Análise: momento é bom para aproveitar brechas e testar novos caminhos no sistema político

04/05/2017, às 16:43 | Tempo estimado de leitura: 29 min
Não dá para querer mudar o sistema político colocando-se à margem do sistema atual, afirma João Brant, fundador do Intervozes e ex-secretário executivo do Ministério da Cultura.

Publicado originalmente no site da Mídia Ninja.

Converso à minha volta e vejo muitas críticas às propostas de mudança no sistema político que estão sendo discutidas no Congresso. Tem desde a turma que fala que elas vão servir para proteger corruptos até a turma que acha que elas vão super-empoderar as burocracias partidárias. Entendo os receios, e não acho que eles sejam à toa. Mas minha visão é bem diferente. Tenho a impressão de que tem um cavalo selado passando na nossa frente e estamos querendo avaliar seus dentes (com o perdão da fusão infame de metáforas equinas…).

Antes de tentar convencê-los disso, vale dizer: acho que o sistema de representação exige modelos novos e arejados, mas dificilmente chegaremos a eles por cavalos de pau ou de forma abrupta. Precisaria apostar em um processo social disruptivo, quase revolucionário, para imaginar virar o atual sistema do avesso. Há quem aposte nisso, eu acho que não devemos ficar aguardando. Se vier, ótimo. Junho de 2013, por exemplo, foi um processo importante de mobilização e não conseguiu mexer uma vírgula nisso. Não dá para querer mudar o sistema político colocando-se à margem do sistema atual.

Considerando isso, acho que temos de apostar em duas estratégias: propor mudanças pelas bordas que vão ‘contaminando’ positivamente o sistema e aproveitar brechas para testar novos caminhos no sistema político. O momento é muito propício para essas duas estratégias ganharem corpo, e acho que a proposta discutida no Congresso vai nessa direção.

A bizarrice do sistema atual

A parte mais complicada do atual sistema político é o Legislativo, muito distante de representar a complexidade de interesses da população. Eleição após eleição, o perfil geral é de sobrerrepresentação das elites e grupos de interesse empresarial, como o agronegócio. É neste Poder que temos de nos concentrar agora, em especial na Câmara dos Deputados.

O sistema atual de eleição, por lista aberta, é um desastre, por vários motivos. Em primeiro lugar, é um sistema que engana o eleitor. Você vota, antes de tudo, em uma coligação partidária, mas tem a impressão de que está votando principalmente em uma pessoa. Explico. Se você vota no partido X e ele está aliado com o Y e o Z, seu voto vai para essa coligação inteira. A primeira conta distribui proporcionalmente as cadeiras da Câmara. Quem vai ocupá-las depende de quem recebeu mais votos naquela coligação, independentemente de ser do partido X, Y ou Z. Então seu voto ajuda a eleger uma chapa de candidatos de vários partidos, mesmo que sua intenção seja eleger o cara mais legal de um deles. Muitas vezes ele acaba não sendo eleito, mas seu voto ajudou a eleger dezenas de figuras de quem você nunca ouviu falar.

Neste cenário, seu voto vai para uma chapa que você não conhece, porque ela não é apresentada assim. Você discute a plataforma individual do candidato mas não discute a plataforma do partido ou coligação dele – até porque ela sequer existe. Ao mesmo tempo, um processo que parece aberto e democrático passa por grande controle dos partidos, por meio da distribuição de recursos (financeiros e tempo de TV). Só que isso não é transparente ao eleitor.

Como são milhares de candidatos disputando a atenção dos eleitores, a campanha é completamente irracional. Mesmo os setores mais informados e politizados da sociedade costumam enfrentar dificuldades para tomar decisão. Este quadro gera um enorme empoderamento de intermediários. Em boa parte do Brasil, em municípios de todos os tamanhos, o voto é definido a partir da indicação de um intermediário, muitas vezes despachante de pequenos favores clientelistas. Em suma, um processo intermediado (o eleitor tem pouca condição de tomar a decisão sozinho) e despolitizado (decisão tomada, em boa parte, por fatores estranhos aos temas centrais do parlamento e da política).

Pela sua própria natureza hiper-fragmentada, o sistema atual é caro e dependente de financiamento privado de campanha, o que fortalece o tipo de vínculos que estamos vendo às claras agora. Na maior parte, os recursos são usados para tornar o candidato minimamente conhecido pelo eleitor, seja diretamente – por panfletos, carros de som etc. – seja indiretamente – por meio de pagamento aos intermediários despachantes.

A consequência disso tudo é um sistema que gera quase nenhuma identidade partidária. E em democracias de massa é a identidade partidária, com a criação de vínculos de longo prazo, o mecanismo mais eficaz de politização e de aproximação do Legislativo dos interesses do eleitor. Temos enormes críticas aos partidos, mas parte de seu distanciamento e ausência de representatividade vem justamente do fato de que em nenhum momento o atual sistema cobra deles a apresentação e discussão de programas. Sem isso, eles ficam confortáveis em adotar posições de conveniência, porque não há compromisso prévio com o eleitor.

Ainda assim, vários estudos mostram que parte desse sistema, especialmente as legendas com mais clareza ideológica (como PSDB, DEM, PT, PCdoB e PSOL), traz grande coerência em suas posições no Legislativo. Hoje elas não devem passar de um terço dos 513 deputados, mas tem potencial para ocupar mais espaço se o sistema colocar os partidos em primeiro plano.

Apostar na direção contrária aos partidos só pode tornar o processo de escolha mais voltado a indivíduos, o que pode ser interessante em processos pequenos, mas é péssimo em uma democracia de massas. A tendência seria de despolitização ainda maior.

Por conta desses horrores, manter o sistema atual interessa quase nada a quem quer apostar em um sistema mais representativo. Ouso dizer que qualquer aposta vale mais do que o que temos hoje. Mas acho que a aposta que está com força em cima da mesa agora, com lista fechada e financiamento público para as próximas eleições, é das melhores entre aquelas que são plausíveis e realistas.

Lista fechada, está falando sério?

O mecanismo de voto em lista fechada com financiamento público e proibição de coligações traria várias vantagens. Antes de tudo, fortaleceria a identidade partidária, o que é absolutamente vital para um sistema político funcionar com algum grau de representatividade num país diverso e complexo como o Brasil. Obrigaria os partidos a apresentarem seus programas em torno dos temas mais polêmicos do parlamento, estabeleceria vínculos a longo prazo e facilitaria muito o acompanhamento do legislativo pelo eleitor. É preciso ter claro que hoje a enorme maioria dos temas no parlamento já é definida por encaminhamento dos partidos, seja por definições tomadas no colégio de líderes ou em plenário.

Diferentemente do que parte da turma afirma, a lista fechada impede que se escondam corruptos. Enquanto na lista aberta você não sabe quais candidatos serão beneficiados com seu voto na coligação, na lista fechada você pode simplesmente dizer: não voto em nenhuma lista que tenha nomes que tenham sido citados em casos de corrupção, por exemplo. O eleitor ficará muito mais empoderado para votar com este critério.

A questão do controle da lista por burocracias partidárias é problemática, mas seria minimizada com prévias abertas obrigatórias e outros mecanismos já previstos na proposta. Neste caso, cada partido teria de realizar prévias para formação de sua lista, com comparecimento opcional do eleitor, que poderia votar nas prévias de apenas um partido. Montada a lista previamente às eleições, no momento de ir à urna o cidadão saberá exatamente quem ele está ajudando a eleger ao votar naquela legenda.

A proposta que está em debate melhora bastante também o quadro de representação de gênero, porque estabelece a obrigatoriedade de equilíbrio de gênero na proporção mínima de 1 para 3 nas listas. Isso já levaria a pelo menos dobrar a atual proporção de representação feminina, absolutamente vergonhosa e injusta.

Financiamento público

Um elemento fundamental na reforma é diminuir a influência do poder econômico na política. Talvez a maior evidência da lava-jato tenha sido o grau de promiscuidade do poder político com o poder econômico. Esse vínculo não se rompe por decreto, mas regras que façam com que a política não dependa das grandes empresas para funcionar ajudam a inibir a promiscuidade.

O financiamento privado empresarial e o alto custo das campanhas distorce a representação, porque os candidatos ligados aos interesses das empresas passam a ter maior chance de ser eleitos. Não à toa a Câmara tem tantos deputados que representam setores empresariais.

É preciso ter claro que o financiamento privado empresarial JÁ custa caro aos cofres públicos. Não faria nenhum sentido alguma empresa investir grana em campanha se não for para ter um retorno maior do que o investido. Do contrário, estaria fazendo caridade. Então é uma falácia achar que o financiamento privado economiza dinheiro público. Além disso, o modelo proposto torna as campanhas mais baratas.

Acontece que só o voto em lista fechada permite o financiamento público de campanha sem gerar enormes distorções. Senão passaria a haver um controle, pelos partidos, da distribuição dos recursos públicos entre os candidatos. Adotado este modelo principal, o financiamento privado poderia ser mantido só para contribuintes individuais, desde que houvesse um teto fixo por doador (e não proporcional à renda, como é hoje).

E o distrital?

A proposta em debate na Câmara defende o modelo de voto em lista fechada e financiamento público em 2018 e 2022, e depois adotaria o distrital misto – metade por lista fechada, metade por escolha majoritária no distrito. Aí vem um ponto delicado, a meu ver. No sistema distrital, os candidatos de um bairro ou cidade ou região disputam entre eles e quem ganhar leva.

Esse sistema tem dois problemas. O primeiro é que transforma a eleição parlamentar em majoritária, impedindo a proporcionalidade, o que me parece essencial para garantir representatividade efetiva. Um exemplo simplista: se o PT ganha do PSDB por 60% a 40% em todos os distritos, todos os representantes na Câmara serão do PT, mesmo que 40% da população se referenciem no PSDB. Além disso, em vez de fortalecer um vínculo programático, ele fortalece um vínculo paroquial, de interesse do bairro, correndo o risco de transformar a Câmara dos Deputados em Câmara de Vereadores.

É claro que os atuais distritos de votação, equiparados aos estados, são grandes demais e encarecem as campanhas. Mas isso poderia ser solucionado com a diminuição dos atuais distritos para delimitações um pouco menores, como as macrorregiões, mas que mantivessem um número de cadeiras razoável para permitir a eleição proporcional.

<

Categoria: Notícia
Compartilhe

Conteúdo relacionado

  • Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
    PLOA 2025 reduz recursos para Urbanismo e ...
    A rotina da população pobre e urbana brasileira…
    leia mais
  • Candidatos de direita dominam uso de nome ...
    Do total de candidaturas nas eleições municipais deste…
    leia mais
  • FotoTânia Rêgo/Agência Brasil
    Brasil corta verbas para transição energét...
    Apesar das discussões globais sobre a urgência da…
    leia mais
  • Rafa Neddermeyer/Agência Brasil
    Recursos para Ministério das Mulheres cres...
    O Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) de…
    leia mais
  • Foto: Racool_studio/Freepik.com
    PLOA 2025: aumento de 10% no orçamento par...
    O Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) acaba de…
    leia mais

Cadastre-se e
fique por dentro
das novidades!