O debate sobre a adoção de cotas para estudantes negros nos vestibulares para universidades públicas tem sofrido com argumentos falaciosos difundidos ad nauseam pelos que se opõem à adoção dessas políticas. Com isso estamos correndo o risco de perder a oportunidade de realizar uma discussão realmente necessária sobre a eficácia das políticas afirmativas para a promoção da igualdade e da justiça social em uma sociedade historicamente marcada pelo racismo.
Um desses argumentos produz a mais perversa das inversões que é a acusação de racistas ou de promotores do ódio racial lançada sobre os defensores das ações afirmativas. Como se o racismo precisasse ser inventado no Brasil.
O que as políticas de cotas fazem é simplesmente reconhecer, com base em pesquisas acadêmicas e séries estatísticas produzidas ao longo das últimas décadas, que o racismo é um fator importante na trajetória de vida e na redução do leque de oportunidades disponíveis às populações de pele mais escura. Uma população que na linguagem do IBGE recebe a denominação de parda ou preta e que na vida cotidiana das pessoas assumem denominações mais diversificadas e nem sempre muito gentis: escurinhos, morenos, sararás, neguinhas. Homens e mulheres que sofrem em graus variados com os preconceitos de uma sociedade que se desejou por muito tempo européia, e não africana, e que elegeu a pele clara — e as características físicas a ela associadas, como os cabelos lisos (e sempre que possível louros), traços faciais “finos” —, como sinais de beleza e inteligência.
Tentar carimbar isso de “racialização” da sociedade brasileira é um exagero que se presta à exibição narcísica de saberes acadêmicos, mas que nada tem a ver com o mundo da vida. Os eventuais equívocos e erros cometidos na implementação das cotas, poucos se comparados a outras políticas sociais focalizadas, merecem ser discutidos no marco de metodologias que avaliam eficácia e eficiência das políticas públicas.
Da mesma forma, reduzir tudo ao problema da pobreza, opondo cotas às políticas supostamente universais, é negar as conseqüências psicológicas e sociais do racismo, produzindo um falso dilema. As cotas não se opõem à valorização da escola pública ou à necessidade de investir em políticas sociais de caráter universal. Mas propõem uma aceleração do acesso de estudantes negros à educação superior. Elas representam um atalho legítimo para a constituição no curto prazo de uma elite composta de pardos, pretos, cafuzos, morenos ou qualquer definição que se queira dar a essa população de pele escura que se confronta cotidianamente com o preconceito da sociedade. O Brasil precisa de médicos, advogados e, especialmente, professores universitários negros.
As políticas que apenas começam a ser implementadas nas universidades brasileiras adotam modelos diversos, combinam cotas sociais e raciais, e promovem a diversidade em um ambiente universitário em que pretos e pardos estiveram quase sempre ausentes. Cerca de metade das experiências vigentes em universidades públicas, segundo avaliação recente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), adotam cotas raciais e sociais sobrepostas, operando, assim, com dois critérios complementares que devem ser observados simultaneamente para o preenchimento das vagas destinadas aos negros.
Finalmente, a acusação de que os defensores de cotas são teleguiados ou inocentes úteis de fundações internacionais e plagiadores da experiência supostamente fracassada dos EUA causa assombro por ignorar deliberadamente a longa trajetória de luta dos movimentos negros no Brasil, além de apresentar uma narrativa descontextualizada do debate norte-americano. Desde os anos 1930, grupos dos movimentos negros brasileiros apontavam para a necessidade de políticas públicas que garantissem o acesso da população negra à educação e, mais recentemente, no início dos anos 1980, os cursinhos pré-vestibulares para negros e carentes passaram a sublinhar o direito à educação superior. É surpreendente ver intelectuais e acadêmicos tão ilustres subscrevendo visões tão distorcidas.
As políticas de cotas apenas agora começam a ser avaliadas e os primeiros resultados desmentem largamente as críticas que continuam a ser repetidas sem qualquer amparo em dados. Não baixaram a qualidade da universidade, não colocaram “pobre-contra-pobre”, não beneficiaram apenas uma “elite de classe média negra”. Ao contrário, contribuíram para renovar o debate sobre o lugar da educação superior na conquista da cidadania plena e o papel das universidades públicas.
Essa experiência exemplar não deve ser interrompida em nome de fantasias racialistas despropositadas ou, em alguns casos, da defesa de privilégios de grupos que sempre resistiram à incorporação dos negros à vida republicana.