Gracias a la vida – de quem?

16/06/2018, às 10:25 (atualizado em 28/06/2023, às 15:00) | Tempo estimado de leitura: 6 min
Por Cleo Manhas, assessora política do Inesc
Principais vítimas de complicações e mortes decorrentes do aborto clandestino são as mulheres de baixa renda. Conquista na Argentina mostra a importância da representação feminina no poder.

A conquista histórica das nossas hermanas argentinas, que com muita luta e resistência conseguiram aprovar o direito ao aborto na Câmara dos Deputados daquele país, também pode ser lida como uma lição sobre a importância da representação feminina em instâncias de poder – aliada à batalha travada nas ruas contra o conservadorismo na sociedade.

Ainda não é definitivo, pois a votação precisa ir ao Senado, mas a conquista é um passo importante rumo a esta vitória histórica, visto que em toda América Latina, apenas Uruguai, Cuba e Guiana legalizaram o aborto. Considerando que Guiana Francesa e Porto Rico seguem a legislação francesa e estadunidense, respectivamente, significa que apenas 6% da população dessa região tem o direito ao aborto legal e seguro. Se confirmada a aprovação na Argentina, esse número sobe para 10% – o que ainda é muito pouco, mas pode influenciar e contribuir para a mobilização em outros países, a despeito da onda conservadora que tomou conta de várias partes do mundo.

O que aconteceu a partir das ruas e, posteriormente, foi referendado no Congresso argentino é uma luz em meio a tantos retrocessos de direitos que temos sofrido como país e como região, com o avanço das políticas neoliberais e da cultura ultraconservadora. Aqui, o patriarcalismo e o machismo seguem dando as ordens: os parlamentos, em geral, são formados por maioria de homens brancos, que se acham no direito de decidir pelas mulheres, com discursos repletos de fundamentalismos, misoginia, reafirmação do patriarcado.

Quanto a isso, a Argentina tem avançado e alcançou uma das maiores representações de mulheres no Legislativo da América Latina.  Elas são 38,9% na Câmara dos Deputados e 41,7 % no Senado, segundo o ranking da ONU. É evidente que a representação por si só não é garantia da efetivação imediata dos direitos das mulheres, mas certamente contribui para o avanço da discussão.

No caso do Brasil, onde essa representação é de apenas 9% na Câmara e 13% no Senado, há vários riscos de retrocessos dentro desse Parlamento masculino e branco. Por exemplo, em novembro de 2017, foi aprovada na Comissão Especial da Câmara uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), que previa inicialmente a ampliação da licença maternidade em caso de bebês prematuros, à qual foi anexada outra proposta que diz ser “inviolável a vida desde a concepção”. Caso esta PEC seja aprovada em Plenário, retroagiremos 30 anos, visto que nem mesmo os casos de aborto previstos no Código Penal, como risco de morte da mulher ou gravidez em decorrência de estupro, serão possíveis.

Não é possível que se ignore o número de morte de mulheres que se submetem ao aborto clandestino. No Brasil, estimativa do Ministério da Saúde aponta a média de quatro mortes por dia de mulheres que buscam socorro nos hospitais por complicações do aborto. E as principais vítimas são as mulheres de baixa renda, que recorrem a métodos muito precários e perigosos para interrupção da gravidez, e ainda podem ser criminalizadas quando buscam a rede pública em casos de emergências decorrentes da prática.

Então, que as mulheres argentinas e a intensa mobilização que produziram nos inspirem e nos joguem às ruas pelo poder de decisão sobre nossos corpos. Que nos impulsionem a gritar pelo direito e poder de decisão sobre a maternidade. E gritemos mais para estarmos nos espaços de poder, para não termos de seguir regras ditadas por homens brancos, quando somos muitas e subrepresentadas.

E para ficar bem nítido o racismo institucional e a seletividade dos que se dizem “a favor da vida”, precisamos discutir o caso Janaina, de Mococa, São Paulo: pessoa em situação de rua, com filhos e, por isso, um promotor do Ministério Público, utilizando-se de uma ação civil pública, encaminhou recurso contra Janaina e o município de Mococa, exigindo que ela fosse esterilizada. Solicitação acatada pelo Juiz, que não considerou, ou ouviu, ou deu direito de defesa à Janaina, que coercitivamente foi submetida à cirurgia. Certamente, juiz e promotor são “pró-vida”, mas escolhem quem pode ter dignidade e integridade respeitadas.

Viva as Argentinas, gracias a la vida y a la lucha!!!!

 

Categoria: Artigo
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