos seus clientes, trata-se de uma medida importante, que provoca uma pequena mudança na estrutura do sistema tributário brasileiro, no caminho de recuperar a tributação direta, tão esquecida nos últimos anos.

O caminho da construção da justiça tributária passa pela mobilização da sociedade civil em defesa da maior progressividade dos impostos no Brasil, tributando a renda do “andar de cima” da pirâmide social do país, que há muito tempo beneficia-se de enormes privilégios fiscais. A pequena mudança na alíquota da CSLL, ainda que tímida, poderá ser um embrião de uma reforma mais profunda na estrutura tributária do país.

Outra pista para o debate sobre reforma tributária: apesar da enorme concentração patrimonial que marca o pais — as cinco mil famílias muito ricas (0,001% do total das famílias) têm patrimônio equivalente a 40% do PIB brasileiro [7] — os impostos que incidem sobre o patrimônio respondem por insignificantes 3,4% do montante de tributos arrecadado pela União, estados e municípios. Não seria hora de seguir o exemplo de tantos outros países e aumentar a tributação sobre este fator, como meio de obter justiça fiscal e assegurar serviços públicos de qualidade?

O “derretimento” do dólar e suas implicações para o Brasil.

O governo anunciou medidas para conter a valorização do real frente ao dólar na busca de impedir o que os economistas vêm classificando como “derretimento” da moeda norte-americana. Entre as medidas anunciadas estão a isenção do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) DE 0,38% sobre as exportações e a cobrança a alíquota de 1,5% de IOF sobre os investimentos estrangeiros que entrarem no país para aplicações de renda fixa. Anunciou, também, o fim da exigência de cobertura cambial para as exportações.

Na avaliação de Evilásio Salvador, assessor de Política Fiscal e Orçamentária do Inesc, as medidas são paliativas. No que se refere aos recursos especulativos, ele argumenta que são as taxas de juros os grandes atrativos para esse tipo de capital e o Banco Central do Brasil, pelas indicações, pretende elevar a taxa de juros na reunião de abril. Alega, ainda, que apesar da taxação em 1,5¨do IOF para investimento estrangeiro especulativo, a medida não retoma o mesmo patamar de incidência tributária existente em 2006.

Evilásio argumenta que a intenção do ministro da Fazenda de não permitir déficits nas contas externas poderia passar pela revogação do artigo 10 da Lei nº 9.249/1995 que isentou do imposto de renda a distribuição de lucros e dividendos, incluindo as remessas para o exterior.

Leia o artigo de Evilásio Salvador intitulado “Câmbio, imposto e economia em um país concentrador de renda”

 

 

 

Reforma Tributária – Uma “reforma” superficial e perigosa

Le Monde Diplomatique

Embora simplifique a arrecadação e combata a guerra fiscal, a mudança no sistema de impostos proposta pelo governo é uma oportunidade perdida. Ela evita promover, via tributos, a redistribuição de renda – e pode abrir caminho para o fim de conquistas históricas relacionadas à Seguridade Social

 

Evilásio Salvador

O governo enviou ao Congresso Nacional, por meio de Proposta de Emenda Constitucional (PEC), novo projeto de reforma tributária. Seu objetivo seria simplificar o sistema de impostos, eliminando alguns deles e acabando com a “guerra fiscal” entre os estados. Contudo, perde-se mais uma chance de debater princípios tributários inscristos na Constituição: em especial, a eqüidade, a progressividade e a capacidade contributiva. Ou seja, evita-se o caminho da justiça fiscal e social — um importante instrumento para a redistribuição da renda e a erradicação da pobreza sempre evitado pelos mais favorecidos. Há um aspecto ainda mais problemático: a “reforma” pode minar as bases do Orçamento da Seguridade Social. É ele que tem garantido a efetivação dos direitos relativos à Previência, Saúde, e Assistência Social alcançados na Constituinte, e parte da modesta redução de desigualdade ocorrida nos últimos anos.

Os principais pontos da proposta de “reforma” tributária são:

a) a criação de um Imposto sobre Valor Adicionado (IVA-F), com a extinção de cinco tributos federais (a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social – Cofins; a Contribuição para o Programa de Integração Social – PIS; a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico incidente sobre a importação e a comercialização de combustíveis – CIDE; e a contribuição social do salário-educação);

b) a incorporação da Contribuição Social do Lucro Líquido (CSLL) ao Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ);

c) a redução gradativa da contribuição dos empregadores para a Previdência Social, a ser realizada nos anos subseqüentes da reforma e definida em projeto de lei a ser enviado ao Congresso 90 dias após da promulgação da PEC;

d) a unificação da legislação do Imposto sobre Circulação de Mercadoria e Serviços (ICMS), a ser realizada por meio de lei única nacional e não mais por 27 leis das unidades da federação;

e) a criação de um Fundo de Equalização de Receitas (FER), para compensar eventuais perdas de receita do ICMS por parte dos estados;

f) a instituição de um Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional (FNDR), permitindo a coordenação da aplicação dos recursos da política de desenvolvimento regional.

O principal objetivo da reforma é simplificar a legislação tributária — tanto por meio da redução das legislações do ICMS, quanto pela eliminação de tributos, trazendo maior racionalidade econômica e amenizando as obrigações suplementares das empresas com custos de apuração e recolhimento de impostos. Além disso, a cobrança do ICMS no estado de destino da mercadoria deverá eliminar a “guerra fiscal”.

Do ponto de vista técnico, há racionalidade. Há medidas para evitar a guerra fiscal e se reduz a burocracia com recolhimento de impostos. Mas os tributos continuam transferidos ao consumidor

A criação do IVA-F vai reduzir a cumulatividade do sistema tributário. Hoje a CIDE-Combustíveis e parte da arrecadação da Cofins e da Contribuição para o PIS são cobradas diversas vezes sobre um mesmo produto – isto é, em todas as etapas de produção e circulação da mercadoria. O IVA-F vai tributar apenas o valor adicionado em cada estágio da produção e da distribuição. Assim, o tributo incidirá sobre a diferença entre o preço de venda do produto e o custo da aquisição, nas diversas etapas da cadeia produtiva. Embora mais adequado, o novo modelo não corrige uma distorção típica dos tributos indiretos: eles são quase sempre repassados ao preço final do bem ou serviço, sendo pagos, portanto, pelo consumidor final.

Aliás, o governo deveria aproveitar a oportunidade para regulamentar o Art. 150, § 5º, da Constituição. Diz ele: “A lei determinará medidas para que os consumidores sejam esclarecidos acerca dos impostos que incidam sobre mercadorias e serviços”. Trata-se de uma importante conquista, que pode assegurar maior transparência na arrecadação dos tributos. Sua efetivação, contudo, tem sido sistematicamente adiada.

A proposta de reforma traz avanços para as empresas, com a simplificação do recolhimento tributário. É algo que pode resultar no aumento da eficiência econômica e da produtividade. Porém, a marca principal do sistema tributário brasileiro, que é a sua enorme regressividade, permanece indelével.

Para começar a corrigi-la, o governo poderia abrir, entre a sociedade, um debate sobre os impostos que incidem sobre o patrimônio. Convém lembrar que as 5 mil famílias mais ricas do Brasil têm em patrimônio algo em torno de 40% do PIB brasileiro [1]. Ainda assim, a arrecadação de tributos sobre o patrimônio é insignificante: eles responderam, em 2007, por apenas 3,3% do montante arrecadado. A proposta de “reforma” tributária silencia sobre o assunto.

Outra implicação importante da “reforma” diz respeito ao financiamento da Seguridade Social. Os três mais importantes tributos que a financiam no Brasil serão modificados. A Cofins e a CSLL serão extintas; e haverá desoneração da contribuição patronal sobre a folha de pagamento. Para a Seguridade, passam a ser destinados 38,8% do produto da arrecadação dos impostos sobre renda (IR), produtos industrializados (IPI) e operações com bens e prestações de serviços (IVA-F). Em teoria, não há perdas: esse percentual corresponde exatamente ao percentual que os impostos vinculados à Seguridade (Cofins e CSLL) representaram em relação à receita tributária obtida por meio de uma cesta mais ampla de tributos (onde se incluem IR, Cofins, PIS, CIDE, Salário-educação e IPI).

Os grandes desafios da sociedade civil: evitar a diluição do orçamento próprio da Seguridade Social, assegurar as conquistas da Constituinte, retomar a idéia de Justiça Tributária

Em termos políticos, a mudança é grave. Um dos maiores avanços da Constituição, em termos de política social, foi a adoção do conceito de Seguridade Social, englobando em um mesmo sistema as políticas de Saúde, Previdência e Assistência Social [2]. Para assegurar a manutenção desta Seguridade ampliada, a Constituição multiplicou também as fontes de seu financiamento O artigo 195 estabeleceu que elas deveriam incluir, além dos aportes dos empregados e empregadores, os recursos provenientes das contribuições sociais sobre o lucro, a receita, o faturamento, a importação de bens e serviços e a receita de concursos de prognósticos (loterias).

Este princípio da diversidade das bases de financiamento da seguridade social estará em risco, caso a “reforma” seja aprovada na versão proposta pelo Executivo. Restarão inscritos no Artigo 195, como bases de financiamento da seguridade social, a contribuição sobre a folha de salários, a contribuição do trabalhador para a Previdência Social e a receita de loterias — sendo que a contribuição sobre folha de pagamento deverá ser reduzida, ao longo dos próximos anos. A idéia de orçamento de Seguridade Social diversificado em fontes de financiamentos retroagirá à situação de antes da Constituinte. Haverá perda da exclusividade de recursos para a Seguridade Social, que poderá ficar fragilizada em seu financiamento, dependendo de uma partilha do IVA-F e da arrecadação das contribuições previdenciárias.

A reforma tributária reforça ainda mais uma idéia em vigor desde a fusão do fisco, que resultou na criação Secretaria da Receita Federal do Brasil (SRFB). Sustenta-se que o orçamento da União é único, desconhecendo a existência do orçamento específico da Seguridade Social. A lei assegura a destinação das contribuições previdenciárias para o pagamento dos benefícios previdenciários, creditados diretamente no Fundo do Regime Geral de Previdência Social sob a gestão pelo INSS (art. 5º, inciso II). Mas a criação da SRFB transferiu a competência de cobrar a contribuição previdenciária sobre a folha de pagamento do ministério da Previdência para o da Fazenda.

Mesmo que seja garantido um repasse à seguridade social, com base em parte do orçamento fiscal, deixarão de existir as receitas próprias da Seguridade Social, alocadas em orçamento exclusivo, como determina Constituição. Com o tempo, a noção de separação da Seguridade Social vai-se desvanescer – o que poderá facilitar políticas de redução (“flexibilização”) de direitos, defendidas por diversas correntes políticas.

Evitar este retrocesso será, provavelmente, a principal batalha dos movimentos sociais, na tramitação da nova “reforma” tributária. Mas a sociedade civil não pode ficar apenas na defensiva. Por isso, a coluna debaterá, na próxima edição, os caminhos para criação de princípios de justiça tributária no Brasil.

Mais

Evilásio Salvador é colunista do Caderno Brasil de Le Monde Diplomatique. Edição anterior da coluna:

Por que os bancos choram
Há duas razões para a gritaria dos banqueiros, após o aumento de impostos decidido pelo governo. Rompeu-se a lógica de conceder sucessivos benefícios fiscais ao setor financeiro. E fica claro que é possível uma reforma tributária verdadeira, capaz de reduzir a concentração de renda

Os bilhões que nos tomaram
Como a Desvinculação de Receitas da União (DRU) desvia todos os anos bilhões de reais da Saúde, Educação e Previdência e os transfere para os mercados financeiros. Radiografia de um mecanismo que a mídia interesseiramente esconde

CPMF: muito além dos clichês
Às vésperas decisão do Congresso, uma análise em profundidade sobre o papel do tributo. Por que é regressivo. Qual sua importância no combate à sonegação. E o principal: como iniciar a construção de um sistema de justiça fiscal no país. Nova coluna do Diplô tratará permanentemente do tema

[1] Conforme POCHMANN, Marcio et al (Orgs). Os ricos no Brasil. São Paulo: Cortez, 2004

[2] BOSCHETTI, Ivanete. SALVADOR, Evilásio. “Orçamento da Seguridade Social e política econômica: perversa alquimia”. Serviço Social e Sociedade. São Paulo, v. 87, 2006, p. 25-57.

Gasto social e política macroeconômica – trajetória e tensões no período de 1995 a 2005

Este trabalho analisa a trajetória do Gasto Social Federal (GSF) de acordo com a metodologia de áreas de atuação, desenvolvida na Diretoria de Estudos Sociais (Disoc) do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Atualiza-se a série iniciada em 1995 até o ano de 2005, completando assim um período de 11 anos. Constata-se o crescimento do Gasto Social Federal, liderado pelas áreas de previdência e assistência social, tanto em seus valores reais, quanto em proporção do Produto Interno Bruto (PIB). Todavia, discute-se que tal crescimento permitiu uma expansão na proteção social proporcionada pelas políticas públicas – que não deve ser subestimada.

A trajetória do GSF revela-se também bastante irregular e instável no período, e um segundo objetivo deste texto consiste em relacionar essa instabilidade à condução da política macroeconômica. Observa-se que as mudanças ocorridas na gestão da política econômica – que delimitam claramente os três mandatos presidenciais deste período – condicionam fortemente a trajetória do GSF. Para tal, contextualiza-se esse gasto diante da trajetória da despesa financeira do governo federal e ao desempenho da carga tributária.

 

Gasto Social e Política Macroeconômica

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