Rolezinhos: O que estes jovens estão “roubando” da classe média brasileira

O Natal de 2013 ficará marcado como aquele em que o Brasil tratou garotos pobres, a maioria deles negros, como bandidos, por terem ousado se divertir nos shoppings onde a classe média faz as compras de fim de ano. Pelas redes sociais, centenas, às vezes milhares de jovens, combinavam o que chamam de “rolezinho”, em shopping próximos de suas comunidades, para “zoar, dar uns beijos, rolar umas paqueras” ou “tumultuar, pegar geral, se divertir, sem roubos”. No sábado, 14, dezenas entraram no Shopping Internacional de Guarulhos, cantando refrões de funk da ostentação. Não roubaram, não destruíram, não portavam drogas, mas, mesmo assim, 23 deles foram levados até a delegacia, sem que nada justificasse a detenção. Neste domingo, 22, no Shopping Interlagos, garotos foram revistados na chegada por um forte esquema policial: segundo a imprensa, uma base móvel e quatro camburões para a revista, outras quatro unidades da Polícia Militar, uma do GOE (Grupo de Operações Especiais) e cinco carros de segurança particular para montar guarda. Vários jovens foram “convidados” a se retirar do prédio, por exibirem uma aparência de funkeiros, como dois irmãos que empurravam o pai, amputado, numa cadeira de rodas. De novo, nenhum furto foi registrado. No sábado, 21, a polícia, chamada pela administração do Shopping Campo Limpo, não constatou nenhum “tumulto”, mas viaturas da Força Tática e motos da Rocam (Ronda Ostensiva com Apoio de Motocicletas) permaneceram no estacionamento para inibir o rolezinho e policiais entraram no shopping com armas de balas de borracha e bombas de gás.

Se não há crime, por que a juventude pobre e negra das periferias da Grande São Paulo está sendo criminalizada?

Primeiro, por causa do passo para dentro. Os shoppings foram construídos para mantê-los do lado de fora e, de repente, eles ousaram superar a margem e entrar. E reivindicando algo transgressor para jovens negros e pobres, no imaginário nacional: divertir-se fora dos limites do gueto. E desejar objetos de consumo. Não geladeiras e TVs de tela plana, símbolos da chamada classe C ou “nova classe média”, parcela da população que ascendeu com a ampliação de renda no governo Lula, mas marcas de luxo, as grandes grifes internacionais, aqueles que se pretendem exclusivas para uma elite, em geral branca.

Antes, em 7 de dezembro, cerca de 6 mil jovens haviam ocupado o estacionamento do Shopping Metrô Itaquera, e também foram reprimidos. Vários rolezinhos foram marcados pelas redes sociais em diferentes shoppings da região metropolitana de São Paulo até o final de janeiro, mas, com medo da repressão, muitos têm sido cancelados. Seus organizadores, jovens que trabalham em serviços como o de office-boy e ajudante geral, temem perder o emprego ao serem detidos pela polícia por estarem onde supostamente não deveriam estar – numa lei não escrita, mas sempre cumprida no Brasil. Seguranças dos shoppings foram orientados a monitorar qualquer jovem “suspeito” que esteja diante de uma vitrine, mesmo que sozinho, desejando óculos da Oakley ou tênis Mizuno, dois dos ícones dos funkeiros da ostentação. Às vésperas do Natal, o Brasil mostra a face deformada do seu racismo. E precisa encará-la, porque racismo, sim, é crime.

“Eita porra, que cheiro de maconha” foi o refrão cantado pelos jovens ao entrarem no Shopping Internacional de Guarulhos. O funk é de MC Daleste, que afirma no nome artístico a região onde nasceu e se criou, a zona leste, a mais pobre de São Paulo, aquela que todo o verão naufraga com as chuvas, por obras que os sucessivos governos sempre adiam, esmagando sonhos, soterrando casas, matando adultos e crianças. Daleste morreu assassinado em julho com um tiro no peito durante um show em Campinas – e assassinato é a primeira causa de morte dos jovens negros e pobres no Brasil, como os que ocuparam o Shopping Internacional de Guarulhos.

A polícia reprimiu, os lojistas fecharam as lojas, a clientela correu. Uma das frequentadores do shopping disse a frase-símbolo à repórter Laura Capriglione, na Folha de S. Paulo: “Tem de proibir este tipo de maloqueiro de entrar num lugar como este”. Nos dias que se seguiram, em diferentes sites de imprensa, leitores assim definiram os “rolezeiros” (veja entrevista abaixo): “maloqueiros”, “bandidos”, “prostitutas” e “negros”. Negros emerge aqui como palavra de ofensa.

As novelas já vendiam uma vida de luxo há muito tempo, só que nelas os ricos eram os que pertenciam ao mundo de riqueza. Nos videoclipes de funk ostentação, são os pobres que aparecem neste mundo.”

O funk da ostentação, surgido na Baixada Santista e Região Metropolitana de São Paulo nos últimos anos, evoca o consumo, o luxo, o dinheiro e o prazer que tudo isso dá. Em seus clipes, os MCs aparecem com correntes e anéis de ouro, vestidos com roupas de grife, em carros caros, cercado por mulheres com muita bunda e pouca roupa. (Para conhecer o funk da ostentação, assista ao documentárioaqui). Diferentemente do núcleo duro do hip hop paulista dos ano 80 e 90, que negava o sistema, e também do movimento de literatura periférica e marginal que, no início dos anos 2000, defendia que, se é para consumir, que se compre as marcas produzidas pela periferia, para a periferia, o funk da ostentação coloca os jovens, ainda que para a maioria só pelo imaginário, em cenários até então reservados para a juventude branca das classes média e alta. Esta, talvez, seja a sua transgressão. Em seus clipes, os MCs têm vida de rico, com todos os signos dos ricos. Graças ao sucesso de seu funk nas comunidades, muitos MCs enriqueceram de fato e tiveram acesso ao mundo que celebravam.

Esta exaltação do luxo e do consumo, interpretada como adesão ao sistema, tornou o funk da ostentação desconfortável para uma parcela dos intelectuais brasileiros e mesmo para parte das lideranças culturais das periferias de São Paulo. Agora, os rolezinhos – e a repressão que se seguiu a eles – deram a esta vertente do funk uma marca de insurgência, celebrada nos últimos dias por vozes da esquerda. Ao ocupar os shoppings, a juventude pobre e negra das periferias não estava apenas se apropriando dos valores simbólicos, como já fazia pelas letras do funk da ostentação, mas também dos espaços físicos, o que marca uma diferença. E, para alguns setores da sociedade, adiciona um conteúdo perigoso àquele que já foi chamado de “funk do bem”.

A resposta violenta da administração dos shoppings, das autoridades públicas, da clientela e de parte da mídia demonstra que esses atores decodificaram a entrada da juventude das periferias nos shoppings como uma violência. Mas a violência era justamente o fato de não estarem lá para roubar, o único lugar em que se acostumaram a enxergar jovens negros e pobres. Então, como encaixá-los, em que lugar colocá-los? Preferiram concluir que havia a intenção de furtar e destruir, o que era mais fácil de aceitar do que admitir que apenas queriam se divertir nos mesmos lugares da classe média, desejando os mesmo objetos de consumo que ela. Levaram uma parte dos rolezeiros para a delegacia. Ainda que tivessem de soltá-los logo depois, porque nada de fato havia para mantê-los ali, o ato já estigmatizou-os e assinalará suas vidas, como historicamente se fez com os negros e pobres no Brasil.

Jefferson Luís, 20 anos, organizador do rolezinho do Shopping Internacional de Guarulhos, foi detido, é alvo de inquérito policial, sua mãe chorou e ele acabou cancelando outro rolezinho já marcado por medo de ser ainda mais massacrado. Ajudante geral de uma empresa, economizou um mês de salário para comprar a corrente dourada que ostenta no pescoço. Jefferson disse ao jornal O Globo: “Não seria um protesto, seria uma resposta à opressão. Não dá para ficar em casa trancado”.

Por esta subversão, ele não será perdoado. Os jovens negros e pobres das periferias de São Paulo, em vez de se contentarem em trabalhar na construção civil e em serviços subalternos das empresas de segunda a sexta, e ficar trancados em casas sem saneamento no fim de semana, querem também se divertir. Zoar, como dizem. A classe média até aceita que queiram pão, que queiram geladeira, sente-se mais incomodada quando lotam os aeroportos, mas se divertir – e nos shoppings? Mais uma frase de Jefferson Luiz: “Se eu tivesse um quarto só pra mim hoje já seria uma ostentação”. Ele divide um cômodo na periferia de Guarulhos com oito pessoas.

Neste Natal, os funkeiros da ostentação parecem ter virado os novos “vândalos”, como são chamados todos os manifestantes que, nos protestos, não se comportam dentro da etiqueta estabelecida pelas autoridades instituídas e por parte da mídia. Nas primeiras notícias da imprensa, o rolezinho do Shopping Internacional de Guarulhos foi tachado de “arrastão”. Mas não havia arrastão nenhum. O antropólogo Alexandre Barbosa Pereira faz uma provocação precisa: “Se fosse um grupo numeroso de jovens brancos de classe média, como aconteceu várias vezes, seria interpretado como um flash mob?”.

A ideia da imaginação como uma força criativa apresenta-se fortemente no funk ostentação.”

Por que os administradores dos shoppings, polícia, parte da mídia e clientela só conseguem enquadrar um grupo de jovens negros e pobres dentro de um shopping como “arrastão”? Há várias respostas possíveis. Pereira propõe uma bastante aguda: “Será que a classe média entende que os jovens estão ‘roubando’ o direito exclusivo de eles consumirem?”. Seria este o “roubo” imperdoável, que colocou as forças de repressão na porta dos shoppings, para impedir a entrada de garotos desarmados que queriam zoar, dar uns beijos e cobiçar seus objetos de desejo nas vitrines?

Para nos ajudar a pensar sobre os significados do rolezinho e do funk da ostentação, entrevisto Alexandre Barbosa Pereira nesta coluna. Professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ele dedica-se a pesquisar as manifestações culturais das periferias paulistas. Em seu mestrado, percorreu o mundo da pichação. No doutorado, mergulhou nas escolas públicas para compreender o que é “zoar”. Desde 2012, pesquisa o funk da ostentação. Mesmo que os rolezinhos, pela força da repressão, se encerrem neste Natal, há muito que precisamos compreender sobre o que dizem seus protagonistas – e sobre o que a reação violenta contra eles diz da sociedade brasileira

– O rolezinho aparece ligado ao funk da ostentação. Em que medida há, de fato, essa ligação?

Alexandre Barbosa Pereira – O funk ostentação é uma releitura paulista do funk carioca, feita a partir da Baixada Santista e da Região Metropolitana de São Paulo, na qual as letras passam a ter a seguinte temática: dinheiro, grifes, carros, bebidas e mulheres. Não se fala mais diretamente de crime, drogas ou sexo. Os funkeiros dessa vertente começaram a produzir videoclipes inspirados na estética dos videocliples do gangsta rap estadunidense. Mas o mais curioso desse movimento é a virada que os jovens fazem ao mudar a pauta que, até então, era principalmente a criminalidade para o consumo. As músicas deixam de falar de crime para falar de produtos que eles querem consumir. Assim, ao invés de cantarem: “Rouba moto, rouba carro, bandido não anda à pé” (Bonde Sinistro), os funkeiros da vertente ostentação cantam: “Vida é ter um Hyundai e um hornet, dez mil para gastar, rolex, juliet. Melhores kits, vários investimentos. Ah como é bom ser o top do momento” (MC Danado). Deste modo, os MCs começaram a ter mais espaços para cantar em casas noturnas e passaram a produzir videoclipes cada vez mais elaborados, com mais de 20 milhões de acessos no YouTube, o que levou a um sucesso às margens da mídia tradicional. Alguns MCs chegaram a alcançar grande repercussão entre um segmento do público jovem, sem nunca ter aparecido na televisão. Vi meninas chorando por MCs em bailes, mesmo antes de o funk ostentação alcançar o destaque que conseguiu na grande mídia. Surgiram empresas especializadas na produção de clipes no estilo ostentação, como a Kondzilla e a Funk TV, claramente inspirados no gangsta rap, em que os jovens aparecem em carrões e motos, exibindo-se com roupas, dinheiro e mulheres. Uma reflexão interessante a se fazer é como a mídia tradicional, que antes execrava o chamado funk proibidão, que falava de crime, drogas e sexo abertamente, agora começa a elogiar o funk ostentação, denominando-o até como “funk do bem” e ressaltando a trajetória econômica e social ascendente dos MCs.

Pergunta. Fazendo um parêntese aqui, antes de chegar ao rolezinho, qual é o caminho para um jovem pobre ter acesso ao consumo de luxo, segundo o olhar do funk da ostentação? Esta virada que você mencionou…

Resposta. Primeiro que esse bem de luxo não é tão de luxo assim, afinal uma garrafa de uísque a 60 ou 80 Reais não é nenhum absurdo. É sempre possível comprar uma réplica daqueles óculos escuros que custam mais de mil reais. Nas casas noturnas de funk que observei, este era o preço. Pensemos num grupo de pelo menos quatro amigos dividindo o valor da compra. Não sai tão caro brincar de ostentar. Agora, tem os carros. Estes sim estão fora do alcance da maioria desses jovens. Mas aí há uma explicação interessante, que Montanha, um produtor e diretor de videoclipes da Funk TV, em Cidade Tiradentes, sabiamente me deu. Ele me disse que as novelas já vendiam uma vida de luxo há muito tempo, só que nelas os ricos eram os que pertenciam ao mundo de luxo. Nos videoclipes de funk ostentação, são os pobres que aparecem como um mundo de “riqueza” ou de “luxo”, com carros, mansões, roupas de marcas mais caras. Os jovens agora poderiam, segundo afirmou Montanha, ver-se como parte de um mundo de prestígio, daí a grande identificação. O crime pode ser um caminho para acessar esse mundo de luxo ou o que esses jovens entendem por um mundo de luxo, mas não é único. Esta é a lição que muitos MCs de funk têm tentando passar em suas falas na grande mídia. Eles de certa forma mostram um outro caminho, que, aliás, sempre esteve presente para esses jovens da periferia: tornar-se famoso pela música ou pelo futebol. Aliás, esses são caminhos que aparecem como os mais possíveis para os jovens negros e pobres das periferias do país imaginarem um futuro de sucesso. Num mundo em que há uma forte divisão entre trabalho intelectual e manual, com a extrema valorização do primeiro, o uso do corpo em formas lúdicas como meio de ganhar dinheiro mostra-se como opção para uma transformação da vida. “Crime, futebol, música, caralho, eu também não consegui fugir disso aí”, esse é o Negro Drama cantado pelos Racionais MC’s. Os MCs de funk ostentação estão tentando dizer que é possível construir uma vida de sucesso pela música. E o que era ficção, os videoclipes com carros importados emprestados ou alugados, com dinheiro cenográfico jogado para o ar, começa a tornar-se realidade. Muitos deles começam a ganhar uma quantidade razoável de dinheiro com os shows. Acho que a ideia da imaginação como uma força criativa apresenta-se fortemente no funk ostentação.

Será que a classe média entende que os jovens estão ‘roubando’ o direito exclusivo de eles consumirem? Direito que, por sua vez, vinha sendo roubado desses jovens pobres há muito tempo.”

Por outro lado, é preciso destacar que masculinidades pautadas pelo desejo de possuir um automóvel ou uma motocicleta não foram construídas pelo funk ostentação. Já existia há um tempo. Para os meninos da periferia, possuir um bom carro, bonito e potente, é uma das metas principais de vida. A posse do carro é, no imaginário desses jovens, mas também da população em geral, um indicativo de sucesso econômico e social, garantindo, consequentemente, sucesso com as mulheres.

Neste caldo cultural, o consumo é cada vez mais exaltado como espaço de afirmação e de reconhecimento para os jovens. É, inclusive, bastante complexa a forma como se dá a relação entre criminalidade e consumo no funk. Na virada que produziram, parece que há o recado de que essas duas ações sociais podem constituir dois lados de uma mesma moeda. Eles não deixam de falar do crime. Acabam citando-o indiretamente, como nas músicas do MC Rodofilho, nas quais ele celebra: “Ai meu deus, como é bom ser vida loka!”. O importante é entender como o crime e o consumo são pautas constantes nas relações de sociabilidade dos jovens da periferia. Os mais pobres também querem que ipads, iphones e automóveis potentes façam parte de seu mundo social. Ainda preciso observar e refletir mais sobre isso, mas acho que tanto no caso do crime, como no do consumo temos que atentar mais para o modo como se dão as relações entre pessoas e coisas. Fico pensando que a busca de realização apenas pelo consumo envolve sentimentos e posturas extremas de um egoísmo hedonista e de um profundo desprezo pelos outros humanos. As mercadorias, ou as coisas almejadas, de certa forma têm conformado as subjetividades contemporâneas. E nessas novas subjetividades, pautadas pelo instantâneo e o instável, parece não haver muito espaço para a solidariedade. Há uma nova tendência na discussão antropológica afirmando que não podemos entender as coisas apenas como representação ou resultado do social. Precisamos pensar também em como as coisas fazem as pessoas e mesmo o social, como as coisas, ou as mercadorias mais desejadas hoje, motivam tanto um consumismo desenfreado, irracional e egoísta, quanto o ingresso de jovens na criminalidade. Sempre fico espantado quando vejo as imagens, em outros países, das pessoas correndo desesperadas para comprar um novo lançamento de smartphone, videogame ou tablet… Mas não só isso, tais coisas também motivam e determinam formas de estar, pensar, relacionar-se e sentir no mundo contemporâneo.

Penso muito nisso quando parte da classe média critica o consumo desses jovens, dizendo que apenas eles – da classe média que, supostamente, pagaria os impostos – têm direito a consumir, ou se relacionar com certos produtos. Será que, desse modo, a classe média entende que os jovens estão roubando o direito exclusivo de eles consumirem ou de se relacionarem com esses objetos de prestígio? Direito que, por sua vez, vinha sendo roubado desses jovens pobres há muito tempo?

Essa crítica pode vir inclusive de certa classe média mais intelectualizada e mesmo com ideias políticas progressistas, mas que acha que sabe o que é melhor para os pobres. Aí fazem a crítica, a partir dos seus ipads e iphones, ao que entendem como um consumo irracional dos mais pobres, que deveriam poupar ao invés de gastar com produtos que não seriam para o nível econômico deles. Enfim, tem aí um jogo de perde e ganha e também de busca de satisfações individuais que envolve o roubo do direito de alguns ao consumo, que é preciso aprofundar para entendermos melhor essas dinâmicas contemporâneas. Todos têm o direito a consumir o que quiserem hoje? E seria viável, hoje, todos consumirem em um alto padrão? Que implicações ambientais teríamos? E se não é sustentável ou viável que todos consumam em tamanha intensidade, por que incentivamos tal consumismo? Com isso, o que quero dizer é que não se pode pensar a relação entre crime e consumo apenas entre os pobres, mas creio que precisamos também olhar para as classes médias e altas e para os crimes que, historicamente, têm sido cometidos contra os mais pobres e o meio ambiente para proteger o consumo dos ricos.

P. É neste ponto que os rolezinhos aparecem e criam uma tensão das mais reveladoras neste Natal?

R. Os rolezinhos nos shoppings estão ligados diretamente a esse contexto. Não sei dizer como surgiram efetivamente, mas me parece que despontaram por essas novas associações que as redes sociais permitem fazer, de forma que uma brincadeira possa virar algo sério. De repente, uma convocatória feita na internet pode levar centenas de jovens a se encontrarem num shopping, local onde podem ter acesso a esses bens cantados nas músicas, ainda que apenas por acesso visual. Agora, o que é importante ressaltar é que não foram os rolezinhos nem o funk ostentação que criaram essa relação de fascinação com consumo. Esta já existia há muito tempo. Os Racionais, há mais de dez anos, já cantavam sobre isso, com afirmações como: “Você disse que era bom e a favela ouviu, lá também tem uísque, red bull, tênis nike e fuzil” ou “Fartura alegra o sofredor”

É importante perceber que os shoppings onde os rolezinhos ocorreram estão em regiões mais periféricas. Eles não têm ido aos templos maiores do consumo de luxo na cidade.”

P. Algumas análises relacionam os rolezinhos a uma ação afirmativa da juventude negra e pobre, a uma denúncia da opressão e a uma reivindicação de participação, neste caso no mundo do consumo. Como você analisaria este fenômeno tão novo?

R. Não me arriscaria a dizer que há um movimento político muito claro. Pode indiretamente constituir-se como uma ação afirmativa da juventude negra e pobre. Talvez a tensão que se criou com a criminalização desses jovens, durante os rolezinhos, possa levar a algum tipo de reflexão e ação política maior, mas é difícil prever. Em um livro intitulado Cidadania Insurgente, (o antropólogo americano) James Holston analisa o surgimento das periferias urbanas no Brasil, particularmente em São Paulo, apontando a discriminação contra certas espécies de cidadãos no Brasil. Esse autor mostra como, historicamente, as formulações de cidadania elaboradas pelos mais pobres se deram a partir de sua ocupação dos bairros nas periferias das grandes cidades. Noções e práticas próprias de cidadania que se produziram, ao mesmo tempo, por meio das experiências de tornar-se proprietário, de participar de movimentos sociais por melhorias dos bairros e de ingressar no mercado consumidor. Primeiro se ocupou os bairros, mesmo sem estrutura mínima. Depois, ocorreram as reivindicações pela legalização dos terrenos ocupados. E, enfim, vieram as lutas pela chegada da energia elétrica, saneamento básico e asfalto. Acho sempre muito interessante, em conversas com lideranças antigas dos bairros periféricos de São Paulo, observar que elas indicam a chegada do asfalto como o grande marco de transformação do bairro e a integração deste ao espaço urbano.

Encaro, portanto, ações como estas, dos rolezinhos, do ponto de vista dessa “cidadania insurgente”, referindo-se a associações de cidadãos que reivindicam um espaço para si e, assim, se contrapõem ao grande discurso hegemônico ou, se não se dissociam do discurso hegemônico, ao menos provocam ruídos nele. Trata-se de uma reivindicação por cidadania, participação política e direitos que, historicamente, foi feita na marra, pelos mais pobres, muitas vezes nas costuras entre o legal e o ilegal, e que começou com a própria ocupação dos bairros na periferia da cidade de São Paulo, como forma de habitar e sobreviver no mundo urbano. Essa cidadania não necessariamente se apresenta como resistência, mas pode também querer, em muitos casos, associar-se ao hegemônico, produzindo dissonâncias.

O que são o funk ostentação e os rolezinhos se não essa reivindicação dos jovens mais pobres por maior participação na vida social mais ampla pelo consumo? Estas ações culturais parecem situar-se nessa lógica, que não necessariamente se contrapõe ao hegemônico, na medida em que tenta se afirmar pelo consumo, mas provoca um desconforto, um ruído extremamente irritante para aqueles que se pautam por um discurso e uma prática de segregação dos que consideram como seus “outros”.

P. Como definir este desconforto? O que são os “outros” neste contexto? E que papel estes “outros” desempenham?

R. O desconforto em ver pobres ocupando um lugar em que não deveriam estar, como o de consumidores de certos produtos que deveriam ser mais exclusivos. É um tipo de espanto, que indaga: “Como eles, que não têm dinheiro, querem consumir produtos que não são para a posição social e econômica deles?”. Estes “outros” são os considerados “subalternos”. Podem ser funkeiros, pobres e pardos da periferia, mas podem ser também as empregadas domésticas, os motoboys, os pichadores, entre outros “outros”, que muitas vezes são utilizados como bode expiatório das frustrações de uma parcela considerável da classe média.

Há uma tendência de perceber os jovens pobres a partir de três perspectivas: a do bandido, a da vítima e a do herói.”

Os rolezinhos não são protestos contra o shopping ou o consumo, mas afirmações de: “Queremos estar no mundo do consumo, nos templos do consumo”. Entretanto, por serem jovens pobres de bairros periféricos, negros e pardos em sua maioria, e que ouvem um gênero musical considerado marginal, eles passam a ser vistos e classificados pela maioria dos segmentos da sociedade como bandidos ou marginais. Vamos pensar que, na própria concepção do shopping, não está prevista a presença desse público, ainda mais em grupo e fazendo barulho. Pergunto-me se fosse em um shopping mais nobre, com jovens brancos de classe média alta, vestidos como se espera que um jovem deste estrato social se vista, se a repercussão seria a mesma, se a criminalização seria a mesma. Talvez fosse considerado apenas um flash mob. Há uma tendência, por parcela considerável da classe média, da mídia e do poder público de perceber os jovens pobres a partir de três perspectivas, quase sempre exclusivistas: a do bandido, a da vítima e a do herói.

P. Como funcionam estas três perspectivas – bandido, vítima e herói?

R.  São muito mais formas de enquadrar esses jovens por aqueles que querem tutelá-los do que categorias assumidas pelos próprios jovens. Por isso, são contextuais. Dependendo da situação e dos atores sociais com quem dialogam, o jovem pode ser entendido a partir de uma dessas categorias. O pichador, por exemplo, é um agente que pode mobilizar todas essas classificações, dependendo do contexto e dos interlocutores: a polícia, a secretaria de cultura, os pesquisadores acadêmicos ou a ONG que quer salvar os jovens da periferia da violência. No caso do funk, por exemplo, já há comentários e mesmo textos de pessoas mais politizadas vendo os rolezinhos como uma ação afirmativa ou extremamente contestatória. Para estes, os protagonistas dos rolezinhos são vítimas que se tornaram heróis. Outros, como a polícia, a administração dos shoppings e a clientela, mas também seus vizinhos, que moram lá nos bairros pobres da periferia, enxergam neles principalmente vilões e mesmo bandidos.

Jovens como estes que estão nos rolezinhos não necessariamente aceitam se encaixar nesses rótulos, mas, em alguns casos, podem também se encaixar em todos eles ao mesmo tempo. Não se pode simplificar um fenômeno como este. Porém, se pensarmos esse movimento que surge principalmente com o hip hop, de valorizar a periferia como espaço político e de afirmação positiva, é possível ver, sim, ainda que em menor intensidade, uma certa ação política. De dizer: “Somos da quebrada e temos orgulho disso”. Um movimento de reversão do estigma em marca positiva.

P. Mas há, de fato, uma ação consciente, organizada, com um sentido político prévio? Ou o sentido está sendo construído a partir dos acontecimentos, o que é igualmente legítimo?

R. Olha, sinceramente, é difícil dizer se há um sentido político, direto, consciente e/ou explícito. Talvez por parte de alguns, mas pelo que vi nas redes sociais, não da maioria. Se o movimento persistir ou tomar outras formas, pode ser que tal sentido político fique mais forte. Por enquanto é difícil analisar esse ponto. O antropólogo (indiano) Arjun Appadurai analisa há algum tempo as mudanças que se processam no mundo por causa do avanço das tecnologias de comunicação e de transporte. Segundo este autor, as pessoas cada vez mais se deslocam no mundo atual, e não apenas fisicamente, mas também e talvez principalmente pela imaginação, por causa de meios de comunicação como a televisão e, mais recentemente, pela internet. Hoje é possível imaginar-se nos mais diferentes lugares do mundo, mas também em diferentes classes sociais. O que são os videoclipes de funk da ostentação que não imagens/imaginações que os jovens produzem sobre o que seria pertencer a outra classe social ou possuir melhores condições econômicas para o consumo?

O que são os videoclipes de funk ostentação que não imagens que os jovens produzem sobre o que seria pertencer a outra classe social?”

Essa imaginação, segundo esse autor, pode constituir-se como um projeto político compartilhado, mas pode também ser apenas uma fantasia, como algo individualista e egoísta, sem grandes potenciais políticos. Parece-me que o funk da ostentação em São Paulo e movimentos como o dos rolezinhos nos shoppings têm intensamente essas duas potências. Difícil saber se alguma delas irá prevalecer ou tornar-se hegemônica.

P. A escolha da música do MC Daleste, assassinado num show em Campinas, para o rolezinho promovido no Shopping Internacional de Guarulhos, pode ter um significado a mais?

R. A escolha da música do MC Daleste na entrada dos jovens no shopping de Guarulhos me pareceu bastante significativa, por vários motivos. Principalmente, porque a morte dele no palco, cantando funk, de certa forma construiu um marco para esse funk da ostentação. O seu assassinato acabou por dar ainda mais visibilidade a esta vertente do funk paulista. MC Daleste cantava proibidão antes e, assim, essa relação confusa entre crime e consumo manifesta-se de modo bastante forte no que o MC Daleste representa. Há no seu próprio nome artístico essa afirmação de um certo orgulho do lugar de onde vem e de ser da periferia, que tanto o funk quanto o hip hop expressam. Não é por acaso que ele é “Da Leste”. Lembremos que Guarulhos também está à leste da Região Metropolitana de São Paulo.

P. Hoje, uma parte significativa da geração que se criou nas periferias com movimentos contestatórios como o hip hop e a literatura periférica ou marginal tem, pelo funk da ostentação, assumido os valores de consumo das classes médias e alta. Como você analisa este fenômeno e o insere no contexto histórico atual do Brasil?

R. O que um evento como esse parece evidenciar é, por um lado, esse anseio por consumir e por afirmar-se pelo consumo que esses jovens vêm demonstrando já há algum tempo, pelas letras dos funks, mas que também já é visto no hip hop. Apesar das críticas de certos segmentos do hip hop, não sei se o funk ostentação rompe com o hip hop mais politizado dos anos 1980 e 1990 ou se oferece uma das muitas possíveis continuidades a esse movimento cultural. Parece-me que o funk ostentação é uma releitura paulista, muito influenciada pelo hip hop, do funk carioca. Muitos MCs de funk eram MCs de hip hop, muitos deles, além dos funks, cantam também raps, e músicas dos Racionais são ouvidas nos shows. Trechos de letras de músicas dos Racionais podem ser encontrados facilmente nas letras do funk. Agora, o fato é que o funk não é tão marcado pela questão política como o hip hop. O Montanha, de Cidade Tiradentes, disse-me algo interessante, certa vez, de que, na verdade, o hip hop ofereceria um espaço de expressão política que faltava aos jovens, já o funk é um espaço de lazer e de sociabilidade. Parece-me uma reflexão interessante. Não que o hip hop não possa conter lazer e sociabilidade também, nem o funk, protesto político, mas que as duas vertentes tendem para um dos polos. O funk, aliás, ganhou esse grande espaço junto aos jovens das periferias de São Paulo porque, nessa articulação de um espaço de lazer, configurou-se um espaço para as mulheres que, no hip hop, era mais difícil. As mulheres são presença fundamental nos bailes funks. O protagonismo da dança sempre foi delas. Ainda que os meninos também dancem e as meninas participem cada vez mais como MCs. O hip hop sempre foi muito mais masculino, da dança ao estilo de se vestir.

P. Mas qual é a diferença, na sua opinião, entre a forma como, por exemplo, os Racionais falam em consumo e os MCs da ostentação falam de consumo?

Devemos questionar não a ação dos meninos, mas as relações sociais fomentadas na contemporaneidade que se pautam cada vez mais pela busca do reconhecimento pelo consumo, pela posse de ben

Mandela conseguiu ser reverenciado por seus antigos inimigos

Publicado pela Folha de São Paulo

http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2013/12/1292225-mandela-conseguiu-ser-reverenciado-por-seus-antigos-inimigos.shtml

No final da comédia “Um Peixe Chamado Wanda”, os letreiros descrevem o futuro dos personagens, e o direitista maluco e homicida interpretado por Kevin Kline termina como “ministro da Justiça da África do Sul”. Ri com o resto da audiência daquele cinema londrino, onde assisti ao filme pouco depois do lançamento, em 1988. Com Nelson Mandela na cadeia, dezenas de milhares de pessoas detidas sem processo judicial e o apartheid no auge de sua fúria, usar a palavra “justiça” para descrever o cargo não poderia ser mais absurdo e contraditório.

O que nenhum dos presentes ao cinema, ou aliás praticamente qualquer outra pessoa, poderia ter imaginado era que Mandela estivesse, naquele exato momento, conduzindo um diálogo perfeitamente cordial com Kobie Coetsee, então ministro da Justiça sul-africano. Coetsee, que comandava também o departamento carcerário, vinha realizando reuniões secretas com o mais famoso prisioneiro político do planeta desde 1985, a fim de explorar a possibilidade de uma transição negociada rumo ao governo democrático. Os dois continuaram a dialogar até que Mandela fosse libertado da prisão, depois de 27,5 anos encarcerado, em fevereiro de 1990.

Oito anos mais tarde, entrevistei Coetsee para um documentário de TV que eu estava produzindo sobre Mandela, que estava chegando ao fim de seu mandato de cinco anos como presidente da África do Sul. O que descobri foi que, para Coetsee, a reunião inicial com Mandela, em 1985, foi um caso de amor à primeira vista. Mandela, sob guarda e convalescendo de uma cirurgia na próstata, vestia um camisolão por cima do pijama. Coetsee, para todos os efeitos seu carcereiro, usava terno e gravata. Mas o ministro percebeu de imediato que não estava no mesmo plano que Mandela. “Ele era carismático por natureza –percebi assim que o vi”, Coetsee contou. “Era um líder nato”. Durante os 90 minutos de minha entrevista com Coetsee, ele chorou pelo menos seis vezes. “Para mim, Mandela personifica as grandes virtudes romanas”, disse o ex-ministro. “Honestas, gravitas, dignitas”.

Para aquele documentário, e o livro sobre Mandela que escrevi subsequentemente, entrevistei muitos de seus velhos inimigos políticos, homens brancos que haviam comandado ou apoiado o apartheid e aplaudido seu longo encarceramento. Sem exceção, todos haviam passado a reverenciar o antigo inimigo; como aconteceu com Coetsee ao falar comigo sobre Mandela, muitos derramaram lágrimas ao recordar sua nobreza.

Bastava conhecê-lo em pessoa para sucumbir ao seu charme. Mandela dispunha de um coquetel irresistivelmente sedutor que combinava sua inata majestade a um humor autoirônico, um conjunto de valores inflexíveis, visão astuta, inteligência política e monumental integridade. Tanto amigos quanto inimigos cediam diante de sua vontade. Pouco admira que políticos do mundo todo estejam formando fila para tecer elogios a Mandela: ele era o melhor do ramo. Uma das pessoas que veio a reconhecer seu talento, embora inicialmente não estivesse muito certo disso, foi Tony Leon, um líder branco da oposição política nos cinco anos de governo de Mandela.

Leon, um advogado de humor ferino que dirigia o Partido Democrata (no Reino Unido, ele seria conservador), costumava duelar com Mandela em debates parlamentares. Um dia, Mandela perdeu a paciência. “Estou ficando cansado dessas festinhas do Mickey políticas”. Leon retrucou: “Sim, e nós estamos cansados de uma política econômica dirigida pelo Pateta”. Dias mais tarde, Leon, 36 anos mais jovem que Mandela, sofreu um ataque cardíaco e teve de ser levado urgentemente ao hospital para uma cirurgia de ponte de safena. Ele estava se recuperando da operação quando ouviu uma voz, do outro lado das cortinas que protegiam seu leito. “Ei, Mickey Mouse”, disse a voz que ele reconheceu imediatamente como a de Mandela. “Pateta está aqui”.

Desde então, Leon, que recuperou a saúde e hoje é embaixador da África do Sul na Argentina, acrescentou seu nome à longa lista de admiradores irrestritos de Mandela. Meu nome também consta dela, aliás. Tendo observado seu trabalho de perto como correspondente do jornal “Independent” na África do Sul entre 1990, o ano de sua libertação, e 1995, o primeiro ano de sua presidência, e tendo realizado meia dúzia de entrevistas pessoais com ele e conversado com Mandela em diversas outras ocasiões políticas e sociais, terminei tão impressionado quanto todos os demais jornalistas que tiveram o privilégio de conviver com ele. Mandela eliminou o ceticismo que costuma ser endêmico em nossa profissão.

Em dado nível, isso se deve ao seu imenso gênio político, por conta das duas missões impossíveis que conseguiu realizar: a primeira, convencer seu povo a renunciar à vingança, depois de séculos de humilhação racial; a segunda, persuadir os compatriotas brancos a entregar o poder pacificamente, evitando a muito alardeada guerra civil.

Mas em nível mais simples, se bem que igualmente profundo, o que aprendi com Mandela foi a lição de como uma pessoa decente deve se comportar. É muito incomum conhecer alguém cujo comportamento se equipara aos valores que a pessoa diz defender; e mais incomum ainda encontrar uma pessoa desse tipo no mundo hipócrita da política. Mandela defendia o respeito, igualdade e generosidade de espírito. Colocava esses valores em prática em cada detalhezinho de sua vida, mesmo distante das câmeras, onde não havia vantagens políticas a obter. Era tão cortês e respeitoso com o jardineiro, o garçom e o comissário de bordo quanto o era com o presidente dos Estados Unidos e a rainha da Inglaterra –que aliás o adora. Tenho uma centena de histórias que serviriam para ilustrar o ponto. Eis uma delas:

Mandela estava em Xangai, hospedado na suíte presidencial de um hotel de luxo. Ao se levantar de manhã, ele arrumou a cama, como fazia onde quer que dormisse –incluindo o Palácio de Buckingham e a Casa Branca. A camareira que respondia pelo seu quarto ficou preocupada, como se já não soubesse seu lugar no mundo. Mandela, que estava participando de uma ciranda de reuniões com membros do governo chinês, foi informado da preocupação da camareira e a chamou ao seu quarto. Por meio de um intérprete, ele pediu desculpas, explicando que arrumar a cama era um reflexo tão natural e inevitável para ele quanto escovar os dentes a cada manhã. Mandela explicou que havia passado muito tempo na prisão, e que arrumar a cama era um hábito que não conseguia abandonar.

Ouvi essa história muitos anos depois de acontecida. Teria sido divertido descobrir qual foi a reação da camareira chinesa. Meu palpite é que ela deve ter ficado tão encantada e tão duradouramente impressionada quanto Kobie Coetsee, a rainha da Inglaterra e todos nós.

JOHN CARLIN, jornalista inglês, é colunista do “El País” e colaborou com o caderno “Esporte” da Folha. É autor de “Conquistando o Inimigo”, livro que inspirou o filme “Invictus”, sobre Mandela.

Tradução de PAULO MIGLIACCI

Por uma Constituinte Exclusiva e Soberana do Sistema Político

Só uma reforma política será capaz de favorecer um novo comportamento republicano

Marilza de Melo Foucher*

A reforma do sistema político foi uma das promessas de campanha da presidente Dilma Rousseff. O assunto voltou para a pauta de discussão depois de sua intervenção sobre os pactos firmados em consequência das diferentes manifestações de junho/julho. Hoje a presidente se diz defensora da reforma política com participação popular.

O Brasil tem um regime presidencialista dentro de uma federação, o que talvez complique ainda mais a missão do poder Executivo, pois cabe ao Legislativo fazer as leis. Supostamente se imagina que bastaria ter vontade política para promover todas as mudanças fundamentais que há anos a população espera, entretanto, a presidente tem que andar em cima de ovos para manter o equilíbrio entre Executivo e Legislativo. A negociação do Executivo se dá com os representantes eleitos no congresso e não com a sociedade. Aí a questão crucial é: como garantir uma boa governabilidade diante de parlamentares que na maioria das vezes não representam em nada aos seus eleitores?

O atual sistema partidário brasileiro não é compatível com a nova república democrática brasileira. Muitos partidos foram implantados no período de crise da ditadura e de transição para a democracia. Muitos surgiram sem fundamentos ideológicos. Infelizmente, nenhum governo pós-ditadura pode elaborar um projeto de reforma política, muitas vezes por falta de maioria e outras vezes por falta de vontade política. Existe uma pulverização do sistema partidário no Brasil que dificulta a formação de maiorias nas assembleias estaduais e no Congresso Federal.

Hoje temos aberrações que permite toda deriva republicana. Atualmente, segundo o Tribunal Eleitoral, existem registros de 27 partidos! Muitos desses não têm nenhuma base filosófica e política, são legendas de aluguel, como muitos proclamam. A prática nociva do “dando que se recebe” se banalizou no parlamento brasileiro. O pior é que esses políticos fisiológicos contribuem na permanência do vírus maléfico da corrupção política. Impunemente eles abusam do poder político para nomeações de afiliados, usam do apadrinhamento na distribuição de cargos. Estes políticos fisiológicos defendem interesses paroquiais em detrimento do interesse nacional. Para eles, tudo isto é normal. Eles vão continuar repetindo de modo cínico que tudo isto “faz parte do jogo político”.

Este ano festejamos 25 anos da Constituição Cidadã e a jovem democracia brasileira para entrar na idade de amadurecimento político vai precisar reformar com urgência seu sistema político. Não dá mais para esperar! Caso contrário, continuaremos vivendo num edifício inacabado muito aquém de uma democracia efetiva. A da Constituição Federal de 1988 no art. 14, incisos I, II e III, garante mecanismos de participação direta, tais como: o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular. A presidente Dilma pode fazer uso destas prerrogativas que conjuga a democracia representativa com mecanismos de participação popular.

Em razão desta realidade, só uma boa reforma do sistema político pode provocar um choque de seriedade junto à opinião publica e sem dúvida nenhuma contribuirá na melhoria da imagem do parlamento brasileiro hoje completamente deteriorada. Como dizia Norberto Bobbio: “Não existe estruturas perfeitas, e, a atitude do bom democrata é a de não se iludir sobre o melhor sistema político e a de não se conformar com o pior” (O futuro da democracia – Paz e Terra – São Paulo 1986).

O interesse pela coisa pública e a defesa do interesse geral

O parlamentar deve ter consciência que o exercício de um cargo eletivo não deve ser nem “individualista” e nem “carreirista”. A política não é uma profissão, nem é vitalícia, nem hereditária. Como indagava a filósofa Hannah Arendt: qual o sentido da política quando os homens políticos, eles mesmos perderam o sentido político?

Não devemos esquecer que temos nossa parte de responsabilidade em certos desvios republicanos, pelo fato de não exercermos nossa cidadania política e exigir que a casa do povo seja mais bem representada. O deputado não é eleito para oferecer um emprego ou bolsa de estudo. Ele é eleito para zelar pela coisa pública, pelo interesse coletivo e não individual. Ele não é eleito para defender seus interesses privados.

Se quisermos um melhor funcionamento da governabilidade democrática, e uma reforma do sistema e o funcionamento das instituições políticas, é hora de selar uma parceria entre democracia participativa e democracia representativa para elaborar uma verdadeira reforma do sistema político a fim de evitar a privatização da política.

Os representantes do povo, além de assumir o compromisso de defender os interesses públicos, devem estimular e facilitar a inclusão da participação social no poder político. Essa inclusão da cidadania política efetivará uma mudança estrutural nas relações com o poder e dará melhor sustentabilidade para uma governabilidade democrática mais participativa.

Existe hoje uma urgente necessidade de reencontrar o sentido nobre da política que permite uma comunidade de agir sobre ela mesma, sem perder a visão do interesse geral. Esta reforma política deve favorecer um novo comportamento republicano, só assim a política será escrita com letras maiúsculas e a palavra política ganhará credibilidade e sustentabilidade.

Os parlamentares devem ter um real compromisso partidário e devem privilegiar o interesse geral e zelar pela coisa pública.
Seria impossível renovar os quadros políticos e revigorar a democracia se não aceitamos dividir o poder, ou delegar o poder.
O dinamismo de uma democracia é aquela que não perde a capacidade de se inovar. O ideal seria poder ter uma rotatividade de mandatos e limitar os mandatos ao máximo de duas legislaturas. Os quadros políticos devem ser renovados. A rotatividade pode ser a solução para levar os jovens a se interessarem na política partidária. Por exemplo, um vereador pode se candidatar a prefeito, o prefeito a deputado estadual, o deputado estadual a deputado federal, o senador a governador, o deputado federal a senador. Se esta regra fosse votada, teríamos uma renovação completa do corpo partidário. É uma rica experiência poder subir na esfera da legitimação da representatividade popular. Assim como é importante que quadros políticos possam ser renovados.

Um segundo mandato é talvez interessante devido à experiência e amadurecimento político acumulado. Todavia, cabe aos eleitores no próximo pleito avaliar se a ação do candidato foi pertinente, que projetos ele apresentou, que projetos interessantes contaram com o seu voto, qual a sua postura ética durante o mandato. Diante do constato da ação política, eles votarão ou não a confiança para um segundo mandato. Brigar por um terceiro mandato consecutivo impede a ascensão de novos candidatos.

A reforma política é indiscutivelmente fundamental também para definir novas regras de financiamento público de campanha eleitoral criando um mecanismo de controle mais rígido. Outra questão que merece um debate nacional seria aprofundar a discussão sobre o significado da sustentabilidade política hoje no Brasil.

Os representantes do povo, além de assumir o compromisso de defender os interesses públicos, devem estimular e facilitar a inclusão da participação social no poder político. Essa inclusão da cidadania política efetivará uma mudança estrutural nas relações com o poder e dará de fato uma melhor sustentabilidade para uma governabilidade democrática mais participativa. De certeza o modo de fazer política forjará uma nova relação entre o Estado e a sociedade civil e um novo comportamento republicano.

Note: Escrevi um artigo semelhante que foi publicado em fevereiro de 2011 na Plataforma pela Reforma do Sistema Político que desde 2005 vem discutindo esta questão. A plataforma reúne atores da sociedade civil organizada (movimentos sociais, sindicatos, pastorais, fóruns sociais e outras diferentes organizações sociais).

*Economista, jornalista e correspondente do Correio do Brasil em Paris

Publicado originalmente no 247

Guia: Por um Parlamento sem Racismo

Os BRICS e a Participação Social na Perspectiva de Organizações da Sociedade Civil

O Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e a Rede Brasileira Pela Integração dos Povos (REBRIP) lançam “Os BRICS e a Participação Social na Perspectiva de Organizações da Sociedade Civil”. A publicação, que também tem co-autoria com parceiros dos países membros do BRICS, visa contribuir para a ampliação do debate sobre os BRICS e o papel que a sociedade civil pode e deve ter no sentido de incidir sobre os rumos deste bloco de países. Confira aqui

Novo Código Mineral

Novo Código Mineral representa um retrocesso do ponto de vista ambiental

Aconteceu ontem, dia 04 de setembro, a sétima audiência pública (no Congresso Nacional) da Comissão Especial encarregada de apresentar o relatório do novo Código da Mineração (PL 5708 de 2013). Depois de muitas audiências, esta foi a primeira e a última, de acordo com a agenda apresentada pela comissão, que pautou a questão dos impactos ambientais associados à mineração. O resultado não poderia ser mais preocupante.

As falas do Ministério Público, de organizações socioambientais e do Comitê em Defesa dos Territórios frente à Mineração (que reúne mais de 60 organizações e movimentos sociais) foram unânimes na avaliação de que o PL retrocede anos luz na questão ambiental.  O atual Código, de 1967, assegura a responsabilidade do minerador pelos danos ambientais e sociais gerados pela atividade e vincula o não cumprimento destas responsabilidades às sanções previstas no próprio Código. Já o PL que o governo enviou ao CN apenas menciona, como uma das diretrizes, o vago compromisso com o desenvolvimento sustentável e com a recuperação dos danos ambientais causados pela mineração. Todos nós sabemos que, em Lei, diretrizes e princípios não garantem nada concreto.

A opção do governo pelo chamado Código minimalista isenta o minerador do compromisso legal para com a preservação e recuperação do meio ambiente, sob a alegação de que isto está assegurado pela legislação ambiental vigente, por meio do licenciamento ambiental. Mas esta legislação ambiental vigente é hoje pouco cumprida porque os órgãos ambientais estão totalmente despreparados do ponto de vista técnico e humano, além de não terem poder político para fazer cumprir a legislação.

Estamos, portanto, no pior dos mundos. À fragilidade dos órgãos ambientais, exponenciada no caso dos órgãos estaduais, soma-se à ausência do compromisso legal explícito e específico da atividade mineral para com a preservação e recuperação do meio ambiente.  Em tempos de flexibilização da legislação ambiental e especificamente dos processos de licenciamento, que já não funcionam como deveriam, esta lacuna parece ainda mais preocupante.

A falta de compromisso do governo com uma regulação da atividade mineral que a torne menos agressiva ambientalmente e mais responsável pelos danos gerados ficou clara na audiência de ontem, de maneira constrangedora. O técnico de carreira do Ibama enviado para representar o órgão simplesmente assumiu publicamente que o seu órgão não tem posição institucional sobre o Projeto. Projeto este que foi enviado pelo governo ao CN, em regime de urgência constitucional, depois de anos sendo construído pelo MME sob a batuta da Casa Civil.

Ou seja, este PL absolutamente lacônico em relação ao meio ambiente simplesmente não foi discutido com os órgãos ambientais que deveriam, tecnicamente, ser os responsáveis por subsidiar esta parte da matéria e aprimorá-la em relação ao Código hoje vigente. Não é de se estranhar, portanto, que ele praticamente ignore a questão ambiental.

Outra expressão da falta de compromisso do governo e do seu PL com a busca de soluções concretas para conciliar mineração e preservação ambiental é a irrisória compensação financeira derivada da exploração mineral (CFEM) que será destinada ao combalido orçamento do Ibama para reforçar seu poder de fiscalização e licenciamento. Apenas 2% de 12% da CFEM que cabe à União será repassada ao órgão, ou seja, 0,24% vai para o Ibama. A situação, embora desoladora, é ainda melhor que a dos estados e municípios, já que nenhum centavo da CFEM distribuído aos municípios e estados (que abocanham a maior parte dos recursos, 65% vai para os municípios e 23% para os estados produtores) está obrigado a ser aplicado no meio ambiente devido ao fato de que não existe nenhuma vinculação para utilização deste recurso.

Como resolver esta lacuna? Objetivamente, uma primeira medida é garantir no texto da Lei o compromisso explícito e consequente com a preservação ambiental, incorporando o que já existe no Código de 1967 e dando garantias legais que reforcem e assegurem o que a atual legislação ambiental e sua prática, sozinhas, não estão conseguindo dar conta.

Mas é preciso ir além. É preciso que haja tempo para que o Congresso Nacional discuta com técnicos, com a sociedade e organizações socioambientais como disciplinar da melhor forma possível esta atividade, compatibilizando-a com outros valores tão estratégicos quanto os minérios.  Existem várias propostas de melhoria deste projeto que estão sendo colocadas na mesa de negociação. Também existem experiências de regulação da mineração em outros países que avançam do ponto de vista ambiental e social que devem nos servir de inspiração.

Cabe ao parlamento e também ao governo garantir o tempo necessário para que o debate amadureça e para que esta nova regulação não represente um grande retrocesso.

 

Qual o tamanho do passivo da mineração? Ninguém sabe, muito menos o Ibama.

O tamanho do passivo da mineração foi um debate a parte na audiência sobre “as entidades ambientais”, nome estranho para designar a relação entre mineração e seus impactos ambientais.

Sabemos que a mineração ao longo da sua história gerou um enorme passivo ambiental. Parcialmente, em função da fragilidade da legislação ambiental do passado, notadamente até a década de 90. Mas em grande parte, também, em função da incapacidade do estado de cumprir a legislação por meio de suas políticas de comando e controle. Relatos e imagens de minas abandonadas, rios assoreados, secos, contaminados, áreas degradadas pela mineração dão uma dimensão destes impactos.

Mas qual o tamanho do passivo gerado por tantos anos de impactos não mitigados? De quem é a responsabilidade por medir e reparar o que ainda pode ser reparado? Estas questões foram abordadas na audiência e geraram um constrangimento ainda maior na já desastrosa presença do Ibama no evento.

Ficou claro que o governo e os seus órgãos não só não sabem o tamanho do passivo como não têm reflexão ou posição formada sobre o tema. Simplesmente, insistem em dizer que os passivos não deveriam existir porque teoricamente o licenciamento existe para que os impactos sejam avaliados, mitigados e compensados ao longo da vida do projeto mineral.

Frente a este discurso desolador, a ideia de um inventário dos impactos da mineração cogitada por um parlamentar na audiência, soou como uma novidade ao órgão que já deveria ter este desafio como forma de enfrentar um dos seus muitos passivos.

Na ausência de respostas por parte do governo, o representante do Ministério Público disse que, por iniciativa da instituição, está sendo feito um levantamento dos impactos e um inventário, instrumento para melhorar a atuação do MP em ações de reparação. Nestas ações tem sido atribuído também ao Estado, a responsabilidade pelo dano ao meio ambiente. Essa atribuição advém de sua omissão em não fazer cumprir a legislação ambiental e o próprio código da mineração. Esta parte da conta, obviamente, caberá aos contribuintes.

O curto e ainda restrito debate sobre esta questão demonstra que é necessário garantir no texto do Código da Mineração não só a responsabilidade do empreendedor pela preservação ambiental, mas também os meios legais e institucionais pelos quais esta responsabilidade se objetivará. Isto significa colocar a questão ambiental como requisito para as concessões e operação das minas, garantir as condições financeiras para que os órgãos ambientais federal e estaduais atuem, além de garantir que a Agência e o Conselho a serem criados atuem, dentro dos limites das suas respectivas competências, em parceria com os órgãos ambientais no monitoramento e controle ambiental da atividade.

 

Alessandra Cardoso é assessora política do Inesc e atualmente é responsável pelo desenvolvimento do Observatório de Investimentos da Amazônia

 

 

 

 

 

Reforma Política: Como e o quê?

Uma reforma que amplie as possibilidades e oportunidades de participação, e seja capaz de incluir e processar os projetos de transformação que sujeitos políticos historicamente excluídos dos espaços de poder trazem para o cenário político. Foi essa a principal lição que as manifestações de junho nos colocaram.

Por José Antonio Moroni

A reforma política está presente na agenda nacional há vários anos, mas nas últimas semanas, após as manifestações e o pronunciamento da presidente Dilma Rousseff, um novo ingrediente, que diz respeito ao “processo”, foi acrescentado. Isto é, qual é o caminho para fazer a reforma política. Assembleia Nacional Constituinte? Plebiscito? Referendo? Iniciativa popular? Congresso faz sozinho e do jeito dele? Todos esses elementos estão “misturados” no debate, ofuscando a discussão sobre o conteúdo da reforma política: para que a queremos, o que esperamos enfrentar com ela, que sistema político desejamos construir? Os dois debates, sobre o processo e sobre o conteúdo, são fundamentais para a construção de um novo modelo democrático no país e devem andar conjuntamente. Na reforma política não podemos separar o conteúdo da forma, pois um determina o outro.

O Congresso Nacional há dezoito anos tenta votar essa reforma. Duas observações: todas as tentativas foram na direção de uma transformação eleitoral, e não política, e realizadas em momentos de “crises políticas” ou no início de legislatura. A resposta foi clara: queremos manter o sistema como está. Em outras palavras, o Congresso não vê grandes problemas que justifiquem uma “reforma”. O que se fez foram pequenos ajustes no processo eleitoral, nem sempre na direção da democratização do poder, e sim para atender aos interesses de quem está no poder ou próximo dele. Um exemplo recente é o grupo de trabalho da minirreforma eleitoral coordenado pelo deputado Cândido Vaccarezza (PT-SP), que apresentou relatório em julho no qual constam propostas na contramão de tudo o que a sociedade aponta e deseja. A sociedade quer partidos e candidatos com propostas, e eles liberam a obrigatoriedade dos candidatos de registrar seus programas em cartório; a sociedade quer transparência e controle dos gastos nos processos eleitorais, e eles flexibilizam a prestação de contas. Todas as propostas desse grupo de trabalho vão nessa direção, e o projeto foi aprovado em regime de urgência e vai entrar em votação no início de agosto. Vale aqui a ressalva de não confundir esse grupo de trabalho com o outro – coordenado pelo mesmo deputado – que trata da reforma política com o objetivo de dar resposta às demandas da rua e a proposta da presidente da convocação de um plebiscito.

Como podemos perceber, dificilmente o Congresso vai fazer uma reforma política que atenda aos interesses da população. O Parlamento entrou num processo muito comum às instituições de confundir os interesses de seus membros com os da instituição ou de quem ela diz representar. Quando isso acontece, o organismo perde a representatividade, a legitimidade e as condições políticas de propor algo que satisfaça as demandas do povo; e vai ficar sempre baseado nos interesses de seus grupos e integrantes. É o que acontece com o Congresso brasileiro.

Só se rompe isso com um movimento que articule forças políticas de fora com quem está “dentro” e quer mudanças. Caso contrário, o Congresso continuará a atuar como aquele cachorro que fica correndo atrás de seu próprio rabo.

Diante desse quadro político e pensando em criar esse movimento de fora, várias organizações e movimentos da sociedade civil coletam desde o final de 2011 assinaturas para a Iniciativa Popular para Reforma do Sistema Político. A iniciativa não se restringe a mudanças do sistema eleitoral, mas vai na direção do fortalecimento da soberania popular, por meio de várias propostas, entre elas a de que determinados temas só possam ser definidos por plebiscitos e referendos e a que dá ao povo o poder de convocação desse instrumento da democracia direta, retirando essa exclusividade do Congresso, como ocorre hoje. Para conhecer melhor essa proposta, acesse .

Nas últimas semanas, novos ingredientes foram acrescentados nesse debate. Com as últimas manifestações de rua, ficou evidente o total esgotamento do nosso atual modelo democrático, centrado no poder da representação e na força do capital privado financiando as campanhas. Assim, ganha força na sociedade a busca de outras estratégias políticas para a realização da reforma política. É nesse contexto que surgem as propostas de convocação de uma assembleia constituinte e de um plebiscito.

Para iniciar esse debate, precisamos colocar algumas premissas sem as quais corremos o risco de cair em armadilhas ou cascas de banana colocadas ao longo do caminho.

A Assembleia Constituinte precisa ser exclusivasoberanaespecíficapara a reforma política. Exclusivaquer dizer eleita especificamente para fazer a reforma, não delegando ao Congresso essa tarefa. Soberana: sem influência do poder econômico, tanto no processo de escolha dos constituintes como nas definições, com possibilidades de candidaturas avulsas, ou seja, não necessariamente via partidos, e representativa de todos os segmentos da população. Uma assembleia constituinte não pode ser o espelho da representação que temos hoje no Parlamento: branca, masculina e proprietária. Tem de ser uma expressão, em pé de igualdade, de todos os grupos sub-representados de nossa sociedade, mulheres, população negra, indígena, jovem, homoafetiva, do campo e das periferias. Específica: deve ficar restrita ao tema da reforma política (não apenas eleitoral), não podendo decidir sobre outras questões que não estejam a ela relacionadas. Não podemos correr o risco de perder conquistas obtidas com a Constituinte de 1988, principalmente as concernentes aos direitos sociais, individuais e coletivos.

Se o caminho for o plebiscito, devemos garantir que a definição das perguntas seja feita por meio de mecanismos de consulta popular, e não apenas pelo Congresso; que a campanha gratuita tenha a participação das organizações da sociedade, e não apenas das frentes parlamentares, como define a lei hoje; e, por último, mas não menos importante, que o plebiscito tenha caráter vinculante, isto é, o Congresso não pode decidir pelo contrário. A ideia seria fechar esse processo com o referendo − o povo dizendo se o Congresso interpretou bem ou não a vontade popular. Aqui vale uma ressalva: quando da ideia do plebiscito, juristas de plantão, aqueles que a grande mídia escuta, vieram com a pérola de que o plebiscito era apenas uma consulta, cujo resultado o Congresso poderia acatar ou não. Sugiro para estes algumas aulas extras de soberania popular.

Essa discussão “da forma” é fundamental, pois define a concepção que temos de reforma política e também os sujeitos políticos desta. No formato o “Congresso faz”, estamos delegando esse poder à representação e, como esta só consegue pensar em processo eleitoral, a reforma política será igual a reforma eleitoral. Que é importante, necessária, mas não suficiente.

Nos demais casos, iniciativa popular, Assembleia Constituinte exclusiva, soberana e específica e plebiscito/referendo, estamos dizendo que o alicerce da reforma política é a soberania popular. Portanto, o sujeito político dessa transformação é o próprio povo, e o conteúdo diz respeito ao exercício dessa soberania, isto é, a todas as formas de poder, e não apenas à representação.

Nesse caso, reforma política é a reforma do próprio processo de decisão, portanto, a reforma do poder e da forma de exercê-lo.Quem exerce o poder, em nome de quem, quais são os mecanismos de controle? Enfim, quem tem o poder de exercer o poder numa sociedade tão desigual como a nossa? Por isso deve estar alicerçada nos princípios da igualdade, da diversidade, da justiça, da liberdade, da participação, da transparência e do controle social, e não pode ser apenas reforma eleitoral. Portanto, estamos falando da reforma do sistema político.

Se todo poder emana do povo, pensar a reforma do sistema político é pensar como esse poder deve ser devolvido ao povo, que tem o direito de exercê-lo de forma direta, e não apenas por delegação (delegar para quem elegemos). Democracia é muito mais que apenas ter “eleições limpas”.

Não se pode pensar numa reforma do sistema político sem enfrentar as desigualdades de sexo, de raça, etnia e de renda nas formas de exercer o poder. Assim, falar em reforma do sistema político é tratar de racismo, machismo, homofobia, desigualdade econômica e preconceitos presentes em nossa sociedade e nas estruturas de poder.

A reforma precisa radicalizar a democracia, enfrentando todas as formas de desigualdade e preconceito, promovendo a igualdade, a diversidade e a participação política. Isso significa uma reforma que amplie as possibilidades e oportunidades de participação, que seja capaz de incluir e processar os projetos de transformação que sujeitos políticos historicamente excluídos dos espaços de poder − como mulheres, afrodescendentes, homossexuais, indígenas, jovens, pessoas com deficiência, idosos e todos os despossuídos de direitos − trazem para o cenário político. Foi essa a principal lição que as manifestações de junho nos colocaram. Precisamos construir outro desenho democrático, isto é, um mosaico em que todos se sintam não apenas representados, mas participantes e com mecanismos de exercício do poder de forma direta.

Precisamos também repensar a atual arquitetura da participação (democracia participativa). A multiplicação de espaços participativos (conselhos e conferências) não significa automaticamente a partilha de poder. Precisamos caminhar na direção daconstrução de um sistema integrado de participaçãoque inclua a política econômica e de desenvolvimento, e não apenas as políticas sociais. Aqui vale uma pergunta: por que as demandas das manifestações de junho por serviços públicos de qualidade não desembocaram nesse sistema de participação institucionalizada? Se desembocaram, por que não foram respondidas?

Precisamos aperfeiçoar a democracia representativa. Para isso são necessários partidos políticos democráticos, fortes, programáticos, com densidade na sociedade, com vida o ano todo, e não apenas em momentos eleitorais. Precisamos realmente terpartidos como instrumentos de representação política de parte da sociedade, e não de interesses pessoais ou de grupos. A fidelidade partidária, o financiamento público exclusivo de campanha, a votação em listas escolhidas de forma democrática, com alternância de sexo e respeito a critérios raciais, geracionais e homoafetivos, e a possibilidade de revogação de mandatos pela população devem ser prioridades. É necessário pensar outra forma de escolha da representação indígena. Antes de tudo, é preciso criar a equidade nas disputas políticas que se fazem por meio de mecanismos da democracia representativa.

Não existe reforma do sistema político sem enfrentamento do poder dos meios de comunicação privados, assim como do isolamento do Poder Judiciário às demandas populares e sua elitização.

Em resumo, pensar a reforma do sistema político é pensar como democratizar as relações de poder em todas as esferas e em todos os espaços, e isso só a soberania popular é capaz de fazer.

José Antonio Moroni – é filósofo, da Direção Colegiada do Inesc – Instituto de Estudos Socioeconômicos.

Publicado originalmente no Le Monde Diplomatique

Qual reforma política e como?

 

A reforma política presente na agenda nacional há vários anos ganhou novo ingrediente após as manifestações e o pronunciamento da Presidenta Dilma. Este novo ingrediente diz respeito ao “processo”, isso é, qual o melhor caminho para se fazer a reforma política. Assembleia Nacional Constituinte? Plebiscito? Referendo? Iniciativa Popular? O Congresso faz do jeito dele? Este debate importante não pode ofuscar a discussão sobre o conteúdo da reforma política: para que queremos a reforma política, o que queremos enfrentar com a reforma política, que sistema político queremos construir? Os dois debates, sobre o processo e sobre o conteúdo da reforma política, são fundamentais para a construção de um novo modelo democrático no país e devem andar de forma conjunta.

Independente da inércia e da falta de interesse do Congresso, o que se coloca como questão de fundo é quais são os sujeitos políticos reconhecidos como tal para fazer a reforma. Sempre defendemos que a reforma política tem que construir uma nova forma de poder, portanto uma nova forma de exercício da política.  Esta nova forma só pode estar alicerçada na soberania popular, no poder popular. Portanto, o instrumento para se fazer a reforma precisa estar alicerçado na democracia direta, nos sujeitos políticos e na sociedade, com as suas diversas formas de organização, inclusive os partidos.

Sobre o conteúdo, não podemos aceitar uma reforma que queira apenas “limpas as eleições”. Isso não muda a lógica do poder, nem do debate político sobre a reforma. Além de melhorar o nosso sistema eleitoral, com a proibição do financiamento privado e mecanismos de inclusão nos espaços de poder dos grupos subrepresentados, especialmente mulheres, população negra e indígena, homoafetiva, pessoas com deficiência, jovens etc, precisamos fortalecer o poder de decisão do próprio povo através dos instrumentos da democracia direta.

Neste sentido é fundamental que o povo tenha o poder de convocar plebiscito e referendo e que determinadas questões só possam ser decididas através destes instrumentos. E não existe reforma do sistema político sem enfrentar o poder dos meios de comunicação privados, assim como o isolamento do poder judiciário às demandas populares e a sua elitização.

Em resumo, pensar Reforma do Sistema Político é pensar em como democratizar as relações de poder em todas as esferas e em todos os espaços, e isso só a soberania popular é capaz de fazer.

*membro do Colegiado de Gestão do Instituto de Estudos Socioeconômicos – Inesc

**Acesse a página da Plataforma pela Reforma do Sistema Político e assine a PROPOSTA DE INICIATIVA POPULAR PARA REFORMA DO SISTEMA POLÍTICO

Fonte: Abong




http://www.rets.org.br/?q=node/2306

Candelária, 20 anos – País rico é país sem chacina

Leonardo Sakamoto

 

 

Mais de 50 crianças e adolescentes de rua costumavam dormir na praça da Igreja da Candelária, região central do Rio de Janeiro. Na madrugada de 23 de julho de 1993, policiais militares, em horário de folga, atiraram contra nove deles, com idades entre 11 e 20 anos. Dos atingidos, apenas um sobreviveu. Durante as investigações, levantaram-se diferentes razões para o crime. De uma pedra atirada contra uma viatura da polícia por um dos garotos até o não pagamento de propina aos PMs coniventes com o tráfico de cocaína.

 

 

 

Quatro pessoas foram acusadas após a chacina: Marcus Vinícius Emmanuel, Cláudio dos Santos e Marcelo Cortes e o serralheiro Jurandir Gomes de França. Em 1996, Nelson Cunha confessou sua participação no crime e acusou seus colegas policiais Marco Aurélio Alcântara, Arlindo Lisboa Afonso Júnior e Maurício da Conceição, assassinado em 1994.

 

 

Desses, Emmanuel, Alcântara e Cunha, foram condenados a penas que chegaram a 300 anos de reclusão, respectivamente. Mas, hoje, estão em liberdade, indultados ou em condicional.

 

Arlindo foi condenado a dois anos porque uma das armas usadas na chacina foi encontrada em seu poder. Cláudio, Jurandir e Cortes foram inocentados com o depoimento de Cunha e absolvidos a pedido do Ministério Público. Os dois primeiros foram indenizados pelo Estado por ficarem presos injustamente por quase três anos.

 

 

Na época, os meninos afirmaram que oito policiais participaram da ação, e Wagner dos Santos, o único sobrevivente, foi contundente ao reconhecer Cortes como um de seus algozes. Hoje, a vítima mora na Suíça, após ter sofrido um atentado e recebido constantes ameaças de morte. Carrega as sequelas do crime, como balas alojadas no corpo.

 

 

Os promotores do processo afirmam que havia mais policiais envolvidos, mas durante as investigações não foi possível identificá-los.

 

A repercussão internacional decorrente da exploração do caso na mídia e do trabalho das ONGs ajudou na condenação dos policiais. Mas a pressão da mídia também prejudicou o andamento do processo por dar a ele um sentido de escândalo, impedindo o aprofundamente na investigação. Daí, alguns foram injustiçados e outros saíram impunes.

 

 

O Estado, porém, não teve competência para garantir uma vida melhor ao restante dos jovens que dormiam sob as luzes da Igreja da Candelária. Muitos sobreviventes morreram assassinados, vítimas da Aids, outros serviram ao tráfico, foram para prostituição e há os que desapareceram. Sandro, o sequestrador morto pela polícia no caso do ônibus 174, caso que inspirou um filme, escapara daquele

 

dia na Candelária.

Nas últimas duas décadas, o Brasil bateu recordes na geração de empregos, reduziu a fome e a pobreza, manteve sua economia estabilizada, consolidou sua democracia. Tornou-se parte de um acrônimo (Bric), ganhou respeito internacional e começou a pavimentar seu caminho para se tornar a quinta maior economia do mundo – processos que, em maior ou menor grau, devem ser creditados aos governos que conduziram o país nesse período. Diante de um cenário de pujança como esse, pergunto-me porque o Brasil continua encontrando formas idiotas de matar seus filhos.

 

 

 

Pensávamos que não cometeríamos os mesmos tipos de “erros” de 20 anos atrás, mas não foi bem assim. Carandiru (1992), Vigário Geral (1993), Ianomâmis (1993), Candelária (1993), Corumbiara (1995), Eldorado dos Carajás (1996)  ganharam roupagem nova e continuam acontecendo. Ou seja, o modelo se se manteve: continuamos matando gente pobre.

 

 

Nos últimos dez anos, o país assistiu a centenas de assassinatos de trabalhadores rurais indígenas, quilombolas e ribeirinhos em conflitos agrários (e daqueles que ousaram os ajudar), massacres de sem-teto e população em situação de rua, mortes de homossexuais. Isso sem contar os jovens negros e pobres na periferia de grandes cidades, como São Paulo.

 

 

Como em agosto de 2004, quando moradores de rua foram espancados no Centro de São Paulo, na região do Largo São Bento, Praça João Mendes e Rua 15 de Novembro. Sete não resistiram e morreram em decorrência dos ferimentos. Policiais militares e seguranças privados foram apontados como responsáveis, formando uma espécie de grupo de extermínio.

 

 

Ou em maio de 2006, em que cerca de 500 pessoas, a maioria de jovens, negros, pobres e moradores de periferia foram mortos no Estado de São Paulo. O indícios apontam para policiais e

grupos de extermínio ligados a eles como retaliação aos ataques do PCC.

Ou ainda a condição dos guarani kaiowá do Mato Grosso do Sul, que enfrentam a pior situação entre os indígenas do Brasil, apresentando altos índices de suicídio e desnutrição infantil. O confinamento em pequenas parcelas de terra por conta do avanço do agronegócio no estado é uma das razões principais para a precária situação do povo. O Estado vem concentrando a maioria dos assassinatos de indígenas no país, boa parte delas diretamente relacionadas com a disputa pela terra. Mesmo em reservas já homologadas, os fazendeiros-invasores se negam a sair. E contam com a ajuda da

 

 

segurança pública, a mando do poder público ou a soldo particular.

Muitos policiais estão envolvidos com os crimes citados. Poderiam muito bem afirmar que estava “cumprindo ordens”, como os nazistas em Nuremberg. Pois, o que ocorreu em muitas dessas chacinas foi um servicinho sujo que parte de nós, “homens e mulheres de bem”, desejavam (e ainda desejam) em seus sonhos mais íntimos: a “limpeza social” desde país das “classes perigosas” e dos entraves para o progresso. Vamos ser sinceros. Não é que a nossa sociedade não consegue apontar e condenar os culpados por todas elas como deveria. Ela simplesmente não faz questão. Porque, como já disse aqui, não suportaria um espelho no banco dos réus.

 

 

 

(Com informações e texto de Fernanda Sucupira e Natália Suzuki, pela Repórter Brasil)

 

http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2013/07/23/candelaria-20-anos-pais-rico-e-pais-sem-chacina/

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Alguns pontos sobre a resposta do Estado brasileiro às manifestações de rua

Iara Pietricovsky*

A presidenta Dilma na tentativa de responder os clamores das ruas, apresentou um pacto de 5 itens, ainda que tardiamente. O mais polêmico se refere a um plebiscito e uma assembleia nacional exclusiva para promover a reforma política, que é um dos pontos mais demandados pela população.  A resposta foi de alto risco, além de incorrer em equívocos em relação à iniciativa. Mas, é importante frisar que seu movimento produziu uma resposta em cadeia importantíssima dos poderes públicos, pois os retirou da letargia. A reforma política tem sido um tema adiado por todos os governos não importa o partido ou a coalizão no poder.

É um equivoco exigir da Presidenta resposta para todos os problemas. As pessoas estão mal informadas ou querem ver o circo pegar fogo. Grande parte das demandas populares ou da classe média, que estão sendo expressas nas ruas são de responsabilidade dos estados e municípios, portanto, de seus governadores e prefeitos, respectivamente, sem falar do poder legislativo nos mesmos âmbitos. Entretanto, com exceção  do governador e do prefeito de São Paulo e capital em função da eclosão popular ocorrida que detonou o estopim no país todo, todos os outros deixaram o barco correr, não se comprometeram e nem assumiram ao que lhes compete, deixando o ônus, ao governo federal. O pacto federativo, na verdade, é uma grande incógnita para a grande maioria dos brasileiros, além de tema não resolvido, vivemos ainda no tempo dos coronéis, do Brasil arcaico.

O Congresso Nacional, saiu da letargia e de uma situação de isolamento e distância profunda dos debates importantes do país internamente e no mundo. Vem pautando propostas de legislações medíocres, risíveis e conservadoras que expressam retrocesso absoluto em relação à agenda dos direitos humanos, tema que cresce de importância em todo o Planeta. Falta aos deputados compreensão sobre o movimento e tendências do mundo contemporâneo, fazendo com que suas questões paroquiais ou de origem fundamentalista religiosa ou política se sobreponham ao interesse majoritário não só de um país democrático, de um Estado laico, assim como de um país que respeita e se orgulha de sua diversidade. Essa é a nossa riqueza primeira e esse é o nosso maior patrimônio.

Esse Congresso Nacional, ruiu, como escreveu Luis Eduardo Soares em seu brilhante artigo intitulado “O que vem depois da queda da tarifa?”

“O Movimento pelo Passe Livre  declarou à nação que o rei está nu, proclamou em praça pública que a representação parlamentar ruiu, depois que, capturada pelo mercado de votos, resignou-se a reproduzir mandatos em série, com obscena mediocridade, sem qualquer compromisso com o interesse público, exibindo o mais escandaloso desprezo pela opinião pública.” E ainda em seu artigo (grifo meu) diz: “O colapso da representação vem ocorrendo sem que as lideranças deem mostras de entender a magnitude do abismo que se ergueu….”

Temos que mudar o sistema político partidário, enfrentar temas como o financiamento de campanha, votos proporcionais, distritais ou misto, recall daqueles que são eleitos mas não atuam segundo o programa partidário para o qual o elegemos, abrir novas instâncias de participação da sociedade civil via democracia direta, lista fechada para garantir a representação das mulheres, indígenas, população negra etc.

As consultas populares deveriam ser abertas agora, também, para questões relacionados aos temas educação e saúde, habitação transporte urbano de graça para a população, enfrentar as questões relativas à defesa do meio ambiente, para citar alguns pontos de alta relevância. Não basta o Congresso Nacional votar, sob pressão popular, a destinação dos royalties do petróleo e do pré-sal para educação (75%) e saúde (25%) como o fizeram agora. Precisamos fazer plebiscito para 10% do PIB para educação e 10% do PIB para a saúde e queremos ser consultados sobre outros temas também. A população quer usar os canais de participação que já existem e mais, querem abrir novos canais para que outras vozes sejam ouvidas e não somente a dos tradicionais grupos de interesse vinculados ao capital financeiro, industrial ou ao agronegócio.

A sociedade civil organizada e os movimentos sociais vêm fazendo seu papel. Por meio de uma Plataforma Pela Reforma do Sistema Político, há mais de 5 anos estão desenvolvendo propostas encaminhadas ao Congresso Nacional. A Plataforma defende, fundamentalmente:

“Para nós da Plataforma só faz sentido uma  reforma política que resgate a soberania popular  através do  fortalecimento dos  instrumentos da  democracia direta. Queremos e defendemos que o povo tenha o direito de participar diretamente das grandes decisões e não apenas dos momentos eleitorais.  Defendemos  também a necessidade do aperfeiçoamento do nosso sistema de representação, que passa pelo barateamento das campanhas, pelo fim da  influência do poder econômico e pelos mecanismos de  inclusão dos  grupos sub-representados nos espaços de poder.

Defendemos que uma  verdadeira reforma política deva ser construída pelos instrumentos de democracia direta que  já temos garantidos na  Constituição de 1988. A nossa defesa é por um plebiscito para definir as principais questões da reforma política. Queremos que o povo defina o conteúdo da reforma política e para isso já temos o instrumento político que é o plebiscito.

Defendemos que todo o processo da reforma política seja protagonizado também pela sociedade. Para  isso, propomos que o Congresso Nacional convoque a Conferência Nacional da Reforma Política com o objetivo de definir os temas e as perguntas para o plebiscito….” Recomendo a leitura de toda a proposta.

A proposta de plebiscito da reforma política que está sendo pensada neste momento corre um sério risco de sair pela culatra. Primeiro, precisa haver uma campanha intensiva de esclarecimento, além disso teríamos que referendar no final, caso contrário será uma carta branca ao Congresso Nacional e pior, a estes membros que hoje ocupam o CN. A sociedade brasileira não confia nos membros e dirigentes do Poder legislativo, assim apontam as pesquisas.

O poder judiciário, que na verdade tem legislado, na ausência absoluta do Congresso Nacional, haja vista as deliberações, por exemplo, do casamento gay, também deve muito em termos de transparência à sociedade brasileira. Os custos deste poder aos brasileiros é enorme e seu retorno questionável. Será que isso entrará no debate para além dos espetáculos que temos sido presenteados recentemente?

Enquanto isso, o PT e as esquerdas demoram para assumir o papel natural de galvanizar essas pautas das ruas para seus programas de governo e quebrar de vez sua relação promíscua com a direita corporativa, partidária e midiática. Temos que destravar a reforma tributária, fundamental para atacar as desigualdades que recaem sobre a população brasileira.

Do outro lado, a direita se organiza, também levando sua pauta para as ruas, encontra a oportunidade de rearmar suas estratégias visando as eleições do próximo ano. As pautas nos cartazes falam em desestabilização política (Fora Dilma) e com uma temática que é ,no mínimo, estranha para quem sempre se locupletou do errário público e cristalizou os mecanismos de corrupção, que aliás, sempre os mantiveram no poder. Essa mobilização sobre a PEC 37, por exemplo, será que as pessoas entendem do que estão falando? Na prática essa PEC é completamente desnecessária, pois a Constituição Federal já define claramente o papel do Ministério Público, da defensoria e da polícia civil e federal em seu papel investigador.

Por fim, parece ser fundamental que os movimentos tenham pautas claras   que alimentem a mobilização.  A população brasileira está farta de discriminação, corrupção e desrespeito das elites políticas e detentoras do capital. Exigem outro Brasil.

*Membro do colegiado de gestão do Inesc. Iara é antropóloga e mestra em Ciência Política pela Universidade de Brasília.

Aquecimento da expressão democrática. Cidadania política cadê tu?

Depois da euforia do aquecimento da expressão democrática nas ruas no Brasil, chegou a hora de fazermos um pouco de analise política. O protesto do movimento jovem nascido em São Paulo por um grupo de jovens de esquerda contra o aumento das passagens de ônibus pode ser visto como uma gota d’água salutar para despertar a cidadania política. Nesses últimos anos, a efervescência da participação da cidadania no Brasil foi se adormecendo, como se os protagonistas que tanto lutaram pela democracia participativa tenham sido cooptados ou se acomodados diante de seus eleitos.

Quando a ditadura cedeu espaço para a democratização no Brasil, foi promulgada uma nova constituição em 1988, batizada de Constituição Cidadã, tendo em vista que ela ampliava o projeto de democracia no Brasil, ou seja, buscava compatibilizar os princípios da democracia representativa com a democracia participativa. Cabia ao Estado a função de promover a igualdade entre os brasileiros independente de sua classe social ou categoria econômica do qual pertencesse. Ninguém pode negar os avanços no processo de democratização, principalmente, da democracia participativa nos anos 90 quando o PT emergia como um partido de participação popular nos governos municipais. Nessa década, a participação passa a ser um fermento para o fortalecimento da democracia. Todavia, o casamento entre a democracia representativa e democracia participativa, ocorrida no plano local, nem sempre foi uma união solida, e, ela se fragiliza quando levada ao poder central. Essas contradições devem ser mais bem analisadas, e, em parte explica certa decepção.

As primeiras dificuldades começam quando a pauta de reivindicações das organizações sociais sobre a reforma agrária, a reforma urbana, a reforma do sistema político, dentre outras serão colocadas em banho maria… Essas organizações combativas almejavam um projeto de sociedade para o Brasil baseada num desenvolvimento territorial solidário com sustentabilidade ambiental, cultural e política, porém essas demandas de reformas estruturais serão barradas diante dos interesses econômicos, dos grupos de pressão e pelas alianças feitas com base políticas conservadoras. O PT e seus aliados não tiveram maioria, nem no senado e nem na câmara dos deputados. Daí as oligarquias que vai do latifundiário aos que controlam dos meios de comunicação guardaram quase intactos seus privilégios. Ela é bem representada ainda hoje no congresso. Tanto o governo Lula como de Dilma cederam às suas pressões.

Entretanto, o governo de Dilma obteve maioria parlamentar para governar, mais uma vez as organizações sociais recarregaram suas bandeiras de luta, e, tentaram interpelar a nova Presidenta, e, uma vez não foram escutadas.  Elas continuam fazendo pressão junto ao planalto, basta ler a nova carta feita a presidenta Dilma enviada há dois dias (leia o site).

Não quero aqui dizer que nada foi feito, e nem tão pouco, nego as conquistas sociais, os avanços dos programas de inclusão social que levaram uma redução da pobreza nesses últimos dez anos. Todavia, os 35 milhões que saíram da pobreza extrema estão muito longe do pleno acesso aos seus direitos e de uma atuação cidadã digna desse nome. É extraordinário o que foi feito nesses 10 anos, mas isso apenas arranhou a superfície de uma desigualdade histórica que continua a ser escandalosa. Já escrevi vários artigos neste sentido.

Até parece que o progresso econômico e o reconhecimento do Brasil como potência emergente levaram o poder executivo a se deslumbrar de seu novo estatuto internacional e esquecer a divida social do Brasil que ainda não foi sanada. A democracia nem sempre obedece à lógica da prosperidade, sobretudo, quando poucos ficam à margem do progresso, do bem estar social. Uma maioria permanece esperando o ônibus passar… Outra nem de ônibus, pode andar, seu poder aquisitivo não é suficiente para acompanhar o aumento do custo de vida. Isto é o suficiente para se revoltar!

Ninguém pode negar o papel importante do Brasil na política internacional. Hoje ele é bajulado pelos mandões da gouvernança econômica mundial, ele passa a ser credor do FMI, alguns cargos nos organismos multilaterais serão contemplados por brasileiros, OMC- a organização mundial do comercio, a FAO- Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura, o Brasil é eleito no Conselho dos Direitos Humanos da ONU, integra a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), na Organização dos Estados Americanos (OEA) e no Comitê Consultivo Internacional do Algodão – sigla em inglês é Icac.  O Brasil vai formar também seu grupo de pressão internacional e participa ativamente do novo desenho de um mundo multipolar com o BRIC (Brasil, Rússia, Índia, China e em seguida acrescido de África do Sul, com o G20.

Logicamente, isto é orgulho para qualquer brasileiro, entretanto, o gigante não pode ficar dormindo em cima de ganhos econômicos e de seu prestigio internacional. Basta ver hoje a crise econômica e social de seus aliados do dito primeiro mundo. A luta dentro do mundo multipolar passa hoje pela paz social, senão será um caos planetário.

Daí o governo deve fazer varias leituras desta mobilização nacional e tomar medidas urgentes para atender certas reivindicações que são justas.

A participação dos jovens é a prova que a democracia brasileira ganha vitalidade. Despertada ela já estava há muitos anos, pois nossa geração derrubou a ditadura, todavia, estava faltando ativismo no exercício da cidadania. Os jovens inauguram uma nova era de tomada de consciência pelos seus direitos. Resta uma interrogação: Este movimento de contestação pode reforçar a cidadania política no Brasil? Esperamos que sim. Porém sabemos que existem grupos completamente apolíticos, outros são levados pela onda do facebook, nem sabem nada sobre a origem dos protestos. Um de meus sobrinhos colocou sua foto no Facebook com um cartaz: Pra frente Brasil! Eu lhe respondi: Por favor, não imite o slogan da ditadura, a geração de tua tia não pode suportar! Ele me respondeu que não sabia, e me pediu desculpas. Normal, infelizmente, muitos desses jovens não estudaram o período negro de nossa historia política, só agora a Comissão da Verdade foi criada…  Todavia, existem grupos de direita que há anos vem tentando mobilizar pessoas para manifestar contra os governos de Lula e de Dilma. Finalmente um espaço se abre para eles se infiltrarem. Muito deles preferem despolitizar o movimento, na tentativa que eles não radicalizem a democracia, se esses jovens politizam o movimento representam um perigo para eles e não para a esquerda.

Quanto a direita partidária, ela não tem proposta política e nem liderança, o que conta é continuar a alimentar seu ódio pelos os que ocupam o poder democraticamente eleitos pelo povo.

Acredito que a leitura do que ocorre hoje está mais ligado há uma frustração de segmentos da sociedade por mudanças mais radicais, por uma melhor definição das prioridades governamentais, do que querer o retorno da direita que faliu o Brasil. Se eles criticam, por exemplo, o governo de aceitar as imposições da FIFA, que levam a gastos públicos colossais, é porque  falta dinheiro para melhorar a qualidade dos serviços públicos. Eles não estão pedindo a anulação da copa do mundo! O país do futebol só quer o sucesso da seleção, assim como eles querem um governo que continue combatendo a corrupção, o abuso do uso do dinheiro público.

Uma coisa é certa, se quisermos um melhor funcionamento da governabilidade democrática, temos que participar mais, e, exigir muito mais de nossos políticos. Por vezes, quando elegemos pessoas do nosso campo político, oriundo de movimentos populares, a tendência é esmorecer a luta. Pensa-se que tudo estará resolvido. A experiência que o Brasil estar vivendo prova o contrário! Ser um aliado do governo na luta por um desenvolvimento com inclusão social, não quer dizer ser instrumentalizado. Uma democracia sem luta social, sem contra poder é uma democracia amorfa. Se a democracia representativa vai mal, a culpa não é só dos políticos, a política é inseparável do exercício da cidadania. Temos que reencontrar o sentido nobre da política, que permite a uma comunidade agir sobre si mesma, sem perder a visão do interesse geral.

Se ampliarmos os espaços para exercer nossa cidadania, estaremos contribuindo para a emergência de uma nova Nação não só orgulhosa de seu progresso econômico, porém consciente que uma democracia só é dinâmica, quando ela não perde a capacidade de se indignar diante das injustiças, diante do abuso do poder, quando não perde a capacidade de inovar.

O que temos que estar atentos é para a manipulação dos oportunistas de direita, que abraçaram o protesto e a causa dos jovens nesses últimos dias. As reivindicações deles não são as mesmas da maioria silenciosa e nem dos jovens que se manifestam. Eles não querem um Brasil mais solidário, com menos desigualdades, com serviços públicos de qualidade. Eles não precisam de ônibus, de transporte publico, eles andam de helicóptero ou em carro blindado. Eles não querem um Brasil sem agrotóxicos, sem OGM, sem grandes latifúndios, sem racismo, sem concentração de riquezas, sem açambarcamento dos meios de comunicação, sem corrupção, sem homofobia. Uma parte desta elite brasileira está acostumada a sonegar impostos, a fazer “maracutaias” com falsificações de notas fiscais, investimentos especulativos, e muitos depositam seus ganhos nos paraísos fiscais. Ela foi bem beneficiada com o crescimento da economia brasileira. Na certa eles querem um Brasil mais neoliberal. Daí muita vigilância nesta suspeita participação nas passeatas. A luta por um Brasil mais justo e com progresso para todos, como os mesmos direitos continua!

Felizmente vivemos hoje em democracia, e podemos ocupar os espaços para o exercício da cidadania, ao contrario da intoxicação de grupos de direita que se infiltra na rede social deFacebook, para divulgar mentiras, incitar o ódio, e, até chegar ao cumulo de dizer que o Brasil é uma ditadura. Para quem viveu a ditadura como minha geração esta é a maior ofensa! Este grupo que estar rearticulando os segmentos conservadores não lutou pela democratização do Brasil, eles até hoje são saudosista do que eles chamavam de “revolução”, o golpe militar de 64.

O momento atual é propicio para os governantes brasileiros progressistas avaliarem as causas do descontentamento e agir em conseqüência.

 

Marilza de Melo Foucher é economista, jornalista e correspondente do Correio do Brasil em Paris.

 


Idade Penal – A sociedade e as lógicas da criminalidade

Por:Suzana Varjão

“Criava-se uma geração de predadores que iria aterrorizar São Paulo. A maioria seria morta pela polícia, mas antes disso… Nossa preocupação não era só o dinheiro. Era vingança, explosão de uma revolta contida e cultivada em longos anos de cativeiro, nas mãos de sádicos carrascos torturadores” (Luiz Alberto Mendes).

O trecho acima foi extraído de Memórias de um sobrevivente, biografia de Luiz Alberto Mendes, o remanescente de uma geração de criminosos que, como registrado no citado livro-depoimento, aterrorizou a cidade de São Paulo durante décadas. E sinaliza para um contexto que a sociedade brasileira precisa conhecer, para julgar se a estratégia de redução da idade penal alcançaria o efeito desejado, de diminuir os índices de violências e criminalidades no País.

Luiz Alberto Mendes conta que fugiu de casa ainda menino, motivado pelos espancamentos diuturnos sofridos pelo pai. Em função de pequenos furtos, foi parar na Unidade de Recolhimento Provisório de Menores de São Paulo – ponto de partida de uma escalada sangrenta, pontilhada por torturas, aliciamentos e corrupção policial, de um lado; e de ataques cada vez mais brutais contra os cidadãos comuns, de outro.

Falência. É importante frisar que a citada narrativa não estabelece conexões lineares entre causas e efeitos, o que tampouco se pretende aqui. O que jorra da recomposição da trajetória do homicida confesso é a falência de um modelo repressivo baseado em violações contra a pessoa. Um modelo (mais de vingança que de justiça) operado por agentes estatais em nome da sociedade – e que se tem virado contra ela. É este o aspecto que se quer, aqui, problematizar.

O fenômeno dos adolescentes em conflito com a lei é complexo e envolve questões técnicas e éticas; sistemas e sujeitos; fatos e contextos; coletividades e subjetividades. Tratar de um só tema, dentro de um debate já recortado, como o da idade penal, acarreta risco de simplificação – que corro, mas enfrento, por se tratar de perspectiva que perpassa o imaginário social, fortalecendo proposições não condizentes com o correto enfrentamento da problemática.

Cooptação. Parto de um dos mais recorrentes argumentos utilizados pelos que acreditam que a redução da idade penal diminuiria os índices de violências praticadas por adolescentes – ou a eles associadas: a cooptação desse grupamento, pela criminalidade, em função de sua suposta impunidade.

Leia o artigo na íntegra.

Racha na Representação Brasileira no PARLASUL

A reunião da Representação Brasileira no Parlamento do MERCOSUL (Parlasul), realizada nesta terça-feira, 21/5, tinha como objetivo eleger o novo presidente da Representação, dois vice-presidentes e indicar o parlamentar que irá pleitear, pelo Brasil, a Vice-presidência do Parlamento do MERCOSUL, em Montevidéu.

Quem conduziu a reunião foi o então presidente senador Roberto Requião (PMDB-PR). A proposta de Requião era discutir ao mesmo tempo as duas indicações. O deputado Dr. Rosinha (PT-PR), apoiado por outros parlamentares, ressaltou que uma coisa era a eleição e outra a indicação ao Parlasul. Por isso, sugeriu a possibilidade de dois momentos diferenciados: um para eleição e outro para indicação.

Acatando a questão, Requião iniciou a discussão sobre a eleição do presidente da Representação Brasileira no Parlasul. Havia duas chapas: uma encabeçada pelo deputado Newton Lima (PT-SP) e a outra pelo deputado Renato Molling (PP-RS). Cada uma trazia dois vice-presidentes.

No debate, o senador Paulo Baer (PSDB-SC) questionou a inexistência, nas duas chapas, de um parlamentar da região Sul. Ponderando esta observação os que compunham as chapas abriram mão da indicação para que o senador pudesse compor uma chapa única como um dos vice-presidentes.

Para resolver a questão da Presidência foi necessário realizar uma votação. Porém, se acordou que o deputado que perdesse ficaria como um dos vice-presidentes. O deputado Newton Lima venceu o deputado Renato Molling por uma margem de apenas três votos (17 versus 14 votos). Assim, o deputado Newton Lima assumiu a presidência da Representação Brasileira no Parlasul, e os dois vice-presidentes é o deputado Renato Molling e o senador Paulo Bauer.

O senador Requião encaminhou a segunda parte da reunião, sem dar posse ao Presidente eleito, ressaltando que como a presidência da Representação ficará com um deputado, caberia então a indicação para vice no Parlasul a um senador, que era ele próprio. Houve uma série de contestações, mas o senador encerrou a reunião, sem que o deputado Newton Lima utilizasse a palavra como Presidente eleito.

O engenheiro e ex-reitor da Universidade Federal de São Carlos, deputado de primeiro mandato, Newton Lima, vai assumir como presidente em um período especial porque esta Representação será a última indicada pelo Congresso Nacional. Para 2014 está prevista a eleição direta para o Parlasul, junto com a eleição para Presidente, Deputados e Senadores. Para este mandato o Congresso indicou 37 parlamentares (20 Deputados e 17 Senadores), em 2014 serão eleitos 75 parlamentares mercosulinos.

Um dos maiores problemas para o atual Presidente será deixar para os eleitos em 2014 uma institucionalização das atribuições e poderes que os parlamentares deste mandato detêm. As competências dos parlamentares do Parlasul foram definidas por meio de Resolução do Congresso Nacional. Os eleitos em 2014 não serão mais deputados ou senadores e a atual Resolução não mais se aplicará. O Presidente Newton Lima e os parlamentares da atual Representação terão que aprovar um projeto de emenda constitucional (PEC) e disciplinar o recebimento de propostas, relatórios, pareceres que serão encaminhados para as comissões permanentes e para os Plenários das Casas Legislativas para não deixar os futuros parlamentares sem o mínimo de garantias para legislar.

Edélcio Vigna, Mestre em Ciências Políticas e doutorando em Ciências Sociais.

Boletim nº30: Criança e Adolescente no Parlamento

Publicação traz uma análise das principais preposições legislativas direcionadas à área da criança e do adolescente que estão tramitando no Congresso Nacional. O Boletim é resultado do “Seminário Agenda Propositiva para a Crianças e Adolescentes no Congresso Nacional”, que contou com a participação de cerca de trinta organizações que atuam na defesa, promoção e proteção de direitos humanos das crianças e dos adolescentes.

Veja a versão em PDF

Leitura da realidade social das Organizações de Desenvolvimento Solidário e da Cidadania ativa.

Por Marilza de Melo Foucher

Quinze dias no Rio de Janeiro foram poucos para matar saudades e visitar companheiros e companheiras que continuam teimosamente apostando que outro mundo é possível. Com eles e através deles, posso continuar minha leitura sobre a realidade política, social, cultural e ambiental do Brasil.

No mais, o Rio de Janeiro continua lindo… O Rio é uma cidade “sui-generis”, uma beleza que encanta e nos questiona. Do circuito do aeroporto para a zona sul, o visitante vai vendo as inúmeras favelas nas zonas periféricas, além de outras comunidades pobres com seus barracos que desordenadamente encobrem a beleza de sua geografia. Todavia, quem mora no Borel, na Rocinha, ou em outras grandes favelas, também usufruem desta beleza de paisagem que é o Rio de Janeiro, afinal ninguém pode ser privado ao acesso da beleza! Entretanto, seus moradores foram privados de outras coisas essenciais para que um ser humano possa ter uma vida digna. A própria palavra Favela já tem sua origem na rudeza dos solos, ela é uma pequena árvore de muitos espinhos, mas que dava belos cachos de flores brancas (Cnidosculus phyllacanthus). Segundo consulta, foram nesses lugares, de difíceis acessos, que se escondiam os escravos, em seguida, as populações pobres e migrantes, estes virão ocupar os morros mais próximos do centro da cidade.

Com o tempo, a favela vai virar sinônimo de moradia precária, de miséria, drogas e violência. Durante séculos, esses suburbanos vão viver sem qualquer infra-estrutura básica. No Rio, existe o contraste forte entre o belo de sua paisagem, a arquitetura de seus belos imóveis e a precariedade dos assentamentos, a miséria que se esconde nos seus morros favelados. Segundo fontes oficiais, cerca de 20% da sua população vivem em favelas. Todavia, embora as condições de moradia sejam consideradas bem melhores hoje em dia, e a violência assim como tráfico de drogas, venha diminuindo com a presença das UPPs, assim como o tráfico de drogas, a falta de infra-estrutura básica como esgotos sanitários, esgotos pluviais, acesso à água potável, lixo, regularização fundiária, equipamentos públicos, tais como dispensários, outras estruturas hospitalares, escolas publicas de qualidades, continuam aquém dos resultados gerais da luta contra a exclusão social nesses últimos dez anos.

Favelas. Territórios de sonhos possíveis?

O fato mais importante das conquistas sociais que vai dar um pouco mais de humanização e melhores condições de vida nas favelas é que seus moradores, já há muitos anos vêm se organizando em associações, e que muitas ONGs de desenvolvimento solidário, anteriormente financiadas com o apoio da cooperação internacional, investiram em muitas iniciativas de educação popular, alfabetização, resgate e valorização da cultura negra, projetos destinados à população jovem, organização das mulheres, organização de economia solidaria, reivindicações de direitos e tantas outras ações de solidariedade e de cidadania. Estas organizações sociais não esperaram a realização de grandes eventos esportivos, sociais ou ambientais para agir em prol das populações carentes e por um desenvolvimento territorial solidário.

Para estas organizações sociais as favelas devem ser tratadas como um território que sofreu um modo de urbanização desigual e discriminatório. Todavia, nesses territórios se pode sonhar que outro mundo é possível. Nesses territórios existem identidades, diversidade cultural e muitas histórias de vida. Não existe homogeneidade nas favelas, daí a abordagem e intervenção do desenvolvimento territorial devem ser encaradas de forma diferenciada. O perfil de seus cidadãos com relação à renda, ao consumo, ao acesso aos bens produtivos não é o mesmo, assim como, as regras e práticas de sociabilidade são distintas. Daí qualquer iniciativa governamental deve ser levada de forma participativa com os atores locais, com as Organizações de Desenvolvimento Solidário e da Cidadania. Estes atores, não podem ser transformados em simples executores de políticas públicas, eles devem ser co-partícipes de um novo modo de intervir na realidade local.

Mesmo considerando o avanço de políticas de inclusão social durante os governos de Lula e Dilma, a definição de prioridades deve levar em conta as experiências e saberes acumulados dessas organizações sociais, tendo em vista, que elas já atuam há muitos anos nesses territórios. Territórios, até em tão, considerados zonas dos não direitos.

Ações e Desafios.

A articulação entre o governo e as organizações da sociedade civil permite maior vitalidade da democracia, ao mesmo tempo, responsabiliza os atores locais no fortalecimento da pratica do exercício da cidadania. Infelizmente, o termo ONG atualmente é completamente deturpado, pois a grande mídia forjou opiniões negativas destas organizações históricas, que há mais de 40 anos atuam junto aos excluídos, tanto na zona urbana como na zona rural. Ultimamente, essas organizações de desenvolvimento e de construção da cidadania que atuam visando o interesse público são confundidas com outras associações que não possuem as mesmas características e nem têm a mesma missão. Falo das OSCIPs, que foram criadas no governo de Fernando Henrique, pela lei de nº 9.790 – 23 março de 1999. Esta lei traz a possibilidade das pessoas jurídicas (grupos de pessoas ou profissionais) de direito privado sem fins lucrativos serem qualificadas, pelo Poder Público, como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIPs. E desta forma elas podem relacionar-se por meio de parceria com o Governo, desde que os seus objetivos sociais e as normas estatutárias atendam os requisitos da lei. Essas associações, fundações que se dizem ONGs, hoje são 300.000, muitas foram criadas por grupos políticos que se beneficiam de subvenção publica, porém abusam do poder publico utilizando estes recursos para outras finalidades que não são de interesse coletivo, inclusive, muitos de seus fundadores foram acusados de enriquecimento pessoal e outros atos de corrupção caracterizados pelo desvio e uso indevido de financiamento público. Quanto às organizações históricas que sempre praticaram o desenvolvimento solidário e abriram espaços para o exercício da cidadania ativa elas eram 380 e hoje o número baixou para a metade.

O mundo associativo que se caracteriza como ONGs de desenvolvimento solidário e cidadania ativa necessita urgentemente de diretrizes e normas, que legalizem e lhes dêem segurança jurídica. É urgente modificar a legislação fiscal abrindo uma oportunidade para os brasileiros (de maior posse) de ter um aprendizado da solidariedade nacional, onde cada cidadão (ã) possa doar dinheiro para esse tipo de organizações (ODSC) a fim de garantir o investimento maior no desenvolvimento solidário e na construção de uma verdadeira cidadania. Isto contribuiria para ajudar o Brasil a construir um projeto de sociedade mais justo. Os doadores poderiam ter abatimento fiscal na declaração do imposto de renda, como existe, por exemplo, na França e em outros países europeus. Se eu dôo 100 Reais para uma organização, esta soma pode ser deduzida em 60% do imposto de renda. Além disso, posso exercer meu controle social acompanhando o andamento das atividades da organização do qual deposito confiança.

Devo acreditar que a Presidente Dilma tem confiança nessas organizações históricas e não vai continuar permitindo certos amálgamas que desacreditam suas ações junto à opinião publica. A sobrevivência destas organizações sociais é necessária, as atividades, os projetos que elas desenvolvem são compatíveis com o projeto de construção de um país sem misérias. Os dez anos de governo Lula e Dilma vêm se desenhando a nova cara do Brasil, sem duvida nenhuma, graças à ação de pressão da sociedade civil organizada.

Resgate do papel histórico.

Não podemos esquecer que essas organizações de desenvolvimento solidário participaram ativamente na elaboração da nova Constituição brasileira, elas foram propositivas, por esta razão vale à pena recorrer à memória de muitas temáticas que foram bandeiras de luta, algumas delas foram inseridas em agendas governamentais, tais como: democracia participativa, orçamento participativo nas prefeituras, conferências das cidades, fóruns sociais, reforma urbana, reforma agrária, agro-ecologia, questão de gênero, articulação da água, lixo seletivo, desenvolvimento com sustentabilidade, reconhecimento da causa indígena, das populações negras, democratização dos meios de comunicação, ética na política, sem contar com as campanhas como a da luta contra a fome e tantas outras temáticas, algumas transformadas em políticas públicas. Quantos anos de luta por um desenvolvimento brasileiro que seja compatível culturalmente, socialmente, ambientalmente!

Aos poucos, o país caminha por um mundo melhor, mas o combate continua, tendo em vista, que o Brasil ainda vive confrontado com muitos problemas: Falta e manutenção de infra estrutura básica, estradas, portos, rede de esgotos pluviais e sanitários, acesso à água potável, tratamento de águas usadas, pavimentação de ruas e construção de calçadas, extensão e renovação da rede elétrica, extensão dos meios de telecomunicação (banda larga inclusive), construção de sinalizações com acostamento nas rodovias, autopistas dentro das normas internacionais de segurança; despoluição de rios, reflorestamento de zonas  degradadas, descontaminação de solos, construção e reformas de escolas, hospitais, equipamentos hospitalares etc, etc. Existem tantas urgências para que o Brasil seja considerado um país desenvolvido, e não somente uma potência mundial econômica, que os recursos alocados pelo Estado devem ser mais bem utilizados, melhor priorizados e melhor compartilhados. Para investir num projeto global de sociedade com outra concepção de desenvolvimento, o governo federal necessita consolidar parcerias com organizações sociais comprometidas com a educação política da cidadania e capazes de elaborar projetos de forma articulada com todos os setores, dentro de uma visão integrada e solidaria do desenvolvimento territorial.

Desde 2006, as pequenas e micros empresas foram beneficiados com novas modalidades para as licitações de pequenos valores. É um grande avanço, mas seria ótimo que as   autoridades responsáveis pudessem realizar um trabalho urgente em diferentes favelas, por exemplo, no Rio de Janeiro para verificar as dificuldades e a falta de formação desses pequenos atores locais para que eles entendam a formalidade do mundo do trabalho e o funcionamento da economia formal. A informalidade permeia as relações sócio-econômicas nas favelas. Como ajudar, por exemplo, a rede de economia solidaria presente nessas favelas, a ter melhor organização? Como favorecer a economia local, se estas pequenas e micro empresas não possuem notas fiscais? Mudar a lei de licitação é uma coisa, capacitar os funcionários para entender, explicar o cumprimento da lei já é outra exigência. Talvez os editais / convites / convênios / contratos entre os governos e ONGs de desenvolvimento poderiam ter maior flexibilidade e quem sabe mais adaptado à realidade local.

Será tão difícil para o Estado equacionar este problema que já vem durando desde o primeiro mandato do governo Lula? Por que tanto tempo? Elaborar uma legislação mais especifica capaz de nortear uma legislação mais pragmática em que os termos de compromissos sejam mais bem precisos e os contratos/convênios mais flexíveis parece não ser tão complexo. Um governo que tanto enalteceu a participação popular não pode inviabilizar a participação de ODSC- Organização de Desenvolvimento Solidário e da Cidadania. Não se deve esquecer que elas foram protagonistas de uma visão integrada e solidaria do desenvolvimento e na formação da cidadania política no Brasil. Daí uma parceria estreita com o mundo associativo comprometido é necessária. A alta administração federal deve adaptar seus critérios de qualidade na gestão de logística publica. A burocracia nasceu como suporte de boa administração do Estado e não para dificultar a gestão publica.

 

Vale à pena valorizar este capital social acumulado ao longo da historia da democratização do país, por essas organizações sociais. Trata-se de um aprendizado que pode ser socializado com alguns agentes do governo que não têm a mesma formação acadêmica e política para este tipo de pratica social junto aos excluídos do progresso econômico brasileiro. Sinceramente, nada disso é de ordem do bla bla bla. Intelectual de uma eterna militante da utopia do possível (como me caracterizo) posso testemunhar sobre esta historia do mundo associativo brasileiro, pois trabalhei muitos anos na cooperação internacional. Escrevo aqui apenas como um grito de alerta.

Conclusão: autonomia crítica

As organizações sociais, que tiveram um papel relevante no processo de democratização do Brasil e que participaram de muitas conquistas sociais, vivem hoje uma crise econômica e de reconhecimento social sem precedente. Primeiro, pelo fato de o Brasil ser hoje considerado um pais rico; segundo a imagem positiva do governo Lula na luta contra a miséria e pelo seu programa de inclusão social tiveram repercussão internacional importante e mudou a imagem do Brasil. Estes dois fatores levaram os organismos da cooperação internacional a retirar sua ajuda às ONGs de desenvolvimento. Os 35 milhões que saíram da pobreza extrema estão muito longe do pleno acesso aos seus direitos e de uma atuação cidadã digna desse nome. É extraordinário o que foi feito nesses 10 anos, mas isso apenas arranhou a superfície de uma desigualdade histórica que continua a ser escandalosa.

Mas existe um terceiro fator considerado grave, é que uma grande parte da opinião publica desconhece o papel importante dessas organizações. A grande mídia moldou uma imagem negativa, ao colocar no mesmo saco as organizações de desenvolvimento solidário e cidadania com as associações e fundações que desviaram dinheiro público em beneficio próprio e não em beneficio do interesse coletivo.

Essas ONGs históricas e comprometidas com a luta contra a miséria e pela dignidade humana passaram a depender dos recursos dos governos municipais, estaduais e federal, mas não se enquadram em um marco jurídico que levem em conta suas especificidades e originalidade na forma de intervir localmente. Muitas foram obrigadas a demitir parte de seus quadros, de se desfazer do patrimônio imobiliário adquirido com a ajuda internacional. Muitas atividades e projetos foram interrompidos. Apesar do avanço na luta contra a exclusão, o território brasileiro continua convivendo com desigualdades e desequilíbrios regionais.

O governo Lula prometeu estabelecer um marco regulatório para essas entidades, mas depois de dois mandatos nada tinha sido resolvido. Agora é a vez da Presidente Dilma tentar resolver as aberrações jurídicas e dar oportunidades a esses atores de continuarem atuando junto às populações carentes e sair deste imbróglio jurídico. Como continuar uma associação não governamental, se muitas passam a ser executoras de políticas publicas?  A própria Constituição Brasileira garante a liberdade e independência das associações no artigo 5 do parágrafo XVIII. (ver constituição).

Os cidadãos que integram uma Organização de Desenvolvimento solidário e de Cidadania têm direito a usufruir ao acesso de fontes de financiamento público, e de guarda, ao mesmo tempo, sua liberdade de atuação critica, no sentido de garantir o exercício da cidadania política. Os cidadãos são guardiões do bom funcionamento democrático das instituições republicanas e estes, enquanto contribuintes pagam impostos e taxas que mantém os serviços públicos. Se certas medidas assumidas pelo governo são contraditórias à sua visão de desenvolvimento territorial solidário, estes cidadãos estão no seu direito de tecer criticas construtivas. Ser um aliado do governo na luta por um desenvolvimento com inclusão social, não quer dizer ser instrumentalizado. Uma democracia sem a vitalidade dos movimentos sociais e da sociedade civil organizada é uma democracia amorfa e seus cidadãos vão continuar elegendo deputados, senadores, governadores, prefeitos, vereadores que nunca serão dignos da casa do povo.  Governar para o povo e com o povo soará sempre como demagogia e não como principio da democracia.

A presidente Dilma que possui uma visão política dos atores sociais no Brasil, sabe o quanto é necessário, às vezes, ter contra-poderes em sociedades conservadoras, principalmente numa jovem democracia não muito acostumada com a democratização dos poderes, infelizmente, ainda existem saudosistas da ditadura no Brasil. Para fazer evoluir a sociedade e para poder avançar nas reformas estruturais que espera fazer do Brasil uma grande Nação, a ação militante na luta por outro desenvolvimento continua sendo fundamental. Assim como é necessário uma pratica maior do exercício da cidadania para consolidar a democracia social, parceira ideal para o funcionamento da democracia representativa. O governo por enquanto não tem uma maioria politicamente coerente, ela é mais fisiológica que ideológica. Por isso, também, o governo precisa de uma sociedade civil mais combativa.

Marilza de Melo Foucher, especializada em questões de desenvolvimento territorial, é doutora em economia, analista política,  escreve para o Jornal Mediapart em Paris colabora com vários sites de informações na América latina, com o Le Monde diplomático do Brasil, Outras Palavras, Correio do Brasil, Adital.

 

Um relato sobre o Fórum Social Mundial 2013 na Tunísia

O Fórum Social Mundial 2013 aconteceu na última semana de março na Tunísia, dois anos depois que a Primavera Árabe começou nesse pequeno país do norte da África, aproximando o movimento global anti-capitalista das lutas revolucionárias da região. Apesar das apreensões com o clima político instável pouco mais de um mês depois do assassinato do líder do Movimento dos Patriotas Democratas e da coligação Frente Popular, Chokri Belaïd, e em um país ainda em processo de profunda transformação, do ponto de vista organizativo o FSM foi exitoso, com algumas poucas dificuldades – que perto dos problemas de infra-estrutura de Dakar ou Belém não merecem menção.

Internet sem fio livre em todo o campus, restaurante universitário bom e barato, ônibus barato levando as pessoas do Fórum até o centro… quem foi às edições de Porto Alegre nunca viu algo assim.

Tunis surpreende e não cabe em lugares-comuns. Mulheres vestidas de maneira ocidentalizada convivem lado a lado com mulheres cobertas por véus negros. Um sistema de tram um pouco depredado, mas barato e eficiente, cobre toda a cidade de 2 milhões e meio de habitantes. Táxis em abundância podem resultar em uma conversa simpática sobre a situação política do país e os jogadores de futebol brasileiros ou em uma disputa desagradável pelo preço. Na minha condição de mulher claramente estrangeira, passei por situações desconfortáveis em momentos que estava desacompanhada fora do campus, mas na maioria das vezes contei com a gentileza local e a vontade de todas e todos em falar sobre o processo revolucionário em curso.

Em conversas assim, aprendemos que a queda de Ben Ali não representou a tomada do poder pelas forças revolucionárias, mas sim a transição de uma ditadura militar para uma ditadura civil de forte cunho islâmico, em muitos sentidos mais agressiva que a anterior e que tem gerado apreensões quanto à situação das mulheres do país. Mas as pessoas vivem em um misto de medo e de esperança de mudança. As “músicas da revolução” – referentes da mística da Primavera Árabe – foram cantadas catarticamente  pela multidão presente na Assembleia dos Movimentos Sociais no final do Fórum. Também em festas se dança e canta ao som destas. A principal praça da cidade teve seu nome mudado para 14 janvier 2011, data marco do processo atual. A revolução não é algo que já foi, é algo que está sendo, segue viva.

As lutas dos povos da região como a do povo Palestino contra a ocupação israelense criminosa e a solidariedade de todas e todos com xs palestinxs foram constantemente expressas. O embate entre os povos do Saara Ocidental que lutam pela autonomia em relação ao resto do Marrocos e xs nacionalistas marroquinos gerou fortes tensões enquanto se leía a declaração final da Assembleia dos movimentos sociais. Conflitos entre os apoiadores do ditador sírio Assad e dos apoiadores das forças de resistência também geraram situações de violência no campus.

Se por um lado sentimos falta de maior presença dos povos da região em algumas atividades, em outros espaços eles estiveram absolutamente no centro: importante mencionar a Assembleia das mulheres que abriu o Fórum expressando a força das mulheres da região e seu papel na Primavera Árabe.

Inaceitável foi o fato da organização local exigir crachás para entrada no campus, elitizando o acesso da população local, o que felizmente não conteve a entrada das pessoas. No entanto, isso gerou acusações por parte de alguns locais – com especial apoio dos “ocupa” e “indignados” presentes – de que este seria um “Forum du capital”.  Isso, associado ao fato já recorrente da presença ostensiva de algumas empresas transnacionais no Fórum, impõem a necessidade urgente de reafirmar princípios claros, rejeitando a mercantilização do espaço que deve ser acima de tudo de autonomia dos movimentos sociais, território livre de transnacionais, e com participação não mediada monetariamente. O Fórum não deixa de ser um espaço contraditório e em disputa, embora ainda centralmente um espaço de construção coletiva anti-sistêmica.

Este foi também o primeiro FSM com presença dos movimentos “ocupa” europeus e americanos (incluindo os “indignados” espanhóis), que emergiram no contexto da crise com forte referencia nas lutas árabes, especialmente na praça Tahir egípcia. Com um forte enfoque em metodologias “horizontais”, estes “novos” movimentos fizeram assembleias ao ar livre para discutir o Fórum. Em diversas atividades do Fórum, alguns “ocupa” interviram com críticas às metodologias “engessadas” das sessões dos movimentos “tradicionais” que não conduziriam a fóruns abertos de construção coletiva. Muitos desafios que estes “novos” movimentos propõem devem gerar efetiva reflexão e nos fazer repensar criticamente como nos organizamos. Por outro lado, os “ocupa” têm sido pouco abertos a reconhecer a história de lutas dos movimentos organizados que os precederam e que continuam sendo as plataformas das lutas mais expressivas, ao menos no Sul global. Com uma certa obsessão pela “horizontalidade” – que podem gerar discussões longas até se alcançar consenso sobre as questões organizativas mais simples, desmobilizando a energia dos participantes – os “ocupa” encontram limites claros na falta de vontade de abrir mão de expressar sempre posições políticas individuais em prol de bandeiras coletivas. De certa forma, representam uma reemergência do anarquismo no Norte global e ainda se mantêm muito restrito às classes médias que têm acesso às novas tecnologias, recurso fundamental em suas lutas. Neste sentido, os movimentos “tradicionais” organizados que resistem por anos têm muito a ensinar a esses movimentos, que têm se diluído em apenas pouco mais de dois anos de vida. Acima de tudo, é necessário um aprendizado mútuo e a construção de fortes alianças, afinal para construir alternativas necessitamos das diversidades das lutas anti-capitalistas existentes no mundo.

O Fórum Social Mundial 2013 em Tunis foi um êxito por expressar tão enfaticamente essas reflexões e por fortalecer os laços entre os movimentos da região e os movimentos mais “globalizados”. E isso em um contexto onde se debate mais do que nunca o futuro (ou não) do Fórum é ainda mais relevante. Ainda temos que ser mais efetivos em partir do diálogo para ações e mobilizações comuns, apesar das tentativas da Assembleia dos Movimentos Sociais nesse sentido. Mas arrisco a dizer que quem foi a Tunis partiu nostálgicx com a sensação de ter participado de um momento histórico na construção de convergências de lutas. Vive la Tunisie!!

Diana Orrico, da Rebrip

De um lado, a esperança; do outro lado, o medo

por Immanuel Wallerstein
do Outras Palavras

O Fórum Social Mundial (FSM), que acaba de encerrar sua edição atualmente bienal, aconteceu este ano em Túnis. Foi vastamente ignorado pela imprensa mundial mainstream. Muitos de seus participantes eram céticos que falavam de sua irrelevância, algo que acontece a cada encontro desde sua segunda edição, em 2002. Foi marcado por debates sobre sua própria estrutura e esteve repleto de polêmicas sobre qual a estratégia política correta para o mundo da esquerda. Apesar disso, foi um enorme sucesso.

Uma maneira de medir seu êxito é relembrar o que ocorreu no último dia do último FSM, em Dakar, em 2011. Neste dia, Hosni Mubarak foi forçado a abandonar a presidência do Egito. Todos no Fórum aplaudiram. Mas muitos disseram que esse ato em si provava a irrelevância do encontro. Algum dos revolucionários na Tunísia ou no Egito buscou inspiração no evento? Eles ao menos tinha ouvido falar sobre o Fórum Social Mundial?

Mas, dois anos depois, o Fórum reuniu-se em Túnis, a convite dos próprios grupos que iniciaram a revolução na Tunísia. Parecem ter considerado que sediá-lo em sua capital ampliaria a força de sua luta para preservar as conquistas da revolução, contra as forças que, acreditam, estão agindo para domá-la, e levar ao poder novamente um governo opressivo e anti-secular.

O slogan de longa data do FSM é “outro mundo é possível”. Os tunisianos insistiram em adicionar um novo, exibido com igual proeminência no encontro. A palavra era “Dignidade” — nos crachás de todos, em sete línguas. De muitas maneiras, o slogan adicional enfatiza o elemento essencial que une as organizações e indivíduos presentes no Fórum — a busca por igualdade verdadeira, que respeita e aumenta a dignidade de todos, em todos os lugares.

Não significa que houve total acordo no Fórum. Longe disso! Uma maneira de analisar as diferenças é observá-las como reflexo do contraste entre a ênfase na esperança e a ênfase no medo. Em sua composição, o FSM tem sido sempre uma grande e inclusiva arena de participantes, que situam-se desde a extrema esquerda até o centro-esquerda. Para alguns, isso tem sido sua força, permitindo educação recíproca entre pessoas e organizações ligadas diversas tendências, ou com foco em distintos temas — uma educação mútua que levaria a médio prazo a unir ações, para transformar nosso sistema capitalista existente. Para outros, isso parece ser o caminho da cooptação por aqueles que desejam meramente atenuar as desigualdades existentes, sem fazer nenhuma mudança fundamental. Esperança versus medo.

Outra fonte de constante discussão foi o papel dos partidos políticos de esquerda no processo de transformação. Para alguns, não é possível fazer mudanças significativas, tanto em curto quanto em médio prazos, sem partidos de esquerda no poder. E uma vez no poder, essas pessoas sentem que é essencial mantê-los lá. Outros resistem a essa ideia. Sentem que, mesmo se ajudarem tais partidos a chegarem ao poder, os movimentos sociais devem permanecer de fora, como controle crítico destes partidos, que com a prática quase certamente descumprirão suas promeessas. Mais uma vez, esperança versus medo.

A atitude a adotar diante dos novos países emergentes — os chamados BRICS e outros — é outra fonte de divisão. Para alguns, os BRICS representam uma importante contra-força ao norte clássico — Estados Unidos, Europa Ocidental e Japão. Para outros, eles levantam suspeitas sobre um novo grupo de poderes imperialistas. O papel da China na Ásia, África e América Latina hoje é particularmente controverso. Esperança versus medo.

O estado concreto da esquerda mundial é outra fonte de debate interno. Para alguns, o FSM tem sido bom na negação — oposição ao imperialismo e neoliberalismo. Mas está, lamentavelmente, atrasado na formulação de alternativas específicas. Essas pessoas clamam pelo desenvolvimento de objetivos programáticos concretos para a esquerda mundial. Mas para outros, a tentativa de fazê-lo serviria primariamente para dividir e enfraquecer as forças unidas no Fórum. Esperança versus medo.

Outra discussão constante é sobre o que tem sido chamada de “descolonização” do FSM. Para alguns, ele está exageradamente, desde seu início, em mãos de gente do mundo pan-Europeu: de homens, pessoas mais velhas, das chamadas populações privilegiadas do mundo. O Fórum tem, como organização, buscado estender-se além de sua base inicial — espalhando-se geograficamente, procurando fazer suas estruturas refletirem cada vez mais demandas a partir da base. Isso tem sido um esforço contínuo, e ao comparar cada edição sucessiva do Fórum, percebe-se que ele tem se tornando, neste aspecto, cada vez mais inclusivo. A presença em Túnis de todos os tipos de “novas” organizações — Occupy, Indignados etc — é prova disso. Para outros, este objetivo está longe de ser alcançado, a ponto de produzir dúvidas sobre se há uma real intenção de cumprir este objetivo. Esperança versus medo.

O FSM fundou um espaço de resistência. Doze anos depois, permanece o único lugar onde todas partes destes debates reúnem-se para continuar a discussão. Existem pessoas que estão cansadas dos mesmos debates contínuos? Sim, é claro. Mas também parece sempre haver novas pessoas e grupos chegando, que buscam participar e contribuir para a construção de um mundo de esquerda eficaz. O Fórum Social Mundial está vivo e está bem.

http://www.canalibase.org.br/fsm-entre-a-esperanca-e-o-medo/

Conselhos e conferências: como ocorre o monitoramento de suas propostas?

Confira o PDF.

Parlamento e Racismo na Mídia

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