É preciso romper as travas da soberania popular no Brasil

24/02/2016, às 9:51 | Tempo estimado de leitura: 33 min
A soberania popular democratiza o Estado. A nulidade da soberania é a forma pela qual o Estado agudiza a desigualdade, emperra importantes políticas públicas, e garante privilégios para os setores abonados.

Por Américo Sampaio, em Le Monde Diplomatique Brasil.

A soberania popular é o pressuposto da democracia. A noção de soberania é exercida quando o povo – detentor do poder soberano – é respeitado, representado e consultado para as tomadas de decisão dos governos. A legitimidade da política se dá mediante a participação direta da população nos rumos do Estado, do contrário, a cisão entre sociedade e política extingue as possibilidades de emancipação democrática, solapando a soberania popular.

Apenas para citar alguns exemplos recentes, podemos registrar a regulamentação do aplicativo Uber em algumas capitais brasileiras, o aumento da tarifa do transporte público na cidade de São Paulo, a chamada “reorganização” das escolas estaduais paulistas, o repasse para o sistema de saúde no Rio de Janeiro, a administração direta de escolas estaduais pela Polícia Militar em Goiás, a falta de controle das mineradoras pelo governo de Minas Gerais, e o pagamento da dívida pública pelo falido estado do Rio Grande do Sul – que atrasou o pagamento dos servidores públicos estaduais –, sem contar outros infinitos temas de âmbito municipal, estadual e federal. E o que há em comum em todos estes fatos recentes que envolvem decisões governamentais? A completa ausência de soberania popular, pois em nenhum desses casos o povo foi consultado ou teve sua opinião verdadeiramente ouvida pelos poderes públicos.

A Constituição Federal de 1988 define em seu art. 1º, parágrafo único, que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”, e, ao definir isso, ela acaba por determinar duas coisas: primeiro, que o poder pertence ao povo que dele é fiduciário. Segundo, que o exercício da soberania popular se dá por dois meios: pela democracia representativa e também pela democracia participativa e direta.

Aprofundando esta definição, o art. 14 da Constituição afirma que “a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: I – plebiscito; II – referendo; III – iniciativa popular”. Assim, estipulou-se que a forma, ou melhor, os mecanismos pelos quais o povo exerce diretamente sua soberania, são: plebiscito, referendo e leis de iniciativa popular.

É importante destacar que, dessa forma, a Constituição Federal define a coexistência articulada entre dois modelos de democracia, a saber, a democracia direta e participativa e a democracia representativa, sendo esta última regida mediante o voto em representantes nas eleições municipais, estaduais e gerais, para os poderes legislativo e executivo; e a democracia participativa e direta operacionalizada mediante a efetivação dos mecanismos de consulta popular, como plebiscito e referendo, e pela lei de iniciativa popular.

A democracia representativa é a mais “corriqueira”, e a que nós estamos mais acostumados. Ela articula todo o campo jurídico-institucional da representação: eleição de dois em dois anos, com propaganda política, partidos políticos, candidatos, mandatos e assim por diante. Por outro lado, a democracia participativa e direta não se realiza mediante a participação de partidos políticos, nem de representantes eleitos, mas sim, sem as intermediações de pessoas ou instituições, ou seja, pela participação direta do povo, que é consultado sobre algum tema, lei ou política pública. A “disputa” nessa modalidade de democracia não se dá entre partidos políticos ou candidatos, mas entre opiniões contra e a favor a uma determinada matéria, como veremos mais adiante.

Para continuarmos a reflexão, se faz necessário apresentar com maior vagar o que são e como funcionam estes três mecanismos de participação direta previstas na Constituição.

O referendo é uma consulta popular realizada para que o povo diga “sim” ou “não” para uma determinada ideia, ou projeto de lei, ou lei em si, ou política pública, etc. No entanto, essa consulta ao povo se dá posteriormente ao seu objeto estar consentido pelo poder público, ou seja, após a lei ou a política pública ser aprovada. Como, por exemplo, o referendo sobre a proibição da comercialização de armas de fogo e munições, realizado em 2005, que não permitiu a vigência do art. 35 do Estatuto do Desarmamento, que proibia a comercialização de armas de fogo e munição em todo o território nacional, salvo em entidades específicas.

Já o plebiscito é praticamente idêntico no tocante à matéria e funcionamento, contudo, a diferença é que o plebiscito – que também é um mecanismo de consulta popular que busca a opinião do povo entre “sim” ou “não” para um determinado tema – é realizado anteriormente a uma lei, ou projeto ou política pública ser totalmente debatido pelo poder público, ou seja, a consulta se dá antes de a lei ou o projeto ser aprovado. Como exemplo, relembramos o plebiscito de 1993, que consultou o povo para que este determinasse qual deveria ser a forma e o sistema de governo do país, antecedendo a discussão institucional.

Em resumo, tanto o referendo quanto o plebiscito tem por objetivo consultar o povo sobre um determinado tema, com a diferença de que o primeiro é posterior e o segundo anterior ao objeto da consulta ter sido aprovado pelos poderes públicos. Em outras palavras, o referendo ratifica, ou não, determinado tema, lei ou política pública; já o plebiscito as autoriza para o debate institucional, ou não. É apenas esta a diferença entre os dois, um é autorizativo e o outro é ratificador, mas no fundo são sinônimos, ambos significam instrumentos de consulta popular.

É importante ainda frisar que o plebiscito e o referendo são mecanismos de participação direta que valem para todos os entes federados: cidades, estados e União. Quero dizer, podem ser realizados tanto plebiscitos quanto referendos municipais, estaduais ou federais. No entanto, por mais que esteja previsto na Constituição a convocação destes mecanismos de participação direta, existem alguns entraves que impedem tal iniciativa, o que cria obstáculos para o pleno exercício da soberania popular.

O art. 49 da Constituição Federal, por exemplo, é categórico quando diz que “é da competência exclusiva do Congresso Nacional autorizar referendo e convocar plebiscito”. E isso se repete para os demais entes federados. Em outras palavras, somente o congresso nacional na União, as Assembleias Legislativas nos estados e as Câmaras Municipais nos municípios é que podem autorizar referendos e convocar plebiscitos.

Do ponto de vista da soberania popular, o art. 49 é um imbróglio na efetivação da democracia direta, pois resolve que são os representantes que podem definir sobre o que os representados podem ou não decidir. Em resumo, trata-se da democracia representativa se sobrepondo e anulando a democracia direta, o que podemos chamar de verticalidade institucional da democracia, o que deturpa a ideia inicial que tratamos aqui, da coexistência de duas modalidades de democracia, a representativa e a participativa e direta.

O povo brasileiro encontra-se hoje impedido de definir sobre o que ele quer ou não ser consultado, pois apenas os parlamentares estão aptos a determinar isto, violando o princípio da soberania popular.

Voltando aos três mecanismos de participação direta, resta ainda apresentar brevemente o terceiro instrumento, que é a Lei de Iniciativa Popular. Esse mecanismo funciona da seguinte forma: o povo pode elaborar um Projeto de Lei (que não pode ser um Projeto de Emenda Constitucional) e coletar assinaturas da população para que essa proposta popular “chegue” à casa legislativa da mesma forma como se tivesse sido elaborada por um parlamentar. Quando entregue, o Projeto de Lei de Iniciativa Popular vai direto para a Mesa Diretora, e é avaliada pelas comissões e depois pelo plenário como os demais Projetos de Lei. Porém, a diferença é que quem o elaborou foi o povo, diretamente, e não um parlamentar que o representa.

A Lei de Iniciativa Popular também é um instrumento válido para todos os entes federados. Se o Projeto de Lei for para o âmbito federal, é preciso coletar assinaturas equivalentes a 1% do corpo eleitoral (total de eleitores registrados) na última eleição geral, o que gira em torno, hoje, de 1,5 milhão de assinaturas. Se o Projeto de Lei for estadual, o número de assinaturas varia de estado para estado, pois essa definição deve estar prevista nas Constituições Estaduais. No caso de São Paulo, por exemplo, o número de assinaturas necessárias para validar um Projeto de Lei de Iniciativa Popular é de 0,5% do corpo eleitoral da última eleição, o que representa cerca de 160 mil assinaturas. Já nos municípios, o número de assinaturas necessárias é estipulado pela Constituição Federal, não pode variar entre os municípios, e equivale a 5% do corpo eleitoral da última eleição, o que na cidade de São Paulo gira em torno de 400 mil assinaturas.

Todavia, se existe uma legislação para que sejam realizados plebiscitos, referendos e leis de iniciativa popular, porque não estamos acostumados nem a ver, nem a participar, desses mecanismos de consulta ao povo? A meu ver, a resposta é clara: eles são propositalmente interditados, ou melhor, travados.

Após a promulgação da Constituição Federal, por mais que os art. 1º, 14 e 49 respaldassem a realização de plebiscitos e referendos, não havia um conjunto de leis e normas que definissem de maneira mais clara como estes mecanismos funcionariam na dinâmica cotidiana da política local, estadual e nacional, tornando o cenário institucional desfavorável às consultas populares.

Não foi por falta de tentativa. O célebre jurista e professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Fábio Konder Comparato, não cessou esforços em buscar garantir fluidez e respaldo legal para tais consultas, porém, como um cenário nebuloso para a realização de plebiscitos e referendos interessa às classes políticas, governos e elites nacionais, institucionalizou-se o “não regramento” das consultas populares. Completa violação do princípio da soberania.

Pra se ter uma ideia, somente 10 anos depois da homologação da Constituição, mais especificamente em novembro de 1998, é que foi aprovada a chamada Lei da Democracia Direta (Lei 9.709/98). Essa lei regula o art. 14 da Constituição Federal e estipula que “plebiscito e referendo são consultas formuladas ao povo para que delibere sobre matéria de acentuada relevância, de natureza constitucional, legislativa ou administrativa”. Entre outros pontos, é importante salientar que a Lei da Democracia Direta foi de fundamental importância para garantir um cenário institucional minimamente seguro para as consultas populares, mas também para estabelecer um contorno conceitual à matéria, possibilitando que os mecanismos de democracia direta pudessem ser mais utilizados. Além disso, é ela que caracteriza os temas que devem ser levados à consulta popular: matérias de acentuada relevância. Essas matérias são aquelas que ultrapassam a dimensão política da representação, impactam a sociedade de maneira substancial, e estão acima dos gostos e atribuições dos governos e parlamentares, e, que, portanto, precisam ser legitimadas pelo soberano, no caso, nós, o povo.

Em resumo, pode ser matéria de consulta popular qualquer tema de relevância para a população, obviamente, sendo ela constitucional. Assim, entendemos que desde questões estratégicas e estruturais, como o modelo de governo ou econômico, até questões mais cotidianas e administrativas, como uma política pública de educação, saúde ou até mesmo lazer, ou ainda a destinação do orçamento público, podem e devem ser objeto de plebiscitos e referendos para serem legitimados pelo povo.

Outras travas para o exercício da soberania popular também tiveram que ser superadas ao longo deste período. Nos 10 anos que separaram a Constituição Federal e a Lei da Democracia Direta, de 1988 a 1998, e até mesmo posteriormente à aprovação dessa Lei, houve algumas tentativas de se convocar plebiscitos municipais e estaduais para temas variados. No entanto, nos deparamos à época com outro problema: para que os mecanismos de consulta popular pudessem ser executados de maneira ilibada, transparente e séria, era – e ainda é – fundamental o acompanhamento dos órgãos de fiscalização e controle, para garantir que não haja nenhum tipo de violação ou deturpação do resultado da consulta. Nesses casos, de consultas populares municipais e estaduais, os órgãos responsáveis por fazer este controle são os Tribunais Regionais Eleitorais (TREs).

Algumas tentativas de convocação de plebiscitos municipais esbarraram neste problema político travestido de obstáculo técnico. O art. 121 da Constituição Federal regula a atuação dos Tribunais Eleitorais e postula que “lei complementar disporá sobre a organização e competência dos tribunais, dos juízes de direito e das juntas eleitorais.”, quer dizer, uma lei deve ser aprovada para que se organize o trabalho interno dos Tribunais Eleitorais, inclusive dos Tribunais Regionais Eleitorais (TREs) – que são os responsáveis por cuidar do bom funcionamento dos plebiscitos e referendos estaduais e municipais. Porém, o art. 121 nunca teve sua lei complementar aprovada, ou seja, não existe uma regulamentação para organizar o trabalho dos TREs na realização e acompanhamento dos plebiscitos municipais e estaduais, e este “argumento técnico” foi regularmente utilizado em alguns casos para impedir a aprovação de convocação de plebiscitos municipais.

Todavia, para superar este entrave político, que aparentava ser apenas técnico, foi preciso mais alguns anos. Somente em 2012 foi regulada a convocação e realização de plebiscitos municipais e estaduais, e isso se deu por conta de uma resolução do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), de nº 23.385, de 2012, que criou pela primeira vez uma jurisprudência mais clara e atenta para a realização de consultas populares locais no Brasil.

Esta resolução define que, para a convocação de consultas populares nacionais, os poderes públicos devem operar em conformidade à Constituição Federal, quer dizer, em obediência às leis nacionais. Contudo, no tocante às consultas populares municipais e estaduais, os órgãos públicos competentes devem se guiar pelas Constituições Estaduais e Leis Orgânicas do Município, ou seja, vale o que está na legislação do ente que pretende convocar uma consulta popular. É importante atentar para este ponto, porque algumas tentativas de convocação de plebiscitos municipais esbarravam no contra-argumento – daqueles que não querem que o povo exerça sua soberania –, de que consultas populares só poderiam ser convocadas no âmbito nacional. Mas com base nessa resolução, desde 2012, esse argumento caiu por terra, e fica claro que as consultas populares podem, e devem, ser realizadas nos estados e municípios, e que as Constituições Estaduais e Leis Orgânicas do Município, prevendo o mecanismo de consulta popular, é que devem prevalecer.

Ademais, esta resoluçãotambém define claramente que é responsabilidade dos Tribunais Regionais Eleitorais de cada estado organizar, fiscalizar e operar as consultas populares. Dessa forma, foi derrubado também o argumento de que era necessário regulamentar o art. 121 da Constituição Federal para que os TREs pudessem operar as consultas populares nos estados e municípios.

Neste contexto jurídico-institucional, chegamos em 2013 com todas as bases legais absolutamente compatíveis e claras com relação às consultas populares. Contudo, a soberania popular ainda está refém do art. 49 da Constituição Federal, que impede que o povo, no exercício de sua soberania, defina sobre o que quer decidir. E por quê? Porque ainda estamos nas mãos dos nossos representantes como meros expectadores da política, sem nenhuma capacidade de nos fazer ouvir se não pela ação direta de atos e manifestações populares, tão criminalizadas e reprimidas pelos governos e pela polícia.

Em um estudo desenvolvido pelo Grupo de Trabalho de Democracia Participativa (GTDP) da Rede Nossa São Paulo, apresentado na Jornada da Democracia Direta, em novembro de 2015, em São Paulo, quando a Lei da Democracia Direta completara 17 anos, foi possível mensurar o tamanho da interdição e da nulidade que representam as consultas populares para os governos e a classe política no geral, em especial das cidades brasileiras.

Foram feitos pedidos de informação aos 27 Tribunais Regionais Eleitorais (TREs) e ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), via Lei de Acesso à Informação, o que totalizou 28 pedidos de informação. A mesma pergunta foi feita para todos os órgãos: “solicitamos todos os registros de Plebiscitos e Referendos (sejam eles municipais ou estaduais), os referidos temas, os resultados e números de eleitores, das consultas populares realizadas no estado de jurisdição do tribunal, no período compreendido entre 18 de novembro de 1998 até a presente data[1].

Destes, 24 pedidos se concretizaram, pois 4 TREs não tinham sistema de acesso à informação em funcionamento; e 19 foram respondidos – 18 respostas dos TREs e 1 resposta do TSE. Para suprir as consultas não respondidas foram feitas pesquisas nos sites dos TREs e na imprensa desses estados para localizar alguma consulta popular que tenha ocorrido neste período. E o resultado do estudo é alarmante, em toda a vigência da Lei da Democracia Direta (17 anos), não houve nenhum plebiscito ou referendo estadual para temas relacionados às políticas públicas, e, houve apenas dois plebiscitos municipais convocados em todo o território nacional para que o povo decidisse sobre alguma política pública específica.

Esses dois plebiscitos municipais aconteceram, respectivamente, na cidade de Balneário Camboriú (SC), em 15 de dezembro de 2001, no qual o tema foi se a prefeitura municipal deveria alargar as vias da orla da praia ou não. E o resultado foi “sim”, ou seja, pelo alargamento da via; e, na cidade de Londrina (PR), em 19 de agosto do mesmo ano, em que a população foi consultada sobre a possibilidade de privatizar a empresa pública municipal Sercomtel Celular, operadora de Banda A que atende a cidade. E a população votou “não” para a privatização, mantendo a empresa sob o controle da Prefeitura Municipal.

Além disso, para o ano de 2016 está previsto um plebiscito municipal na cidade de Porto Alegre (RS), no mesmo dia das eleições municipais, em outubro. A consulta popular é para que o povo decida se o Parque Farroupilha (também conhecido como Parque da Redenção), tradicional e popular parque da cidade, deve ser cercado por grades ou permanecer aberto.

Estas três experiências de consulta popular municipal (sendo uma ainda prevista e não realizada) mostram que, primeiro, o mecanismo de consulta popular nos estados e municípios são subutilizados e desconhecidos pelos governos e gestores públicos. Chega a ser ridículo imaginar que em 18 anos de vigência da Lei da Democracia Direta (que se completará em novembro próximo) teremos apenas três consultas populares em municípios para temas que digam respeito às políticas públicas. E, segundo, isso mostra que nós, brasileiros, não estamos habituados com esse tipo de consulta, o que faz com que haja na sociedade brasileira certa naturalização da ausência de soberania. Porém, vale reforçar que tudo isso demonstra que não é o povo que não está preparado para participar e decidir determinados temas e assuntos por sua complexidade ou qualquer outra desculpa esfarrapada, na realidade é o contrário, são as elites nacionais e a classe política em geral que não estão preparadas para a participação direta do povo no pleno exercício de sua soberania. Por isso estes instrumentos de democracia direta foram historicamente interditados.

Não por acaso, o último plebiscito nacional realizado no país foi inteiro coordenado e protagonizado pela sociedade civil, no final do ano de 2014, quando mais de 400 organizações e movimentos sociais organizaram o plebiscito popular por uma constituinte exclusiva e soberana sobre o sistema político. Na ocasião, mais de 7 milhões de pessoas votaram na consulta popular em todo o território nacional. E o resultado foi esmagador. 97% dos votantes escolheram o “sim”, apoiando a proposta de realização de uma constituinte exclusiva. Como este plebiscito foi “informal”, ou seja, não tinha validade institucional, serviu na realidade como forma de mobilização e pressão para que o governo Dilma atentasse para o assunto. Em todo caso, essa experiência exitosa demonstra a potência que tem a participação direta do povo nas disputas políticas.

A importância de destravarmos os mecanismos de democracia direta e aprofundarmos a soberania popular – utilizando estes três instrumentos de participação direta como ferramenta de gestão séria e popular, e não como alegoria –, se dá pelo fato de ser este o mais profícuo e eficiente caminho para a garantia de direitos.

Com o exercício da soberania popular, as leis e políticas públicas são, além de melhor planejadas e desenhadas, também legitimadas. Só a soberania legitima a política. A legitimação da política pelo povo é fundamental para que o Estado cumpra seu papel de provedor e garantidor de direitos, melhorando a qualidade de vida da população e combatendo a desigualdade. Em resumo, o exercício da soberania popular é um vetor estratégico pelo qual se pode reduzir a desigualdade no Brasil. A anulação dessa soberania reforça um Estado de privilégios, no qual os governos trabalham para garantir benesses para pequenos grupos da sociedade.

A soberania popular democratiza o Estado. A nulidade da soberania é a forma pela qual o Estado agudiza a desigualdade, emperra importantes políticas públicas, e garante privilégios para os setores abonados. O destravamento da participação direta nas tomadas de decisão dos governos deve ser entendido como uma importante forma de combater as regalias de classe, em busca da construção de um país mais justo e menos desigual. Portanto, é urgente ampliar a democracia direta e participativa no Brasil, e para isso devemos intensificar a luta pelo rompimento das travas que impedem o real exercício da soberania popular.

Américo Sampaio

Américo Sampaio é membro da direção da Escola de Governo e assessor da Rede Nossa São Paulo

Referências:

Flávio Roberto Ferreira de Lima, “Manifestação popular e os limites materiais à convocação do plebiscito e referendo: uma análise da Lei 9709/98”. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1508/manifestacao-popular-e-os-limites-materiais-a-convocacao-do-plebiscito-e-referendo

Paulo José Villela Lomar, “Convocação de plebiscito no Município de São Paulo: Breves considerações jurídicas”.

BRASIL. Constituição, 1988.

BRASIL. Lei nº 9.709, de 18 de novembro de 1998.

BRASIL. Resolução do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) nº 23.385, de 16 de agosto de 2012.

Fábio Konder Comparato. “Não pode haver poder sem controle”. 2011 . Ano 8 . Edição 67. Revista Desafios do Desenvolvimento. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?index_php?option=com_content&view=article&id=2580%3Acatid%3D28&Itemid=23&option=com_content

Fábio Konder Comparato. “Constituição do Brasil é mera aparência democrática”. 2013. Revista Fórum. Disponível em: http://www.revistaforum.com.br/2013/10/05/entrevista-fabio-konder-comparato/

Francisco Fonseca, “Reforma política: democracia ou plutocracia?”. Le Monde Diplomatique Brasil. 01 de Abril de 2015. Disponível em: http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1843

José Antonio Moroni, “Como e o quê?”. Le Monde Diplomatique Brasil. 01 de Agosto de 2013. Disponível em http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1467



[1] Cabe aqui destacar que a pesquisa desenvolvida desconsiderou os plebiscitos realizados em estados e municípios que tinham como tema a emancipação ou incorporação de territórios, e isso porque essa modalidade de consulta plebiscitária é obrigatória pela Constituição Federal. Ademais, plebiscitos relativos à alteração do nome de cidades também foram desconsiderados, pois esse tipo de plebiscito é praxe quando uma prefeitura busca alterar o nome de um município. Assim, o foco da pesquisa era identificar as consultas populares estaduais e municipais que diziam respeito às políticas públicas, legislação ou atos administrativos, o que impacta diretamente nas cidades e estados e coadunam com a necessidade do exercício da soberania popular. Da mesma forma, não foi considerado na análise o referendo nacional sobre a proibição da comercialização de armas de fogo e munições, ocorrido em 23 de outubro de 2005, pois este, sendo nacional, não estava sob a responsabilidade dos estados ou municípios. Contudo, cabe destacar que este referendo foi uma relevante experiência democrática, que, por mais que seu resultado tenha sido controverso, demonstrou a importância do instrumento. Na ocasião, ficou claro, porém, que consultas populares só se realizam no Brasil quando há pressão “de baixo” ou “de cima”.

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