Proposta de Reforma Tributária muito aquém da justiça social

01/01/1970, às 0:00 | Tempo estimado de leitura: 12 min
Por Evilásio Salvador, assessor de Política Fiscal e Orçamentária do Inesc


            O governo enviou ao Congresso Nacional a proposta de reforma tributária consubstanciada no âmbito de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC), com objetivos de simplificar, eliminar tributos e acabar com a “guerra fiscal” entre os estados. Contudo, o debate sobre a reforma tributária deveria ser pautado pela retomada dos princípios da eqüidade, da progressividade e da capacidade contributiva no caminho da justiça fiscal e social, priorizando a redistribuição da renda. As tributações da renda e do patrimônio nunca ocuparam lugar de destaque na agenda nacional e nos projetos de “reformas tributárias” após a Constituição de 1998. Assim, é mais do que oportuno a recuperação dos princípios constitucionais basilares da justiça fiscal (eqüidade, capacidade contributiva e progressividade). A tributação é um dos melhores instrumentos de erradicação da pobreza e da redução das desigualdades sociais, que constituem objetivos essenciais da República esculpidos na Carta Magna.

            A PEC da reforma tributária não aponta para a construção de um sistema tributário progressivo, pautado pela tributação da renda e do patrimônio. Os principais pontos da reforma tributária são:

 

a) a criação de um Imposto sobre Valor Adicionado (IVA-F), com a extinção de cinco tributos federais (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social – COFINS, a contribuição para o Programa de Integração Social – PIS, a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico incidente sobre a importação e a comercialização de combustíveis – CIDE e a contribuição social do salário-educação);

b) a incorporação da Contribuição Social do Lucro Líquido (CSLL) ao Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ);

c) a redução gradativa da contribuição dos empregadores para previdência social, a ser realizada nos anos subseqüentes da reforma, por meio do envio de um projeto de lei no prazo de até 90 dias da promulgação da PEC;

d) a unificação da legislação do Imposto sobre Circulação de Mercadoria e Serviços (ICMS), a ser realizada por meio de lei única nacional e não mais por 27 leis das unidades da federação;

e) a criação de um Fundo de Eqüalização de Receitas (FER) para compensar eventuais perdas de receita do ICMS por parte dos estados;

f) a instituição de um Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional (FNDR), permitindo a coordenação da aplicação dos recursos da política de desenvolvimento regional.

 

            O principal objetivo da reforma é a simplificação da legislação tributária tanto por meio da redução das legislações do ICMS, quanto pela eliminação de tributos, trazendo maior racionalidade econômica e reduzindo as obrigações acessórias das empresas com custos de apuração e recolhimento de impostos. Além disso, a cobrança do ICMS no Estado de destino da mercadoria deverá eliminar a “guerra fiscal”.

            A criação do IVA-F vai reduzir a cumulatividade do sistema tributário. Hoje a CIDE-Combustíveis e parte da arrecadação da COFINS e da Contribuição do PIS é cobrada diversas vezes sobre um mesmo produto, isto é, em todas as etapas de produção e circulação da mercadoria. O IVA-F tributa apenas o valor adicionado em cada estágio da produção e da distribuição, sendo o valor do tributo podendo ser definido pela diferença entre o preço de venda do produto e o custo da aquisição, nas diversas etapas da cadeia produtiva. Em ambos os modelos, o tributo é repassado ao preço de venda do bem e do serviço sendo pago, portanto, na maioria das vezes pelo consumidor final.

            Nesse sentido, em que pese importantes avanços para as empresas, com a simplificação do recolhimento tributário que poderá resultar no aumento da eficiência econômica e da produtividade, a PEC não modifica a estrutura regressiva do sistema tributário brasileiro. O que ocorre é a alteração da regulação dos tributos indiretos do regime cumulativo para a incidência sobre o valor adicionado. Porém, não se pode esquecer que a principal marca do sistema tributário brasileiro é a sua enorme regressividade, que permanece sem alterações substanciais na proposta de reforma tributária.

            Para compreender a regressividade e a progressividade é necessário avaliar as bases de incidência econômica, que são: a renda, a propriedade, a produção, a circulação e o consumo de bens e serviços. Conforme a base de incidência, os tributos são considerados diretos ou indiretos. Os tributos diretos incidem sobre a renda e o patrimônio, porque, em tese, não são passíveis de transferência para terceiros. Esses são considerados impostos mais adequados para a questão da progressividade. Os indiretos incidem sobre a produção e o consumo de bens e serviços, sendo passíveis de transferência para terceiros, em outras palavras, para os preços dos produtos adquiridos pelos consumidores. Eles é que acabam pagando de fato o tributo, mediado pelo contribuinte legal: empresário produtor ou vendedor. Como o consumo é proporcionalmente decrescente em relação à renda, conforme ela aumenta prejudica mais os contribuintes de menor poder aquisitivo. Com isso, a população de baixa renda suporta uma elevada tributação indireta, pois mais da metade da arrecadação tributária do país advém de impostos cobrados sobre o consumo, o que não é alterado pela proposta de reforma tributária ora apresentada.

            Outra implicação importante da reforma tributária diz respeito ao financiamento da seguridade social, do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) e da educação básica (salário educação). Os três mais importantes tributos que financiam a seguridade social no Brasil serão modificados. A COFINS e a CSLL serão extintas e haverá desoneração da contribuição patronal sobre a folha de pagamento, por meio de legislação específica, após as mudanças constitucionais.  Para a seguridade social passam a ser destinados 38,8% do produto da arrecadação dos impostos sobre renda (IR), produtos industrializados (IPI) e operações com bens e prestações de serviços (IVA-F). Esse percentual é equivalente a proporção entre a arrecadação da COFINS e da CSLL e a receita arrecadada, em 2006, com IR, CSLL, COFINS, PIS, CIDE, Salário-educação e IPI.

             Essa modificação é o sepultamento da diversidade das bases de financiamento da seguridade social inscrita no Artigo 195 da Constituição de Federal (CF) de 1988, que ampliou o financiamento da previdência, saúde e assistência social para além da folha de salários, incluindo, a receita, o faturamento e lucro. A partir da reforma, restará inscrito no Art. 195 da CF, como base de financiamento da seguridade social, a contribuição sobre a folha de salários, a contribuição do trabalhador para a previdência social e a receita de concursos e prognósticos, sendo que a contribuição sobre folha de pagamento deverá ser reduzida ao longo dos próximos anos. Portanto, a idéia de orçamento de seguridade social diversificado em fontes de financiamentos retroagirá a situação anterior a da CF. Com isso, haverá perda da exclusividade de recursos para a seguridade social, que poderá ficar fragilizada em seu financiamento, dependendo de uma partilha do IVA-F e da arrecadação das contribuições previdenciárias.

            Apesar da insignificante arrecadação dos impostos que têm incidência sobre o patrimônio, que responderam, por exemplo, em 2007, por apenas 3,3% do montante arrecadado em tributos, a proposta de reforma tributária silenciou-se sobre o assunto. Convém lembrar que as 5 mil famílias mais ricas do Brasil têm em patrimônio algo em torno de 40% do PIB brasileiro.

            O Brasil deve buscar um modelo tributário que assegure a sustentação do Estado e que priorize os Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (DHESCAs). A reforma tributária deveria começar pela reafirmação de diversos princípios tributários já estabelecidos na Constituição brasileira e que nos últimos anos não vêm sendo observados. O pilar do sistema tributário deve ser o Imposto de Renda, pois é o mais importante dos impostos diretos, capaz de garantir o caráter pessoal e a graduação de acordo com a capacidade econômica do contribuinte, além da expansão da tributação sobre o patrimônio. O sistema tributário não pode conceder tratamento privilegiado à renda dos capitalistas, de forma que todos os rendimentos de pessoa física devam ser feitos obrigatoriamente na tabela progressiva do IR, que deveria ser ampliada em números de faixas e alíquotas. A política tributária há de ser, antes de tudo, um instrumento de distribuição de renda e indutora do desenvolvimento econômico e social do país.

 



[1] Assessor de Política Fiscal e Orçamentária do INESC

 

Categoria: Artigo
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