Questão em debate – Previdência Social

Previdência Social em debate

 

Estudo lançado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA traz uma seleção de artigos que dialogam entre si na defesa da relevância e impactos da política social no Brasil, com destaque para a Previdência Social, Saúde, Educação, Transferência de Renda e Política de Emprego, Trabalho e Renda.

 

No caso da previdência social, o estudo propõe questões relevantes para animar o debate sobre seu papel na justiça distributiva e direito social, além de desmistificar argumentos usualmente utilizados sobre a necessidade de uma reforma previdenciária. Destacamos alguns pontos do estudo:

 

1. A tese da insustentabilidade fiscal do sistema de benefícios previdenciários não se sustenta tecnicamente.

Em artigo publicado neste estudo, Guilherme da Costa Delgado desconstroi o discurso da inevitabilidade da reforma da previdência social e reafirma sua importância para a justiça social no Brasil. Segundo o pesquisador, “um crescimento do PIB de 4% ao ano garantiria estabilidade na “necessidade de financiamento” do Regime Geral de Previdência Social – RGPS”. Isto, considerando o patamar atual de evolução da despesa e condicionados, principalmente, pelo crescimento do salário mínimo e do estoque de benefícios. Ou seja, do ponto de vista fiscal não existe um comprovado risco de explosão da necessidade de financiamento do RGPS, mantidas as regras atuais. Como também não se sustentam os argumentos de que essa necessidade de financiamento tenha impacto no déficit público, porque as contribuições sociais vinculadas ao financiamento da previdência social demonstram tendência de crescimento similar ao crescimento das despesas, estimado em cerca de 7,3% ao ano.

 

O necessário equilíbrio das contas da Previdência poderia ser garantido, segundo o pesquisador, com medidas de aprimoramento do sistema de gestão da Previdência Social, inibindo a aceleração de despesas, mas somente “acima daquilo que é necessário à garantia de direitos básicos”. Outra linha de esforços deveria ser ampliar o número de pessoas incluídas no sistema previdenciário. Um país como o Brasil, com elevado nível de informalidade — boa parte de caráter estrutural —, deveria repensar suas estratégias de filiação, incentivando com mais ênfase a entrada no sistema de 48% da população economicamente ativa – PEA, aproximadamente 11 milhões de pessoas, hoje sem proteção previdenciária.

 

2. Renda de um salário mínimo, de aposentados e pensionistas, tem expressivo impacto da redução da pobreza e indigência.

Estudo sobre os efeitos dos benefícios da previdência, assistência social e transferência de renda sobre a indigência e a pobreza, mostra que os atendidos pelo Benefício de prestação continuada – BPC e pelo RGPS, que recebem até um salário mínimo, representam dois terços do total de beneficiários e respondem por 45% do total do gasto com o sistema previdenciário. Esses recursos garantiram, em 2003, a retirada de 17 milhões de pessoas da linha de indigência. Em síntese, o estudo mostra que estes dois benefícios monetários têm conseguido garantir, com razoável sucesso, a manutenção da população vulnerável por motivos de idade ou deficiência acima das linhas de pobreza e indigência.

 

3. São significativos os impactos da previdência social na redução da pobreza e indigência nas regiões mais pobres.

O estudo sobre salário mínimo e mercado de trabalho mostra que os benefícios da Seguridade Social transferidos diretamente a indivíduos residentes em regiões de renda per capta inferior à média nacional têm cumprido um papel importante de transferência de renda para as regiões mais pobres. “O dinheiro das pensões e aposentadorias, vinculados ao salário mínimo, tem tido papel fundamental na sustentação da renda e do consumo das regiões mais pobres”, afirma o estudo, em especial se considerada a ausência de políticas explícitas de desenvolvimento territorial-local. 

 

Estudos como esse tem oferecido importante contribuição para o enfrentamento do debate sobre a reforma da Previdência. Argumentos como os aqui ressaltados ajudam a desconstruir o discurso falacioso do déficit previdenciário, estimulando, em contrapartida, um debate mais profundo sobre a importância do sistema previdenciário brasileiro na promoção da justiça social.

Acesse abaixo a integra do estudo do Ipea.

http://www.ipea.gov.br/sites/000/2/publicacoes/tds/td_1248.pdf

O futuro da reforma política

Por Edélcio Vigna, assessor político do Inesc

É preciso aprender com as derrotas. Segmentos democráticos importantes da sociedade civil defenderam com tenacidade a aprovação da lista fechada de candidatos a cargos legislativos, com alternância de gênero, no projeto de lei de reforma política que está em votação na Câmara dos Deputados.

A proposta foi enterrada na última semana de junho, pois obteve somente 41% do total dos votos na primeira votação e 46% na segunda. Não obtendo o quociente necessário de 257 votos para sua aprovação. O resultado da votação da lista fechada foi de 252 votos contrários contra 181 favoráveis e três abstenções. A diferença foi de 71 votos, de um total de 432 deputados federais votantes. O da votação da lista mista ou flex, ou seja, do requerimento que invertia a pauta para antecipar a votação da lista mista, foi de 240 votos “não” contra 202 votos “sim”, em um total de 443 votantes.

Apesar das votações serem diferentes, tiveram em comum o objeto em apreciação: a lista de parlamentares. Em ambas, o que estava em votação era a lista de parlamentares, apesar da diferença fundamental no conteúdo da matéria. Por isso, para efeito de análise, não vamos comparar as votações, mas as dissidências ocorridas em uma e outra. Assim, o objetivo é demonstrar que as dissidências partidárias apresentadas não afetaram a essência dos resultados, mas reafirmaram a falta de sintonia entre a Câmara dos Deputados e as propostas da Plataforma dos Movimentos Sociais para a Reforma do Sistema Político no Brasil.

O interessante nas votações é analisar o nível de dissidência partidária. Na votação da lista fechada, dos 437 votos, 78 foram votos dissidentes; ou seja, votos contrários à orientação das lideranças. O percentual de dissidência desta votação (18%) está na média de dissidência apresentada em outras sessões do Parlamento, demonstrando que os deputados não consideraram esta votação especial ou divisora de águas. De forma diferente, as organizações sociais que compõem a Plataforma dos Movimentos Sociais para a Reforma do Sistema Político no Brasil, tinham expectativas de que essa votação pudesse ser um primeiro passo no sentido de uma maior abertura do processo político brasileiro.

O Executivo, apesar de ter dado sinais de que apoiaria uma reforma política profunda, com lista fechada para que pudesse ser aprovado o financiamento público exclusivo de campanha, acabou liberando sua base parlamentar para votar conforme sua inclinação ou seu bloco partidário.

A base de apoio do governo no Congresso é formada pelos partidos: PMDB, PSC, PTC, PT, PSB, PDT, PCdoB, PMN, PHS e PRB. Os três primeiros partidos (PMDB, PSC e PTC), em consonância com a orientação do líder do Governo, liberaram seus deputados para votarem conforme suas consciências. Outra parte da base se posicionou contra a lista fechada e orientou o voto contrário (PRB, PSB, PDT, PCdoB, PMN e PHS). O PT orientou no sentido da aprovação da lista fechada.

Em relação ao primeiro bloco, que liberou o voto dos parlamentares, com exceção do PTC, que não tem mais representante, o PMDB praticamente rachou. Dos 77 parlamentares presentes na sessão[1], 35 votaram pela aprovação da lista fechada. Isso representa 45% da bancada pemedebista. Os seis deputados do PSC votaram contra a lista. O PT, que orientou “SIM” teve uma dissidência de apenas 3% da bancada. Dos seus 74 deputados, apenas dois votaram contra a lista fechada.

A segunda parte da base de apoio do governo orientou o voto contrário à lista fechada. Curiosamente, todos os parlamentares do PCdoB votaram contra a orientação da liderança do bloco: votaram a favor da lista fechada e em consonância com os anseios das organizações da sociedade civil. Dessa forma, caracteriza-se uma dissidência de 100%. O PCdoB alinhou-se ao PT e votou contrário à orientação do líder. O PSB teve uma dissidência de quatro de seus 22 deputados, o que representa uma dissidência de 18%. Os demais partidos (PRB, PDT, PMN e PHS) votaram de acordo com a orientação da liderança, contra a lista fechada.

Dos partidos de oposição, apenas dois – PSOL e DEM – orientaram o voto favorável à lista fechada. No DEM, houve uma dissidência de 18%, pois nove dos seus 59 deputados foram contrários à lista fechada. O PPS liberou sua bancada e dos seus dez parlamentares, quatro (40%) votaram de acordo com os anseios da sociedade civil. O restante (PSDB, PP, PR, PV e PTB) orientou o voto contrário. O PSDB, como maior partido de oposição, teve uma dissidência de 16% na sua bancada de 50 deputados. Oito parlamentares votaram pela lista fechada. O PP também teve uma dissidência de 6%. Isso significa que, dos seus 36 deputados, dois votaram favoráveis à lista fechada. Do PTB, dos 18 deputados apenas um (6%) votou contra a orientação do líder. A bancada do PV nas duas votações votou sem dissidências contra a proposta da lista fechada.

Nos bastidores do plenário da Câmara dos Deputados, antes da votação, houve a expectativa de que uma negociação pudesse resolver a questão da lista. Ficava evidente que a lista fechada estava sendo rejeitada à priori e que, para salvar as aparências, era necessário uma nova proposta. Assim, foi sugerida uma lista mista, que logo ganhou o irônico apelido de flex. Uma excrescência que só na imaginação de alguns parlamentares poderia dar certo. Muitos avaliam que, ao ser aventada esaa possibilidade, cavou-se a cova da reforma política.

Na votação da lista mista ou flex, o quorum para a votação foi um pouco maior. Dos 444 parlamentares, houve uma dissidência de 55, o que representa 12% do total. O interessante é a alteração na margem de dissidências partidárias ocorrida. Por exemplo, na votação da lista fechada, a dissidência no PSDB votando contra foi de 16%; na lista mista, foi de 4%. O PSB, com a mesma orientação, teve dissidência de 18% na lista fechada e de 4% na lista mista. No PMDB, a dissidência foi de 45% na lista fechada e de 22% na lista mista.

Mesmo com a diferença da margem de dissidência entre as duas votações, fica patente que os parlamentares não estavam em sintonia com os debates e avanços que a Plataforma dos Movimentos Sociais havia atingido e consolidado em suas deliberações, amplamente publicizadas. A consciência da necessidade de uma modernização do sistema eleitoral, por parte de uma parte dos deputados federais, não foi partilhada por uma maioria absoluta que pudesse aprovar uma alteração significativa na forma de votar do cidadão e da cidadã brasileiros.

A história, assim como o progresso da humanidade, não é linear. Ela ocorre por rupturas e de forma descontínua. Segmentos importantes da sociedade civil já avançaram e outros ainda estão no século XX. Novos debates deverão ocorrer mantendo mobilizadas mentes e corações. Novos confrontos de idéias serão provocados pelas contradições conjunturais até que possamos, como maioria significativa, avançarmos juntos.

A reforma política já começou para muitos e o que foi votado e o que será votado neste período não tem importância significativa diante do que será proposto e aprovado no futuro.

 

 

 


[1] No texto vamos considerar as bancadas como o número de deputados presentes na sessão, desconsiderando os ausentes.

 

Reforma do Sistema Político: devolver o poder ao povo.

 Reforma do Sistema Político:  devolver o poder ao povo

 

Jose Antonio Moroni

Colegiado de Gestão do  INESC

Diretor da executiva nacional da  ABONG

A reforma política é  tema recorrente na vida política brasileira. Está presente na agenda há vários anos, mas sempre orientada pelos interesses eleitorais e partidários. É o chamado casuísmo eleitoral — geralmente, alterações de curto prazo e de curta duração. Como por exemplo, a reeleição.   Por isso que a maioria da população  tem a concepção de reforma política apenas como reforma do sistema eleitoral.

Está presente, também, nas discussões acadêmicas e na mídia. Na academia mais como um objeto  a ser estudado/pesquisado e na mídia, quase sempre, como a solução de todos os males do país ou de forma pejorativa. Para ambos, um instrumento para melhorar a governabilidade do Estado (manter as elites no poder) ou, aumentar sua eficiência (como atender melhor aos interesses das elites).

No âmbito da sociedade civil organizada, das organizações e movimentos, que defendem o interesse público, aqui entendido como os interesses da maioria da população, e a radicalização da democracia, a reforma política está inserida em um contexto mais amplo que necessariamente diz respeito a mudanças no sistema político, na  cultura política, tanto na sociedade  como no  Estado.  Portanto na  forma de se  fazer e pensar a política.

Por isso os princípios democráticos que devem nortear uma verdadeira reforma política são:  da igualdade, da diversidade, da justiça, da liberdade, da participação, da  transparência e do controle social.  Em resumo, entendemos como reforma política a reforma do próprio processo de decisão, portanto, a reforma do poder e da forma de exercê-lo.  Quem exerce o poder, em nome de que se exerce o poder, quais os mecanismos de controle do poder. Em fim quem tem o poder de exercer o poder.

Uma verdadeira reforma política deve enfrentar problemas que estão na  origem  do nosso país, tais como, o patriarcado, o patrimonialismo, a  oligarquia, o nepotismo, o clientelismo, o personalismo e a corrupção. A corrupção aqui entendida também como a usurpação do poder do povo. Isso se manifesta em frases  que escutamos em todos os lugares, “votar para quê, se voto para mudar e as  coisas não  mudam” ou “votar para quê, se depois eles  fazem o que querem”.

Na Carta de 88, os constituintes elegeram como os objetivos fundamentais da República Brasileira “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, “garantir o desenvolvimento nacional”, “erradicar a pobreza, a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”, “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, etnia, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” e  que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”.

Se todo o poder emana do povo, conforme  define a nossa Constituição, pensar  a  reforma política é pensar como este poder deve ser devolvido ao povo que tem o direito de exercê-lo de  forma  direta e não apenas por delegação.

A incapacidade das instituições vigentes de concretizarem plenamente os objetivos da Constituição, o aumento do sentimento de distância entre os/as eleitores/as e seus/suas representantes coloca em risco a crença nos processos  democráticos. Este é um risco que não podemos correr.

Democracia é muito mais que o direito de votar e ser votado. Não podemos apenas ser chamados a participar nos momentos eleitorais. Precisamos  criar novos mecanismos de participação,  que resgate o poder de decisão da população.

A Reforma Política que defendemos visa a radicalização da democracia, para enfrentar as desigualdades e a exclusão, promover a diversidade, fomentar a participação cidadã. Isto significa uma reforma que amplie as possibilidades e oportunidades de participação política, capaz de incluir e processar os projetos de transformação social que segmentos historicamente excluídos dos espaços de poder, como as mulheres,  afro­descendentes,  homossexuais,  indígenas, jovens,  pessoas com deficiência,  idosos e todos os  despossuídos de direitos trazem para o  cenário político.

Não queremos a “inclusão” nesta ordem que aí está. Queremos mudar esta ordem. Por isto, pensamos o debate sobre a Reforma do Sistema Político como um elemento-chave na crítica às relações que estruturam este mesmo sistema.  Entendemos que o patrimonialismo e o patriarcado a ele associado; o clientelismo e o nepotismo que sempre o acompanha; a relação entre o populismo e o personalismo, que eliminam os princípios éticos e democráticos da política; as oligarquias, escoltadas pela corrupção e sustentadas em múltiplas formas de exclusão (pelo racismo, pelo etnocentrismo, pelo machismo, pela homofobia e outras formas de discriminação) são elementos estruturantes do atual sistema político brasileiro que queremos transformar.

A construção de uma verdadeira reforma do sistema político precisa estar alicerçada em cinco eixos:

1 – Fortalecer a democracia direta;

2 – Fortalecer a democracia participativa;

3 – Aprimorar a democracia representativa: sistema eleitoral e partidos políticos

4 – Democratizar a informação e a comunicação e a

5- Democratização do  Poder Judiciário

A reforma política deve dar nova regulamentação às formas de manifestação da soberania popular expressas na Constituição Federal (plebiscito, referendo e iniciativa popular), conforme projeto de lei, proposto pela OAB e CNBB, em tramitação no Congresso Nacional. Precisa também criar novas formas e mecanismos de participação direta. Mas para isso é fundamental o acesso as informações públicas, entre elas as orçamentárias. É uma vergonha que até hoje no Brasil o Executivo não disponibilize de forma clara e transparente essas  informações.

Precisa também repensar a atual arquitetura da participação. A multiplicação de espaços participativos  não significa automaticamente a partilha de poder.  Isso ficou evidente no processo de consulta realizado em 2003  sobre o Plano Plurianual – PPA, onde nenhum dos acordos feitos em relação a continuidade do processo  foram  cumpridos, tanto pelo Executivo como no Parlamento.  Precisamos  caminhar na direção da construção de um sistema integrado de participação  que inclua a política econômica e não  apenas as políticas sociais.

Precisamos aprimorar e fortalecer a democracia representativa. Priorizando a democratização dos partidos e a qualificação dos processos eleitorais. A fidelidade partidária, financiamento público exclusivo de campanha, votação em lista fechada e a possibilidade de revogação de mandatos pela população  devem  ser prioridades. Antes de tudo é necessário criar a equidade nas disputas políticas que se  fazem via mecanismos da democracia  representativa.

Uma reforma política que  fique restrita apenas ao sistema eleitoral não serve à sociedade. Discutir apenas a fidelidade partidária, o financiamento publico de campanha, votação em lista pré-ordenada é uma reforma de perfumaria. Precisamos ir além, muito além.

É preciso democratizar a vida social, as relações entre homens e mulheres, crianças e adultos, jovens e idosos, na vida privada e na esfera pública. É preciso democratizar as relações de poder.  Portanto democracia é muito mais que apenas um sistema político formal, é também a forma como as pessoas se relacionam e se organizam. Neste sentido, reforma política é devolver o poder ao povo do qual ele nunca devia ter retirado.

MP do agronegócio legaliza concentração de terras na Amazônia


   O presidente Lula assinou uma Medida Provisória que possibilitará aos latifundiários e às transnacionais do agronegócio a se apoderarem de mais terras na Amazônia Legal. O texto da MP foi inspirado pela Bancada Ruralista, sob a liderança do líder do governo no Senado, o senador Romero Jucá. Há alguns anos atrás a regularização estava limitada em imóveis rurais de até 100 hectares, depois foi ampliada para 500 hectares e agora triplicada para 1.500 hectares.

Essa medida abre possibilidade para que o agronegócio avance sobre as glebas dos posseiros e das famílias de agricultores/as e, como detentor do capital financeiro, compre as áreas regularizadas. Esse processo concentrador de terra e poder na Amazônia Legal vai aumentar o poder dos seus aliados políticos, a Bancada Ruralista. Essa estratégia é parte do um avanço do território do agronegócio sobre o território dos camponeses e dos indígenas, onde se encontra a riqueza dos recursos naturais. A tendência de savanização da Amazônia, apontada pelas pesquisas sobre mudança climática, vai acentuar-se com o desmatamento que virá após a compra das terras pelo agronegócio.

Essa possessão do agronegócio não é expressão do desenvolvimento, nem do crescimento do país, mas uma forma de exterminar a cultura rural camponesa e indígena de resistência diante das previsões contrárias às suas sobrevivências. A tendência de territorialização do agronegócio significa a monopolização do território camponês. Assim, não se pode aceitar a expanção do agronegócio como um processo de modernização e de valorização da vida.

O senador Romero Jucá, durante a cerimônia de assinatura da MP pelo presidente Lula, declarou que esta era uma “MP do Congresso”. Essa declaração poderia soar como uma ironia se não fosse apenas uma tirada política e se a competência de edição de MP não fosse exclusiva do presidente da República e o Congresso não estivesse, justamente, discutindo a redução de edições de MPs, que travam a pauta legislativa, impedindo as propostas de lei de serem votadas no plenário.

O senador Jucá, como ministro da Previdência Social foi alvo da mídia, que até hoje assombra o senador. A Agência Senado[1] confirmou que o senador do PMDB/RR é investigado nos inquéritos nº 2221 (apura denúncias feitas quando Jucá era ministro da Previdência Social, em 2005) e nº 2116 (suspeita de irregularidades em empréstimos feitos pelo Banco da Amazônia para a empresa Frangonorte) que tramitam no Supremo Tribunal Federal, ambos sob segredo de Justiça.

O presidente Lula, na cerimônia de lançamento da MP, lembrou aos parlamentares presentes que “é preciso que o Legislativo vote a reforma tributária” e que “o Congresso precisa levar a cabo a reforma tributária“. Em bom politiquez, a mensagem é a seguinte: assino a MP do agronegócio e vocês votam a reforma tributária. Isso é o que chamamos nos bastidores da ciência política de apresentar a fatura no momento da compra.

A senadora Serys Slhessarenko (PT-MT) parabenizou o presidente Lula pela assinatura da medida provisória. E afirmou, candidamente, assim como o diretor de Ordenamento da Estrutura Fundiária do Incra, Roberto Kiel, que a aprovação da MP do agronegócio deverá beneficiar 90% dos posseiros da Amazônia. Porém, Kiel, vai além ao afimar que “agora eles poderão comprar do governo federal as terras que já ocupavam há anos e não vão precisar de concorrer com outros interessados”.

Diante dessas expressões de êxtases dos ruralistas, de alguns parlamentares e de técnicos do governo, perguntamos o que os ex-posseiros ganharão com a MP. Roberto Kiel, em nota do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), responde: “receberá a Certidão de Cadastro de Imóvel Rural e terá sua propriedade incluída no Sistema Nacional de Cadastro Rural. Isso permitirá a realização de transações imobiliárias (como a venda e o desmembramento do imóvel rural) e possibilitará o acesso às políticas públicas (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar –Pronaf)”.

Sabe-se que o Pronaf não está passando por seus melhores momentos. Há uma série de pesquisas que demonstram certa inadimplência dos tomadores de empréstimos junto ao programa. A Revista de Economia e Sociologia Rural traz um relatório da pesquisa de Carlos Guanziroli[2] que afirma que “o atraso é maior quando o risco é do Tesour, chegando a 48% no caso do PRONAF/C. O grupo A/C também registrou alto índice de atraso. Dados do Ministério de Integração Regional referido aos Fundos Constitucionais da região Norte mostram índices de inadimplência bastante altos em 2004: PROCERA: 42,6%, PRONAF/A: 3,4%, PRONAF/C: 8,1%, PRONAF/D: 4,2%”. Acrescenta, o estudo, que os dados de inadimplência não são muito altos porque parte dessas dívidas foi renegociada, tendo sido acordados  novos prazos de vencimento, o que oculta o verdadeiro atraso dos créditos.

Assim, nas entrelinhas da declaração do diretor de Ordenamento da Estrutura Fundiária do Incra, pode-se inferir a possibilidade de compra das terras pelo agronegócio e de como uma política de crédito rural, como o Pronaf, pode não ser a melhor oferta do Estado para os/as agricultores/as familiares. Assim, a falaciosa declaração de que 90% dos posseiros da Amazônia poderão ser beneficiados começa a soar mais como uma ameaça do que uma saída para seus problemas[3].

A Medida Provisória levada ao presidente da República pela Bancada Ruralista para que se amplie a área dos imóveis a serem regularizados na Amazônia Legal de 500 hectares para 1.500 hectares é um cavalo de tróia. No bojo do encantamento da possibilidade dos camponeses de obterem o título de propriedade de suas posses há, em verdade, uma armadilha de apoderamento de suas terras.

Se essa MP é tudo o que pensamos que seja, é importante que os movimentos sociais do campo saibam, de fato, o que vão enfrentar. Que comecem a se mobilizar contra essa medida patológica, que amplia o poder político de um grupo organizado de parlamentares no sentido de extinguir os elementos resistentes da cultura rural camponesa e indígena.



[2] Carlos E. Guanziroli, Rev. Econ. Sociol. Rural v.45 n.2 Brasília abr./jun. 2007.

[3] Em 2005, em Alagoas, pelo Banco do Nordeste do Brasil (BNB), somente no Pronaf/B a inadimplência atinge 3.808 alagoanos. Em algumas agências do Banco do Brasil, a inadimplência varia em até 50%, sendo a maior concentração de falta de pagamento no Pronaf/C (O Jornal, 5/6/2005, Dívidas impedem que produtores rurais tomem novos empréstimos, http://www.faeal.org.br/info_detail.asp?id=174).  Em dezembro/2007, o Banco do Nordeste suspendeu a liberação de recursos do Pronaf/B em 23 municípios do Norte de Minas e Vales do Jequitinhonha e Mucuri. O motivo é que nesses municípios o índice de inadimplência superou 15% em relação ao valor total dos contratos em vigor. (Assessoria de Comunicação, Emater-MG faz campanha para melhorar aplicação do crédito rural, http://www.emater.mg.gov.br/portal.cgi?flagweb=site_tpl_paginas_internas&id=1352)

 

Relator do Orçamento corta R$ 265 milhões da reforma agrária

 Relator do Orçamento corta R$ 265 milhões da reforma agrária

Edélcio Vigna

Assessor Reforma Agrária e Soberania Alimentar

Inesc

 

Um dos princípios basilares do Orçamento da União é a anualidade. O orçamento deve compreender o período de um exercício financeiro, que corresponde ao ano fiscal[1]. A Constituição Federal diz, no artigo n.º 35 das Disposições Transitórias , que “a lei orçamentária da União será encaminhada até quatro meses antes do encerramento do exercício financeiro e devolvido para sanção até o encerramento da sessão legislativa”, mas não prevê nenhum tipo de punição em caso do não cumprimento dos prazos estabelecidos. Ocorre que, quando a disputa política fica acirrada, os parlamentares dão um jeitinho e postergam a votação. O orçamento de 2008, sancionado pelo Congresso Nacional no último dia 12 de março, deverá ser sancionado antes do final do mês. O grande atraso na votação do orçamento deste ano foi decorrente da rejeição da CPMF pelo Senado Federal. O rombo foi grande e as receitas que viriam desta taxa evaporam-se. Foi necessário que o governo e o Congresso fizessem uma recomposição das receitas frente às despesas. Assim, até o momento, o governo tem utilizado a cada mês um mecanismo de executar apenas 1/12 dos recursos previstos para o ano. Nesta recomposição, um grupo de programas teve seus recursos diminuídos e, entre eles, os que tratavam das políticas sociais. Dessa forma, os programas que compõem o orçamento da reforma agrária foram atingidos, perdendo R$ 265,1 milhões.

Tabela 1

Programas – Valores previstos no PLOA 2008 para a Função: ORGANIZAÇÃO AGRÁRIA

Programa

PL

Autografo

Dif.  (Autógrafo – PL)

ASSENTAMENTOS PARA TRABALHADORES RURAIS

965.231.000

956.449.600

-8.781.400

DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL DE PROJETOS DE ASSENTAMENTO

1.997.421.726

1.913.625.570

-83.796.156

GERENCIAMENTO DA ESTRUTURA FUNDIÁRIA E DESTINAÇÃO DE TERRAS PÚBLICAS

78.402.600

80.211.359

1.808.759

GESTÃO DA POLÍTICA DE DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO

34.950.000

30.910.000

-4.040.000

AGRICULTURA FAMILIAR – PRONAF

264.991.011

267.966.809

2.975.798

APOIO ADMINISTRATIVO

496.381.383

473.366.126

-23.015.257

CRÉDITO FUNDIÁRIO

580.440.817

517.100.824

-63.339.993

PAZ NO CAMPO

12.300.000

10.300.000

-2.000.000

DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL DE TERRITÓRIOS RURAIS

245.436.000

229.634.630

-15.801.370

BRASIL QUILOMBOLA

77.800.234

62.320.188

-15.480.046

EDUCAÇÃO DO CAMPO (PRONERA)

67.576.471

55.016.472

-12.559.999

CONSERVAÇÃO, MANEJO E USO SUSTENTÁVEL DA AGROBIODIVERSIDADE

1.250.000

1.250.000

0

ASSISTÊNCIA TÉCNICA E EXTENSÃO RURAL NA AGRICULTURA FAMILIAR

395.990.350

365.083.550

-30.906.800

CIDADANIA E EFETIVAÇÃO DE DIREITOS DAS MULHERES

29.500.000

19.300.000

Impressões sobre a Cúpula Social de Cochabamba

A Cúpula Social pela Integração dos Povos foi uma das reuniões da sociedade civil organizada mais interessantes, coloridas e politicamente construtivas. Reuniu, em especial, a América do Sul, mas com ampla presença latino-americana, além de representantes europeus, norte-americanos e, em menor escala, asiáticos. Não sei se houve representação da África, a conferir. O mais interessante é que pela primeira vez os grupos e movimentos ali reunidos não estavam se preparando para se opor ou protestar nas ruas contra a Conferência da Comunidade Sul-Americana de Nações – CASA.

 

Mas, olhando para o conjunto das organizações e movimentos sociais da América do Sul, que era o objetivo primeiro desta reunião, ficou evidente a riqueza política, a consciência de que se está gestando algo novo no cenário político regional e, por conseqüência, novas provocações e possibilidades para as nações da região. Países, com diferentes dinâmicas sociais, políticas e históricas. Em comum, a permanente exploração e expropriação de seus recursos naturais e humanos. Integraram-se ao mundo como periferia do capitalismo.

 

A Conferência trouxe a evidência de como uma dada realidade nacional pode interferir e ajudar na politização de outro espaço nacional. A Bolívia, sede do encontro, tem sido um dos países mais fortes na referência política dos movimentos sociais, organizações não-governamentais e de parlamentares do campo da esquerda progressista. Ela vem politizando de uma maneira inédita e renovada toda a região e inspirando o mundo.

 

Juntaram-se, de forma concentrada nas mais de três mil pessoas representando organizações da sociedade civil atuantes em diferentes campos e temas, movimentos camponeses, de mulheres, indígenas, Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros – GLBTs, aliás com uma visibilidade fantástica ao lado dos Quéchuas e Aimaras da Bolívia e Equador; Guaranis, do Paraguai; Mapuches, do Chile e, para acrescentar, os camponeses da Via Campesina, organizações de pequenos agricultores familiares. Faltaram os indígenas do Brasil? Um colorido, uma diversidade e uma beleza humana de tal força e energia que poucas vezes foram experimentadas nos vários Fóruns mundiais desde o Fórum Social Mundial em Porto Alegre até a Cúpula Social de Integração dos Povos que ocorreram em outros espaços do planeta por mim experimentados. Um verdadeiro ato cultural na busca da emancipação, da autonomia, soberania e na construção de caminhos democráticos mais profundos e mais que isso: a construção de uma cidadania sul-americana. Experimentar olhar para nossas faces não européias e admirar sua força e beleza, agilidade e colorido em seu pequeno porte é uma experiência de viver a alteridade, a construção do orgulho de ser cidadão e cidadã latino-americana em oposição ao “branco” que se impôs como padrão de beleza, inteligência e dominação. Que capturou povos e sonhos para impor sua visão de mundo.

 

Os temas fundamentais debatidos se estruturaram em torno do debate da integração. Como criar e pensar a cidadania regional sul-americana? O Instituto Americano, local onde se realizou a Cúpula Social, ficou recheada de gente, de manifestações, debates analíticos, construção de propostas e de estratégias políticas que pudessem ampliar, fortalecer, aprofundar as relações intra e entre regiões.  América do Sul e América Central e Caribe, América do Sul e África.

 

Infra-estrutura, energia com ênfase nos recursos hídricos, migração, emprego, militarização, integração comercial solidária, sustentabilidade ambiental, gênero, povos indígenas, agricultura familiar, entre muito outros temas assinalados e debatidos demonstrando o tamanho da complexidade e diversidade de temas que o eixo integração exige. Como construir novos valores que permitam o desenvolvimento de outra lógica no processo de integração, uma lógica não predatória do meio ambiente, não deletéria das relações entre os povos e que se construa com base em uma complementariedade das cadeias produtivas dos diversos países?

 

Entre vários debates voltados para a discussão da integração foram apresentados alguns pontos que merecem nossa reflexão:

 

1) Existe um consenso que vivemos na região um momento bastante privilegiado para o debate da integração regional, tanto nos espaços da sociedade civil organizada e movimentos sociais como nos espaços governamentais e parlamentos da região.  Entretanto, eles encerram muitos paradoxos e contradições, segundo os vários debates realizados na Cúpula.

 

Percebe-se uma forte tensão entre uma direita conservadora, que quer aprofundamento do modelo existente, e uma outra onda muito forte e inédita que está buscando outros caminhos, outros valores, outra base produtiva e cultural para a região e para o mundo. De um lado, Brasil, Bolívia, Venezuela, Argentina, Uruguai, Equador (mais recente) e Chile liderando, com diferentes matizes e intensidades a chamada nova esquerda e de outro, Peru, Colômbia, Paraguai, entre outros, liderando o aprofundamento conservador e aprofundando relação subalterna aos EUA.

 

Entretanto, este movimento para a centro-esquerda não garante que as propostas e valores demandados pelos movimentos sociais, sindicatos e ONGs do campo democrático progressista sejam efetivamente implementados por esta nova esquerda sul-americana. Ao contrário, as experiências têm demonstrado que mudanças mais estruturais que reduzam a imposição do capital e das grandes corporações sobre nossos governos e, como conseqüência, sobre nossas políticas públicas ainda estão longe de serem vislumbradas. Lula inseriu o combate à pobreza na agenda internacional, Kichner mostrou que é possível enfrentar a lógica do Banco Mundial e FMI, enquanto Chavez vem adotando uma política mais agressiva antiimperialista. A grande novidade está vindo da Bolívia, com Evo Morales na luta pela soberania e autonomia, invertendo a lógica do uso da terra e dos recursos naturais e quem são os beneficiários. Porém todos se posicionando mais coerentes com uma visão de um socialismo de mercado.

 

Do lado da sociedade civil, os grupos se organizam na tentativa de ampliar a consciência cidadã sobre o agravamento da situação econômica e os riscos ambientais determinados pelo atual modelo de desenvolvimento, assim como a fragilidade das instituições democráticas. Procuram romper barreiras e diferenças para ampliar sua capacidade de mobilização e comunicação de massa. Esse parece estar entre os desafios prioritários do movimento anti-globalização econômica. Existe um reconhecimento de uma nova circunstância regional para o debate da integração, porém cheia de incertezas de como fazê-la. Da mesma forma, se reconhece que uma alternativa não nasce de repente, mas de um processo que vai acumulando forças e experiências para produzirem mudanças.

 

 Desta forma um outro desafio prioritário deste debate é sair do espaço da resistência e se tornar propositivo, arriscar posições e alternativas que experimentem outra lógica, não só na elaboração e implementação de políticas inclusivas no âmbito nacional, mas também, na construção de propostas supranacionais que fortaleçam a região de forma solidária e complementar em todos os planos da relação humana e não só a comercial. Foi fundamentalmente disso que se falou em Cochabamba.

 

A região traz, desde a década de 90, um aprofundamento de um modelo de integração baseada na expansão comercial de modelo exportador, com crises sistemáticas que ampliam a competição entre os países, muito mais do que gerando sinergias. Dessa forma, os países entram na competição internacional em conflito uns contra os outros. A ALCA não aconteceu, mas em contrapartida, uma série de Acordos Bilaterais (TLCs) foram firmados pelo Chile, Peru, Colômbia, Uruguai, entre outros, o que produz contradições e fragilidades imensas na construção de uma comunidade sul-americana.

 

 É certo que nenhum país sozinho é capaz de enfrentar a lógica das corporações transnacionais que atuam sobre seus territórios ou mesmo enfrentar os conflitos entre as chamadas translatinas. Existem conflitos e competição na região em uma relação que expressa profundas assimetrias também. De certa forma, uma reprodução do que ocorre no plano global entre os países centrais e periféricos.

 

A região mudou politicamente e também no seu campo produtivo. A industrialização vem se reduzindo e o mercado de monoculturas de soja, açúcar, entre outras, vem tomando conta das áreas rurais e produzindo mais competição entre os países. As velhas categorias camponesas não servem mais para se entender o que está acontecendo na área rural que é ocupada por agricultores que pensam dentro de uma lógica empresarial, são mais empresários do que pequenos ou médios produtores.  Cada vez mais menos pessoas ocupam o campo e as tarefas se segmentam e se mercantilizam. Esse é outro camponês que está sendo forjado. Essas contradições precisam ser analisadas com profundidade pelos movimentos rurais e urbanos.

 

Dentro da Comunidade Sul-Americana acumulam-se tensões advindas da insistência em manter relações fundadas nas relações meramente comerciais; dependência internacional, etc. As alternativas possíveis passam pela construção de uma comunidade sul-americana que se coordene e se complemente em sua cadeia produtiva, quer seja industrial ou agrícola. Buscar formas ecológicas de produção agrícola, tecnologia limpa para produção de energia, preservação da água como bem público e com uso racional. Pensar a soberania dos povos e nações vinculadas às idéias de complementariedade produtiva, cultural e econômica.  Construir uma cidadania regional, aprofundamento democrático com parlamentos nacionais atuantes no plano regional e com processos fortemente participativos.

 

Essas foram questões apresentadas por vários painelistas durante a Cúpula Social pela Integração dos Povos ocorrida em Cochabamba, Bolívia neste final de ano. Temas fortes e que mostram o tamanho do problema que temos que enfrentar enquanto cidadãos e cidadãs desta região.

 

Do Ponto de vista dos Movimentos de ONGs

 

Outros debates foram desenvolvidos para tentar enfrentar o desafio das estratégias de comunicação e articulação com movimentos sociais, sindicatos e organizações não governamentais de outros continentes e intra-região. Muitos mapas das regiões e seus problemas de enfrentamento às imposições do neoliberalismo e seus mecanismos de pressão foram apresentados e desenvolvidas propostas de aproximação sobre eles. Neste sentido, África e Europa foram identificados como parceiros políticos fundamentais para a região.

 

Um dos maiores desafios tem ligação direta com os instrumentos e mecanismos de comunicação com objetivo de enfrentar o poder da chamada grande mídia. Como democratizar a informação, como criar linguagens que permitam entendimento dos debates internacionais na vida direta das pessoas? Houve análises sobre a iniciativa da Telesur da Venezuela e a possibilidade da criação de veículos de massa alternativos entre vários debates.

 

Debate dos Parlamentos no Contexto da Cúpula

 

A participação dos parlamentos nos processos de negociação comercial, entre outros, também foi tema de debate durante a Cúpula. Houve discussão sobre como valorizar o poder legislativo, mas, mais que isso, de como desenvolver um debate consistente para a criação de instituições legislativas regionais que possam construir uma cultura política que promova uma cidadania regional. Estiveram presentes deputados e senadores do Brasil, Paraguai, Uruguai, Bolívia, Argentina, além de representantes de organizações não-governamentais movimentos sociais e organizações internacionais.

 

Pensar o parlamento do MERCOSUL, Parlasul, Parlamento Andino, ou um parlamento da comunidade sul-americana que tenham como objetivo pensar os interesses e possibilidades solidárias e complementares para um projeto regional. Como produzir sinergias e integração entre as instituições sub-regionais? Como fortalecer processos de participação efetiva e forte dos movimentos sociais e organizações da sociedade civil no debate da cidadania regional, na defesa dos DHESCAS?  Como enfrentar os tratados comerciais e as propostas de infra-estrutura que estão se dando na região e trazer a discussão para os parlamentos? Enfim, muitos desafios.

 

Como pauta concreta, a criação de uma Frente Parlamentar Solidária nos parlamentos nacionais para atuarem como a semente de um grupo que pense essa cidadania regional sul-americana e, a partir dela, aprofundar a Frente Parlamentar Interamericana e de movimentos sociais para buscar caminhos alternativos às instituições existentes que não operam, são escoadouros de dinheiro público e que se burocratizaram totalmente.

 

Para enfrentar este debate, foi eleito um tema aglutinador: a matriz energética, em especial a água. Este tema permitiria desenvolver estudos e pesquisas de opinião dentro dos parlamentos para colocar o problema e começar o desenvolvimento de um pensamento articulado e regional sobre questões fundamentais como a soberania, a sobrevivência, o modelo produtivo e a construção de compartilhamento solidário, só para citar algumas questões que estão inseridas no debate da matriz energética e do uso da água. Outros temas foram levantados: migração, infra-estrutura, militarização, direitos humanos, direitos do trabalhador, etc.

 

Essa iniciativa busca construir, no marco desse novo ambiente de possibilidades da região, integrar os parlamentos no debate e trazer os conteúdos e acúmulos dos movimentos sociais para dentro dos parlamentos.

 

Reforma agrária e o PNDH-3

Brasília, terça-feira, 19 de Janeiro de 2010.

 

O PNDH-3 não é uma proposta descolada da vontade social. É resultado de um processo que mobilizou milhares de técnicos, autoridades governamentais, representantes e militantes de todos os setores da vida ativa nacional.

A Confederação Nacional da Agricultura, organização patronal presidida pela senadora Kátia Abreu, representante da Bancada Ruralista, não se conforma que a reforma agrária esteja entre as ações do PNDH-3. A reforma agrária, como uma política que garante a função social da propriedade rural, ultrapassa o poder de imaginação dos latifundiários.

O acesso à terra para este setor só pode ocorrer entre iguais.

As propostas de execução da reforma agrária estão no PNDH-3 como uma política de garantia do acesso à terra e à moradia para a população de baixa renda e de grupos sociais vulnerabilizados.

As ações definidas são as seguintes: fortalecer a reforma agrária; mapear as terras públicas; sanear os serviços notariais de registros imobiliários; garantir as terras indígenas; assegurar às comunidades quilombolas a posse dos seus territórios; garantir o acesso à terra às populações ribeirinhas, varzanteiras e pescadoras.

Não há nada de novo nestas propostas. O novo seria o governo executá-las plenamente.

Uma renovação é a proposta de integrar de forma harmoniosa as ações entre os diversos ministérios. A atuação interministerial tem dado bons resultados em alguns setores, como o da saúde, educação e programas de segurança alimentar.

Além disso, a sociedade civil tem o papel essencial de acompanhar a execução física e orçamentária das ações e pressionar para que as metas sejam cumpridas.

Há mais de dez anos as organizações sociais e sindicais do campo exigem o assentamento imediato de milhares de famílias acampadas em beira de estradas; assistência técnica; fim da grilagem de terras; e atualização dos índices de produtividade. Neste período, de FHC a Lula, os governos apresentaram avanços tímidos.

O numero de famílias assentadas no ano passado foi um dos mais baixos da década.

A execução orçamentária da função agrária não ultrapassou 50%.

As denúncias sobre grilagens de terras, em especial na Amazônia, são repetidas pela mídia a cada recorde de desmatamento ou queimada. No entanto, o governo desconhece onde estão as terras públicas e devolutas. Há uma sobreposição de títulos irregulares registrados em cartórios.

Por isso, qualquer proposta de mapear as terras públicas da União e sanear os serviços notariais, cancelando os títulos e registros irregulares, é bem-vinda.

A reforma agrária, que objetiva acabar com o minifúndio e o latifúndio, não é uma política apenas para os sem-terra ou com pouca terra mas um programa de reordenamento da estrutura fundiária. A Constituição federal registra que as terras públicas e devolutas serão compatibilizadas com o plano nacional de reforma agrária (artigo 188). Para isso, se faz necessário determinar quais são as terras indígenas e as quilombolas e quais as áreas de proteção ambiental permanente necessárias para manter o equilíbrio ambiental e a sustentabilidade dos biomas nacionais.

Neste sentido, o PNDH-3 avança ao garantir regularização e desintrusão das terras indígenas, além de assegurar às comunidades quilombolas a posse e a titulação dos territórios, preservando os sítios de valor simbólico e histórico.

Além de possibilitar às populações de várzeas, ribeirinhas e pescadoras o acesso aos recursos naturais para sua reprodução física, cultural e econômica.

 

Edelcio Vigna, assessor político do INESC.

(Artigo publicado nos jornais “O Globo” e “Jornal do Brasil’).

Reforma Política ampla, democrática e participativa

 

        Muito se tem falado — e não é de hoje —  em reformas no Brasil. Mas pouco se fala sobre a natureza dessas  reformas. Geralmente as reformas são apresentadas como a solução de todos os problemas e mazelas do país. Foi assim com a reforma da previdência, é assim com a  reforma   tributária.  Não é diferente com a chamada reforma política.  Ficamos com a sensação de que se a  reforma que “está na moda” não for  feita, o Brasil  corre o risco de acabar na próxima semana.

            Antes de mais nada precisamos analisar a natureza de cada reforma. Por exemplo, na reforma da previdência não houve a preocupação em como incluir os milhões de brasileiros e brasileiras que estão fora do sistema  previdenciário  e sim em uma  reforma para tirar  direitos conquistados pela luta dos/as trabalhadores/as, desmontar  o conceito de  seguridade social da Constituição de 1988 (saúde, previdência e assistência social) e, principalmente, em como desmontar o sistema público de previdência e incluir as  regras de mercado numa política de proteção social.  A reforma tributaria não é pensada com o objetivo de tornar o sistema tributário brasileiro mais justo  e sim equalizar as  disputas das  três esferas de governo pelos recursos. O sistema tributário brasileiro está entre os  mais  injustos do mundo, pois faz com que quem ganha menos contribua mais e quem  ganha mais  contribua menos, ferindo o princípio constitucional da progressividade das  tributações (quem mais  ganha,  contribui mais).

            Com a reforma política não é diferente. Ela é vista como uma forma de  equalizar as disputas de  poder pelos  grandes partidos. Por isso, tem um caráter apenas da reforma do sistema eleitoral e não a reforma de quem  exerce o poder, de como se exerce o poder, em nome de quem se  exerce o poder e quais os mecanismos que se tem de controlar o poder.  Enfim, a  reforma política deve ser a reforma do poder e não apenas do sistema eleitoral (que é conseqüência do sistema político que ai temos).

Tradicionalmente, no Brasil, a reforma  política entra na pauta do Congresso e do Executivo em momentos de escândalos,  crises políticas ou de  fragilidade da  hegemonia  do grupo que está no poder. Foi assim na ditadura militar quando o poder da Arena foi ameaçado pelo  MDB que podia ter  a maioria parlamentar. O poder de plantão resolveu a questão  conseguindo novos deputados e senadores  arenistas, através da  criação de  novos estados, seja por desmembramento dos existentes ou transformação dos  territórios em estados.  Sem  falar nos senadores biônicos.

            Na verdade o que está sendo chamado de reforma política não passa de uma reforma do sistema eleitoral, num momento de forte questionamento e desgaste da vida e da atuação política partidária.

A verdadeira reforma  política não se reduz  a reforma do voto, dos partidos ou da representação, mas sim a reforma das  instituições políticas e do Estado,  criando  uma nova forma de se exercer o poder e com mecanismos de controle público do Estado.  A verdadeira  reforma política devia partir   da  necessidade da ampliação dos espaços de participação cidadã  e  dos sujeitos politicos, isso é, deveríamos estar discutindo a democracia representativa, combinado com a democracia  participativa e direta.  Enfim um novo modelo de democracia, que reconheça as diferentes formas de se  fazer  política  e os seus diferentes sujeitos.

 

 

José Antônio Moroni, membro do colegiado de  gestão do Inesc (Instituto de  Estudos Socioeconômicos), da diretoria  executiva nacional da  ABONG (Associação Brasileira de ONGs) e do CDES (Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social).

PAC ou IIRSA Nacional?

O discurso de lançamento do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) feito pelo presidente Lula — prometendo um crescimento sustentável (não usou esta palavra) de pelo menos 5% ao ano do Produto Interno Bruto (PIB) e afirmar que o desenvolvimento não se deve realizar em prejuízo da democracia — não foi  unanimidade entre as organizações da sociedade civil. Tanto as entidades empresariais como as organizações sindicais apresentaram ressalvas.

O governo prevê investimentos da ordem de R$ 503,9 bilhões em quatro anos. A maior parte virá das empresas estatais (R$ 436 bilhões). Para 2007, há um montante de R$ 77 bilhões, em investimentos públicos, no orçamento da União, sendo R$ 49 bilhões de responsabilidade das empresas estatais e outros R$ 26 bilhões de aplicação do governo (orçamento fiscal e da seguridade social). É um projeto que conta, em grande parte, com recursos da iniciativa privada e a forte utilização das Parcerias Público-Privadas (PPPs). Até o momento, as PPPs não foram apropriadas pela iniciativa privada como um bom negócio. Há, também, uma série de restrições dos segmentos de esquerda, inclusive internacional.

Avaliamos que o programa está sendo implementado no sentido de auxiliar a execução de diversos projetos que estão programados no âmbito da Iniciativa de Infra-estrutura Sul-americana. É, digamos, a parte nacional da IIRSA. Alguns cientistas políticos estão indicando que o PAC pode indicar uma retomada do modelo no qual o Estado é provedor do desenvolvimento. Dessa forma, estaria sinalizando com a volta do Estado interventor na economia. Mas, o PAC pode entrar pelo caminho do insustentável e contradizer todos esses pareceres caso decisões, como as do Comitê de Política Monetária (COPOM) se multipliquem. A decisão do COPOM de diminuir o ritmo de redução da taxa de juros SELIC foi uma ducha de água fria no clima criado pelo presidente Lula a favor do crescimento do país Ao fixar a taxa em 13%, reduzindo somente 0,25%, o Comitê diz a quais interesse está servindo. Num clima de busca de apoio ao setor produtivo para investir mais e gerar mais empregos, reforçar os interesses do capital financeiro e especulativo é no mínimo um contra senso. É a luta da usura contra a produção, contra o crescimento.

O PAC foi apresentado não como um programa de governo, mas como um programa de Estado. Ambiciona-se que seus marcos não se delimitem somente a um mandato governamental, mas que se estendam por um largo tempo. Tanto o ministro da Fazenda, Guido Mantega, como a da Casa Civil, Dilma Rousset, se expressaram favoráveis à necessidade de o governo deixar um portfólio de projetos aos governos futuros.

O presidente Lula disse que o país deve acelerar seu crescimento, mas com responsabilidade e não como a música da jovem guarda em que entrávamos a 120 por hora na Rua Augusta. Naqueles dias, recordo, parávamos a quatro dedos da vitrine ou do desastre (mesmo nas curvas da estrada de Santos). Esperamos que o governo também possua bons freios para proteger, em especial, os segmentos mais vulneráveis da população. Pensamos nas populações indígenas, quilombolas, ribeirinhos e agricultores familiares e camponeses que sofrerão diretamente o impacto das obras programadas.

Neste sentido, o PAC não aborda nenhum programa de desconcentração da terra, em especial no Norte onde se concentram imensas áreas griladas. Onde a violência do latifúndio faz do trabalhador livre, escravo. Determina quem vive e quem morre. Sem nenhuma medida de desconcentração de poder a oligarquia agrária vai se apropriar, em grande parte dos R$ 8,1 bilhões que serão aplicados na melhoria e construção de estradas. As terras dos latifúndios serão valorizadas e o que era improdutivo passará a valer moeda corrente no mercado de capitais.

O PAC está divido em cinco blocos: as medidas de investimento em infra-estrutura, de estímulo ao crédito e financiamento, investimento institucional, desoneração tributária e medidas fiscais de longo prazo. O portfólio de infra-estrutura é o mais importante para o governo. Por isso, a sociedade civil e o Ministério Público devem se manter alerta, pois as obras, em geral, envolvem um alto grau de risco de corrupção, malversação e desvio de recursos públicos. O ministro Mantega expôs a possibilidade de o governo investir cerca de R$ 24 bilhões neste setor — equivalente a 1% do PIB. Se com isso o governo espera alavancar o PAC, imagine o quanto o país poderia avançar se investisse os R$ 166 bilhões que serão pagos de juros e serviço da dívida pública, este ano.

Dos outros blocos do programa, o que causa maior preocupação é o que diz respeito às leis ambientais. O presidente Lula fez uma declaração infeliz. Afirmou que as atuais leis ambientais estavam travando o desenvolvimento. O ministro Mantega, em sua exposição, reforçou tal declaração afirmando ser necessário melhorar o marco regulatório das leis ambientais para “abrir caminhos para que o investimento possa se realizar”. Esperamos que este sentimento bandeirante de “abrir caminhos” não ocorra com ônus ambiental e dos recursos naturais.

A apresentação do PAC como um programa de Estado é uma iniciativa importante. Lamentamos que ele tenha vindo à luz somente no segundo mandato e não no primeiro, onde as possibilidades de avançar seriam mais realistas. Além de observar a falta de ritmo política do governo, questionamos se os próximos governos terão a mesma avaliação das necessidades conjunturais.

Acreditamos que as organizações da sociedade civil do campo democrático se alinham à necessidade de um projeto de governo que impulsione o desenvolvimento nacional com justiça social. Avaliamos que a manutenção do crescimento do país em índices irrisórios, como os das duas últimas décadas, promoverá um acúmulo insustentável de injustiças sociais e de assimetrias regionais. Neste contexto, quem está sustentando os déficits nacionais são as classes economicamente menos favorecidas e as desigualdades regionais estão se ampliando em vez de diminuir as suas margens.

Aplaudimos a iniciativa do governo de dizer quais são os seus planos para os quatro anos de mandato, aonde vai jogar força e no que vai investir. Mas, é importante que as organizações sociais mantenham suas antenas ligadas, atentas à fiscalização e ao monitoramente dos projetos do PAC. Seria muito importante que os coletivos sociais promovessem avaliações constantes do desenvolvimento do PAC para manter a sociedade informada e mobilizada.

Entre o susto e a razão

O milênio começou com um susto, em 11 de setembro de 2001, mas, se os sustos passam, o medo costuma permanecer. O ano de 2007 se inicia com o atropelo das crises que se acumularam ao longo do tempo. O mundo está à espera da troca de império. Embora relutantes em deixar o mando, que dura quase um século, os Estados Unidos estão condenados a ocupar o segundo plano. Emergem os chineses, com uma agressiva estratégia para, inicialmente, substituir os ocidentais na tutela colonial da África, e, depois, estender sua influência sobre a Ásia e a América Latina. Será mais difícil seu avanço sobre a Europa, que se organiza para manter o predomínio cultural sobre o Ocidente.

O avanço chinês é visto com temor, tendo em vista sua imensa população. Se a ela se somarem os habitantes dos países próximos, como é o caso do Paquistão e a Índia, será a metade do mundo contra a outra metade. Nesse caso, provavelmente voltaremos à bipolarização e à guerra fria, como tem ocorrido sempre na História, ou ao desfecho bélico, quando o equilíbrio de poder se rompe. Mas todas essas perspectivas sombrias estão na dependência de outra, ainda mais sombria: a de que um desastre natural (ou provocado) venha a abreviar a presença do homem em nosso planeta. A advertência dos especialistas, acolhida pela ONU, e divulgada na semana passada, é fundada em evidências clamorosas. Mas, ainda mais assustadora, havia sido a advertência da própria natureza, com os maremotos da Ásia.

Se a estridência das informações ocas, e dos espetáculos que amortecem a razão e os sentimentos, deixassem aos neurônios algum tempo livres para a reflexão, poderíamos fazer um balanço positivo da nossa presença no planeta. Poderíamos, em primeiro lugar, pensar com os astrofísicos, e ver uma fímbria do grande mistério: a vida, tal como a conhecemos, só foi possível na Terra como resultado de circunstâncias precisas. Se a órbita terrestre fosse um pouco mais distante ou mais próxima do Sol, não teríamos a oportunidade de ser e de expressar a consciência que temos do mundo. A vida natural só foi possível aqui, e na tênue superfície terrestre, embebida dos gases da baixa atmosfera. Todos os animais (é o que presumimos) vivem sem essas reflexões, porque desde Aristóteles se intui que a sua memória não pode ser suscitada voluntariamente. A reflexão – é outra descoberta antiga – é o confronto das impressões do presente com as que ficaram guardadas do passado. Por isso só o homem pode meditar a natureza e, como preço dessa inteligência, ter consciência angustiante da morte.

Temos, como espécie – que se vem reproduzindo com as mesmas condições biológicas há milhares de séculos – uma história de que nos orgulhar. Se é verdade que nos entrematamos, desde que há registro das disputas pelo espaço vital, é também verdade que conseguimos momentos de excepcional beleza, principalmente na arte. As esculturas de Fídias e de Miguelângelo, os poemas de Hesíodo, a música de Bach, e a poesia épica de Homero bastam para justificar a Humanidade. Mas tudo isso pode desaparecer de um momento para o outro.

Se as coisas do mundo assim caminham, a sua marcha condiciona os passos brasileiros nestes próximos anos. É hora de insistir na realização de um projeto nacional de longo prazo, que nos permita a coesão da sociedade brasileira nos esforços que garantam a nossa autodeterminação política. Há dois movimentos políticos no mundo que parecem opostos, mas, no fundo, são harmônicos: a descentralização política e administrativa e a formação de grandes blocos confederados. A União Européia é a grande novidade histórica da Idade Moderna, e nos mostra que só podem ser unidas as partes que se diferenciam. Se as partes não fossem diferentes, constituiriam um universo homogêneo, e não haveria razão nem condições para que se unissem.

Os estados europeus se uniram em tratados de interesse comum, que os fortalecem no conjunto mundial, mas asseguraram, nesses acordos, a autodeterminação dos signatários e a preservação de sua identidade cultural. O Brasil tem uma extensão continental, com diferenças históricas marcantes, o que faz da federação, mais do que um projeto político, clamorosa necessidade. Ao poder econômico (sobretudo o estrangeiro), sediado em São Paulo, sempre interessou a concentração do poder administrativo, primeiro no Rio e agora em Brasília. A burocracia centralizada sufoca os interesses dos Estados, porque se associa ao poder econômico, a fim de impor sua visão técnica ao resto do País.

 

 Mauro Santayana é colunista político do Jornal do Brasil, diário de que foi correspondente na Europa (1968 a 1973). Foi redator-secretário da Ultima Hora (1959), e trabalhou nos principais jornais brasileiros, entre eles, a Folha de S. Paulo (1976-82), de que foi colunista político e correspondente na Península Ibérica e na África do Norte.

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