A quem interessa sabotar os laboratórios públicos

25/07/2019, às 10:58 | Tempo estimado de leitura: 7 min
Por Luiza Pinheiro, assessora política do Inesc para Outras Palavras
Ao suspender convênios para compra de medicamentos e transferência de tecnologia, governo ameaça população que depende hoje de remédios essenciais — e põe em risco capacidade do país para continuar a produzi-los
Laboratório da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio, uma das instituições atingidas pela suspensão das Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs)

O ministério da Saúde (MS) suspendeu, nas últimas três semanas, contratos relativos a Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs) para a produção de 19 medicamentos, muitos dos quais de alto custo, distribuídos gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A notícia é preocupante, uma vez que coloca em risco o acesso gratuito e universal a esses medicamentos pela população.

Também é inquietante a possibilidade de desmonte de uma política pública que visa aumentar a capacidade produtiva e tecnológica dos laboratórios públicos brasileiros para atender demandas estratégicas do SUS. As PDPs representam potencial de grande economia e de independência com relação às flutuações do mercado farmacêutico e ao preço estabelecido pelas empresas privadas multinacionais.

O jornal O Estado de S.Paulo relata que o ministério da Saúde é categórico ao informar o encerramento das parcerias. A Associação dos Laboratórios Oficiais do Brasil (Alfob), que representa um dos protagonistas das PDPs ao lado do setor privado, assegura que a decisão ocorreu de modo unilateral e os laboratórios foram pegos de surpresa.

Remédio mais caro

Contudo, em sua “nota de esclarecimento”, o ministério da Saúde afirmou que, para garantir o abastecimento da rede, vem realizando compras de medicamentos por outros meios previstos na legislação. A medida, portanto, não afetaria o atendimento à população. Além disso, a maior parcela das PDPs suspensas não chegou à fase de fornecimento do produto.

A questão é que o impacto da suspensão dos contratos se dará, principalmente, no longo prazo. O Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) estimou, com dados obtidos via Lei de Acesso a Informação (LAI), o gasto do ministério em 2018 com alguns medicamentos objeto das PDPs suspensas, seja por compra centralizada ou judicialização. Somados, eles representam cerca de R$ 2,1 bilhões, como mostra a tabela a seguir:

Os dados mostram que estes medicamentos já são adquiridos pelo ministério da Saúde e disponibilizados pelo SUS, mas com um custo alto. Caso as PDPs envolvendo estes produtos sejam bem-sucedidas, é possível conter custos e diminuir a dependência de produtores estrangeiros. O mercado farmacêutico, especialmente para este tipo de produto, é dominado por grandes empresas multinacionais.

Nas palavras do próprio ministério da Saúde, a redução da vulnerabilidade do SUS e o cumprimento dos seus princípios exigem, necessariamente, o aproveitamento do potencial econômico e social do complexo econômico industrial da saúde. Isto se viabiliza, dentre outras estratégias, pela utilização do poder de compra do Estado na área. Sendo assim, é importante a manutenção e constante avaliação de um programa que garante esta política de forma prática, como é o caso das PDPs. Cabe notar que o Departamento do Complexo Industrial e Inovação em Saúde foi extinto na reformulação do MS realizada em 2019, mas suas atribuições continuam na Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde (SCTIE).

As PDPs têm uma finalidade louvável de atrelar a política de desenvolvimento industrial ao bem- estar social, ao usar o poder de compra do Estado para fomentar o desenvolvimento e a fabricação em território nacional de produtos estratégicos para o SUS, bem como a sua sustentabilidade tecnológica e econômica a curto, médio e longo prazos.

Como toda política pública, deve ser realizada de forma transparente e sob controle social, para que se verifique se esta finalidade está de fato sendo alcançada. O ministério pode e deve suspender contratos que não atendam aos objetivos e prazos firmados, seguindo as recomendações dos órgãos de controle público. No entanto, é importante que trabalhe de forma harmônica e transparente com os laboratórios públicos nacionais, que têm papel fundamental para garantir a independência produtiva e tecnológica do país.

Como funcionam as PDPs?

As Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo visam a transferência de tecnologia de laboratórios privados para laboratórios públicos nacionais. Em troca, o ministério da Saúde oferece parcela (que pode chegar a até 100%) do mercado público de um medicamento específico, durante um período determinado. Este processo de transferência de tecnologia e produção nacional pode se estender por um prazo de 10 anos.

Após a submissão da proposta, a PDP passa por quatro fases. A fase I, de apresentação e análise da viabilidade da proposta e celebração do termo de compromisso entre o MS e a instituição pública, é chamada de “Proposta de projeto de PDP”. Na etapa seguinte, chamada de “Projeto de PDP”, ocorre a implementação, e nela ainda não há fornecimento direto do produto ao MS. Na fase III, chamada de “PDP”, ocorre a execução do desenvolvimento do produto, transferência e absorção de tecnologia de forma efetiva e celebração do contrato de aquisição do produto estratégico entre o MS e a instituição pública. E a fase IV, “Internalização de tecnologia”, é a de conclusão da transferência e absorção da tecnologia, quando há plenas condições para produzir o medicamento em laboratórios públicos.

De acordo com o ministério, existem 87 PDPs vigentes. Elas foram iniciadas em 2010, mas foi em 2014 que seu funcionamento foi consolidado com a Portaria/MS 2531/2014. Em 2017, a Portaria de Consolidação de 2017 amalgamou a legislação que rege as parcerias. Trata-se, portanto, de política recente e não há qualquer razão técnica de conhecimento público que justifique a sua abrupta interrupção. Fica a pergunta: a quem interessa o fim das PDPs?

Categoria: Artigo
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