Primeiras reações ao anúncio do Ministério da Fazenda

 

  1. Vê-se que há um esforço por parte do governo federal para que todos paguem a conta. Contudo, continuam sendo as pessoas empobrecidas a serem as mais penalizadas, pois não deveriam contribuir com nada, ao contrário, dever-se-ia aumentar os benefícios voltados a este público diante da enorme dívida social, ambiental e climática que caracteriza o Brasil de hoje.
  2. Há que se reconhecer o ganho efetivo para as pessoas empobrecidas, que é a isenção de imposto de renda para quem ganha até cinco mil reais por mês.
  3. O problema é a regra fiscal leonina. Sem dúvida, ela representa um avanço em relação ao Teto de Gastos, mas continua penalizando as pessoas empobrecidas, uma vez que a austeridade imposta pelo governo as atinge proporcionalmente mais que o resto da população. Apesar do aumento real das receitas (“as receitas crescem, em 2024, 9,7% acima da inflação – 7,4% se desconsiderados os fatores não recorrentes. As receitas novas são equivalentes a mais de 1 p.p. do PIB”), o governo diz que é preciso cortar gastos para “o crescimento das despesas obrigatórias com os limites da nova regra fiscal para continuarmos no caminho certo”.

Sobre a contribuição das pessoas empobrecidas

  1. Condiciona-se o aumento do salário mínimo acima da inflação à regra fiscal: ou seja, as rendas das pessoas que conformam a base da pirâmide social – assalariadas ou beneficiárias de programas sociais, como a Previdência Social, Benefício de Prestação Continuada, Seguro Desemprego, Abono Salarial – serão corrigidas pela inflação e terão um aumento real limitado ao teto da regra fiscal, de 2,5%. Trata-se de mais um freio ao crescimento dos rendimentos dos empobrecidos.
  2. Diminui o número de pessoas que acessam o Abono Salarial. Atualmente, se beneficiam as pessoas inseridas no mercado formal de trabalho que ganham até 2 salários-mínimos. O governo irá diminuir progressivamente este teto para 1,5 SM até 2035. Tal medida irá contribuir para aumentar as desigualdades, pois reduz a renda das pessoas empobrecidas. E isso num país no qual os ricos ficam cada vez mais ricos. Análise recentemente publicada pelo economista Sergio Gobetti, do Ipea, revela que a concentração de renda no topo da pirâmide social brasileira aumentou expressivamente entre 2017 e 2022, pois os rendimentos dos mais ricos cresceram muito mais do que a renda média brasileira. Enquanto a maioria da população adulta (95%) viu sua renda aumentar apenas 1,6% em termos reais no período de cinco anos, a variação registrada pelos 0,1% do topo foi de 42% acima da inflação. E entre os 15 mil milionários que compõem o 0,01% mais rico, o crescimento foi ainda maior: 49%.
  3. Dificulta o acesso ao Benefício de Prestação Continuada voltado para pessoas empobrecidas idosas ou com deficiência. As novas regras do governo impõem mais barreiras para gozar de um atendimento digno: doravante passam a contar a renda de cônjuge e companheiro/a não coabitante e renda de irmãos, filhos e enteados (não apenas solteiros) coabitantes. Ou seja, uma mãe que tem um filho com deficiência e não trabalha para poder cuidar dele, mas tem um companheiro que mora em outra casa e ganha 2 SM, não consegue acessar o benefício, porque a renda familiar per capita dos 3 é de 0,66 SM, maior que o corte de acesso, de 0,25 SM. É uma situação bastante revoltante que, mais uma vez, penaliza as mulheres, que são as que cuidam das pessoas com deficiência e das pessoas idosas. Além disso, será efetuado recadastramento com biometria, o que, novamente, prejudica as pessoas com dificuldade de locomoção, como são as pessoas idosas e as pessoas com deficiência.
  4. Prorroga a DRU até 2032. A Desvinculação de Receitas da União (DRU) é um mecanismo que permite ao governo federal usar livremente 30% de todos os tributos federais vinculados por lei a fundos ou despesas. A principal fonte de recursos da DRU são as contribuições sociais, que respondem a cerca de 90% do montante desvinculado. Essa medida retira das políticas públicas recursos que são utilizados, no geral, para pagamento da dívida. O governo calcula retirar das políticas públicas cerca de R$ 26 bilhões nos próximos 6 anos (2025 a 2030). A DRU associada a cortes e bloqueios são mecanismos de contenção de gastos primários que, novamente, penalizam as pessoas empobrecidas.
  5. Com relação à educação, o governo em seu pacote transfere aos entes subnacionais, com recursos do Fundeb, parte de sua responsabilidade com a educação em tempo integral, um dos compromissos de campanha. A complementação do Fundeb, feita pela União, vai para os estados e municípios com menor ou nenhuma capacidade arrecadatória, como é o caso de muitos municípios que vivem apenas do fundo de participação e os repasses estaduais e outros nacionais. Sabemos que boa parte deles não consegue sequer pagar o piso salarial da educação básica e agora terão de arcar com parte da oferta de ensino integral com recursos do Fundeb, o que provavelmente não ocorrerá, ampliando desigualdades regionais.

 

Sobre as contribuições das Forças Armadas

  1. Acaba-se com benesses concedidas às Forças Armadas que há muito tempo deveriam ter sido extinguidas como, por exemplo, estabelecer uma idade mínima para reserva remunerada e por um fim nas transferências de pensão (finalmente, as filhas de militares deixarão progressivamente de receber as pensões de seus pais).

 

Sobre as contribuições do Congresso Nacional

  1. Há limites ao crescimento das emendas parlamentares (o arcabouço fiscal e os cortes ou bloqueios também se aplicam às emendas) e destinação de parte delas para a Saúde (emendas de Comissão). Não há dúvida que restringir as emendas seja importante devido ao seu crescente impacto nos gastos do Executivo. Mas, por outro lado, destinar emendas à Saúde disfarça um enorme problema, pois engessa os recursos da pasta. Com efeito, parece que as verbas para a área aumentam quando na realidade impossibilitam que o Ministério faça um planejamento eficiente de suas despesas conforme os problemas nacionais, uma vez que tem que gastar de acordo com o indicado pelo parlamentar ou pela Comissão.

 

Sobre as contribuições do setor empresarial

  1. Há limites potenciais ao crescimento de benefícios fiscais no futuro, mas não há revisão dos atuais: se houver déficit primário de 2025 em diante, no exercício seguinte à apuração do déficit fica vedada a criação, majoração ou prorrogação de benefícios tributários. Na realidade, não há qualquer proposta de avaliação ou revisão das benesses tributárias destinadas ao setor empresarial hoje. Sabe-se que boa parte delas é ineficiente, este é o caso, por exemplo, das renuncias fiscais do setor de óleo e gás, que foram da ordem de R$ 66 bilhões em 2023, de acordo com estudo do Inesc. São vultosos recursos que irrigam um setor que faz mal à saúde do planeta.

 

Sobre as (poucas) contribuições das pessoas mais ricas

  1. Aumento do imposto de renda das pessoas mais ricas. Anuncia-se que quem possui renda e não paga imposto em função das benesses fiscais existentes, uma renda superior a R$ 50 mil por mês, ou seja, R$ 600 mil por ano, vai passar a pagar até 10% de imposto. É muito pouco, especialmente quando se sabe que os mais ricos estão ficando cada vez mais ricos no Brasil. A contribuição desse grupo da população ao esforço fiscal nacional, que está entre os 2% mais ricos do país, tem que ser bem maior.

 

Considerações finais

  1. Trata-se de pacote injusto, diferentemente do que afirma o governo federal. Com exceção da isenção de imposto para quem tem renda de até R$ 5 mil, o resto das medidas retira vultosos recursos que deveriam se destinar as pessoas empobrecidas. Não se trata de cortar ou diminuir gastos, mas, ao contrário, é preciso aumentá-los diante das imensas mazelas sociais, ambientais e regionais que caracterizam o Brasil.
  2. O pacote é racista e sexista: as pessoas que se beneficiam dos recursos cortados são majoritariamente negras e mulheres. Mais uma vez, são eles e elas que terão que pagar o custo de manutenção das regras fiscais. Com exceção da promessa de que os muito ricos pagarão um pouco mais de impostos, ainda assim, muito distante do que proporcionalmente pagam os demais, não há medidas concretas que façam com que os que mais têm – empresas e pessoas – contribuam com o ajuste.
  3. As contas não fecham, pois, ademais de retirar recursos das políticas públicas garantidoras de direitos humanos, não se menciona a necessidade de financiamento adicional que será necessário para enfrentar as mudanças climáticas. Calcula-se que o impacto econômico causado pela enchente no Rio Grande do Sul em 2024 chegou a R$ 87 bilhões. E esse é apenas um dos episódios dos muitos que estão por vir. E, novamente, as pessoas mais afetadas pelas consequências do aquecimento global são negras e mulheres.

COP 29: hipocrisia e frustração

Que a vida é injusta, já sabemos. Que o mundo é desigual também sabemos. E sabemos, mais uma vez, que a hipocrisia é uma característica constitutiva dos países ricos, é parte de sua natureza. Afinal, quem se enriqueceu às custas da pobreza e da vida do sul global precisa se manter em pé custe o que custar. São defensores dos direitos humanos e da sustentabilidade ambiental desde que seja em seus territórios. Defendem seu próprio umbigo. O meio ambiente, que historicamente depredaram, e os seres, que mataram e escravizaram para construírem o sistema capitalista pungente que lhes permitiram acumulação de riqueza vergonhosa, não parecem sensibilizá-los quando estão na mesa da negociação sobre a trágica crise climática. E, pasmem!!! Crise causada pelo modelo de desenvolvimento que esses mesmos países criaram e que se alimentam inescrupulosamente até hoje.

Esse preâmbulo indignado é porque o resultado da COP29, de Baku, no Azerbaijão, é cômico, se não fosse trágico. Baku foi considerada a COP do financiamento. Esperava-se que diante de tantos desastres climáticos no mundo houvesse uma tomada de consciência para ampliar a ambição, alcançando os patamares mínimos exigidos pelos países em desenvolvimento.

COP do financiamento?

Estamos falando de números apresentados pelos países em desenvolvimento da ordem de 1,3 trilhões de dólares. Mas, os países ricos não aceitaram. Como sempre, regateiam e fogem de suas efetivas responsabilidades. Os US$ 100 bilhões para combater a mudança climática apresentados na COP15, em 2009, e fechados na COP21, em 2015, até hoje sequer foram implementados.  Nove anos depois, a oferta de Meta Quantificada Global de finanças (NCQG na sigla em inglês) é de US$ 300 bilhões até 2030, com a promessa de que, em algum momento, num futuro incerto, obtenham um valor de US$1,3 trilhão. E o mais criminoso é que parte desse financiamento, segundo a proposta dos países desenvolvidos, deverá ser por meio de empréstimos – o que aumentará as dívidas externas dos países e pessoas já em situação de extrema vulnerabilidade.

Diga-se de passagem, que a conta dos movimentos sociais e ONGs que acompanham essas negociações são de cinco trilhões, só para começar. Neste debate sobre financiamento, segundo a Ministra Marina Silva, houve um pequeno avanço em adaptação. Entretanto, absolutamente nada para Perdas e Danos, conforme aprovado na COP28, de Dubai, nos Emirados Árabes. Na real, saímos de mão abanando nessa dança de valores, que sequer sabemos se serão efetivadas, vis-à-vis, a experiência com os valores aprovados na COP15 e até hoje só na intenção.

Façamos as contas

Na COP 29, sociedade civil pede financiamento dos países ricos para combater mudanças climáticas

A título de comparação, o desastre que aconteceu com as chuvas no Rio Grande do Sul este ano custou até agora cerca de US$ 17 bilhões. Os US$ 300 bilhões oferecidos não resolvem quando pensamos nos cerca de 45 países menos desenvolvidos (LDCs). Façam as contas! Segundo um estudo da Chamber of Commerce (ICC) o valor da perda econômica relativo aos desastres climáticos, baseados em aproximadamente quatro mil eventos pelo mundo afora, em seis continentes, de 2014 a 2023, foi de US$2 trilhões.

Sequer o reconhecimento das responsabilidades comuns, porém diferenciadas (CBDR na sigla em inglês) está sendo respeitada. Querem enfiar, goela abaixo dos países em desenvolvimento, a responsabilidade pela histórica destruição do meio ambiente, da biodiversidade e pela enorme emissão de gases de efeito estufa. Inclusive daqueles que não tiveram o menor benefício desse mesmo modelo econômico.

Lobby do petróleo

Parece que a única negociação que caminhou foi relativa ao Artigo 6 do Acordo de Paris, que estabelece mecanismos para o funcionamento do mercado de carbono, demonstrando que financeirização da natureza é o caminho que mais se consolida ao longo das COPs.

O debate sobre a saída da produção e consumo de combustíveis fósseis também passou ao largo. A declaração de intenção registrada na COP28 não passou disso: uma mera intenção. O lobby da indústria do Petróleo conseguiu retirar qualquer menção sobre o tema, embora seja essa indústria a principal responsável pelos avanços da tragédia climática.

Portanto, saímos de mais uma COP com um sentimento de frustração e de repulsa pela maneira com que os países desenvolvidos se apresentam. Não só pela demonstração de poder, não só pela hipocrisia, mas  também pela contraditória desumanização que demonstram ter em suas políticas externas e nos debates multilaterais. Não tem faltado dinheiro para a indústria da guerra e da destruição, porém, não se comprometem com equilíbrio ecológico e com reversão da crise climática.

COP 30 no Brasil

Vai sobrar para o Brasil. Existe uma expectativa muito grande entre os representantes oficiais dos países membros, assim como a enorme expectativa da sociedade civil mundial, que no Brasil haverá muito mais espaço para demonstração de suas posições. Essa expectativa vem desde a COP26 realizada em Glasgow, na Escócia, num mundo pós pandemia, e nas subsequentes nos Emirados Árabes (27) e no Azerbaijão (28), estes últimos sistemas políticos autoritários que não permitiram manifestações nas ruas.

Contudo, no Brasil, em 2025, na COP30, não será fácil. Além das dificuldades do mundo multilateral que caminha muito devagar e incapaz de responder às situações reais da emergência climática, teremos o país-império, EUA, fora da COP e, mais que isso, trabalhando contra. E para não ficar atrás, teremos a Argentina de Milei, em nosso continente, fazendo essa mesma força contrária também. Sem falar de nossas próprias contradições com relação ao desmatamento e a produção de novos poços de Petróleo na Amazônia.

Segundo o professor Paulo Artaxo, cientista brasileiro membro do IPCC, “com as atuais emissões de 42 bilhões de toneladas de dióxido de carbono sendo lançadas na atmosfera por ano chegaremos a um aquecimento médio de 3,2 graus centrígrados, a questão do 1,5C graus só existe nas mesas de negociações diplomáticas, a ciência diz que no atual patamar de emissões não é mais possível manter essa temperatura …”

Então…. fracasso que chama?

Sobre as emendas, pacote fiscal e o fetiche da austeridade

O pacote econômico anunciado pelo governo refere-se a diversos pontos importantes, um deles são as emendas parlamentares, porém, como depende de aprovação legislativa, a proposta é tímida neste quesito.  O que está previsto é que o crescimento do montante deve estar de acordo com o arcabouço fiscal e que as emendas de comissões terão de ter 50% destinados à saúde, o que já havia sido enunciado na Lei Complementar 210/2024, aprovada após os questionamentos do Supremo Tribunal Federal (STF).

Então, apesar das propostas do Governo Federal e da aprovação da Lei Complementar, ao que tudo indica, a farra das emendas continua, visto que as travas criadas pela legislação não serão suficientes para baixar a grande quantia destinada para este fim, ou mesmo impedirá que as emendas de bancadas estaduais não sejam fatiadas, só precisam ter ao menos 10% do valor e ainda com ressalvas ou podem ser destinadas a outra unidade federativa desde que “de interesse nacional”, mas não está dito o que é interesse nacional, fica a “critério do “cliente.

Desvio de função

Com relação às emendas pix, seguem sendo permitidas, agora com um pouco mais de controle dos órgãos. Está dito textualmente na Lei que devem se submeter ao Tribunal de Contas da União, além dos estaduais, percebemos que há um avanço com relação à transparência, mas não com relação ao escoamento de recursos que poderiam ser utilizados para investimento em ações prioritárias do Plano Plurianual. Há um desvio de função do Legislativo, que não deveria executar um montante deste tamanho do orçamento público.

Esperamos que os mecanismos criados pela nova legislação consigam coibir as emendas “pix”, que são enviadas aos caixas das prefeituras sem lastro, ou sem estarem vinculadas a algum programa do Plano Plurianual (PPA). Essa prática é considerada inconstitucional, visto que o Art. 166 da Constituição Federal exige que as emendas sejam compatíveis com o PPA e com a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO).

Contudo, muitas emendas individuais, que se tornaram impositivas desde 2015, estavam sendo executadas sem este vínculo, permitindo que os recursos chegassem às prefeituras com livre execução, sem o alcance dos órgãos de controle. E por que isso é possível? Em 2019, o Congresso Nacional aprovou outra alteração ao Art. 166 da Constituição, incluindo nova modalidade para as emendas impositivas, que a partir de então, poderiam ser enviadas para estados, municípios e Distrito Federal como transferência especial, dando aos entes que recebem o recurso total liberdade de uso.

Assim, constitucionalizaram a emenda “pix”, gerando um conflito com a exigência anterior de vinculação ao PPA. A medida foi a estratégia encontrada para reduzir os efeitos da ação do STF contra o chamado orçamento secreto, repartidas de forma aleatória, de acordo com os interesses de quem as distribuía, utilizadas também sem lastro.

Quanto custam as emendas “pix”

E estamos falando de grandes montantes de recursos para as emendas em geral, que foram crescendo ano a ano, a partir de 2015, quando totalizaram, de acordo com o Siga Brasil e atualizados pelo Indice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), R$ 71,38 milhões de execução financeira (Pagos + Restos a pagar), chegando em 2023 (último ano finalizado) em R$ 32,7 bilhões executados e R$ 30,69 bilhões de restos à pagar inscritos, que provavelmente são consequência de emendas para ações plurianuais.

E deste montante, quanto foi destinado às emendas pix? Em 2023, ano que antecederam as eleições municipais, os parlamentares enviaram às suas bases, além dos recursos caracterizados como transferência com fim definido, ou seja, ligadas aos programas do PPA, também as emendas liberadas para qualquer finalidade. O montante das transferências especiais ficou em R$ 9,21 bilhões. Em 2024, já foram executados R$ 4,53 bilhões, no entanto, ainda há mais para executar, pois o valor empenhado para esta modalidade é R$ 7,76 bilhões.

Quem “mandou um pix”, se elegeu?

Ainda não temos pesquisas que conectem os valores recebidos pelas prefeituras e o sucesso com o resultado das eleições, porém, há algumas pistas que indicam que o crescente recurso de emendas facilitou a vida dos parlamentares em suas bases eleitorais. A média histórica para candidatas/os que buscaram a reeleição para prefeitas/os, de acordo com dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ficava em cerca de 60% a 65%, com exceção de 2016, quando esta média caiu para cerca de 40%. Em 2024, esta média chegou a 80%. Além disso, entre os 100 municípios recordistas de emendas pix, esse índice sobe para mais de 90%.

Além disso, estamos sob a égide da austeridade fiscal, vejamos o pacote lançado pelo Governo Federal, que mesmo dizendo querer repartir os prejuízos com todas as pessoas, como vivemos em uma realidade extremamente desigual, alterar as regras do BPC, reduzindo as possibilidades de dois idosos sem outros recursos, que coabitam, receberem o recurso, por exemplo, ou reduzindo o abono salarial, mesmo que paulatinamente, para quem recebe até 1 salário mínimo e meio, ao invés de dois salários, como ocorre hoje. Ou permitindo que os recursos para a educação em tempo integral sejam retirados do Fundeb, desobrigando o Ministério da Educação a destinar outros recursos para este fim, ou mesmo achatando o salário mínimo, não serão recompensados apenas por ampliar a arrecadação no andar de cima da pirâmide. É didático, mas bastante insuficiente, no entanto, foi o suficiente para que “os mercados” começassem a gritar, pois nesta terra vilipendiada há séculos, qualquer coisa que se queira cortar de cima, a grita é geral, até mesmo de onde não se tem.

A tragédia é agora. Quais serão as respostas da COP29?

Estamos em 2024 e mais uma Conferência das Partes, a COP, se realiza, dessa vez em Baku, capital do Azerbaijão. O Inesc vem acompanhando o debate sobre o clima desde a Rio 92, as sequências até a Rio + 20 e, posteriormente, as dezenas de COPs.  Estamos agora na 29ª edição desta conferência, que já passou pelo Protocolo de Quioto (1997) e o Acordo de Paris (2015).

De lá pra cá, ocorreram muitos debates e negociações, muitos relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC na sigla em inglês), mostrando como as emissões de gases de efeito estufa vem acelerando o aquecimento do Planeta e as trágicas consequências decorrentes desse fato. Na realidade, todos os prognósticos estão se antecipando, evidenciando que não se deveria questionar a tragédia climática. Não é mais uma questão sobre se vai acontecer, mas o que já está acontecendo.

Isso porque, de um lado, falta vontade política efetiva para uma mudança real de modelo de desenvolvimento.  A busca por uma transição energética radical e sustentável ainda encontra forte resistência das grandes corporações da mineração, do combustível fóssil, ou seja, dos donos do capital. E mesmo a transição da matriz energética, apresentada como uma energia limpa, não respeita os modos de vida das comunidades locais, dos povos indígenas, quilombolas, entre outros. Ou seja, não se mostra referência para transição necessária e urgente, mas que deve ser socialmente justa e ambientalmente sustentável.

Do outro lado, o debate sobre financiamento para mitigação, adaptação e perdas e danos e para manutenção das florestas que não avança há muito tempo. Na COP29 um dos temas centrais relativos ao financiamento é a nova meta quantificada coletiva (NCQG na sigla em inglês). Os países, do Norte e do Sul global, devem se comprometer com metas comuns e transparentes. Esse debate é uma das espinhas dorsais da negociação iniciada no Egito e que deve medir o sucesso ou não para sua implementação em Baku.

A regulamentação do mercado de carbono nas negociações do clima também se encontra em um momento complexo, tendo na mesa decisões centrais, tais como qual instância supervisionará a compra e a venda, quais os critérios de transparência das transações, qual a destinação dos recursos etc.

COP 30 no Brasil

Segundo os representantes do governo brasileiro, a expectativa é fechar novos acordos sobre estes temas em Belém, no próximo ano.  O Brasil espera que até a COP30 a regulamentação da compra e venda esteja aprovada no país, uma vez que já foi aprovada no Senado Federal e encaminhada para a Câmara dos Deputados.

Entretanto, a realidade vem mudando de forma muito dinâmica, como sabemos. Os EUA acabam de eleger um presidente que já anunciou que sairá dos debates da COP e que, como já é notório, é negacionista, não acredita nas instâncias multilaterais de negociação e muito menos que existe mudança climática causada pelo modelo de exploração capitalista. A crise de governança global mostra um multilateralismo débil e incapaz de responder às urgências, tais como guerras, desastres climáticos, migrações forçadas entre outras. Os EUA são um dos maiores responsáveis pelas emissões dos gases de efeito estufa.

As perguntas que ficam são: qual será a nova estratégia para minimizar o tamanho da tragédia que está desenhada pela realidade concreta? A COP será capaz de construir consenso mundial nesse contexto? O que esperar da COP 30 no Brasil? Qual será o poder real de influência da sociedade civil democrática nas decisões?

Na seca ou na chuva, no bolso e no apagão, quem paga a conta é a população!

A recorrência dos apagões nas cidades brasileiras, com maior visibilidade em São Paulo, desnuda a baixa resiliência do sistema elétrico do nosso país e a ineficiência do setor privado frente às mudanças climáticas. Bastam poucos minutos de chuvas e ventos intensos para que o sistema de distribuição de energia elétrica se desorganize, deixando as cidades imersas em um verdadeiro caos. 

É o que está acontecendo em São Paulo e região metropolitana nos últimos dias. 

Mais de um milhão de pessoas ficaram por longas horas às escuras, sem a resposta das prefeituras nem  da empresa de distribuição de energia, responsável pela manutenção do sistema.

Em São Paulo, desde 2018, quando a Enel assumiu o controle da concessão federal da distribuição, houve uma redução do quadro de funcionários. Isso ocorreu anos após a privatização da distribuição de energia, efetivada em 1998. Esse é o retrato da maioria dos estados onde a privatização do setor elétrico foi concretizada. Em momentos como o que ocorreu na capital paulista na semana passada, com muitas quedas de árvores, cabos e transformadores danificados, as empresas não têm equipe suficiente para restabelecer tempestivamente o serviço. 

Ao longo dos últimos anos isso tem se tornado recorrente, não só na capital paulista, o que revela uma simbiose entre as mudanças climáticas, a privatização e a vulnerabilidade do sistema elétrico. Sem funcionários suficientes, sem investimentos no setor adequados e sem  um plano de adaptação, os serviços de energia ficarão ainda mais comprometidos, ampliando as mazelas sociais nas cidades.

Quando não é a chuva, é a seca!

A escassez hídrica, resultado da falta de chuvas nos últimos meses, comprometeu os reservatórios das hidrelétricas, que representam a principal fonte de geração de eletricidade no Brasil, presente em todas as regiões e bacias hidrográficas do país. Com isso, para garantir a segurança energética, o Operador Nacional do Sistema acionou termelétricas movidas a combustível fóssil, gerando energia de forma mais cara.

A conta dessa instabilidade é paga pela população, mas não de forma equitativa. As bandeiras tarifárias, que refletem os custos adicionais, são cobradas apenas dos consumidores no Ambiente de Contratação Regulado (ou dos pequenos estabelecimentos), isentando grandes empresas que consomem energia em maior escala no Ambiente de Contratação Livre.

Em setembro deste ano, a Aneel anunciou a cobrança, a toda população brasileira, da Bandeira Vermelha Patamar 2, que terá um custo de R$ 7,877 a cada 100 kWh consumidos a partir de outubro. Desde julho, os consumidores regulados, incluindo os de baixa renda, já enfrentavam a Bandeira Vermelha Patamar 1, com um valor de R$ 4,463 por 100 kWh. No caso da população paulistana, além de ter de pagar uma conta mais cara,  ficará vários dias sem o fornecimento da energia elétrica, sem que a concessionária consiga contornar a situação e com o prefeito se omitindo diante do cenário alarmante.

Este quadro expõe a fragilidade e a injustiça do sistema elétrico brasileiro. Em um contexto de mudanças do clima, onde, ao fim e ao cabo, quem paga a conta é a população. 

É imprescindível que o Estado brasileiro reassuma a responsabilidade pela nossa segurança energética e pela adaptação das cidades frente aos eventos climáticos extremos. Somente assim poderemos construir um sistema mais resiliente e justo para todos e todas. 

*Cássio Cardoso Carvalho é assessor político do Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos).

Dia das Crianças e a prioridade absoluta reduzida

“É um humano que todos temos que apreciar”. Este é o conceito que Johana Villa, de 8 anos, constrói sobre criança para o livro “Casa das Estrelas” organizado por Javier Naranjo. Ainda na introdução do livro, Naranjo reflete sobre a escolha de palavras de Johana, em especial a utilização da palavra “temos”, que indica o dever ou a obrigação de todas as pessoas sobre essa “apreciação” da criança. O conceito construído por Johana aponta para a responsabilidade que a sociedade e o poder público têm sobre a infância , mas provoca pensar se estamos caminhando e como caminhamos pela garantia de direitos das crianças e adolescentes no Brasil.

A atenção às infâncias e adolescências é consolidada na nossa legislação pelo Art. 227 da Constituição Federal de 1988 e pelo Art. 4 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Eles partem do princípio da prioridade absoluta, indicando que crianças e adolescentes tenham preferência no acesso às políticas públicas e na formulação e execução do orçamento público.

Adultocentrismo

As legislações abordam a criança e o adolescente no singular, o que provoca a reflexão sobre qual dedicação e compromisso é empenhado quando pensamos nas infâncias e adolescências a partir de uma cultura que encaixa todas as particularidades e vivências num único modelo de ser. Partindo de olhares pautados no adultocentrismo, se constrói uma ideia de criança atrelada à inocência e fragilidade, mas também à incapacidade e falta de experiência como justificativas de silenciamento e desconsideração de suas opiniões, presença, e de seu poder de escolha em espaços de decisão que impactam as estruturas sociais, culturais, pedagógicas e políticas.

Essa mesma cultura, que estigmatiza e inferioriza as diversas formas de ser criança e ser adolescente, é disseminada dia a dia em termos como “infantilizar” ou “criancice” utilizados para reprovar falas e posturas. Por que ser criança e adolescente é reprovável? Por que tanta dificuldade em encarar com seriedade o que crianças e adolescentes expressam?

A desconexão com as infâncias e adolescências se expressa dentro da lógica que associa o “tornar-se alguém na vida” (termo que já implica que crianças e adolescentes não podem ser alguém) ao ser adulto. E não pode ser qualquer adulto, tem que ser alguém que produza e colabore, tem que ser alguém que trabalhe. Vale refletir em como esses apontamentos impactam nas visões de mundo, nas relações, nos sonhos e como atuam dentro da diversidade de infâncias e adolescências, porque a cobrança por produção parte de diferentes lugares dependendo de onde as crianças e adolescentes nascem, vivem e ocupam.

Nas periferias, o trabalho pode vir de outro lugar, estando associado à manutenção de necessidades básicas como ter um teto e se alimentar. As responsabilidades chegam mais cedo com as crianças (especialmente meninas) assumindo as tarefas da casa e o cuidado com os irmãos mais novos, mas também o incentivo ao trabalho infantil a partir da inserção de crianças e adolescentes em trabalhos informais. A vivência do trabalho como estratégia de sobrevivência, sendo apresentada desde cedo, impacta em como as necessidades substituem a capacidade de sonhar ou orientam sonhos relacionados à possibilidade de comer bem ou de dar uma casa para a mãe. Portanto, neste 12 de outubro de 2024, Dia das Crianças, quais delas estão vivenciando sua infância com dignidade e proteção?

Orçamento para primeira infância

A despeito da prioridade absoluta prevista para todas as crianças e adolescentes, as leis orçamentárias brasileiras, desde 2021, têm priorizado uma parte desta população, a primeira infância, que se refere a crianças de 0 a 6 anos. Este grupo foi considerado nas Leis de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2021, 2022 e 2023. Com essa conquista, recursos direcionados à primeira infância estão sendo melhor demarcados no orçamento, o que é um ganho em termos de controle social.

No entanto, é necessário avaliar o que se ganha e o que se perde dando preferência apenas a políticas para essa faixa etária, com invisibilização ou falta de investimentos em crianças maiores e adolescentes. As políticas públicas precisam acompanhar todo o ciclo de desenvolvimento das meninas e dos meninos e isso significa garantir recursos orçamentários para todas as áreas pertinentes às infâncias e adolescências considerando suas especificidades de classe, raça, etnia, gênero, território e as crianças com deficiência, de modo a prevenir situações de risco ou violação de direitos.

Como exemplo, uma das principais políticas para a primeira infância, com foco nas famílias de baixa renda, é o Programa Criança Feliz, que tem sido criticado por sua prática assistencialista e pouco técnica no atendimento das famílias com foco nas crianças. Alguns pesquisadores da política a relacionam com a perspectiva do Código de Menores.

No atual governo, o programa tem sido reformulado, mas ainda assim sua execução se mantém.  Até final de agosto de 2024, a execução havia sido de R$ 280,2 milhões de reais (de acordo com dados do Siga Brasil) e, entre 2017 e 2022, foi uma das políticas mais bem financiadas pela União, com recursos mais volumosos que a educação infantil e a estratégia da Rede Cegonha (saúde materna e infantil).

Erradicação do trabalho infantil

Também de responsabilidade do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), ao contrário, teve nenhum recurso executado pelo governo federal até 10 de outubro de 2024, e nos quatro anos do governo Bolsonaro, não houve investimento para tal      política. Neste sentido, é importante lembrar que não deve haver sobreposição entre os direitos ou entre os sujeitos de direitos. É necessário garantir recursos a todas as políticas que promovem e protegem direitos de todas as meninas e meninos do país.

Apreciar as infâncias e adolescências é ampliar os olhares para além das “fases”. É considerar as existências, reconhecer a capacidade de aprender e ensinar, promover a participação, permitir que as potencialidades se desenvolvam e que espaços de criação e conexão com a memória, a terra e a história prevaleçam. O caminho para isso passa por não ignorar como as desigualdades e as violências se expressam nas diversidades de infâncias e adolescências e, a partir disso, pensar em estratégias para que políticas públicas de garantia de direitos sejam instrumentos no combate da evasão escolar, trabalho infantil, exploração sexual, fome e qualquer outra violência que estreite a caminhada dos sonhos de crianças e adolescentes.

Lucas Daniel Rodrigues é educador popular do projeto Onda (Adolescentes em Movimentos pelos Direitos do Inesc) e Thallita de Oliveira é  assessora política do Inesc. 

Chegou o Projeto de Lei Orçamentária para 2025

Artigo publicado originalmente no Brasil de Fato

Nos primeiros dias de setembro, além da seca intensa, Brasília recebeu duas notícias: o resultado do segundo trimestre do Produto Interno Bruto (PIB), que cresceu 1,4% no período, e a entrega do Projeto de Lei Orçamentária Anual (Ploa) pelo Executivo ao Congresso Nacional. Qual a relação entre os fatos?

Começando pelo Ploa 2025, é preciso frisar que, se o PL pudesse acompanhar o ganho da arrecadação, isso representaria cerca de 7% acima da inflação, pois esse foi o ganho real em 2024. No entanto, a regra fiscal imposta pelo novo arcabouço restringe o crescimento das despesas a 2,5%, independentemente do ganho de arrecadação. As emendas parlamentares – que significam cerca de 25% das despesas não obrigatórias – também restringem a ampliação de gastos com investimentos. Não poder elevar os gastos, além de violar direitos – pois os déficits social e ambiental são imensos –, contribui para aumentar o racismo e o sexismo, uma vez que são as mulheres e as pessoas negras as mais afetadas.

O Brasil está com o cenário macroeconômico considerado bom, com inflação controlada, redução do desemprego, aumento da massa salarial e consequentemente da arrecadação da previdência. Mas o que deveria ser uma boa notícia, acabou virando um alerta contra uma alta da inflação, logo, um sinal vermelho para gastos públicos.

Mesmo diante das emergências climáticas e das enormes desigualdades geradas pelo modelo econômico neoliberal, a cartilha das políticas fiscais rígidas e dos juros altos continua sendo aplicada. Daí vem a relação com o Orçamento Público.

O Novo Arcabouço Fiscal (NAF), também chamado de Regime Fiscal Sustentável (RFS) (sic), em seu segundo ano de vigência, já revela seus limites na proposta orçamentária apresentada. Lembrando que o crescimento da arrecadação ficou em 7,8%. No entanto, o arcabouço fiscal só permite que seja incorporado à proposta 70% desse valor – que não pode exceder a 2,5%, ou seja, o crescimento real é de apenas 2,5% acima da inflação – em um cenário em que não faltam desafios.

É preciso atender às emergências climáticas, salvar a saúde pública – que precisa de investimentos pesados para além dos valores de custeio da política – ou atender às demandas da educação – que de acordo com os balanços avaliativos acerca do Plano Nacional de Educação (PNE) demonstram total falta de investimentos. Temos ainda o desafio de ampliar a política de saneamento, resolver o passivo da habitação, abandonada no governo anterior, além de outras ações que já deveriam ter iniciadas, como um maior aporte de recursos para mudar a política de transporte público nas cidades, maiores incentivos aos agricultores familiares, demarcação de terras quilombolas e indígenas, dentre outras políticas públicas necessárias.

Outro discurso que nos ronda é a necessidade de retirar os mínimos da saúde e da educação, além de desvincular as aposentadorias e pensões do Regime Geral da Previdência que excedam um salário mínimo, dos aumentos reais, dando reajustes diferenciados para benefícios acima do mínimo. Isso já foi feito antes e vimos as aposentadorias derreterem seu poder de compra.

Abaixo, seguem algumas das funções orçamentárias relacionadas às áreas com as quais o Inesc trabalha:

Recursos por função comparando PLOAs 2024 e 2025 (em R$):

Conforme pode ser observado, duas funções, Urbanismo e Saneamento, viram seus orçamentos propostos diminuírem 13% e 40% respectivamente entre 2024 e 2025. Além disso, das demais funções mencionadas, apenas a educação e direitos da cidadania não ficaram aquém do reajuste proposto pelo arcabouço fiscal. As demais, sequer atingiram o reajuste de 6,73%, que seria o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) de junho de 2023 a junho de 2024, 4,23%, somados ao aumento das receitas que foi de 7,8%. No entanto, há um redutor dizendo que esse aumento real só poderá ser aplicado ao orçamento até o limite de 2,5%, reduzindo o reajuste do PLOA a 6,73%.

Isso é reflexo da regra fiscal rígida, que tenta acomodar várias políticas em um cobertor intencionalmente pequeno para aqueles com menores rendas, mais vulnerabilizados, mais negros, mais femininos, mais periféricos.  A economia neoliberal sendo aplicada na prática por um governo que a extrema direita chama de comunista.

A pressão de setores da população e da economia que defendem privilégios aos já privilegiados também operam para que a propaganda contra direitos seja afetiva. Até mesmo quando dizem que regras fiscais rígidas são necessárias, além de redução de carga tributária, pois faz parte do combo dizer que pagamos a maior carga de impostos do mundo. Então, assim como tentam fazer com que as despesas sejam mais regressivas, resguardando a maior parte do quinhão para as parcelas privilegiadas da população, passam a mensagem de que somos todos iguais na hora de pagar impostos e a carga tributária recai de maneira uniforme para todas as pessoas, quando a grita geral é para não taxar pessoas ricas e muito ricas, com rendas e heranças não tributadas.

*Cleo Manhas é assessora política do Inesc. 

>>Acesse aqui a análise do PLOA 2025 completa<<

Eleições 2024: mulheres excluídas, negros sem recursos

Artigo publicado originalmente pelo Correio Braziliense

Os dados do perfil das candidaturas às eleições de 2024 são desanimadores. Combinados com as últimas decisões do Legislativo e do Judiciário, essas estatísticas tornam o cenário da corrida eleitoral previsível: os homens brancos ricos não vão arredar o pé dos espaços de poder, nem que para isso tenham de instrumentalizar as instituições públicas e os partidos políticos.

Em quase metade (49,67%) dos municípios, haverá apenas duas candidaturas, e, nesse contexto, 72,2% dos casos, as duas pessoas que disputam a prefeitura são homens. Em 227 municípios, só haverá um candidato, sendo 200 homens e 27 mulheres. Em seis capitais do país, não haverá nenhuma mulher candidata à prefeitura. São elas: Rio Branco (AC), Manaus (AM), Fortaleza (CE), Cuiabá (MT), João Pessoa (PB) e Florianópolis (SC).

Apesar de prever a proporção de, pelo menos, 30% das candidaturas para mulheres, para alcançar essa cota, os partidos políticos preferem cumpri-la usando os cargos de vereador/a e não nas brigas pelas prefeituras. Os homens somam 85% das candidaturas a prefeito e 65% na disputa pela vereança.

A proporção entre brancos e negros para todos os cargos está mais equitativa. As candidaturas pardas e pretas correspondem a mais da metade do total (52,73%), sinalizando um discreto aumento de 2,8% em relação a 2020.

Esses números são agravados com um acordo que uniu a direita, o centro e a esquerda para a aprovação, no Congresso Nacional, em agosto de 2024, da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 09/2023, agora Emenda Constitucional 113/24 — também conhecida como PEC da Anistia. A medida retira recursos das candidaturas negras, na medida em que extingue a proporcionalidade da distribuição dos recursos do Fundo Eleitoral de Financiamento de Campanha para as pessoas negras, fixando um limite de 30%.

Pela regra anterior à PEC, a proporcionalidade poderia aumentar os recursos do Fundo Eleitoral para as candidaturas pretas e pardas, uma vez que mais de 50% dos postulantes aos cargos do Legislativo e do Executivo municipal são negros. Segundo uma projeção realizada pela iniciativa Pacto pela Democracia, as candidaturas negras deixarão de receber R$ 1,1 bilhão nas eleições deste ano sob a nova regra.

A insegurança jurídica é tamanha que organizações entraram com pedido de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) junto ao Superior Tribunal Eleitoral (STF). Há, ainda, o risco de os recursos de “peso 2” (Emenda Constitucional 11/2021), destinados a partidos que elegeram mulheres e pessoas negras em 2022, serem desvirtuados, resultando em uma política de ação afirmativa para pessoas brancas em uma clara demonstração do colonialismo do nosso sistema político.

As legendas PT, Solidariedade, PSD, PSOL e do PSB surpreenderam com mais uma movimentação questionável, pedindo extensão de prazo para repasse de recursos para mulheres e pessoas negras. A decisão sobre os repasses é de 2020,  aplicada na eleição daquele ano. Em 2022, o TSE determinou o pagamento prioritário para esses grupos. Agora, em 2024, esse pedido é totalmente anacrônico e expõe o racismo e machismo introjetado também no campo progressista.

Enquanto isso, crescem os casos de violência política de gênero e raça em todos os cantos do país. O GT Mulheres e Violência Política da Procuradoria Geral da República, coordenado pela procuradora Raquel Branquinho, monitora atualmente 97 casos de violência virtual e 84 em ambientes físicos, desde a promulgação da Lei 14.192 de 2021. A lei, além de versar sobre a violência de gênero, qualifica a discriminação de raça e etnia e prevê aumento de pena para atos cometidos contra mulheres gestantes, idosas e deficientes.

A referida lei também responsabiliza os partidos políticos pela coibição desses crimes e suporte às vítimas. Dificultar o financiamento de campanhas de mulheres, principalmente mulheres negras, pode ser entendido como um ato de violência política. Sem recursos, as condições de participação das candidatas se tornam inviáveis, o que, em muitos casos, podem resultar em dívidas financeiras pessoais, além de impactos simbólicos e psicológicos.

Os movimentos negros e de mulheres lutam, conquistam legislações, mas parece que a cada passo em direção à equidade, são cinquenta passos para trás. Ou 500 anos.

Carmela Zigoni* — Assessora política do Inesc
José Antônio Moroni* — Membro do Colegiado de Gestão do Inesc

Mudanças climáticas: um acelerador de injustiças sociais

Artigo publicado originalmente pelo Brasil de Fato DF

Nesse dia da Amazônia, precisamos retomar a discussão sobre a transição ecológica pautada pelo fortalecimento de atores públicos.

O ano de 2023 ficou registrado como o mais quente desde que os registros globais começaram a ser monitorados em 1850. Uma série de impactos climáticos extremos resultaram desse cenário. Sob influência do fenômeno denominado “El Niño”, a elevação das temperaturas abriu caminho para eventos extremos, inundações, incêndios florestais, secas, ondas de calor e geadas.

De acordo com dados do Copernicus Climate Change Service (CCCS, na sigla em inglês), do Centro Europeu de Previsões Meteorológicas, o planeta esteve 1,48ºC mais quente do que em anos anteriores. A maioria dos dias ultrapassou o 1ºC em relação à média pré-industrial, com dois dias ultrapassando os 2ºC de elevação – um marco inédito.

Para esse mesmo ano, o Instituto Nacional de Meteorologia (INMET), divulgou, para o caso brasileiro, o aumento de 0,69ºC na temperatura média do país, especialmente entre os meses de julho e novembro. Em setembro e novembro o aquecimento registrado foi de 1,5ºC acima da média histórica de temperatura no período.

Diversas regiões enfrentaram elevações significativas nas temperaturas, a partir do qual cientistas e meteorologistas puderam constatar a alteração da dinâmica entre estações secas e chuvosas.

No final de 2023, a chegada das chuvas trouxe grandes inundações para estados como Pará, Mato Grosso, Piauí, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e São Paulo. Em 2024, a seca antecipada na Amazônia foi seguida por chuvas torrenciais no Rio Grande do Sul.

Esses são exemplos de que a crise climática, embora um problema global, tem seus efeitos em nível local. Tanto a seca quanto a inundação representam tragédias dolorosas para a população residente nesses locais, além de enormes desafios para os diferentes níveis de governo, ainda despreparados para a ação rápida e efetiva nessas situações.

Outro desastre silencioso é a intensificação do fenômeno da desertificação no país, com implicações ao acesso à água e a perda de biodiversidade. Em nota técnica, cientistas do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) e do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), ambos órgãos do governo federal, alertaram para o aumento do índice de aridez atmosférica no país. Áreas degradadas são as mais afetadas, com processos acelerados de desertificação nos estados de Bahia, Minas, Pernambuco e Paraíba.

A necessidade de ações urgentes para mitigar as mudanças climáticas e adaptar-se a essas novas realidades é, hoje, incontornável.

Os dados apresentados neste texto mostram que as metas acordadas internacionalmente, em particular, a manutenção da temperatura global em uma faixa de aquecimento adicional inferior à 1,5ºC, já está sendo descumprida. Pior, a expectativa é que, em 2024, a temperatura global ultrapasse essa meta.

Também, por experiência, sabemos que a reconstrução associada aos danos às atividades econômicas, à renda e ao trabalho das famílias; ao patrimônio; ao direito à casa e comida; à saúde; à educação; e aos próprios ecossistemas naturais custam mais caro do que os esforços de adaptação. Não há razão para a inação.

Por isso, nesse dia da Amazônia, precisamos nos dedicar a pensar o quê fazer, mas também como fazer e como financiar as ações capazes de evitar que as mudanças do clima se tornem um acelerador de injustiças sociais em todas as regiões do país.

No Inesc, nós acreditamos que é preciso retomar discussões sobre uma transição ecológica pautada pelo fortalecimento de atores públicos, das políticas públicas e do orçamento público, com a promoção de atividades econômicas sustentáveis e atenção aos direitos humanos por meio de uma atuação propositiva dos governos.

*Tatiana Oliveira é assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc)

A rebeldia do Sul Global no debate sobre tributação

Artigo publicado originalmente na Carta Capital

Anualmente, os países do Sul Global deixam de arrecadar bilhões de dólares em decorrência da evasão e elisão fiscal. As suas elites e as transnacionais do Norte drenam vultosos recursos que poderiam ser gastos no combate à fome, à pobreza e as desigualdades, assim como na realização dos direitos humanos. As soluções até então apresentadas pelos países ricos, especialmente por intermédio do G20 e da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), não beneficiam os mais pobres. Cansado de esperar em vão, o Sul Global se rebelou e se organizou na defesa da criação da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Cooperação Tributária Internacional (UNFCTC, na sua sigla em inglês), a COP Tributação.

Os países de baixa renda, que historicamente têm tido pouca ou nenhuma influência sobre as regras tributárias globais, continuam a ser os mais afetados pelo abuso fiscal global, estimado pela Tax Justice Network em U$ 480 bilhões ao ano. Ainda que a maioria das perdas fiscais anuais seja sofrida pelos países de renda mais alta (US$ 433 bilhões), essas perdas equivalem a 9% dos orçamentos de saúde pública de seus países; nos países de renda mais baixa as perdas (US$ 47 bilhões) correspondem à metade (49%) de seus orçamentos de saúde pública. Buscando alterar essa realidade, a OCDE, com apoio do G20, vem há cerca de 10 anos elaborando uma série de propostas de cooperação tributária internacional que visam conter os abusos fiscais.

Contudo, os resultados têm sido pífios, pois as sugestões em pouco ou nada beneficiam o Sul Global. O chamado Marco Inclusivo com seus Pilares 1 e 2 traz poucos resultados, pois não irá reduzir o abuso fiscal das grandes empresas de maneira expressiva e os benefícios para os países de baixa renda são altamente questionáveis. Ademais, o OCDE é um espaço pouco transparente e pouco inclusivo, pois todas as negociações acontecem somente em inglês à portas fechadas, sem tradução para qualquer outro idioma, e não há participação efetiva dos países não-membros e nem da sociedade civil.

O feitiço se tornou contra o feiticeiro.

Indignados com a soberba dos ricos, os países do Sul, liderados pela União Africana e com apoio da sociedade civil, resolveram agir. Se organizaram e atuaram para a criação de uma Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Cooperação Tributária Internacional, deslocando o debate da OCDE para a ONU, um espaço mais inclusivo, democrático e participativo. A resolução de criação da “COP Tributação” foi aprovada em finais de 2023 e agora estão sendo negociados os Termos de Referência da Convenção. Pego de surpresa, o Norte Global pouco pode fazer para impedir a rebeldia. Agora tenta atuar para minimizar os estragos com argumentos que beiram o ridículo: de um lado, alegam que a UNFCTC é complementar à OCDE, o que não é verdade, pois estão comprovadas a opacidade e a baixa equidade do Marco Inclusivo; de outro, defendem que as decisões da Convenção precisam ser tomadas por consenso, porque se for pelo voto, os países do Norte perdem.

Nos próximos dias e até meados de agosto acontecerá a segunda rodada de negociações dos Termos de Referência da Convenção, nas Nações Unidas. Representantes de várias organizações da sociedade civil de todo o mundo participaremos dos debates em Nova York defendendo regras inclusivas, justas e equitativas para a cooperação tributária internacional.

Há enorme expectativa de que o Brasil, sob a liderança de Lula, seja um indiscutível aliado das demandas do Sul Global. Espera-se que o país cerre fileiras com os países em desenvolvimento, atuando para fortalecer a Convenção, para que seja o lócus decisório multilateral privilegiado, no qual a participação global dos países e da sociedade civil, a transparência pública e as estruturas legais de defesa de direitos humanos assim como o conhecimento técnico da ONU podem proporcionar um fórum mais efetivo para garantir soluções tributárias mais justas e inclusivas.

* Nathalie Beghin, é do Colegiado de Gestão do Inesc e integrante da delegação da Aliança Global para a Justiça Fiscal (GATJ) nas negociações da UNFCTC.

Violência sexual contra crianças e adolescentes: a permissividade da sociedade e do Estado

A violência sexual que tem ocorrido nos abrigos que acolhem a população afetada pelas enchentes no Rio Grande do Sul (RS) é um reflexo da vivência diária de muitas meninas no Brasil. E essa realidade que constrange e indigna algumas pessoas, é fortalecida pela própria sociedade e pelo Estado. 

Vivemos em uma cultura adultocêntrica, em que crianças e adolescentes são objetificadas e tratadas como inferiores aos adultos. Há uma concepção de não totalidade na infância e adolescência baseada no entendimento de que o adulto é a norma e que, portanto, a busca pelo vir a ser é o importante na vivência desse grupo. Nesse sentido, o adultocentrismo deslegitima tudo o que foge dessa centralidade e viola o direito das meninas(os) de existirem e serem consideradas como tal. Essa é uma das construções sociais que dá a sensação de permissividade para o adulto violentar a criança. No Brasil, em 2022, 61% das vítimas de estupro eram pessoas na faixa etária de 0 a 13 anos e 8 em cada 10 vítimas eram menores de idade, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública-2023

Mesmo que a legislação brasileira seja avançada ao reconhecer crianças e adolescentes como sujeitos de direitos e que devem ter suas reivindicações reconhecidas, o assujeitamento no dia-a-dia das relações ainda é superior. As famílias, escolas, comunidades e igrejas pouco conhecem o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e como acionar o Sistema de Garantia de Direitos (SGD). Mantêm estigmas sobre o que é ser criança e adolescente a partir de ideologias moralizantes e colonialistas que retiram a autonomia e impossibilitam a emancipação desses sujeitos políticos. O que os vulnerabiliza ainda mais nas relações de poder assimétricas com os adultos para ocorrências de violências sexuais. 

A intersecção com o gênero potencializa essa assimetria, pois também é marcado por hierarquias, em que o masculino exerce poder sobre o feminino. O entendimento da mulher como vulnerável e a serviço do homem, sexual e socialmente, fortalecido pelas desigualdades de gênero, gera a compreensão de permissividade para abusar sexualmente de meninas, que são as mais afetadas por essa violência. 

Por conseguinte, ao invés de se investir na formação sobre gênero e sexualidade para que meninas saibam como se proteger e meninos comecem a produzir e reproduzir outros papéis diversos, que sejam saudáveis e se diferenciam do padrão de masculinidade imposto hoje, há um grande movimento de repressão dessa discussão nos espaços públicos. Logo, todas as pessoas e grupos que cerceiam ou compactuam com a coibição dos estudos de gênero e dos direitos sexuais nas escolas também são responsáveis pelos milhares de casos de violências sexuais contra crianças no Brasil.

Todas as meninas estão suscetíveis a violências sexuais, no entanto, as desigualdades de raça e classe no país redobram a vulnerabilização de crianças e adolescentes negras e empobrecidas. Desde a escravização, em que a crueldade com pessoas negras era permitida e naturalizada, o abuso sexual fazia parte dessa desumanização. Hoje, o racismo se mantém e traz os resquícios da busca pela dominação de pessoas não brancas. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública também revelou que em 2022, nas faixas de idade de 6 a 17 anos, mais de 55% das meninas vítimas de estupro eram negras, dos 12 aos 14 anos mais de 59% eram negras e mais de 7% indígenas. 

No que diz respeito à classe social, fatores como menor acesso à renda e a políticas públicas favorecem a ocorrência e manutenção de violências. A vulnerabilidade econômica facilita a coerção por parte de exploradores e abusadores para exploração e abuso sexual de crianças. A falta de acesso a creches, escolas em tempo integral, atividades culturais e de lazer no contraturno da escola dificultam que os casos sejam revelados. A baixa renda cria, muitas vezes, uma dependência financeira com o agressor, dificultando a realização de denúncias. 

De 2019 a 2023, o governo federal não investiu um centavo para ações específicas de enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes. Para 2024, o governo atual autorizou R$ 3,3 milhões para o plano orçamentário intitulado: Enfrentamento às violências contra as crianças e adolescentes, como pode ser visto no Balanço do Orçamento da União elaborado pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). O Plano Plurianual (PPA) 2024-2027 da União prevê, dentro desse objetivo de enfrentar violência, a equipagem de 10 Centros de Atendimento Integrados para Crianças e Adolescentes vítimas ou testemunhas de violência em 2024. 

O planejamento dos governos ainda falha na perspectiva de prevenção, em que os gastos públicos estão direcionados para remediação das problemáticas e não para a erradicação delas. É importante ter todo o acolhimento e suporte para quem já vivenciou uma violação, mas sem abrir mão de priorizar políticas que tenham como objetivo o fim das violências e isso perpassa: 1) pelo trabalho integrado de todos os setores do Estado e da sociedade; 2) por mudanças estruturais das concepções sobre o que é ser criança e adolescente, sobre raça e sobre gênero, o que inclui aprovar no Plano Nacional de Educação, que será discutido no Congresso Nacional, metas antissexistas e antirracistas; e 3) pela eliminação das desigualdades. Enquanto não nos movermos intensamente nessa direção, também somos responsáveis pelas violências sofridas diariamente por meninas e meninos do nosso país. 

Combate às mudanças climáticas deve ser prioridade do 3° Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional

Entre os dias 11 e 14 de dezembro acontece, em Brasília, a 6ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional que resultará em recomendações para a elaboração do 3º Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Diante dos tempos dramáticos que vivemos, dos fortes impactos decorrentes do aquecimento global, não há nada mais urgente do que outorgar prioridade máxima ao combate às mudanças climáticas. Isso porque,a forma de produzir e consumir alimentos não somente é impactada pelos efeitos dos eventos extremos, como secas e enchentes, mas é também a causa, especialmente quando se trata de práticas agrícolas que envolvem desmatamento e a destruição de modos de vida sustentáveis.

A 6ª Conferencia irá reunir na capital federal mais de duas mil pessoas de todo o país, entre representantes de organizações e movimentos sociais e de governos – federal, estaduais e municipais. Entre plenárias, grupos de trabalho e atividades autogestionadas serão construídas, coletivamente, propostas que irão orientar a atuação do poder público nos próximos anos.

6ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional

Com o lema “Erradicar a fome e garantir direitos com comida de verdade, democracia e equidade”, o principal objetivo da Conferência é fortalecer os compromissos políticos com a realização do direito humano à alimentação adequada, por meio de políticas públicas de segurança e soberania alimentar e nutricional inclusivas, antirracistas, antipatriarcais e sustentáveis.

A 6ª Conferência Nacional é a última etapa de várias outras referentes a conferências municipais, estaduais, territoriais e livres, entre outras. Milhares de pessoas, em todo o país, vêm discutindo há meses como elaborar e implementar, de forma participativa, ações que garantam que a população brasileira possa se alimentar adequadamente.

Esse processo é fundamental para a saúde da democracia, pois possibilita não somente o debate público, como a incorporação no fazer do Estado de recomendações construídas coletivamente desde o local até o nacional. Assim, as ideias e as práticas são revisitadas, arejadas e alimentadas com novos e múltiplos olhares.

Crise climática gera insegurança alimentar

A 6ª Conferência acontece em momento estratégico, quando o mundo deve atuar para impedir a destruição da vida na Terra. O ano de 2023 é o mais quente da história e os efeitos das mudanças climáticas se fazem sentir de forma dramática no país, com seca na Amazônia e enchentes no Sul. Esses eventos extremos são resultado do aquecimento global e impactam consideravelmente a situação alimentar da população, especialmente da mais vulnerabilizada, isto é, mulheres, população negra e periférica, povos indígenas e povos e comunidades tradicionais, agravando as desigualdades.

O impacto das mudanças climáticas na alimentação é imediato e se manifesta de diversas formas. O aumento da temperatura provoca secas cada vez mais intensas e frequentes e grandes tempestades e inundações que resultam em quebra de safras, na diminuição da produção de alimentos e no aumento de seus preços, gerando fome. A combinação de baixa oferta de alimentos in natura com preços elevados contribui para aumentar a busca por produtos ultraprocessados, o que traz à tona outra vertente da insegurança alimentar e nutricional: o sobrepeso e a obesidade.

Neste momento, o Brasil é triste cenário dos perversos efeitos do aquecimento global, pois vivencia uma terrível seca na Amazônia e chuvas torrenciais no Sul com mortes e milhares de pessoas afetadas. Os efeitos na situação alimentar da população são graves e de longo prazo, pois impactam a produção agrícola, a infraestrutura de transporte, armazenamento e distribuição de alimentos, a queda da renda devido ao aumento do desemprego, entre outros.

Ou seja, as mudanças climáticas possuem estreita relação com a alimentação inadequada e com a insegurança alimentar e nutricional: desnutrição, carências nutricionais específicas, sobrepeso e obesidade. O Brasil convive atualmente com o seguinte paradoxo: de um lado, 33 milhões de pessoas passando fome e, de outro, mais de 40 milhões de pessoas obesas. A crise climática e sua retroalimentação com a fome, a desnutrição e a obesidade são um grande risco para a humanidade, num processo chamado de sindemia global.

Agropecuária: ameaça ou solução?

Importante destacar que a agropecuária pode ser tanto uma ameaça quanto uma solução para combater as mudanças climáticas. Apesar dos aumentos de produtividade, a expansão do agronegócio no Brasil ainda é a grande responsável pelo desmatamento, sendo uma das principais fontes de emissões de gases de efeito estufa. Além disso, a produção de carne bovina emite metano, outra causa do aquecimento global.

Por outro lado, a agricultura sustentável, combinada com mudanças na dieta, pode compatibilizar a produção de alimentos saudáveis com o combate às mudanças climáticas. Para tal é necessário, acabar com o desmatamento; restaurar as florestas; redistribuir terras e territórios; respeitar os modos de vida dos povos indígenas e dos povos e comunidades tradicionais; fortalecer a agricultura familiar; adotar a agroecologia como modelo de produção; implementar uma política de abastecimento baseada em circuitos curtos, que aproximam o produtor do consumidor de alimentos; expandir a agricultura urbana e os equipamentos urbanos de segurança alimentar e nutricional; diminuir drasticamente a produção e o consumo de ultraprocessados; e combater o racismo, o patriarcado e toda forma de opressão, entre outras medidas. É preciso ainda, aprofundar os estudos que especifiquem melhor a relação entre mudanças climáticas e insegurança alimentar, identificando caminhos que possam nos ajudar a interromper esses círculos viciosos.

Ainda é possível frear a destruição

É necessário, ainda, pressionar os governos de todo o Planeta para que implementem acordos efetivos de contenção do aquecimento global mas, também, de reparação e adaptação dos efeitos perversos das mudanças climáticas, especialmente dos países do Sul. São as nações empobrecidas as que menos contribuem para o desequilíbrio climático da Terra, mas são as mais afetadas pelas suas consequências. Relatório recente da Oxfam alerta que, em 2019, o 1% mais rico da população mundial (77 milhões de pessoas) foi responsável por 16% das emissões globais de dióxido de carbono (CO2), um dos principais gases do efeito estufa. Esse valor equivale a mesma quantidade emitida pelos 66% ou dois terços mais pobres da humanidade (5 bilhões de pessoas).

Ainda é possível conter a crise climática com aumento de somente 1,5°C até o final do século 21, mas isso exige esforços enormes para a diminuição da emissão e o aumento do sequestro de gases de efeito estufa da atmosfera. Isso requer o forte e radical compromisso dos governos com o tema para, de fato, por em marcha outra forma de produzir e consumir que nos permita viver em harmonia com a natureza. Se não houver ação imediata, será tarde demais. O aquecimento global não deixará nenhuma parte do globo intacta.

Esse deve ser o mote do 3º Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Não há nada mais urgente do que combater as mudanças climáticas.

 

*A 6ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional tem o apoio do Inesc e patrocínio do Instituto Ibirapitanga, Itaipu Binacional e Banco do Brasil.

Fome e clima: uma relação tumultuada

O Dia Mundial da Alimentação é também uma data para se pensar as mudanças climáticas. O aumento da temperatura provoca secas cada vez mais intensas e frequentes e grandes tempestades que podem resultar na quebra de safras, na diminuição da produção de alimentos e no aumento de seus preços, gerando fome. Portanto, se o 16 de outubro nos remete a vitórias, como a implementação do Plano Brasil sem Fome, a efeméride é bastante oportuna para tratarmos dos imensos desafios socioambientais.

Enquanto a Amazônia enfrenta uma de suas piores secas, o Sul do País é profundamente afetado por chuvas intensas e enchentes. Esses eventos extremos são resultado do aquecimento global, consequência da ação humana predatória, e impactam consideravelmente a situação alimentar da população, especialmente da mais vulnerabilizada. A combinação de baixa oferta de alimentos in natura com preços elevados contribui para aumentar a busca por produtos ultraprocessados, o que traz à tona uma outra vertente da insegurança alimentar e nutricional: o sobrepeso e a obesidade.

O Brasil convive atualmente com o seguinte paradoxo: de um lado, 33 milhões de pessoas passam fome e, de outro, há mais de 40 milhões de pessoas obesas. A crise climática e sua retroalimentação com a fome, a desnutrição e a obesidade são um grande risco para a humanidade, num processo chamado de sindemia global.

Mudanças climáticas

Importante destacar que a agropecuária pode ser tanto uma ameaça quanto uma solução para combater as mudanças climáticas. Apesar dos aumentos de produtividade, a expansão do agronegócio no Brasil ainda é a grande responsável pelo desmatamento, sendo uma das principais fontes de emissões de gases de efeito estufa. Além disso, a produção de carne bovina é responsável pela emissão de metano, outra causa do aquecimento global.

Por outro lado, a agricultura sustentável, combinada com mudanças na dieta, pode compatibilizar a produção de alimentos saudáveis com o combate às mudanças climáticas. Para tal é necessário, acabar com o desmatamento; restaurar as florestas; redistribuir terras e territórios; respeitar os modos de vida dos povos indígenas e dos povos e comunidades tradicionais; fortalecer a agricultura familiar; adotar a agroecologia como modelo de produção; implementar uma política de abastecimento baseada em circuitos curtos, que aproximam o produtor do consumidor de alimentos; expandir a agricultura urbana; diminuir drasticamente a produção e o consumo de ultraprocessados, entre outras medidas. É preciso ainda, aprofundar os estudos que especifiquem melhor a relação entre mudanças climáticas e insegurança alimentar, identificando caminhos que possam nos ajudar a interromper esses círculos viciosos.

Por ora, seguimos assistindo à transformação do clima afetando bilhões de pessoas, em especial as empobrecidas. Segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sua sigla em inglês), cerca de 3,3 bilhões de pessoas são vulneráveis às consequências do aquecimento global e as pessoas têm hoje 15 vezes mais probabilidades de morrer devido a condições meteorológicas extremas do que no passado.

Ainda é possível conter a crise climática com aumento de somente 1,5°C até o final do século 21, mas isso exige esforços enormes para a diminuição da emissão e o aumento do sequestro de gases de efeito estufa da atmosfera.

Isso requer o forte e radical compromisso dos governos com o tema para, de fato, pôr em marcha uma outra forma de produzir e consumir que nos permita viver em harmonia com a natureza.

Esperançar a solidariedade: relato sobre o 1º Fórum Interconselhos

O 1º Fórum Interconselhos realizado em Brasília (DF) em abril deste ano, poderia ser mais um importante evento como tantos outros, não fosse o momento histórico e político vivido no Brasil. O golpe de 2016 contra a presidenta Dilma Rousseff e a sociedade brasileira foi  marcado pelo início de um projeto político que teve como um dos operadores centrais a redução dos espaços de participação social. Chegamos ao auge na eleição de Jair Bolsonaro e o cumprimento da promessa de extinção e desfinaciamento de todos esses espaços. Sim, os poucos Conselhos que continuaram “funcionando” nos últimos quatro anos o fizeram por serem frutos de legislações específicas, portanto com uma institucionalidade mínima que garantiram a continuidade da existência, como foi o caso do Conselho Nacional de Saúde, do Conselho Nacional de Direitos Humanos e alguns outros. 

Mas como todos sabemos, sobreviver e viver, são instâncias diferentes quando estamos falando da vida. A existência dos Conselhos, que era garantida por força de Lei, não significou que as condições para o seu pleno funcionamento estavam garantidas. Ao contrário, o que vivenciamos, lutando de forma aguerrida tentando encontrar brechas no desgoverno, foi a total falta de recursos humanos, materiais e financeiros para que os espaços de participação social pudessem exercer a função que é prerrogativa: a participação popular. Muitas e muitos de nós se mantiveram nesses espaços, não por acreditarem no projeto político que estava em curso, mas para resistir a ele. Outras optaram por não estar. Numa luta – como ensinam as que vieram antes de nós – precisamos daqueles que lutam estando fora, tanto quanto daqueles que travam a luta do lado de dentro. Ninguém é dispensável na luta. Foi “escrevivendo” essa página da história fazendo da atacada solidariedade um ato político, resistimos, mesmo que não sem sequelas!   

Esse preâmbulo foi necessário para transmitir um pouco do que significou esses dois dias de encontro, que contou com centenas pessoas representando diversos Conselhos de todo o Brasil, entre aqueles que estão formalmente constituídos e outros que mantiveram alguma atividade e que estão em processo de retomada. E como não temos tempo a perder, a função desse primeiro Fórum foi a largada de um processo, que precisa ser amplo, de retomada da participação social brasileira. Sim, tudo o que vivemos nos demonstrou a necessidade de consolidação de um Sistema Nacional de Participação Social, com condições estruturais e estruturantes, que garanta à sociedade brasileira mais um importante passo da nossa jovem democracia. 

Somos Conselheiras e Conselheiros conscientes dos desafios a serem enfrentados diante dos fundamentalismos religioso e político que continuam atuantes, bem como dos esforços na construção de uma frente ampla necessária para enfrentar a barbárie. Diria que o nosso principal desafio é, justamente, dar um passo além, construir espaço para possibilidades de invenções de outras formas de participação, ao mesmo tempo em que reconstruímos aqueles que são historicamente importantes, mas que também precisam de novas bases e referências. 

Durante a programação do Fórum, o presidente Lula empossou 68 representantes de organizações da sociedade civil, em maioria àqueles que  participaram dos Grupos de Trabalho durante a transição, como foi o caso do  Conselho de Participação Social instituído pelo Decreto nº 11.406, de 31 de janeiro de 2023. São mulheres, homens, pessoas negras, quilombolas, indígenas, periféricas e LGBTQIAP+, que têm como atribuição “assessorar o Presidente da República na interlocução com as organizações da sociedade civil e com a representação de movimentos sindicais e populares, bem como promover o diálogo com a Secretaria Geral da Presidência da República, de modo a ampliar a participação social na formulação, na implementação, no monitoramento e na avaliação de políticas públicas”

Na primeira reunião realizada com as pessoas diversas que integram esse espaço, questões caras à sociedade civil progressista e movimentos populares já se anunciaram como fundamentais para as construções e debates desse momento: 

  1. o empenho de todas e todos no combate à fome e à extrema pobreza que assolam o Brasil; 
  2. o comprometimento na construção do Plano Plurianual (PPA) 2024/2007, como primeiro passo de um amplo projeto político de participação, de forma solidária, justa e sustentável, e que espelhe as necessidades de defesa, garantia e proteção dos segmentos sociais mais vulnerabilizados do país, como é caso das pessoas negras, quilombolas, indígenas, periféricas e LGBTQIAPN+;
  3. na construção da Política Nacional de Participação Social tão necessária para evitar que episódios devastadores como o dos últimos anos se repita. 

Nos preocupa o fato de o Conselho ter sido criado por decreto e não por uma Lei, deixando-o em um espaço frágil, que pode facilmente ser destruído por um governo que não tenha como orientação a participação social. Nosso aprendizado dos últimos anos deve ser a bússola para os próximos passos. Precisamos ficar atentas e atentos. 

Sem nenhuma ingenuidade sobre os limites e desafios advindos da articulação política da nossa atual gestão numa frente “amplíssima”, nos importa definir quais são, para nós da sociedade civil, pautas e bandeiras inegociáveis. São direitos que não aceitamos que façam parte de nenhuma mesa de negociação, pois, para grande parte de nós, significa a diferença entre viver e morrer:

  • a fome de 33 milhões de pessoas; 
  • o genocídio da população negra com a letalidade juvenil, feminicídios, e outras violências; a liderança na lista de países que mais matam pessoas transexuais no mundo; as violências obscenas contra a população indígena; 
  • o racismo ambiental e seus impactos sobretudo em territórios com populações mais vulnerabilizadas, como é o caso dos grandes empreendimentos e da destruição dos modos de vida e territórios; 
  • os impedimentos de acesso e da vivência dos direitos sexuais e reprodutivos, entre outras. 

Que Carolina Maria de Jesus, de seu Quarto de Despejo tão atual, seja presença constante em nossas reflexões ao definirmos se entramos ou não nas frentes de lutas sociais em defesa dos direitos humanos, pois como ela “escreviveu”: “a tontura da fome é pior do que a do álcool. A tontura do álcool nos impele a cantar. Mas a da fome nos faz tremer. Percebi que é horrível ter só ar dentro do estômago”.

Por uma integração latino-americana participativa

Com Lula presidente o Brasil volta para o cenário global, especialmente para promover a integração latino-americana que, espera-se, seja inclusiva e participativa, possibilitando maior protagonismo da região nas relações de poder internacionais.

No primeiro dia do ano de 2023, Lula foi empossado Presidente do Brasil pela terceira vez, feito inédito na história do país. Uma multidão vermelha tomou conta da capital Brasília, milhares de pessoas foram assistir ao evento cantando e festejando. Havia apreensão no ar, pois dias antes bolsonaristas promoveram atos terroristas violentos, explodindo bombas e incendiando carros e ônibus. Mas nada impediu a alegria do povo, ansioso por dar as boas vindas a quem tinha contribuído para tirar o fascista do Palácio do Planalto.

No mesmo dia foi confirmado o ministério do Lula, 37 integrantes do primeiro escalão, entre nordestinos, mulheres, negros e indígena, composição muito mais diversa da que estávamos acostumados nos últimos anos, majoritariamente integrado por homens brancos. O número de pastas é também sinal de que a complexidade da
sociedade brasileira requer múltiplas interlocuções para a solução efetiva e criativa dos problemas econômicos, sociais, políticos, culturais e ambientais que a sociedade brasileira enfrenta.

VII Cúpula da Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos

Foram anunciadas prioridades entre as quais o combate à fome e ao aquecimento global e a retomada da participação social desdenhada pela gestão Bolsonaro. Lula sinalizou ainda a importância que a integração latino-americana irá ocupar na sua agenda internacional. Com efeito, sua primeira viagem além-fronteiras é para participar
da VII Cúpula da Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos (Celac), realizada 23 e 24 de janeiro em Buenos Aires, sob a presidência pro-tempore da Argentina. Com essa participação, o Brasil passa a reintegrar a Celac, abandonada por Bolsonaro em 2019. A mudança de postura do governo do maior país da América do
Sul simboliza o retorno do Brasil à sua própria região.

Mecanismos de integração regional são relevantes, pois podem propiciar a conquista de espaços de autonomia e soberania para definição de políticas públicas e opções econômicas próprias. Isto é, uma integração que contribua para o desenvolvimento sustentável dos países e territórios bem como do exercício da soberania democrática dos povos.

Para que tal integração aconteça a participação social é necessária. Os poderes públicos dos Estados-membro precisam escutar as vozes e as demandas dos sujeitos de direito. As experiências brasileira e internacional têm demonstrado que a participação de organizações e movimentos sociais nas decisões dos governos traz muitos ganhos
como o aumento da legitimidade política, o aprimoramento da governança, o melhor desempenho das políticas públicas uma vez que há maior proximidade com as necessidades dos cidadãos e a possibilidade de mediar conflitos.

Os espaços de participação permitem a incorporação de uma pluralidade de atores sociais nos processos decisórios sobre as políticas, não se restringindo apenas aos grupos com influência sobre os tomadores de decisão, aumentando consequentemente a transparência e a prestação de contas. Ademais, a participação social contribui, e muito, para evitar custos elevados decorrentes de corrupção, de paralisações de obras e de processos judiciais de grandes projetos advindos de violações de direitos de povos e territórios impactados.

Espera-se que o presidente Lula não somente crie um Conselho Nacional de Política Externa – o Itamaraty é um dos poucos ministérios que ainda não conta com mecanismo institucional de participação social – como leve para os espaços existentes de integração regional a proposta de implementação de institucionalidades de interação entre Estado e Sociedade. Em relação à Celac, por exemplo, em 2021 mais de 40 organizações da sociedade civil da América Latina e do Caribe apresentaram aos governos da região proposta para a criação da Celac Social.

Há expectativa de inúmeros atores sociais da região de que o Brasil lidere um processo de espraiamento da participação da sociedade em assuntos de interesse público. O país tem experiência e reúne evidências de que trata-se de um mecanismo em que todas as partes ganham. A participação social é necessária para assegurar uma integração regional efetivamente cidadã.

COP 27 – Apesar do pouco avanço global, Brasil renasce em esperança

A 27ª edição da Conferência do Clima (COP 27), que aconteceu em Sharm El-Sheikh, Egito, terminou hoje, 18 de novembro. Sob o mote central da implementação, o evento teve o objetivo de chamar a atenção do planeta para a necessidade de avançar nos compromissos climáticos, além de ampliar a ambição dos países para conseguirmos atingir a meta de limitarmos o aumento da temperatura global em 1,5ºC até 2050. Ao longo das últimas duas semanas, observamos, por um lado, a disputa em torno da agenda de negociação da Conferência, e, por outro, uma ação entusiasmada da sociedade civil brasileira, que ocupou os pavilhões de atividades com a alegria de costume e ciceroneou a chegada do governo de transição. A presença do candidato eleito à Presidência do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, foi muito aguardada e concentrou as atenções na agenda da segunda semana de evento.

Do ponto de vista da negociação, o mote da “implementação” trouxe para o centro das discussões temas caros aos países em desenvolvimento: financiamento, adaptação e perdas e danos. A meta de 100 bilhões de dólares anuais para o financiamento de ações de mitigação climática, anunciada em 2009, durante a COP 15, realizada em Copenhague, nunca foi cumprida. Esses recursos, ofertados pelos países mais ricos, deveriam apoiar a implementação de medidas de combate às mudanças climáticas nos países no Sul Global, mas a meta nunca foi alcançada. Já a adaptação e as perdas e danos são duas agendas que buscam tanto evitar catástrofes climáticas antes que elas aconteçam quanto reparar os danos causados por eventos climáticos extremos ou de “desenvolvimento lento”, como o aumento do nível do mar, que provoca deslocamentos de pessoas e altera paisagens e dinâmicas ecossistêmicas.

O não cumprimento da meta de financiamento denota a falta de compromisso das maiores economias do mundo com o seu histórico de emissões e com os efeitos que decisões tomadas no passado têm para o presente e para o futuro do planeta. Da mesma forma, o atraso na discussão de temas tão importantes quanto adaptação e perdas e danos mostra as relações de poder que atravessam a negociação na sua dimensão de colonialidade que imprimiu o ritmo das discussões nos últimos já quase trinta anos de regime climático global.  Uma das declarações de Lula mais vocalizadas nas conversas de corredor foi que, se por um lado, a sua volta reposiciona o Brasil nas negociações de clima, por outro, ele irá cobrar o cumprimento da meta de financiamento para mitigação. O discurso de Lula também foi forte quando criticou a ordem mundial, reafirmando o multilateralismo e apontando para a necessidade de rever o funcionamento do Conselho de Segurança da ONU. Reforçou ainda a importância das relações Sul-Sul, tendo a aliança com o continente Africano e com a América Latina como centrais para a defesa intransigente da Amazônia. “O Brasil voltou”, disse o presidente eleito.

No relato a seguir, contamos um pouco sobre a atuação do Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos) e como nos relacionamos com as principais pautas discutidas na COP 27. O Inesc teve uma participação muito ativa na Conferência, atuando em dois Side-Events (eventos paralelos) oficiais, em uma conferência de imprensa e em dois eventos do Brazil Climate Action Hub, além de articular, via grupo Carta de Belém, um  manifesto sobre mercado de carbono, assinada por diversas organizações da sociedade civil.

Financiamento climático global e questão indígena

Na mesa que debateu o  financiamento climático global, ocorrida no sábado 13/11, o Inesc questionou a contradição entre o reconhecimento dos povos indígenas e comunidades locais como vanguarda no enfrentamento da crise climática e a dificuldade para a chegada de recursos para a preservação de Terras Indígenas. Trata-se de uma lógica colonial que precisa ser quebrada para, de fato, avançarmos.

Apenas 1% do recurso da Ajuda Oficial para o Desenvolvimento Climático chegou aos povos indígenas de todo o mundo em dez anos (RNF, 2021) e, dentre o recurso já gasto do fundo prometido em Glasgow na COP 26 para os povos indígenas, apenas 7% chegou diretamente a eles.

Os povos indígenas são fruto e autores das florestas, possuindo ferramentas próprias para preservar seus territórios. Uma dessas ferramentas são os Planos de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) de Terras Indígenas, nos quais as discussões comunitárias se articulam em propostas para o território. O Inesc elaborou uma metodologia de estimativas de custo de implementação de PGTA por acreditar que o financiamento climático deve reconhecer a autonomia e ser investido em projetos dos próprios povos indígenas.  Ainda que alinhada com a luta dos povos originários, essa aposta escapa de uma tendência majoritária na COP 27, focada em soluções e mecanismos de mercado.  Essa suposta inevitabilidade do mercado também é herança colonial, como se as soluções para a crise que este modelo de desenvolvimento criou só pudessem vir dele.

Mercados de carbono

Na segunda semana do evento, a sociedade civil brasileira lançou um manifesto contra os mercados de carbono. O objetivo da carta foi chamar a atenção mundial para os perigos da inclusão das florestas nos mecanismos de mercado para o financiamento climático, bem como para o lobby e a entrada em peso da iniciativa privada nos espaços de negociação. No documento, as organizações signatárias defendem que o financiamento climático internacional para florestas e para combater o desmatamento estejam “subordinados a políticas públicas estruturantes e fontes de financiamento no marco do orçamento público, da institucionalidade, da governança pública brasileira e da soberania nacional”. Além disso, reivindicam que “as doações internacionais relacionadas a estes resultados devem ser desvinculadas do teto de gastos do orçamento”.

As organizações que assinam o manifesto são: Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib); Coordenação dos Povos Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab); Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq); Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (Contag); Central Única dos Trabalhadores (CUT); Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Socioambiental (FMCJS); Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais (FBOMS); Grupo Carta de Belém (GCB); Memorial Chico Mendes; Movimento do Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST); Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase); Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc); Instituto de Referência Negra Peregum; Terra de Direitos; Uneafro Brasil; Movimento de Mulheres Camponesas; Marcha Mundial das Mulheres. Clique aqui para ler a carta

Por uma transição energética justa e livre do gás natural

O Inesc também participou do lançamento da Coalizão Energia Limpa – transição justa e livre do gás, em que organizações da sociedade civil, articulam-se coletivamente diante do desmonte e retrocesso vivido pelo setor energético brasileiro nos últimos anos. Isso pôde ser visto na privatização da Eletrobrás, na falta de planejamento do setor elétrico que resultou na crise hídrica dos reservatórios das hidrelétricas, na criação de programa que defende a manutenção do carvão mineral para geração de energia, no aumento tarifário nas contas de energia, além do aumento das importações de gás natural liquefeito, representado na expansão de combustíveis fósseis, sobretudo do gás natural, que se estruturaram diante de incentivos fiscais e subsídios por parte do governo federal.

A Coalizão Energia Limpa defende que o gás natural não deve fazer parte de uma transição energética e deve ser banido da nossa matriz até 2050, dado o grande potencial de energia renovável que o Brasil possui e que pode ser explorado de maneira ambientalmente sustentável e socialmente justa, garantindo a seguridade do sistema.

O lançamento da Coalizão convergiu com as falas do Presidente Lula, em seus discursos nesta COP. Ele deixou claro que enxerga o potencial energético renovável brasileiro, além de garantir que não vai permitir exploração de gás natural em Terras Indígenas. Logo, saímos com a expectativa de que o Brasil poderá avançar rumo à uma transição energética com justiça social.

Transição energética justa requer NDCs transparentes e redução dos subsídios aos combustíveis fósseis

A internalização do Acordo de Paris na esfera nacional se dá por meio das Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs na sigla em inglês). São nelas que aparecem os planos de mitigação e adaptação às mudanças climáticas, assim como as metas de redução de emissões. Diferente dos acordos climáticos do passado, todos os países a partir de Paris precisam ter suas NDCs, que são o principal instrumento pelo qual conseguimos acompanhar a ambição e os esforços de cada país rumo à meta de limitar o aumento em 1,5ºC da temperatura terrestre.

Participamos de um Side-Event que reuniu análises de seis países sobre suas NDCs: Brasil, Colômbia, Israel, Suiça, Burkina Faso e Georgia. O principal resultado é o de que ainda estamos longe de termos NDCs que são transparentes, comparáveis entre si e que contam com a participação da sociedade civil. As conversas nessa COP 27 nos deram alguma esperança de uniformização de informações a partir do Enhanced Transparency Framework (ETF), mas resultados concretos só estão sendo prometidos para 2024. Infelizmente ainda falta muito para garantir que a sociedade faça parte da construção e implementação das NDCs pelo mundo.

Lançamos nesta COP 27 a quinta edição do nosso estudo sobre subsídios aos combustíveis fósseis, que calculou quase R$ 120 bilhões em gastos diretos e indiretos fornecidos pelo governo para consumidores e produtores de petróleo, gás e carvão. O lançamento se deu em mais um Side-Event oficial da Conferência, onde foram compartilhadas experiências de subsídios aos fósseis em seis países: Brasil, Argentina, Canadá, África do Sul, Índia e Indonésia.

Apesar das diferenças enormes entre os países, as similaridades são impressionantes. Todos ainda possuem fortes estruturas de subsídios aos combustíveis fósseis, ainda que a maioria não possua estimativas oficiais desses incentivos. Ademais, a maioria também está enfrentando a expansão do gás, que está sendo vendido globalmente como uma energia que favorece a transição energética, apesar de ainda ser muito danosa às pessoas e ao meio ambiente.

Além disso, a maioria dos países aumentou os subsídios ao consumo de fósseis nos últimos anos, como resposta ao aumento dos preços internacionais de energia. A mensagem de todas as ativistas do evento foi a mesma: esses subsídios devem ser focalizados nos mais vulneráveis e limitados no tempo. A resposta de longo prazo é reduzir a dependência dos fósseis por meio de uma transição energética com justiça social.

Apesar da urgência de abandonarmos os combustíveis fósseis, os Estados, influenciados pelo forte lobby do setor fóssil presente na COP, ainda não conseguiram se comprometer com o fim da energia suja. A ONU publicou um primeiro rascunho dia 17 de novembro do que poderá ser o acordo final dessa Cúpula, e repete a meta de Glasgow de “acelerar as medidas para a redução gradual da energia a carvão e eliminar gradualmente e racionalizar subsídios aos combustíveis fósseis”. Neste ritmo, estaremos muito longe de cumprir o Acordo de Paris e combater a crise climática.

Discurso do Lula

Apesar de ainda não ter assumido a presidência, Lula fez na COP 27 um discurso de chefe de Estado. Sua participação anunciou a volta do Brasil para as discussões climáticas internacionais, adotando uma postura de cobrança para que os acordos sejam verdadeiramente cumpridos, assim como o retorno do diálogo entre sociedade civil e governo brasileiro. Em meio a tanta saudade de um país minimamente funcional, Lula e sua delegação foram recebidos como pop star no evento.

Diante da hegemonia do mercado, do agronegócio e do setor privado no debate do clima, Lula deu centralidade ao combate à fome e aos crimes ambientais, se comprometendo a zerar o desmatamento em todos os biomas do Brasil até 2030. Reafirmou mais uma vez a criação Ministério dos Povos Originários como medida fundamental, mas também, de novo, deixou de fora o compromisso direto em acabar com o passivo da demarcação de terras no país. Declarou ser urgente repensar a forma como o multilateralismo funciona, dizendo ainda que irá batalhar pela reforma da ONU.  Ressaltou a responsabilidade e a necessidade do cumprimento das promessas de financiamento por parte dos países desenvolvidos: “Eu voltei e vou cobrar”.

Tom parecido se repetiu na reunião organizada com a sociedade civil. Nela, Lula ouviu integrantes de diversos movimentos e setores e afirmou que, a partir da próxima COP, o Brasil voltará a ter apenas uma delegação, prometendo assim escuta e participação dos movimentos nos espaços oficiais. Reafirmou os compromissos feitos no discurso e na campanha e garantiu a realização de conferências temáticas ao longo de seu governo.

É com um sentimento de esperança que a sociedade civil organizada sai desta COP. Após quatro anos de negacionismo climático e de isolamento da sociedade por parte do governo, a abertura do diálogo mostra que podemos ter um novo caminho para trilhar. Há riscos, no entanto, nessa ‘lua-de-mel’ entre sociedade civil e governo. Com parâmetros tão baixos como os que tivemos ao longo da gestão Bolsonaro, é fácil nos encantarmos com os discursos sensatos e bonitos de Lula. A emergência climática, no entanto, requer medidas concretas e urgentes. Assim, temos ainda a tarefa de pressionar para que haja o detalhamento das propostas, tendo a sociedade civil, os movimentos sociais, os povos originários e comunidades tradicionais com partícipes integrais da construção de um novo Brasil.

Poucas decisões concretas

As decisões das negociações ainda não saíram oficialmente, mas já sabemos que pouco se avançará de fato na implementação dos acordos, especialmente no que tange ao financiamento das medidas por parte do Norte global. Se as narrativas pró-mercado parecem ter ganhado ainda mais força, a concretização do financiamento para perdas e danos e adaptação parece estagnada. Fica ainda mais explícito que, caso os acordos feitos em fóruns internacionais como a COP não sejam efetivamente vinculantes, seguiremos caminhando rumo ao abismo.

 

Equipe do Inesc na COP 27, no Egito

Cássio Cardoso Carvalho
Iara Pietricovsky
Leila Saraiva
Livi Gerbase
Tatiana Oliveira

COP: 27 vezes frustrados. Esperança vem da sociedade civil organizada

Terminada a primeira semana da 27ª Conferência das Partes (COP) da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (UNFCCC), o sentimento é o de reafirmação das nossas frustrações e desesperanças com o processo que se iniciou há mais de trinta anos na Rio+92. Mais uma vez, os países ricos não querem admitir sua responsabilidade histórica na crise climática em que vivemos e esperam que os países em desenvolvimento paguem a conta. Se utilizando de uma estratégia de voltar a debates já superados, reabrindo constantemente temas na agenda acordada, os países do Norte Global bloqueiam qualquer possibilidade de uma resposta rápida e eficaz à crise climática.

Esta COP 27, sediada no Egito, foi definida como a da implementação, o que significa entender como vamos operacionalizar as regras do Acordo de Paris – firmado há sete anos – e garantir os meios de implementá-lo. Os três pontos fundamentais da negociação são: 1) o tema do financiamento, que desde o início vem sendo postergado e não avança além de uma promessa inicial da Conferência de garantir U$ 100 bilhões por ano para o Fundo Verde pelo Clima; 2) políticas de adaptação, que são aquelas necessárias para o enfrentamento das consequências já existentes das mudanças climáticas; e 3) Perdas e Danos, demanda de reparação negociada na COP 26, em Glasgow, pelos países que já estão em situação de vulnerabilidade extrema. Infelizmente, esses temas dependem de vontade política para serem postos em prática, o que até o momento não existe.

De quem é a conta? 

Os países ricos fogem à responsabilidade, não reconhecendo o princípio das Responsabilidades Comuns Porém Diferenciadas (CBDR, sigla em inglês), que se refere às responsabilidades históricas dos países que criaram o atual modelo econômico predatório e dele se beneficiaram. Este princípio garante a justa e histórica compensação de um modelo imposto e promotor da crise climática que vivemos no planeta. A primeira semana de negociações da COP não trouxe nenhuma novidade: os países ricos ainda não querem pagar a conta. Os movimentos sociais e jovens seguem aqui na COP 27 em protesto constante, pois não há mais tempo a ser perdido.

O governo brasileiro na COP 27

Já o Brasil na COP 27 é o retrato do negacionismo climático que sintetiza os últimos quatro anos de governo Bolsonaro. Isso fica materializado no estande oficial do governo brasileiro, esvaziado, e mostrando a falta de protagonismo diante das pautas climáticas e energéticas que preponderam dentro da Convenção, papel esse que o Brasil já desempenhou.

A esperança está na sociedade civil

 No entanto, a sociedade civil organizada apresenta em outro espaço, o Brazil Climate Action Hub, no qual debates e propostas abrangem temas como racismo ambiental e energético, retomada das políticas de fiscalização das florestas, consequências da expansão das fontes fósseis de energia, entre outros, de maneira a evidenciar um contraponto ao negacionismo e ao papel retrógrado que o Brasil se colocou nos últimos anos. Há, porém, uma grande expectativa de que o novo governo Lula retome uma política ambiental eficiente e que assuma compromissos que construam e solidifiquem as políticas de adaptação brasileiras e de transição energética com justiça social.

Agenda Inesc na primeira semana da COP 27 


Acordos comerciais 

Embora fora da agenda climática oficial, a liberalização comercial tangencia a questão das mudanças climáticas, na medida em que se comporta como um vetor para a retração de direitos socioeconômicos e ambientais. Em negociação há vinte anos, as discussões sobre o acordo entre Mercosul e União Europeia têm introduzido no debate público nacional e internacional preocupações relativas aos efeitos econômicos, sociais e ecológicos.

No dia 10/11, o Brazil Climate Hub acolheu discussão proposta por um conjunto de organizações que vêm tratando do tema: Frente Brasileira Contra Acordos Comerciais, Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip), Fase, Inesc, ISPN, IPAM, WWF, Rede Cerrado e Instituto Cerrado. O objetivo do painel foi discutir o impacto climático das cadeias globais de valor relacionadas ao agronegócio nacional, com olhar específico para as transformações do uso da terra no Cerrado. Considerando as relações complexas entre a produção de commodities, a exportação desses gêneros e as suas consequências negativas para povos e territórios, o debate abordou ainda os desafios que persistem na negociação do Acordo, a falta de transparência nas negociações e os desafios para o próximo governo eleito.

A sociedade civil brasileira tem se posicionado historicamente de maneira contrária aos tratados de livre comércio, porque entende que esse tipo de acordo reproduz estruturas de desigualdade nas relações entre os países e estabelece um regime de trocas ecológicas desiguais, incentivando o extrativismo predatório e a violação de direitos humanos.

Pauta indígena

A luta dos povos originários do Brasil está muito bem representada pela robusta e diversa delegação indígena, contando com lideranças de todos os biomas. A bancada do cocar se fez presente, com as deputadas eleitas Sônia Guajajara e Célia Xakriabá, e a atual parlamentar Joênia Wapixana. Entre as várias discussões que envolveram os povos indígenas como atores fundamentais para o enfrentamento das mudanças climáticas, vale destacarmos a sessão ocorrida no dia 10/11 no Brasil Hub: “A Justiça Climática e os tribunais: A proteção dos Direitos Humanos no Contexto da Crise Climática”.  Participaram da sessão César Rodriguez-Guaravito (Climate Littigation Accelerator), Sophie Marjanac (Earth Grey Liston), Gerry Liston (Glan), Sônia Guajajara e o Ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso.  

O ministro Barroso ressaltou a importância dos acordos climáticos como garantidores de direitos fundamentais e, portanto, passíveis de ações de litigância. A partir da sua experiência como relator da ADPF 708, na qual o Supremo decidiu por proibir o contingenciamento do Fundo Clima, Barroso destacou que, ainda que as metas do Acordo de Paris não sejam vinculantes, Estados nacionais que deliberadamente assumem uma política oposta a ele podem e devem ser acionados judicialmente. Este é um precedente importante não apenas para garantir que financiamentos como o Fundo Clima sejam executados, mas também contra a captura que vivemos nos últimos anos em órgãos importantes para a proteção ambiental, a exemplo do Ibama e da Funai.

A solução da crise climática está na ação nacional. Precisamos atuar e pressionar os nossos governos para que os acordos, as legislações se concretizem na realidade local. E não o inverso. Por mais que as negociações não se movimentem, existe agora no Egito um encontro gigantesco da sociedade civil de todas as partes do mundo. 

Equipe do Inesc na COP27, no Egito
Cássio Cardoso Carvalho
Iara Pietricovsky
Leila Saraiva
Livi Gerbase
Tatiana Oliveira

Renovação na política: o que diz a distribuição dos recursos?

Mais mulheres no poder, mais pessoas negras, indígenas, LGBTQIAP+ ocupando a política! Seja nos partidos do espectro da direita, do centro ou da esquerda, todos têm se utilizado de algumas ou todas essas e outras bandeiras sociais que reivindicam maior pluralidade e diversidade na política brasileira. Cotas de candidaturas de mulheres e porcentagem de recursos, também para pessoas autodeclaradas negras com prazo definido para repasse do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), são algumas das normativas criadas para que os partidos não só respeitem as regras de distribuição equitativa do Fundo, mas demonstrem vontade política nessa distribuição. Assim como em 2018, faltando tão poucos dias para a decisão das eleições de 2022, tanto candidaturas femininas quando de pessoas negras denunciam que os repasses não foram integralmente repassados pelos partidos. Assistiremos a mais uma anistia?

A distribuição dos recursos públicos dos partidos, bem como as doações, que poderíamos destacar como apoio da sociedade civil, uma vez que só podem ser feitas por pessoas físicas, traduzem essa “vontade política” por mais diversidade e representatividade no poder? Renovação no poder poderia ser definida pela entrada e permanência de pessoas que, historicamente, não atuavam na política institucional até os últimos anos? O que seria elemento fundamental para que a pluralidade das candidaturas refletisse a pluralidade de pessoas efetivamente eleitas e eleitos? Podemos concordar que recurso financeiro é um investimento político importante para que essa realidade se materialize?

Vamos aos recursos!

Há 5 dias das eleições, das 29.555 candidaturas registradas, 7.067, ou 24%, não declararam recebimento de nenhum recurso financeiro público (FEFC) para suas campanhas. No que se refere às doações às campanhas, dos quase de R$ 680 milhões doados por pessoas físicas, apenas 13% ou aproximadamente R$ 89 milhões foram destinados a candidaturas de mulheres, e 4% ou pouco mais de R$ 26 milhões foram destinados a candidaturas pretas. Esse dado só reforça a importância da existência de um fundo público que busque garantir a distribuição mais equitativa dos recursos, também construindo regramentos que incidam no repasse feito pelos partidos políticos.

Alguns números nos ajudam a debater sobre a distância entre o discurso da renovação e a distribuição de recursos financeiros. De acordo com o levantamento da Plataforma 72horas, até 27 de setembro de 2022, enquanto 10.612 candidaturas que pleiteiam a cadeira de deputada(o) estadual declararam o recebimento de pouco mais de R$1 bilhão, as 10.648 candidaturas que disputam as 513 cadeiras da Câmara Federal declararam aproximadamente R$2,5 bilhões.

Considerando então o investimento maior dos partidos nas candidaturas a deputado(a) federal, como a divisão dos recursos vem sendo realizada e como podemos utilizá-la como lente para pensarmos sobre renovação ou manutenção de espaços do poder institucional?

Ainda de acordo com a Plataforma 72 horas, das 10. 628 candidaturas que estão na disputa pela Câmara Federal, 448 disputam a reeleição pelas 513 cadeiras. Ou seja, 4,2% do total de candidaturas são para reeleição, e correspondem a 87,3% das cadeiras. Quando analisamos a distribuição de recursos, as candidaturas a reeleição declararam até o momento o recebimento de R$747.417.252, sendo 61 candidatas e 367 candidatos, que somados às 2 candidatas e 18 candidatos que não declararam recebimento do Fundo Especial, totalizam 448 candidaturas. Numa conta simples, que sabemos não ser assim, significa dizer que cada candidata e candidato à reeleição para a Câmara Federal recebeu em média, até o momento e subtraídas as 20 candidaturas que declararam não terem recebido nada, R$1,7milhão.

Já às candidaturas que não concorrem à reeleição, que totalizam 7.207 dividem o recurso de R$ 1,7 bilhão, o que significaria, também utilizando a divisão igualitária, caso o fosse, uma média de R$ 239 mil.

Consideremos então as candidaturas à reeleição. Antes, é importante destacar que a lente a ser utilizada nesta leitura não pode ser a da igualdade, pois como bem sabemos, a desigualdade estrutural da sociedade brasileira nos convoca a agir de maneira equitativa, quando consideramos a correlação desigual de forças que resultam na permanente ocupação dos lugares sociais e políticos de poder por uma

parcela masculina, branca e cisheteronormativa da sociedade. Sendo assim, quando nos referimos à reeleição, é preciso destacar que a recente história de ocupação de mulheres, pessoas negras, indígenas, LGBTQIAP+ na política institucional não pode, nem de longe, ser considerada “manutenção de poder”, visto que são grupos recém-chegados nesses espaços.

Dito isso, vamos verificar o que os dados nos dizem. Das candidaturas à reeleição, no que se refere à raça/cor, 312 das 428, ou 72,89% das pessoas que receberam recursos, são brancas, 114, ou 26,63%, são  pessoas negras, 01 ou 0,23%, é indígena e 01 ou 0,23% é amarela. No que se refere ao gênero, são 367 homens, ou 86%, e 67 mulheres, ou 14%.

Infelizmente, a luta por maior representatividade na política, ainda se restringe às cotas das candidaturas e não efetivamente ocupação de cadeiras, o que seria um passo fundamental para começarmos a falar de um impacto real rumo a equidade e reparação histórica da sociedade brasileira com os povos originários, com a população negra e com as mulheres no Brasil.

O escandaloso racismo institucional nas Eleições de 2022

“O escandaloso racismo institucional nas Eleições de 2022” foi um texto publicado originalmente no dia 21 de setembro, no Le Monde Diplomatique.

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) determinou que, nas Eleições de 2022, os partidos seriam obrigados a repassar, até o dia 13 de setembro, 100% do recurso da cota de gênero e raça/cor às candidaturas de mulheres e pessoas negras, o que corresponde a 30% do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC). A determinação do TSE ocorreu porque nas Eleições de 2020, o atraso no repasse prejudicou as candidaturas desses grupos sociais.

A regra determina que a prestação de contas parcial deve ser feita ao Sistema de Prestação de Contas Eleitorais (SPCE) em até 72 horas a partir do recebimento do recurso[1]. Considerando o prazo, o cenário ficou da seguinte forma: foi repassado um montante de R$ 4,7 bilhões a todas as candidaturas, sendo R$ 4 bilhões do FEFC, R$ 236,9 milhões do Fundo Partidário e R$ 448,3 milhões de doações. Dos R$ 4 bilhões do FEFC, 30,6% foi repassado a mulheres e 69,4% para homens, e em relação ao recorte racial, o repasse foi de 36% para negros/as (pretos/as + pardos/as) e 62,7% para brancos/as. A determinação do TSE foi, portanto, cumprida.

No entanto, as desigualdades na distribuição dos recursos de campanha ainda são gritantes, revelando o persistente racismo institucional partidário, conforme pudemos checar na Plataforma 72Horas. Avaliando todas as fontes de recursos, as mulheres brancas, pardas e amarelas ficam muito atrás dos homens dentro do seu grupo racial. Às mulheres brancas foi destinado 35,6% do valor recebido por homens da mesma cor, ou seja, enquanto eles foram beneficiados com R$ 2,2 bilhões, elas ficaram com R$ 800,6 milhões. As mulheres pardas receberam R$ 384,3 milhões (52% a menos do que as mulheres brancas) e os homens pardos R$ 866,5 milhões (61,5% a menos que os homens brancos).

Nas candidaturas indígenas, onde há proporção mais equânime de número de candidaturas (94 homens e 77 mulheres), a distribuição do recurso foi mais equitativa: dos R$ 28,7 milhões distribuídos para 133 candidaturas, as mulheres ficaram com R$ 12,9 milhões e os homens com R$ 16,5 milhões. Atenção ao fato de que não foi destinado nenhum recurso para 38 candidaturas indígenas. Faltando duas semanas para o 1º turno das eleições, tal ocorrência pode indicar uma escolha dos partidos em não viabilizar indígenas, de fato, no pleito. No grupo de autodeclarados pretos e pretas, que na distribuição de candidaturas ficou em 55,7% e 44,3% respectivamente, a distribuição do recurso também se deu, até o momento, com maior equidade: a mulheres pretas foram destinados R$ 190,7 milhões (1.361 candidatas) e aos homens pretos R$ 202,7 milhões (1.529 candidatos). Considerando o grupo de candidaturas pretas, 616 homens e 316 mulheres não receberam recurso algum.

Homens brancos receberam 10 vezes mais do que homens pretos

Comparando os homens brancos com os homens pretos, a diferença é enorme. Os primeiros acessaram mais de R$ 2,2 bilhões e os segundos apenas 9% disso, ou R$ 202,7 milhões. Já entre as mulheres, as brancas somaram R$ 880,6 milhões, enquanto as pretas, apenas, R$ 190,7 milhões. Nas candidaturas, para cada preto, existem 4,2 candidatos brancos. Mas, para cada R$ 1,00 do candidato preto, o branco recebe R$ 10,00.

Entre os presidenciáveis, que totalizam 11 candidaturas, os únicos dois que se declaram pretos – Leonardo Péricles (UP) e Vera Lúcia Salgado (PSTU) –, receberam, apenas, R$ 1,2 milhão e R$ 825 mil, respectivamente. Os valores representam 1% do recurso alocado em campanhas presidenciais, que somam R$ 207,6 milhões. Lula, Ciro e Tebet foram beneficiados com R$ 89,8 milhões, R$ 26 milhões e R$ 36,7 milhões, respectivamente. Jair Bolsonaro, publicamente avesso ao fundo público – ainda que esteja enfrentando denúncias de uso de recursos públicos de forma ilegal para sua campanha–, recebeu R$ 25,7 milhões, sendo R$ 846 mil reais do FFEC, R$ 13 milhões do Fundo Partidário e R$ 11 milhões de doações. Os brancos representam 63,6% das candidaturas ao cargo.

Espectro político

Em consideração ao espectro político, o centro (MDB, Solidariedade, PSDB, Avante e PROS) repassou R$ 832,7 milhões para 3.711 candidaturas, sendo R$ 282,6 milhões para 1.304 mulheres e R$ 550 milhões para 2.407 homens, sendo a coligação mais equânime com 35% de candidatas e 34% dos recursos a elas distribuídos. O grupo de partidos formado pela esquerda se saiu bem na cota de candidatas, com 37% de mulheres. Todavia, distribuiu somente 28% do recurso para elas. Dos R$ 1,2 bilhão para 5.898 candidaturas, foram R$ 349,9 milhões para 2.171 mulheres e R$ 877,3 milhões para 3.727 homens (PSOL, PCdoB, PSTU, PT, PCO, PCB, PDT, PSB, UP, PMN, Cidadania, Rede e PV). A direita também apresenta uma injusta distribuição, uma vez que as mulheres receberam somente 27% dos recursos quando são um terço das candidatas. Entre os partidos de direita, dos R$ 1,9 bilhão repassados a 9.197 candidaturas, R$ 531,7 milhões foram repassados a 3.003 mulheres candidatas e R$ 1,4 bilhão para 6.094 homens (PL, União, DEM, PSL, DC, PMB, PRTB, Novo, PP, AGIR, PTB, Podemos, PSC e Patriotas).

Candidaturas a governo do estado também distribuíram mal

Um dos piores dados do processo das Eleições de 2022 foi o de que oito estados, dos 27 da Federação, não lançaram candidatas mulheres para o cargo de governadora. São eles: Alagoas, Amapá, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Maranhão, Rondônia e Santa Catarina. De um total de 206 candidaturas a governador, 83,5% são de homens e 16,3% de mulheres. Os candidatos homens, que somam 170 pessoas, receberam R$ 484,8 milhões, e as 36 candidatas a governadora receberam, juntas, R$ 51,3 milhões. Para as pessoas brancas que pleiteiam esse cargo, o repasse foi de R$ 385,7 milhões, enquanto que para os pardos foi de R$ 130,3 milhões. Já para os pretos, foi de apenas R$ 15,3 milhões. Os dois candidatos que se declararam indígenas receberam R$ 4,6 milhões. Não há candidaturas de autodeclarados amarelos

[1] Acesso 16 de setembro, 12:00, fonte: Plataforma 72 horas. Isso porque (1) os partidos tiveram 72 horas para prestar contas do que gastaram até dia 13/09, e (2) ao mesmo tempo, podem ter prestado contas de gastos dos dias 14 e 15/09.

Trabalho infantil e orçamento público: investimento na manutenção das desigualdades

 

E duas crianças se encontraram
Uma dentro, outra fora do carro importado
Que estava ali sorridente
Havia passeado num natal abençoado com pai, mãe, parentes
No banco traseiro, vários presentes, diversas cores, fitas reluzentes
No encosto do banco tem até um vídeo game
Hipnotizada não desviava o olhar a frente
Mal notou a outra criança
Parada na janela, que ao ver a cena ficou alerta
Nunca tinha visto uma tela
Tão pequena, suspirou um encanto de uma forma tão serena
E duas crianças se encontraram, uma dentro e outra fora de um carro importado
O local? Precisamente um semáforo. Tão vermelho como o rosto do João queimado
João olhava no carro como se fosse um espelho
Equilibrava balinhas, chicletes e um pouco de dinheiro
Nos poucos segundos da cena João sonhou com o vídeo game que nunca jogou
Se perguntou: se eu fosse ele e se ele fosse eu?
E o mesmo respondeu: Seria tão bom experimentar o Danone
Sem o gosto azedo do aterro desde ontem
Fome? Eu acho que ele não tem, problemas? Eu acho que ele não tem
Um pai? Com certeza ele tem, mas ‘peraí’ pensando bem
Tanto eletrônico pra esse menino brincar, ninguém olha pra ele, ambos no celular
Ele me viu, chamou o pai tocando no ombro
O pai respondeu gritando, quase tive um assombro
O pai dele parece irmão com o meu que nessa manhã mesmo me bateu
Pois acordei tarde pra trabalhar, queria um pai que brigasse comigo pra eu estudar
E duas crianças se encontraram, uma dentro e outra fora de um carro importado
E mesmo com o fumê se enxergaram, por alguns segundos se olharam (…)
O que ele faz com doce, balinha? Abordando os carros num calor de meio dia?
Não está com uniforme de escolinha
Qual será a melhor vida a dele ou a minha?
São apenas crianças, são apenas crianças
Querem pais de verdade, mães de verdade, família de verdade. Querem infância!
E duas crianças se encontraram, uma dentro e outra fora de um carro
Por alguns segundos se olharam e um pequeno sorriso trocaram
Até o sinal abrir, uma seguir, outra ficar
Uma para possivelmente se “divertir” e a outra pra trabalhar, pra trabalhar (…)

Música Duas Crianças, de Markão Aborígine

 

 

A música e a arte são poderosos instrumentos de denúncia das violências que acometem nossa sociedade. O rapper e compositor Markão Aborígine em sua música ‘Duas Crianças’ revela de forma sensível e inteligível as desigualdades existentes que impactam diretamente as infâncias no nosso país. O trabalho infantil é um dos termômetros mais infalíveis para medir o nível de desenvolvimento social, político, cultural e econômico de uma nação. Quanto maior a desigualdade ou o empobrecimento do país, maior a taxa de trabalho infantil, que pode ser determinada também por uma incapacidade institucional de promoção de políticas de proteção social ou mesmo por uma escolha política de geração de riqueza concentrada num grupo pequeno da população, como tem acontecido no Brasil.

O aumento de crianças e adolescentes vendendo balinhas no semáforo, como ilustrado na música, não se deu somente pela catástrofe que foi e está sendo a pandemia da Covid-19 no mundo, mas sim pela gestão do país que decidiu por não investir em políticas sociais antes e no período desta crise mundial. O que reverberou no agravamento da pobreza e da fome, em fragilidades educacionais pela necessidade do isolamento social, na elevação do desemprego e de informalidade e, consequentemente, no aumento do trabalho infantil. Mesmo sem termos pesquisas recentes, é possível perceber no nosso dia-a-dia o número crescente de meninos e meninas nas mais diversas situações de trabalho, muitas delas de alta periculosidade.

O trabalho infantil no Brasil acontece desde os anos 1500, como menciona Elisiane Santos: “A história da infância pobre é uma história de trabalho. O Brasil, desde a colonização, utilizou a mão de obra infantil”[1]. E isso caracteriza o perfil das crianças e adolescentes nesse contexto hoje, onde 66,1% são negras, de acordo com o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI). O ciclo de empobrecimento e entrada no mundo de trabalho precarizado e de forma precoce é engendrado pelo racismo estrutural do Brasil, país marcado pela escravização e pela falta de políticas públicas de emprego, renda, acesso à terra e educação de qualidade após a dita abolição da escravidão.

Alguns anos antes da Lei Aurea, foi sancionada a Lei do Ventre Livre, que dava “liberdade” às crianças nascidas a partir daquela data. Contudo, quando completados os 8 anos, elas deveriam prestar serviços aos senhores de suas mães até os 21 anos, caso contrário ficariam a cargo do Estado e este pagaria uma indenização ao senhor de engenho. Essas indenizações estão vigentes até hoje, mas em outra roupagem. Quando o Estado abre mão de proteger suas crianças do trabalho infantil, ele está dando permissão à exploração dessa população, em que 337 mil estão na faixa etária de cinco a 13 anos. Isso beneficia e gera riqueza para grupos específicos. E as consequências para quem o vivencia é a manutenção do ciclo de pobreza, de pouca ou nenhuma escolarização, de acesso precário ao emprego e não ascensão social que se perpetua entre as gerações de diversas famílias brasileiras.

Explorar o trabalho infantil é um projeto de governo

A análise do orçamento público voltado para o enfrentamento do trabalho infantil mostra o quão importante é a atuação do Estado nesta área. Entre os anos de 2016 e 2019, quando o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil ainda recebia recursos federais mais volumosos, foi possível diminuir em 0,6 pontos percentuais a quantidade de meninas e meninos na situação de trabalho. O que significa uma diferença de 335 mil crianças e adolescentes. Ainda assim, não foi um número significativo considerando o tamanho do problema: 1,8 milhão de crianças e adolescentes em trabalho infantil em 2019. Portanto, ainda há grande necessidade de atuação do Estado e da sociedade para eliminar a sistemática violação desse direito.

No entanto, o descaso no governo federal é generalizado. Se o Brasil não agir com celeridade e efetividade nas políticas de proteção social para crianças, adolescentes e suas famílias, a meta 8.7 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU: “acabar com todas as formas de trabalho infantil até 2025” não será alcançada. Como pode ser observado na Tabela 1, os recursos para o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), de responsabilidade do Ministério da Cidadania, foram zerados no governo Bolsonaro.

Tabela 1[2]

Os recursos federais disponíveis para o programa, que até 2020 estavam dispostos numa rubrica intitulada Ações Estratégicas para Enfrentamento ao Trabalho Infantil, e em 2021 e 2022, como Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, diminuíram 94,4% (em termos reais) em 2019 na comparação com 2015, início da gestão anterior. E no que tange à execução financeira, a diferença nesse mesmo período foi de 84,1%, o que significa uma perda de R$ 27,8 milhões. Mas se compararmos com 2016, início da vigência do Plano Plurianual (PPA) do período, essa diferença sobe para 94,7%, uma perda de R$ 108 milhões.

A situação nos anos seguintes é ainda mais catastrófica. Recursos autorizados em 2021 em míseros valores não foram executados, e em 2022, apesar do valor disponível de R$ 9,4 milhões, até maio não havia um centavo gasto, nem ao menos empenhado. Esse contexto se relaciona com a extinção da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil (Conaeti) em 2019. Apesar de ter sido reinstituída em 2020, enfrenta sérias limitações de participação de organizações historicamente comprometidas com a erradicação do trabalho infantil no Brasil, como é o caso do FNPETI, Conanda e Ministério Público do Trabalho. Sem participação social e sem recursos, a consequência é a não realização das ações e metas do III Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil que finaliza em 2022.

O PETI não deixou de existir e integra a política de assistência social, que também vem sendo desmontada pelos últimos governos, principalmente a partir da aprovação da Emenda Constitucional 95 que impõe um teto de gastos para as despesas com políticas públicas. Os munícipios não têm condições de financiar a política de assistência sozinhos, portanto, os repasses do governo federal são essenciais para o fortalecimento do atendimento às comunidades. A capital do Brasil, por exemplo, tem demonstrado, vergonhosamente, o que significa esse sucateamento da assistência, com pessoas dormindo em filas em frente aos Centros de Referência de Assistência Social (Cras) para conseguir uma vaga de atendimento com o objetivo de atualização de seus dados no Cadastro Único para recebimento de benefícios.

Ainda sobre o orçamento do governo federal é importante mencionar que entre 2013 e 2017 havia uma rubrica intitulada Fiscalização para Erradicação do Trabalho Infantil com recursos da ordem de R$ 4 a R$ 6 milhões de responsabilidade do Ministério do Trabalho. Tal rubrica deixou de existir em 2018. E no âmbito do judiciário, há um programa de Combate ao Trabalho Infantil e de Estímulo à Aprendizagem criado em 2013, porém configurado com esse nome a partir de 2016 a cargo do Tribunal Superior do Trabalho (TST). Tem como meta principal a sensibilização e mobilização da sociedade, dos profissionais que atuam com crianças e adolescentes e das mídias para a importância da prevenção e do enfrentamento do trabalho infantil por meio de campanhas, pesquisas, seminários e processos formativos no tema.

Tabela 2

Os recursos deste programa são distribuídos entre os tribunais regionais do trabalho mediante apresentação de planos de ação. A Tabela 2 mostra uma queda nos valores disponíveis para 2020, mas retomando em 2021 o patamar de 2019 em termos de recursos autorizados. No entanto, a execução financeira em 2021 foi muito baixa: apenas 24% do valor autorizado.

 

A “vontade” política precisa ser pautada pela promoção e proteção dos direitos

“Meu sonho é poder trabalhar, trabalhar para comprar comida, comer bem” (Menina, 11 anos, Itapoã-DF, maio de 2022)[3]

A crueldade de um país que violenta crianças e adolescentes por meio da fome, da pobreza e das desigualdades (porque todas essas condições são construídas) é retirar deles e delas a possibilidade de sonhar. As necessidades básicas não devem ser sonhos, porque são direitos e por isso devem ser cumpridos pelos responsáveis por sua efetivação.

O enfrentamento do trabalho infantil ancora-se no entendimento de que 1) o trabalho na infância é degradante e prejudica o desenvolvimento integral; 2) toda criança e adolescente, independentemente de classe, raça, cor, etnia ou território, é sujeito de direitos e deve acessá-los de modo a poder ampliar sua capacidade de sonhar. E para isso, os governos precisam investir, urgentemente, em políticas de proteção social e de educação de qualidade. O país convive atualmente com 33,1 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar e nutricional grave por conta de decisão política. É preciso que nos mobilizemos nesse momento e que votemos nas próximas eleições em candidaturas que proponham mudar essa realidade e que tenham como prioridade os direitos das crianças e dos adolescentes em sua agenda.

Recomendações

– Revogação da Emenda Constitucional 95;

– Maior orçamento e execução do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil com transferência de renda para famílias com crianças e adolescentes e avaliações periódicas do programa;

– Ampliação do número de beneficiários e dos valores do programa de transferência de renda do governo federal (Auxílio Brasil ou Bolsa Família);

– Ampliação da Aprendizagem Profissional aumentando o piso para cotas de contratação de aprendizes;

– Cumprimento da meta 20 do Plano Nacional de Educação: atingir até 2024 10% do PIB em investimento em educação;

– Rever a composição da Conaeti por meio da alteração do decreto 10.574/2020;

– Maior aporte de recursos e execução para a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial;

– Proteger a lei atual que define a idade mínima para o trabalho no Brasil.

“Los ingresos fiscales que genera deben invertirse en programas y servicios que marquen la diferencia para los niños, sobre todo en materia de educación y protección social.” (OIT; UNICEF, 2021, p. 52)[4]

[1] Santos, Elisiane dos. Trabalho infantil nas ruas, pobreza e discriminação: crianças invisíveis nos faróis da cidade de São Paulo. São Paulo, 2017. Disponível em: <https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/31/31131/tde-01032018-123114/publico/Corrigida_ElisianeSantos.pdf>

[2] Aqui considera-se a linha histórica de 2014 a 2022, pois o Plano Orçamentário intitulado: Ações Estratégicas de Enfrentamento ao Trabalho Infantil só aparece no Siga Brasil (portal utilizado para análise dos dados orçamentários) a partir desse ano.

[3] Criança participante do Projeto Onda: Adolescentes em Movimento pelos Direitos do Inesc.

[4] OIT – Oficina Internacional del Trabajo y UNICEF – Fondo de las Naciones Unidas para la Infancia, Trabajo infantil: Estimaciones mundiales 2020, tendencias y el camino a seguir, OIT y UNICEF, Geneva and Nueva York, 2021.

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