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Novo Código Mineral

Novo Código Mineral representa um retrocesso do ponto de vista ambiental

Aconteceu ontem, dia 04 de setembro, a sétima audiência pública (no Congresso Nacional) da Comissão Especial encarregada de apresentar o relatório do novo Código da Mineração (PL 5708 de 2013). Depois de muitas audiências, esta foi a primeira e a última, de acordo com a agenda apresentada pela comissão, que pautou a questão dos impactos ambientais associados à mineração. O resultado não poderia ser mais preocupante.

As falas do Ministério Público, de organizações socioambientais e do Comitê em Defesa dos Territórios frente à Mineração (que reúne mais de 60 organizações e movimentos sociais) foram unânimes na avaliação de que o PL retrocede anos luz na questão ambiental.  O atual Código, de 1967, assegura a responsabilidade do minerador pelos danos ambientais e sociais gerados pela atividade e vincula o não cumprimento destas responsabilidades às sanções previstas no próprio Código. Já o PL que o governo enviou ao CN apenas menciona, como uma das diretrizes, o vago compromisso com o desenvolvimento sustentável e com a recuperação dos danos ambientais causados pela mineração. Todos nós sabemos que, em Lei, diretrizes e princípios não garantem nada concreto.

A opção do governo pelo chamado Código minimalista isenta o minerador do compromisso legal para com a preservação e recuperação do meio ambiente, sob a alegação de que isto está assegurado pela legislação ambiental vigente, por meio do licenciamento ambiental. Mas esta legislação ambiental vigente é hoje pouco cumprida porque os órgãos ambientais estão totalmente despreparados do ponto de vista técnico e humano, além de não terem poder político para fazer cumprir a legislação.

Estamos, portanto, no pior dos mundos. À fragilidade dos órgãos ambientais, exponenciada no caso dos órgãos estaduais, soma-se à ausência do compromisso legal explícito e específico da atividade mineral para com a preservação e recuperação do meio ambiente.  Em tempos de flexibilização da legislação ambiental e especificamente dos processos de licenciamento, que já não funcionam como deveriam, esta lacuna parece ainda mais preocupante.

A falta de compromisso do governo com uma regulação da atividade mineral que a torne menos agressiva ambientalmente e mais responsável pelos danos gerados ficou clara na audiência de ontem, de maneira constrangedora. O técnico de carreira do Ibama enviado para representar o órgão simplesmente assumiu publicamente que o seu órgão não tem posição institucional sobre o Projeto. Projeto este que foi enviado pelo governo ao CN, em regime de urgência constitucional, depois de anos sendo construído pelo MME sob a batuta da Casa Civil.

Ou seja, este PL absolutamente lacônico em relação ao meio ambiente simplesmente não foi discutido com os órgãos ambientais que deveriam, tecnicamente, ser os responsáveis por subsidiar esta parte da matéria e aprimorá-la em relação ao Código hoje vigente. Não é de se estranhar, portanto, que ele praticamente ignore a questão ambiental.

Outra expressão da falta de compromisso do governo e do seu PL com a busca de soluções concretas para conciliar mineração e preservação ambiental é a irrisória compensação financeira derivada da exploração mineral (CFEM) que será destinada ao combalido orçamento do Ibama para reforçar seu poder de fiscalização e licenciamento. Apenas 2% de 12% da CFEM que cabe à União será repassada ao órgão, ou seja, 0,24% vai para o Ibama. A situação, embora desoladora, é ainda melhor que a dos estados e municípios, já que nenhum centavo da CFEM distribuído aos municípios e estados (que abocanham a maior parte dos recursos, 65% vai para os municípios e 23% para os estados produtores) está obrigado a ser aplicado no meio ambiente devido ao fato de que não existe nenhuma vinculação para utilização deste recurso.

Como resolver esta lacuna? Objetivamente, uma primeira medida é garantir no texto da Lei o compromisso explícito e consequente com a preservação ambiental, incorporando o que já existe no Código de 1967 e dando garantias legais que reforcem e assegurem o que a atual legislação ambiental e sua prática, sozinhas, não estão conseguindo dar conta.

Mas é preciso ir além. É preciso que haja tempo para que o Congresso Nacional discuta com técnicos, com a sociedade e organizações socioambientais como disciplinar da melhor forma possível esta atividade, compatibilizando-a com outros valores tão estratégicos quanto os minérios.  Existem várias propostas de melhoria deste projeto que estão sendo colocadas na mesa de negociação. Também existem experiências de regulação da mineração em outros países que avançam do ponto de vista ambiental e social que devem nos servir de inspiração.

Cabe ao parlamento e também ao governo garantir o tempo necessário para que o debate amadureça e para que esta nova regulação não represente um grande retrocesso.

 

Qual o tamanho do passivo da mineração? Ninguém sabe, muito menos o Ibama.

O tamanho do passivo da mineração foi um debate a parte na audiência sobre “as entidades ambientais”, nome estranho para designar a relação entre mineração e seus impactos ambientais.

Sabemos que a mineração ao longo da sua história gerou um enorme passivo ambiental. Parcialmente, em função da fragilidade da legislação ambiental do passado, notadamente até a década de 90. Mas em grande parte, também, em função da incapacidade do estado de cumprir a legislação por meio de suas políticas de comando e controle. Relatos e imagens de minas abandonadas, rios assoreados, secos, contaminados, áreas degradadas pela mineração dão uma dimensão destes impactos.

Mas qual o tamanho do passivo gerado por tantos anos de impactos não mitigados? De quem é a responsabilidade por medir e reparar o que ainda pode ser reparado? Estas questões foram abordadas na audiência e geraram um constrangimento ainda maior na já desastrosa presença do Ibama no evento.

Ficou claro que o governo e os seus órgãos não só não sabem o tamanho do passivo como não têm reflexão ou posição formada sobre o tema. Simplesmente, insistem em dizer que os passivos não deveriam existir porque teoricamente o licenciamento existe para que os impactos sejam avaliados, mitigados e compensados ao longo da vida do projeto mineral.

Frente a este discurso desolador, a ideia de um inventário dos impactos da mineração cogitada por um parlamentar na audiência, soou como uma novidade ao órgão que já deveria ter este desafio como forma de enfrentar um dos seus muitos passivos.

Na ausência de respostas por parte do governo, o representante do Ministério Público disse que, por iniciativa da instituição, está sendo feito um levantamento dos impactos e um inventário, instrumento para melhorar a atuação do MP em ações de reparação. Nestas ações tem sido atribuído também ao Estado, a responsabilidade pelo dano ao meio ambiente. Essa atribuição advém de sua omissão em não fazer cumprir a legislação ambiental e o próprio código da mineração. Esta parte da conta, obviamente, caberá aos contribuintes.

O curto e ainda restrito debate sobre esta questão demonstra que é necessário garantir no texto do Código da Mineração não só a responsabilidade do empreendedor pela preservação ambiental, mas também os meios legais e institucionais pelos quais esta responsabilidade se objetivará. Isto significa colocar a questão ambiental como requisito para as concessões e operação das minas, garantir as condições financeiras para que os órgãos ambientais federal e estaduais atuem, além de garantir que a Agência e o Conselho a serem criados atuem, dentro dos limites das suas respectivas competências, em parceria com os órgãos ambientais no monitoramento e controle ambiental da atividade.

 

Alessandra Cardoso é assessora política do Inesc e atualmente é responsável pelo desenvolvimento do Observatório de Investimentos da Amazônia

 

 

 

 

 

Reforma Política: Como e o quê?

Uma reforma que amplie as possibilidades e oportunidades de participação, e seja capaz de incluir e processar os projetos de transformação que sujeitos políticos historicamente excluídos dos espaços de poder trazem para o cenário político. Foi essa a principal lição que as manifestações de junho nos colocaram.

Por José Antonio Moroni

A reforma política está presente na agenda nacional há vários anos, mas nas últimas semanas, após as manifestações e o pronunciamento da presidente Dilma Rousseff, um novo ingrediente, que diz respeito ao “processo”, foi acrescentado. Isto é, qual é o caminho para fazer a reforma política. Assembleia Nacional Constituinte? Plebiscito? Referendo? Iniciativa popular? Congresso faz sozinho e do jeito dele? Todos esses elementos estão “misturados” no debate, ofuscando a discussão sobre o conteúdo da reforma política: para que a queremos, o que esperamos enfrentar com ela, que sistema político desejamos construir? Os dois debates, sobre o processo e sobre o conteúdo, são fundamentais para a construção de um novo modelo democrático no país e devem andar conjuntamente. Na reforma política não podemos separar o conteúdo da forma, pois um determina o outro.

O Congresso Nacional há dezoito anos tenta votar essa reforma. Duas observações: todas as tentativas foram na direção de uma transformação eleitoral, e não política, e realizadas em momentos de “crises políticas” ou no início de legislatura. A resposta foi clara: queremos manter o sistema como está. Em outras palavras, o Congresso não vê grandes problemas que justifiquem uma “reforma”. O que se fez foram pequenos ajustes no processo eleitoral, nem sempre na direção da democratização do poder, e sim para atender aos interesses de quem está no poder ou próximo dele. Um exemplo recente é o grupo de trabalho da minirreforma eleitoral coordenado pelo deputado Cândido Vaccarezza (PT-SP), que apresentou relatório em julho no qual constam propostas na contramão de tudo o que a sociedade aponta e deseja. A sociedade quer partidos e candidatos com propostas, e eles liberam a obrigatoriedade dos candidatos de registrar seus programas em cartório; a sociedade quer transparência e controle dos gastos nos processos eleitorais, e eles flexibilizam a prestação de contas. Todas as propostas desse grupo de trabalho vão nessa direção, e o projeto foi aprovado em regime de urgência e vai entrar em votação no início de agosto. Vale aqui a ressalva de não confundir esse grupo de trabalho com o outro – coordenado pelo mesmo deputado – que trata da reforma política com o objetivo de dar resposta às demandas da rua e a proposta da presidente da convocação de um plebiscito.

Como podemos perceber, dificilmente o Congresso vai fazer uma reforma política que atenda aos interesses da população. O Parlamento entrou num processo muito comum às instituições de confundir os interesses de seus membros com os da instituição ou de quem ela diz representar. Quando isso acontece, o organismo perde a representatividade, a legitimidade e as condições políticas de propor algo que satisfaça as demandas do povo; e vai ficar sempre baseado nos interesses de seus grupos e integrantes. É o que acontece com o Congresso brasileiro.

Só se rompe isso com um movimento que articule forças políticas de fora com quem está “dentro” e quer mudanças. Caso contrário, o Congresso continuará a atuar como aquele cachorro que fica correndo atrás de seu próprio rabo.

Diante desse quadro político e pensando em criar esse movimento de fora, várias organizações e movimentos da sociedade civil coletam desde o final de 2011 assinaturas para a Iniciativa Popular para Reforma do Sistema Político. A iniciativa não se restringe a mudanças do sistema eleitoral, mas vai na direção do fortalecimento da soberania popular, por meio de várias propostas, entre elas a de que determinados temas só possam ser definidos por plebiscitos e referendos e a que dá ao povo o poder de convocação desse instrumento da democracia direta, retirando essa exclusividade do Congresso, como ocorre hoje. Para conhecer melhor essa proposta, acesse .

Nas últimas semanas, novos ingredientes foram acrescentados nesse debate. Com as últimas manifestações de rua, ficou evidente o total esgotamento do nosso atual modelo democrático, centrado no poder da representação e na força do capital privado financiando as campanhas. Assim, ganha força na sociedade a busca de outras estratégias políticas para a realização da reforma política. É nesse contexto que surgem as propostas de convocação de uma assembleia constituinte e de um plebiscito.

Para iniciar esse debate, precisamos colocar algumas premissas sem as quais corremos o risco de cair em armadilhas ou cascas de banana colocadas ao longo do caminho.

A Assembleia Constituinte precisa ser exclusivasoberanaespecíficapara a reforma política. Exclusivaquer dizer eleita especificamente para fazer a reforma, não delegando ao Congresso essa tarefa. Soberana: sem influência do poder econômico, tanto no processo de escolha dos constituintes como nas definições, com possibilidades de candidaturas avulsas, ou seja, não necessariamente via partidos, e representativa de todos os segmentos da população. Uma assembleia constituinte não pode ser o espelho da representação que temos hoje no Parlamento: branca, masculina e proprietária. Tem de ser uma expressão, em pé de igualdade, de todos os grupos sub-representados de nossa sociedade, mulheres, população negra, indígena, jovem, homoafetiva, do campo e das periferias. Específica: deve ficar restrita ao tema da reforma política (não apenas eleitoral), não podendo decidir sobre outras questões que não estejam a ela relacionadas. Não podemos correr o risco de perder conquistas obtidas com a Constituinte de 1988, principalmente as concernentes aos direitos sociais, individuais e coletivos.

Se o caminho for o plebiscito, devemos garantir que a definição das perguntas seja feita por meio de mecanismos de consulta popular, e não apenas pelo Congresso; que a campanha gratuita tenha a participação das organizações da sociedade, e não apenas das frentes parlamentares, como define a lei hoje; e, por último, mas não menos importante, que o plebiscito tenha caráter vinculante, isto é, o Congresso não pode decidir pelo contrário. A ideia seria fechar esse processo com o referendo − o povo dizendo se o Congresso interpretou bem ou não a vontade popular. Aqui vale uma ressalva: quando da ideia do plebiscito, juristas de plantão, aqueles que a grande mídia escuta, vieram com a pérola de que o plebiscito era apenas uma consulta, cujo resultado o Congresso poderia acatar ou não. Sugiro para estes algumas aulas extras de soberania popular.

Essa discussão “da forma” é fundamental, pois define a concepção que temos de reforma política e também os sujeitos políticos desta. No formato o “Congresso faz”, estamos delegando esse poder à representação e, como esta só consegue pensar em processo eleitoral, a reforma política será igual a reforma eleitoral. Que é importante, necessária, mas não suficiente.

Nos demais casos, iniciativa popular, Assembleia Constituinte exclusiva, soberana e específica e plebiscito/referendo, estamos dizendo que o alicerce da reforma política é a soberania popular. Portanto, o sujeito político dessa transformação é o próprio povo, e o conteúdo diz respeito ao exercício dessa soberania, isto é, a todas as formas de poder, e não apenas à representação.

Nesse caso, reforma política é a reforma do próprio processo de decisão, portanto, a reforma do poder e da forma de exercê-lo.Quem exerce o poder, em nome de quem, quais são os mecanismos de controle? Enfim, quem tem o poder de exercer o poder numa sociedade tão desigual como a nossa? Por isso deve estar alicerçada nos princípios da igualdade, da diversidade, da justiça, da liberdade, da participação, da transparência e do controle social, e não pode ser apenas reforma eleitoral. Portanto, estamos falando da reforma do sistema político.

Se todo poder emana do povo, pensar a reforma do sistema político é pensar como esse poder deve ser devolvido ao povo, que tem o direito de exercê-lo de forma direta, e não apenas por delegação (delegar para quem elegemos). Democracia é muito mais que apenas ter “eleições limpas”.

Não se pode pensar numa reforma do sistema político sem enfrentar as desigualdades de sexo, de raça, etnia e de renda nas formas de exercer o poder. Assim, falar em reforma do sistema político é tratar de racismo, machismo, homofobia, desigualdade econômica e preconceitos presentes em nossa sociedade e nas estruturas de poder.

A reforma precisa radicalizar a democracia, enfrentando todas as formas de desigualdade e preconceito, promovendo a igualdade, a diversidade e a participação política. Isso significa uma reforma que amplie as possibilidades e oportunidades de participação, que seja capaz de incluir e processar os projetos de transformação que sujeitos políticos historicamente excluídos dos espaços de poder − como mulheres, afrodescendentes, homossexuais, indígenas, jovens, pessoas com deficiência, idosos e todos os despossuídos de direitos − trazem para o cenário político. Foi essa a principal lição que as manifestações de junho nos colocaram. Precisamos construir outro desenho democrático, isto é, um mosaico em que todos se sintam não apenas representados, mas participantes e com mecanismos de exercício do poder de forma direta.

Precisamos também repensar a atual arquitetura da participação (democracia participativa). A multiplicação de espaços participativos (conselhos e conferências) não significa automaticamente a partilha de poder. Precisamos caminhar na direção daconstrução de um sistema integrado de participaçãoque inclua a política econômica e de desenvolvimento, e não apenas as políticas sociais. Aqui vale uma pergunta: por que as demandas das manifestações de junho por serviços públicos de qualidade não desembocaram nesse sistema de participação institucionalizada? Se desembocaram, por que não foram respondidas?

Precisamos aperfeiçoar a democracia representativa. Para isso são necessários partidos políticos democráticos, fortes, programáticos, com densidade na sociedade, com vida o ano todo, e não apenas em momentos eleitorais. Precisamos realmente terpartidos como instrumentos de representação política de parte da sociedade, e não de interesses pessoais ou de grupos. A fidelidade partidária, o financiamento público exclusivo de campanha, a votação em listas escolhidas de forma democrática, com alternância de sexo e respeito a critérios raciais, geracionais e homoafetivos, e a possibilidade de revogação de mandatos pela população devem ser prioridades. É necessário pensar outra forma de escolha da representação indígena. Antes de tudo, é preciso criar a equidade nas disputas políticas que se fazem por meio de mecanismos da democracia representativa.

Não existe reforma do sistema político sem enfrentamento do poder dos meios de comunicação privados, assim como do isolamento do Poder Judiciário às demandas populares e sua elitização.

Em resumo, pensar a reforma do sistema político é pensar como democratizar as relações de poder em todas as esferas e em todos os espaços, e isso só a soberania popular é capaz de fazer.

José Antonio Moroni – é filósofo, da Direção Colegiada do Inesc – Instituto de Estudos Socioeconômicos.

Publicado originalmente no Le Monde Diplomatique

Qual reforma política e como?

 

A reforma política presente na agenda nacional há vários anos ganhou novo ingrediente após as manifestações e o pronunciamento da Presidenta Dilma. Este novo ingrediente diz respeito ao “processo”, isso é, qual o melhor caminho para se fazer a reforma política. Assembleia Nacional Constituinte? Plebiscito? Referendo? Iniciativa Popular? O Congresso faz do jeito dele? Este debate importante não pode ofuscar a discussão sobre o conteúdo da reforma política: para que queremos a reforma política, o que queremos enfrentar com a reforma política, que sistema político queremos construir? Os dois debates, sobre o processo e sobre o conteúdo da reforma política, são fundamentais para a construção de um novo modelo democrático no país e devem andar de forma conjunta.

Independente da inércia e da falta de interesse do Congresso, o que se coloca como questão de fundo é quais são os sujeitos políticos reconhecidos como tal para fazer a reforma. Sempre defendemos que a reforma política tem que construir uma nova forma de poder, portanto uma nova forma de exercício da política.  Esta nova forma só pode estar alicerçada na soberania popular, no poder popular. Portanto, o instrumento para se fazer a reforma precisa estar alicerçado na democracia direta, nos sujeitos políticos e na sociedade, com as suas diversas formas de organização, inclusive os partidos.

Sobre o conteúdo, não podemos aceitar uma reforma que queira apenas “limpas as eleições”. Isso não muda a lógica do poder, nem do debate político sobre a reforma. Além de melhorar o nosso sistema eleitoral, com a proibição do financiamento privado e mecanismos de inclusão nos espaços de poder dos grupos subrepresentados, especialmente mulheres, população negra e indígena, homoafetiva, pessoas com deficiência, jovens etc, precisamos fortalecer o poder de decisão do próprio povo através dos instrumentos da democracia direta.

Neste sentido é fundamental que o povo tenha o poder de convocar plebiscito e referendo e que determinadas questões só possam ser decididas através destes instrumentos. E não existe reforma do sistema político sem enfrentar o poder dos meios de comunicação privados, assim como o isolamento do poder judiciário às demandas populares e a sua elitização.

Em resumo, pensar Reforma do Sistema Político é pensar em como democratizar as relações de poder em todas as esferas e em todos os espaços, e isso só a soberania popular é capaz de fazer.

*membro do Colegiado de Gestão do Instituto de Estudos Socioeconômicos – Inesc

**Acesse a página da Plataforma pela Reforma do Sistema Político e assine a PROPOSTA DE INICIATIVA POPULAR PARA REFORMA DO SISTEMA POLÍTICO

Fonte: Abong




http://www.rets.org.br/?q=node/2306

Candelária, 20 anos – País rico é país sem chacina

Leonardo Sakamoto

 

 

Mais de 50 crianças e adolescentes de rua costumavam dormir na praça da Igreja da Candelária, região central do Rio de Janeiro. Na madrugada de 23 de julho de 1993, policiais militares, em horário de folga, atiraram contra nove deles, com idades entre 11 e 20 anos. Dos atingidos, apenas um sobreviveu. Durante as investigações, levantaram-se diferentes razões para o crime. De uma pedra atirada contra uma viatura da polícia por um dos garotos até o não pagamento de propina aos PMs coniventes com o tráfico de cocaína.

 

 

 

Quatro pessoas foram acusadas após a chacina: Marcus Vinícius Emmanuel, Cláudio dos Santos e Marcelo Cortes e o serralheiro Jurandir Gomes de França. Em 1996, Nelson Cunha confessou sua participação no crime e acusou seus colegas policiais Marco Aurélio Alcântara, Arlindo Lisboa Afonso Júnior e Maurício da Conceição, assassinado em 1994.

 

 

Desses, Emmanuel, Alcântara e Cunha, foram condenados a penas que chegaram a 300 anos de reclusão, respectivamente. Mas, hoje, estão em liberdade, indultados ou em condicional.

 

Arlindo foi condenado a dois anos porque uma das armas usadas na chacina foi encontrada em seu poder. Cláudio, Jurandir e Cortes foram inocentados com o depoimento de Cunha e absolvidos a pedido do Ministério Público. Os dois primeiros foram indenizados pelo Estado por ficarem presos injustamente por quase três anos.

 

 

Na época, os meninos afirmaram que oito policiais participaram da ação, e Wagner dos Santos, o único sobrevivente, foi contundente ao reconhecer Cortes como um de seus algozes. Hoje, a vítima mora na Suíça, após ter sofrido um atentado e recebido constantes ameaças de morte. Carrega as sequelas do crime, como balas alojadas no corpo.

 

 

Os promotores do processo afirmam que havia mais policiais envolvidos, mas durante as investigações não foi possível identificá-los.

 

A repercussão internacional decorrente da exploração do caso na mídia e do trabalho das ONGs ajudou na condenação dos policiais. Mas a pressão da mídia também prejudicou o andamento do processo por dar a ele um sentido de escândalo, impedindo o aprofundamente na investigação. Daí, alguns foram injustiçados e outros saíram impunes.

 

 

O Estado, porém, não teve competência para garantir uma vida melhor ao restante dos jovens que dormiam sob as luzes da Igreja da Candelária. Muitos sobreviventes morreram assassinados, vítimas da Aids, outros serviram ao tráfico, foram para prostituição e há os que desapareceram. Sandro, o sequestrador morto pela polícia no caso do ônibus 174, caso que inspirou um filme, escapara daquele

 

dia na Candelária.

Nas últimas duas décadas, o Brasil bateu recordes na geração de empregos, reduziu a fome e a pobreza, manteve sua economia estabilizada, consolidou sua democracia. Tornou-se parte de um acrônimo (Bric), ganhou respeito internacional e começou a pavimentar seu caminho para se tornar a quinta maior economia do mundo – processos que, em maior ou menor grau, devem ser creditados aos governos que conduziram o país nesse período. Diante de um cenário de pujança como esse, pergunto-me porque o Brasil continua encontrando formas idiotas de matar seus filhos.

 

 

 

Pensávamos que não cometeríamos os mesmos tipos de “erros” de 20 anos atrás, mas não foi bem assim. Carandiru (1992), Vigário Geral (1993), Ianomâmis (1993), Candelária (1993), Corumbiara (1995), Eldorado dos Carajás (1996)  ganharam roupagem nova e continuam acontecendo. Ou seja, o modelo se se manteve: continuamos matando gente pobre.

 

 

Nos últimos dez anos, o país assistiu a centenas de assassinatos de trabalhadores rurais indígenas, quilombolas e ribeirinhos em conflitos agrários (e daqueles que ousaram os ajudar), massacres de sem-teto e população em situação de rua, mortes de homossexuais. Isso sem contar os jovens negros e pobres na periferia de grandes cidades, como São Paulo.

 

 

Como em agosto de 2004, quando moradores de rua foram espancados no Centro de São Paulo, na região do Largo São Bento, Praça João Mendes e Rua 15 de Novembro. Sete não resistiram e morreram em decorrência dos ferimentos. Policiais militares e seguranças privados foram apontados como responsáveis, formando uma espécie de grupo de extermínio.

 

 

Ou em maio de 2006, em que cerca de 500 pessoas, a maioria de jovens, negros, pobres e moradores de periferia foram mortos no Estado de São Paulo. O indícios apontam para policiais e

grupos de extermínio ligados a eles como retaliação aos ataques do PCC.

Ou ainda a condição dos guarani kaiowá do Mato Grosso do Sul, que enfrentam a pior situação entre os indígenas do Brasil, apresentando altos índices de suicídio e desnutrição infantil. O confinamento em pequenas parcelas de terra por conta do avanço do agronegócio no estado é uma das razões principais para a precária situação do povo. O Estado vem concentrando a maioria dos assassinatos de indígenas no país, boa parte delas diretamente relacionadas com a disputa pela terra. Mesmo em reservas já homologadas, os fazendeiros-invasores se negam a sair. E contam com a ajuda da

 

 

segurança pública, a mando do poder público ou a soldo particular.

Muitos policiais estão envolvidos com os crimes citados. Poderiam muito bem afirmar que estava “cumprindo ordens”, como os nazistas em Nuremberg. Pois, o que ocorreu em muitas dessas chacinas foi um servicinho sujo que parte de nós, “homens e mulheres de bem”, desejavam (e ainda desejam) em seus sonhos mais íntimos: a “limpeza social” desde país das “classes perigosas” e dos entraves para o progresso. Vamos ser sinceros. Não é que a nossa sociedade não consegue apontar e condenar os culpados por todas elas como deveria. Ela simplesmente não faz questão. Porque, como já disse aqui, não suportaria um espelho no banco dos réus.

 

 

 

(Com informações e texto de Fernanda Sucupira e Natália Suzuki, pela Repórter Brasil)

 

http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2013/07/23/candelaria-20-anos-pais-rico-e-pais-sem-chacina/

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Alguns pontos sobre a resposta do Estado brasileiro às manifestações de rua

Iara Pietricovsky*

A presidenta Dilma na tentativa de responder os clamores das ruas, apresentou um pacto de 5 itens, ainda que tardiamente. O mais polêmico se refere a um plebiscito e uma assembleia nacional exclusiva para promover a reforma política, que é um dos pontos mais demandados pela população.  A resposta foi de alto risco, além de incorrer em equívocos em relação à iniciativa. Mas, é importante frisar que seu movimento produziu uma resposta em cadeia importantíssima dos poderes públicos, pois os retirou da letargia. A reforma política tem sido um tema adiado por todos os governos não importa o partido ou a coalizão no poder.

É um equivoco exigir da Presidenta resposta para todos os problemas. As pessoas estão mal informadas ou querem ver o circo pegar fogo. Grande parte das demandas populares ou da classe média, que estão sendo expressas nas ruas são de responsabilidade dos estados e municípios, portanto, de seus governadores e prefeitos, respectivamente, sem falar do poder legislativo nos mesmos âmbitos. Entretanto, com exceção  do governador e do prefeito de São Paulo e capital em função da eclosão popular ocorrida que detonou o estopim no país todo, todos os outros deixaram o barco correr, não se comprometeram e nem assumiram ao que lhes compete, deixando o ônus, ao governo federal. O pacto federativo, na verdade, é uma grande incógnita para a grande maioria dos brasileiros, além de tema não resolvido, vivemos ainda no tempo dos coronéis, do Brasil arcaico.

O Congresso Nacional, saiu da letargia e de uma situação de isolamento e distância profunda dos debates importantes do país internamente e no mundo. Vem pautando propostas de legislações medíocres, risíveis e conservadoras que expressam retrocesso absoluto em relação à agenda dos direitos humanos, tema que cresce de importância em todo o Planeta. Falta aos deputados compreensão sobre o movimento e tendências do mundo contemporâneo, fazendo com que suas questões paroquiais ou de origem fundamentalista religiosa ou política se sobreponham ao interesse majoritário não só de um país democrático, de um Estado laico, assim como de um país que respeita e se orgulha de sua diversidade. Essa é a nossa riqueza primeira e esse é o nosso maior patrimônio.

Esse Congresso Nacional, ruiu, como escreveu Luis Eduardo Soares em seu brilhante artigo intitulado “O que vem depois da queda da tarifa?”

“O Movimento pelo Passe Livre  declarou à nação que o rei está nu, proclamou em praça pública que a representação parlamentar ruiu, depois que, capturada pelo mercado de votos, resignou-se a reproduzir mandatos em série, com obscena mediocridade, sem qualquer compromisso com o interesse público, exibindo o mais escandaloso desprezo pela opinião pública.” E ainda em seu artigo (grifo meu) diz: “O colapso da representação vem ocorrendo sem que as lideranças deem mostras de entender a magnitude do abismo que se ergueu….”

Temos que mudar o sistema político partidário, enfrentar temas como o financiamento de campanha, votos proporcionais, distritais ou misto, recall daqueles que são eleitos mas não atuam segundo o programa partidário para o qual o elegemos, abrir novas instâncias de participação da sociedade civil via democracia direta, lista fechada para garantir a representação das mulheres, indígenas, população negra etc.

As consultas populares deveriam ser abertas agora, também, para questões relacionados aos temas educação e saúde, habitação transporte urbano de graça para a população, enfrentar as questões relativas à defesa do meio ambiente, para citar alguns pontos de alta relevância. Não basta o Congresso Nacional votar, sob pressão popular, a destinação dos royalties do petróleo e do pré-sal para educação (75%) e saúde (25%) como o fizeram agora. Precisamos fazer plebiscito para 10% do PIB para educação e 10% do PIB para a saúde e queremos ser consultados sobre outros temas também. A população quer usar os canais de participação que já existem e mais, querem abrir novos canais para que outras vozes sejam ouvidas e não somente a dos tradicionais grupos de interesse vinculados ao capital financeiro, industrial ou ao agronegócio.

A sociedade civil organizada e os movimentos sociais vêm fazendo seu papel. Por meio de uma Plataforma Pela Reforma do Sistema Político, há mais de 5 anos estão desenvolvendo propostas encaminhadas ao Congresso Nacional. A Plataforma defende, fundamentalmente:

“Para nós da Plataforma só faz sentido uma  reforma política que resgate a soberania popular  através do  fortalecimento dos  instrumentos da  democracia direta. Queremos e defendemos que o povo tenha o direito de participar diretamente das grandes decisões e não apenas dos momentos eleitorais.  Defendemos  também a necessidade do aperfeiçoamento do nosso sistema de representação, que passa pelo barateamento das campanhas, pelo fim da  influência do poder econômico e pelos mecanismos de  inclusão dos  grupos sub-representados nos espaços de poder.

Defendemos que uma  verdadeira reforma política deva ser construída pelos instrumentos de democracia direta que  já temos garantidos na  Constituição de 1988. A nossa defesa é por um plebiscito para definir as principais questões da reforma política. Queremos que o povo defina o conteúdo da reforma política e para isso já temos o instrumento político que é o plebiscito.

Defendemos que todo o processo da reforma política seja protagonizado também pela sociedade. Para  isso, propomos que o Congresso Nacional convoque a Conferência Nacional da Reforma Política com o objetivo de definir os temas e as perguntas para o plebiscito….” Recomendo a leitura de toda a proposta.

A proposta de plebiscito da reforma política que está sendo pensada neste momento corre um sério risco de sair pela culatra. Primeiro, precisa haver uma campanha intensiva de esclarecimento, além disso teríamos que referendar no final, caso contrário será uma carta branca ao Congresso Nacional e pior, a estes membros que hoje ocupam o CN. A sociedade brasileira não confia nos membros e dirigentes do Poder legislativo, assim apontam as pesquisas.

O poder judiciário, que na verdade tem legislado, na ausência absoluta do Congresso Nacional, haja vista as deliberações, por exemplo, do casamento gay, também deve muito em termos de transparência à sociedade brasileira. Os custos deste poder aos brasileiros é enorme e seu retorno questionável. Será que isso entrará no debate para além dos espetáculos que temos sido presenteados recentemente?

Enquanto isso, o PT e as esquerdas demoram para assumir o papel natural de galvanizar essas pautas das ruas para seus programas de governo e quebrar de vez sua relação promíscua com a direita corporativa, partidária e midiática. Temos que destravar a reforma tributária, fundamental para atacar as desigualdades que recaem sobre a população brasileira.

Do outro lado, a direita se organiza, também levando sua pauta para as ruas, encontra a oportunidade de rearmar suas estratégias visando as eleições do próximo ano. As pautas nos cartazes falam em desestabilização política (Fora Dilma) e com uma temática que é ,no mínimo, estranha para quem sempre se locupletou do errário público e cristalizou os mecanismos de corrupção, que aliás, sempre os mantiveram no poder. Essa mobilização sobre a PEC 37, por exemplo, será que as pessoas entendem do que estão falando? Na prática essa PEC é completamente desnecessária, pois a Constituição Federal já define claramente o papel do Ministério Público, da defensoria e da polícia civil e federal em seu papel investigador.

Por fim, parece ser fundamental que os movimentos tenham pautas claras   que alimentem a mobilização.  A população brasileira está farta de discriminação, corrupção e desrespeito das elites políticas e detentoras do capital. Exigem outro Brasil.

*Membro do colegiado de gestão do Inesc. Iara é antropóloga e mestra em Ciência Política pela Universidade de Brasília.

Aquecimento da expressão democrática. Cidadania política cadê tu?

Depois da euforia do aquecimento da expressão democrática nas ruas no Brasil, chegou a hora de fazermos um pouco de analise política. O protesto do movimento jovem nascido em São Paulo por um grupo de jovens de esquerda contra o aumento das passagens de ônibus pode ser visto como uma gota d’água salutar para despertar a cidadania política. Nesses últimos anos, a efervescência da participação da cidadania no Brasil foi se adormecendo, como se os protagonistas que tanto lutaram pela democracia participativa tenham sido cooptados ou se acomodados diante de seus eleitos.

Quando a ditadura cedeu espaço para a democratização no Brasil, foi promulgada uma nova constituição em 1988, batizada de Constituição Cidadã, tendo em vista que ela ampliava o projeto de democracia no Brasil, ou seja, buscava compatibilizar os princípios da democracia representativa com a democracia participativa. Cabia ao Estado a função de promover a igualdade entre os brasileiros independente de sua classe social ou categoria econômica do qual pertencesse. Ninguém pode negar os avanços no processo de democratização, principalmente, da democracia participativa nos anos 90 quando o PT emergia como um partido de participação popular nos governos municipais. Nessa década, a participação passa a ser um fermento para o fortalecimento da democracia. Todavia, o casamento entre a democracia representativa e democracia participativa, ocorrida no plano local, nem sempre foi uma união solida, e, ela se fragiliza quando levada ao poder central. Essas contradições devem ser mais bem analisadas, e, em parte explica certa decepção.

As primeiras dificuldades começam quando a pauta de reivindicações das organizações sociais sobre a reforma agrária, a reforma urbana, a reforma do sistema político, dentre outras serão colocadas em banho maria… Essas organizações combativas almejavam um projeto de sociedade para o Brasil baseada num desenvolvimento territorial solidário com sustentabilidade ambiental, cultural e política, porém essas demandas de reformas estruturais serão barradas diante dos interesses econômicos, dos grupos de pressão e pelas alianças feitas com base políticas conservadoras. O PT e seus aliados não tiveram maioria, nem no senado e nem na câmara dos deputados. Daí as oligarquias que vai do latifundiário aos que controlam dos meios de comunicação guardaram quase intactos seus privilégios. Ela é bem representada ainda hoje no congresso. Tanto o governo Lula como de Dilma cederam às suas pressões.

Entretanto, o governo de Dilma obteve maioria parlamentar para governar, mais uma vez as organizações sociais recarregaram suas bandeiras de luta, e, tentaram interpelar a nova Presidenta, e, uma vez não foram escutadas.  Elas continuam fazendo pressão junto ao planalto, basta ler a nova carta feita a presidenta Dilma enviada há dois dias (leia o site).

Não quero aqui dizer que nada foi feito, e nem tão pouco, nego as conquistas sociais, os avanços dos programas de inclusão social que levaram uma redução da pobreza nesses últimos dez anos. Todavia, os 35 milhões que saíram da pobreza extrema estão muito longe do pleno acesso aos seus direitos e de uma atuação cidadã digna desse nome. É extraordinário o que foi feito nesses 10 anos, mas isso apenas arranhou a superfície de uma desigualdade histórica que continua a ser escandalosa. Já escrevi vários artigos neste sentido.

Até parece que o progresso econômico e o reconhecimento do Brasil como potência emergente levaram o poder executivo a se deslumbrar de seu novo estatuto internacional e esquecer a divida social do Brasil que ainda não foi sanada. A democracia nem sempre obedece à lógica da prosperidade, sobretudo, quando poucos ficam à margem do progresso, do bem estar social. Uma maioria permanece esperando o ônibus passar… Outra nem de ônibus, pode andar, seu poder aquisitivo não é suficiente para acompanhar o aumento do custo de vida. Isto é o suficiente para se revoltar!

Ninguém pode negar o papel importante do Brasil na política internacional. Hoje ele é bajulado pelos mandões da gouvernança econômica mundial, ele passa a ser credor do FMI, alguns cargos nos organismos multilaterais serão contemplados por brasileiros, OMC- a organização mundial do comercio, a FAO- Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura, o Brasil é eleito no Conselho dos Direitos Humanos da ONU, integra a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), na Organização dos Estados Americanos (OEA) e no Comitê Consultivo Internacional do Algodão – sigla em inglês é Icac.  O Brasil vai formar também seu grupo de pressão internacional e participa ativamente do novo desenho de um mundo multipolar com o BRIC (Brasil, Rússia, Índia, China e em seguida acrescido de África do Sul, com o G20.

Logicamente, isto é orgulho para qualquer brasileiro, entretanto, o gigante não pode ficar dormindo em cima de ganhos econômicos e de seu prestigio internacional. Basta ver hoje a crise econômica e social de seus aliados do dito primeiro mundo. A luta dentro do mundo multipolar passa hoje pela paz social, senão será um caos planetário.

Daí o governo deve fazer varias leituras desta mobilização nacional e tomar medidas urgentes para atender certas reivindicações que são justas.

A participação dos jovens é a prova que a democracia brasileira ganha vitalidade. Despertada ela já estava há muitos anos, pois nossa geração derrubou a ditadura, todavia, estava faltando ativismo no exercício da cidadania. Os jovens inauguram uma nova era de tomada de consciência pelos seus direitos. Resta uma interrogação: Este movimento de contestação pode reforçar a cidadania política no Brasil? Esperamos que sim. Porém sabemos que existem grupos completamente apolíticos, outros são levados pela onda do facebook, nem sabem nada sobre a origem dos protestos. Um de meus sobrinhos colocou sua foto no Facebook com um cartaz: Pra frente Brasil! Eu lhe respondi: Por favor, não imite o slogan da ditadura, a geração de tua tia não pode suportar! Ele me respondeu que não sabia, e me pediu desculpas. Normal, infelizmente, muitos desses jovens não estudaram o período negro de nossa historia política, só agora a Comissão da Verdade foi criada…  Todavia, existem grupos de direita que há anos vem tentando mobilizar pessoas para manifestar contra os governos de Lula e de Dilma. Finalmente um espaço se abre para eles se infiltrarem. Muito deles preferem despolitizar o movimento, na tentativa que eles não radicalizem a democracia, se esses jovens politizam o movimento representam um perigo para eles e não para a esquerda.

Quanto a direita partidária, ela não tem proposta política e nem liderança, o que conta é continuar a alimentar seu ódio pelos os que ocupam o poder democraticamente eleitos pelo povo.

Acredito que a leitura do que ocorre hoje está mais ligado há uma frustração de segmentos da sociedade por mudanças mais radicais, por uma melhor definição das prioridades governamentais, do que querer o retorno da direita que faliu o Brasil. Se eles criticam, por exemplo, o governo de aceitar as imposições da FIFA, que levam a gastos públicos colossais, é porque  falta dinheiro para melhorar a qualidade dos serviços públicos. Eles não estão pedindo a anulação da copa do mundo! O país do futebol só quer o sucesso da seleção, assim como eles querem um governo que continue combatendo a corrupção, o abuso do uso do dinheiro público.

Uma coisa é certa, se quisermos um melhor funcionamento da governabilidade democrática, temos que participar mais, e, exigir muito mais de nossos políticos. Por vezes, quando elegemos pessoas do nosso campo político, oriundo de movimentos populares, a tendência é esmorecer a luta. Pensa-se que tudo estará resolvido. A experiência que o Brasil estar vivendo prova o contrário! Ser um aliado do governo na luta por um desenvolvimento com inclusão social, não quer dizer ser instrumentalizado. Uma democracia sem luta social, sem contra poder é uma democracia amorfa. Se a democracia representativa vai mal, a culpa não é só dos políticos, a política é inseparável do exercício da cidadania. Temos que reencontrar o sentido nobre da política, que permite a uma comunidade agir sobre si mesma, sem perder a visão do interesse geral.

Se ampliarmos os espaços para exercer nossa cidadania, estaremos contribuindo para a emergência de uma nova Nação não só orgulhosa de seu progresso econômico, porém consciente que uma democracia só é dinâmica, quando ela não perde a capacidade de se indignar diante das injustiças, diante do abuso do poder, quando não perde a capacidade de inovar.

O que temos que estar atentos é para a manipulação dos oportunistas de direita, que abraçaram o protesto e a causa dos jovens nesses últimos dias. As reivindicações deles não são as mesmas da maioria silenciosa e nem dos jovens que se manifestam. Eles não querem um Brasil mais solidário, com menos desigualdades, com serviços públicos de qualidade. Eles não precisam de ônibus, de transporte publico, eles andam de helicóptero ou em carro blindado. Eles não querem um Brasil sem agrotóxicos, sem OGM, sem grandes latifúndios, sem racismo, sem concentração de riquezas, sem açambarcamento dos meios de comunicação, sem corrupção, sem homofobia. Uma parte desta elite brasileira está acostumada a sonegar impostos, a fazer “maracutaias” com falsificações de notas fiscais, investimentos especulativos, e muitos depositam seus ganhos nos paraísos fiscais. Ela foi bem beneficiada com o crescimento da economia brasileira. Na certa eles querem um Brasil mais neoliberal. Daí muita vigilância nesta suspeita participação nas passeatas. A luta por um Brasil mais justo e com progresso para todos, como os mesmos direitos continua!

Felizmente vivemos hoje em democracia, e podemos ocupar os espaços para o exercício da cidadania, ao contrario da intoxicação de grupos de direita que se infiltra na rede social deFacebook, para divulgar mentiras, incitar o ódio, e, até chegar ao cumulo de dizer que o Brasil é uma ditadura. Para quem viveu a ditadura como minha geração esta é a maior ofensa! Este grupo que estar rearticulando os segmentos conservadores não lutou pela democratização do Brasil, eles até hoje são saudosista do que eles chamavam de “revolução”, o golpe militar de 64.

O momento atual é propicio para os governantes brasileiros progressistas avaliarem as causas do descontentamento e agir em conseqüência.

 

Marilza de Melo Foucher é economista, jornalista e correspondente do Correio do Brasil em Paris.

 


Idade Penal – A sociedade e as lógicas da criminalidade

Por:Suzana Varjão

“Criava-se uma geração de predadores que iria aterrorizar São Paulo. A maioria seria morta pela polícia, mas antes disso… Nossa preocupação não era só o dinheiro. Era vingança, explosão de uma revolta contida e cultivada em longos anos de cativeiro, nas mãos de sádicos carrascos torturadores” (Luiz Alberto Mendes).

O trecho acima foi extraído de Memórias de um sobrevivente, biografia de Luiz Alberto Mendes, o remanescente de uma geração de criminosos que, como registrado no citado livro-depoimento, aterrorizou a cidade de São Paulo durante décadas. E sinaliza para um contexto que a sociedade brasileira precisa conhecer, para julgar se a estratégia de redução da idade penal alcançaria o efeito desejado, de diminuir os índices de violências e criminalidades no País.

Luiz Alberto Mendes conta que fugiu de casa ainda menino, motivado pelos espancamentos diuturnos sofridos pelo pai. Em função de pequenos furtos, foi parar na Unidade de Recolhimento Provisório de Menores de São Paulo – ponto de partida de uma escalada sangrenta, pontilhada por torturas, aliciamentos e corrupção policial, de um lado; e de ataques cada vez mais brutais contra os cidadãos comuns, de outro.

Falência. É importante frisar que a citada narrativa não estabelece conexões lineares entre causas e efeitos, o que tampouco se pretende aqui. O que jorra da recomposição da trajetória do homicida confesso é a falência de um modelo repressivo baseado em violações contra a pessoa. Um modelo (mais de vingança que de justiça) operado por agentes estatais em nome da sociedade – e que se tem virado contra ela. É este o aspecto que se quer, aqui, problematizar.

O fenômeno dos adolescentes em conflito com a lei é complexo e envolve questões técnicas e éticas; sistemas e sujeitos; fatos e contextos; coletividades e subjetividades. Tratar de um só tema, dentro de um debate já recortado, como o da idade penal, acarreta risco de simplificação – que corro, mas enfrento, por se tratar de perspectiva que perpassa o imaginário social, fortalecendo proposições não condizentes com o correto enfrentamento da problemática.

Cooptação. Parto de um dos mais recorrentes argumentos utilizados pelos que acreditam que a redução da idade penal diminuiria os índices de violências praticadas por adolescentes – ou a eles associadas: a cooptação desse grupamento, pela criminalidade, em função de sua suposta impunidade.

Leia o artigo na íntegra.

Racha na Representação Brasileira no PARLASUL

A reunião da Representação Brasileira no Parlamento do MERCOSUL (Parlasul), realizada nesta terça-feira, 21/5, tinha como objetivo eleger o novo presidente da Representação, dois vice-presidentes e indicar o parlamentar que irá pleitear, pelo Brasil, a Vice-presidência do Parlamento do MERCOSUL, em Montevidéu.

Quem conduziu a reunião foi o então presidente senador Roberto Requião (PMDB-PR). A proposta de Requião era discutir ao mesmo tempo as duas indicações. O deputado Dr. Rosinha (PT-PR), apoiado por outros parlamentares, ressaltou que uma coisa era a eleição e outra a indicação ao Parlasul. Por isso, sugeriu a possibilidade de dois momentos diferenciados: um para eleição e outro para indicação.

Acatando a questão, Requião iniciou a discussão sobre a eleição do presidente da Representação Brasileira no Parlasul. Havia duas chapas: uma encabeçada pelo deputado Newton Lima (PT-SP) e a outra pelo deputado Renato Molling (PP-RS). Cada uma trazia dois vice-presidentes.

No debate, o senador Paulo Baer (PSDB-SC) questionou a inexistência, nas duas chapas, de um parlamentar da região Sul. Ponderando esta observação os que compunham as chapas abriram mão da indicação para que o senador pudesse compor uma chapa única como um dos vice-presidentes.

Para resolver a questão da Presidência foi necessário realizar uma votação. Porém, se acordou que o deputado que perdesse ficaria como um dos vice-presidentes. O deputado Newton Lima venceu o deputado Renato Molling por uma margem de apenas três votos (17 versus 14 votos). Assim, o deputado Newton Lima assumiu a presidência da Representação Brasileira no Parlasul, e os dois vice-presidentes é o deputado Renato Molling e o senador Paulo Bauer.

O senador Requião encaminhou a segunda parte da reunião, sem dar posse ao Presidente eleito, ressaltando que como a presidência da Representação ficará com um deputado, caberia então a indicação para vice no Parlasul a um senador, que era ele próprio. Houve uma série de contestações, mas o senador encerrou a reunião, sem que o deputado Newton Lima utilizasse a palavra como Presidente eleito.

O engenheiro e ex-reitor da Universidade Federal de São Carlos, deputado de primeiro mandato, Newton Lima, vai assumir como presidente em um período especial porque esta Representação será a última indicada pelo Congresso Nacional. Para 2014 está prevista a eleição direta para o Parlasul, junto com a eleição para Presidente, Deputados e Senadores. Para este mandato o Congresso indicou 37 parlamentares (20 Deputados e 17 Senadores), em 2014 serão eleitos 75 parlamentares mercosulinos.

Um dos maiores problemas para o atual Presidente será deixar para os eleitos em 2014 uma institucionalização das atribuições e poderes que os parlamentares deste mandato detêm. As competências dos parlamentares do Parlasul foram definidas por meio de Resolução do Congresso Nacional. Os eleitos em 2014 não serão mais deputados ou senadores e a atual Resolução não mais se aplicará. O Presidente Newton Lima e os parlamentares da atual Representação terão que aprovar um projeto de emenda constitucional (PEC) e disciplinar o recebimento de propostas, relatórios, pareceres que serão encaminhados para as comissões permanentes e para os Plenários das Casas Legislativas para não deixar os futuros parlamentares sem o mínimo de garantias para legislar.

Edélcio Vigna, Mestre em Ciências Políticas e doutorando em Ciências Sociais.

Boletim nº30: Criança e Adolescente no Parlamento

Publicação traz uma análise das principais preposições legislativas direcionadas à área da criança e do adolescente que estão tramitando no Congresso Nacional. O Boletim é resultado do “Seminário Agenda Propositiva para a Crianças e Adolescentes no Congresso Nacional”, que contou com a participação de cerca de trinta organizações que atuam na defesa, promoção e proteção de direitos humanos das crianças e dos adolescentes.

Veja a versão em PDF

Leitura da realidade social das Organizações de Desenvolvimento Solidário e da Cidadania ativa.

Por Marilza de Melo Foucher

Quinze dias no Rio de Janeiro foram poucos para matar saudades e visitar companheiros e companheiras que continuam teimosamente apostando que outro mundo é possível. Com eles e através deles, posso continuar minha leitura sobre a realidade política, social, cultural e ambiental do Brasil.

No mais, o Rio de Janeiro continua lindo… O Rio é uma cidade “sui-generis”, uma beleza que encanta e nos questiona. Do circuito do aeroporto para a zona sul, o visitante vai vendo as inúmeras favelas nas zonas periféricas, além de outras comunidades pobres com seus barracos que desordenadamente encobrem a beleza de sua geografia. Todavia, quem mora no Borel, na Rocinha, ou em outras grandes favelas, também usufruem desta beleza de paisagem que é o Rio de Janeiro, afinal ninguém pode ser privado ao acesso da beleza! Entretanto, seus moradores foram privados de outras coisas essenciais para que um ser humano possa ter uma vida digna. A própria palavra Favela já tem sua origem na rudeza dos solos, ela é uma pequena árvore de muitos espinhos, mas que dava belos cachos de flores brancas (Cnidosculus phyllacanthus). Segundo consulta, foram nesses lugares, de difíceis acessos, que se escondiam os escravos, em seguida, as populações pobres e migrantes, estes virão ocupar os morros mais próximos do centro da cidade.

Com o tempo, a favela vai virar sinônimo de moradia precária, de miséria, drogas e violência. Durante séculos, esses suburbanos vão viver sem qualquer infra-estrutura básica. No Rio, existe o contraste forte entre o belo de sua paisagem, a arquitetura de seus belos imóveis e a precariedade dos assentamentos, a miséria que se esconde nos seus morros favelados. Segundo fontes oficiais, cerca de 20% da sua população vivem em favelas. Todavia, embora as condições de moradia sejam consideradas bem melhores hoje em dia, e a violência assim como tráfico de drogas, venha diminuindo com a presença das UPPs, assim como o tráfico de drogas, a falta de infra-estrutura básica como esgotos sanitários, esgotos pluviais, acesso à água potável, lixo, regularização fundiária, equipamentos públicos, tais como dispensários, outras estruturas hospitalares, escolas publicas de qualidades, continuam aquém dos resultados gerais da luta contra a exclusão social nesses últimos dez anos.

Favelas. Territórios de sonhos possíveis?

O fato mais importante das conquistas sociais que vai dar um pouco mais de humanização e melhores condições de vida nas favelas é que seus moradores, já há muitos anos vêm se organizando em associações, e que muitas ONGs de desenvolvimento solidário, anteriormente financiadas com o apoio da cooperação internacional, investiram em muitas iniciativas de educação popular, alfabetização, resgate e valorização da cultura negra, projetos destinados à população jovem, organização das mulheres, organização de economia solidaria, reivindicações de direitos e tantas outras ações de solidariedade e de cidadania. Estas organizações sociais não esperaram a realização de grandes eventos esportivos, sociais ou ambientais para agir em prol das populações carentes e por um desenvolvimento territorial solidário.

Para estas organizações sociais as favelas devem ser tratadas como um território que sofreu um modo de urbanização desigual e discriminatório. Todavia, nesses territórios se pode sonhar que outro mundo é possível. Nesses territórios existem identidades, diversidade cultural e muitas histórias de vida. Não existe homogeneidade nas favelas, daí a abordagem e intervenção do desenvolvimento territorial devem ser encaradas de forma diferenciada. O perfil de seus cidadãos com relação à renda, ao consumo, ao acesso aos bens produtivos não é o mesmo, assim como, as regras e práticas de sociabilidade são distintas. Daí qualquer iniciativa governamental deve ser levada de forma participativa com os atores locais, com as Organizações de Desenvolvimento Solidário e da Cidadania. Estes atores, não podem ser transformados em simples executores de políticas públicas, eles devem ser co-partícipes de um novo modo de intervir na realidade local.

Mesmo considerando o avanço de políticas de inclusão social durante os governos de Lula e Dilma, a definição de prioridades deve levar em conta as experiências e saberes acumulados dessas organizações sociais, tendo em vista, que elas já atuam há muitos anos nesses territórios. Territórios, até em tão, considerados zonas dos não direitos.

Ações e Desafios.

A articulação entre o governo e as organizações da sociedade civil permite maior vitalidade da democracia, ao mesmo tempo, responsabiliza os atores locais no fortalecimento da pratica do exercício da cidadania. Infelizmente, o termo ONG atualmente é completamente deturpado, pois a grande mídia forjou opiniões negativas destas organizações históricas, que há mais de 40 anos atuam junto aos excluídos, tanto na zona urbana como na zona rural. Ultimamente, essas organizações de desenvolvimento e de construção da cidadania que atuam visando o interesse público são confundidas com outras associações que não possuem as mesmas características e nem têm a mesma missão. Falo das OSCIPs, que foram criadas no governo de Fernando Henrique, pela lei de nº 9.790 – 23 março de 1999. Esta lei traz a possibilidade das pessoas jurídicas (grupos de pessoas ou profissionais) de direito privado sem fins lucrativos serem qualificadas, pelo Poder Público, como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIPs. E desta forma elas podem relacionar-se por meio de parceria com o Governo, desde que os seus objetivos sociais e as normas estatutárias atendam os requisitos da lei. Essas associações, fundações que se dizem ONGs, hoje são 300.000, muitas foram criadas por grupos políticos que se beneficiam de subvenção publica, porém abusam do poder publico utilizando estes recursos para outras finalidades que não são de interesse coletivo, inclusive, muitos de seus fundadores foram acusados de enriquecimento pessoal e outros atos de corrupção caracterizados pelo desvio e uso indevido de financiamento público. Quanto às organizações históricas que sempre praticaram o desenvolvimento solidário e abriram espaços para o exercício da cidadania ativa elas eram 380 e hoje o número baixou para a metade.

O mundo associativo que se caracteriza como ONGs de desenvolvimento solidário e cidadania ativa necessita urgentemente de diretrizes e normas, que legalizem e lhes dêem segurança jurídica. É urgente modificar a legislação fiscal abrindo uma oportunidade para os brasileiros (de maior posse) de ter um aprendizado da solidariedade nacional, onde cada cidadão (ã) possa doar dinheiro para esse tipo de organizações (ODSC) a fim de garantir o investimento maior no desenvolvimento solidário e na construção de uma verdadeira cidadania. Isto contribuiria para ajudar o Brasil a construir um projeto de sociedade mais justo. Os doadores poderiam ter abatimento fiscal na declaração do imposto de renda, como existe, por exemplo, na França e em outros países europeus. Se eu dôo 100 Reais para uma organização, esta soma pode ser deduzida em 60% do imposto de renda. Além disso, posso exercer meu controle social acompanhando o andamento das atividades da organização do qual deposito confiança.

Devo acreditar que a Presidente Dilma tem confiança nessas organizações históricas e não vai continuar permitindo certos amálgamas que desacreditam suas ações junto à opinião publica. A sobrevivência destas organizações sociais é necessária, as atividades, os projetos que elas desenvolvem são compatíveis com o projeto de construção de um país sem misérias. Os dez anos de governo Lula e Dilma vêm se desenhando a nova cara do Brasil, sem duvida nenhuma, graças à ação de pressão da sociedade civil organizada.

Resgate do papel histórico.

Não podemos esquecer que essas organizações de desenvolvimento solidário participaram ativamente na elaboração da nova Constituição brasileira, elas foram propositivas, por esta razão vale à pena recorrer à memória de muitas temáticas que foram bandeiras de luta, algumas delas foram inseridas em agendas governamentais, tais como: democracia participativa, orçamento participativo nas prefeituras, conferências das cidades, fóruns sociais, reforma urbana, reforma agrária, agro-ecologia, questão de gênero, articulação da água, lixo seletivo, desenvolvimento com sustentabilidade, reconhecimento da causa indígena, das populações negras, democratização dos meios de comunicação, ética na política, sem contar com as campanhas como a da luta contra a fome e tantas outras temáticas, algumas transformadas em políticas públicas. Quantos anos de luta por um desenvolvimento brasileiro que seja compatível culturalmente, socialmente, ambientalmente!

Aos poucos, o país caminha por um mundo melhor, mas o combate continua, tendo em vista, que o Brasil ainda vive confrontado com muitos problemas: Falta e manutenção de infra estrutura básica, estradas, portos, rede de esgotos pluviais e sanitários, acesso à água potável, tratamento de águas usadas, pavimentação de ruas e construção de calçadas, extensão e renovação da rede elétrica, extensão dos meios de telecomunicação (banda larga inclusive), construção de sinalizações com acostamento nas rodovias, autopistas dentro das normas internacionais de segurança; despoluição de rios, reflorestamento de zonas  degradadas, descontaminação de solos, construção e reformas de escolas, hospitais, equipamentos hospitalares etc, etc. Existem tantas urgências para que o Brasil seja considerado um país desenvolvido, e não somente uma potência mundial econômica, que os recursos alocados pelo Estado devem ser mais bem utilizados, melhor priorizados e melhor compartilhados. Para investir num projeto global de sociedade com outra concepção de desenvolvimento, o governo federal necessita consolidar parcerias com organizações sociais comprometidas com a educação política da cidadania e capazes de elaborar projetos de forma articulada com todos os setores, dentro de uma visão integrada e solidaria do desenvolvimento territorial.

Desde 2006, as pequenas e micros empresas foram beneficiados com novas modalidades para as licitações de pequenos valores. É um grande avanço, mas seria ótimo que as   autoridades responsáveis pudessem realizar um trabalho urgente em diferentes favelas, por exemplo, no Rio de Janeiro para verificar as dificuldades e a falta de formação desses pequenos atores locais para que eles entendam a formalidade do mundo do trabalho e o funcionamento da economia formal. A informalidade permeia as relações sócio-econômicas nas favelas. Como ajudar, por exemplo, a rede de economia solidaria presente nessas favelas, a ter melhor organização? Como favorecer a economia local, se estas pequenas e micro empresas não possuem notas fiscais? Mudar a lei de licitação é uma coisa, capacitar os funcionários para entender, explicar o cumprimento da lei já é outra exigência. Talvez os editais / convites / convênios / contratos entre os governos e ONGs de desenvolvimento poderiam ter maior flexibilidade e quem sabe mais adaptado à realidade local.

Será tão difícil para o Estado equacionar este problema que já vem durando desde o primeiro mandato do governo Lula? Por que tanto tempo? Elaborar uma legislação mais especifica capaz de nortear uma legislação mais pragmática em que os termos de compromissos sejam mais bem precisos e os contratos/convênios mais flexíveis parece não ser tão complexo. Um governo que tanto enalteceu a participação popular não pode inviabilizar a participação de ODSC- Organização de Desenvolvimento Solidário e da Cidadania. Não se deve esquecer que elas foram protagonistas de uma visão integrada e solidaria do desenvolvimento e na formação da cidadania política no Brasil. Daí uma parceria estreita com o mundo associativo comprometido é necessária. A alta administração federal deve adaptar seus critérios de qualidade na gestão de logística publica. A burocracia nasceu como suporte de boa administração do Estado e não para dificultar a gestão publica.

 

Vale à pena valorizar este capital social acumulado ao longo da historia da democratização do país, por essas organizações sociais. Trata-se de um aprendizado que pode ser socializado com alguns agentes do governo que não têm a mesma formação acadêmica e política para este tipo de pratica social junto aos excluídos do progresso econômico brasileiro. Sinceramente, nada disso é de ordem do bla bla bla. Intelectual de uma eterna militante da utopia do possível (como me caracterizo) posso testemunhar sobre esta historia do mundo associativo brasileiro, pois trabalhei muitos anos na cooperação internacional. Escrevo aqui apenas como um grito de alerta.

Conclusão: autonomia crítica

As organizações sociais, que tiveram um papel relevante no processo de democratização do Brasil e que participaram de muitas conquistas sociais, vivem hoje uma crise econômica e de reconhecimento social sem precedente. Primeiro, pelo fato de o Brasil ser hoje considerado um pais rico; segundo a imagem positiva do governo Lula na luta contra a miséria e pelo seu programa de inclusão social tiveram repercussão internacional importante e mudou a imagem do Brasil. Estes dois fatores levaram os organismos da cooperação internacional a retirar sua ajuda às ONGs de desenvolvimento. Os 35 milhões que saíram da pobreza extrema estão muito longe do pleno acesso aos seus direitos e de uma atuação cidadã digna desse nome. É extraordinário o que foi feito nesses 10 anos, mas isso apenas arranhou a superfície de uma desigualdade histórica que continua a ser escandalosa.

Mas existe um terceiro fator considerado grave, é que uma grande parte da opinião publica desconhece o papel importante dessas organizações. A grande mídia moldou uma imagem negativa, ao colocar no mesmo saco as organizações de desenvolvimento solidário e cidadania com as associações e fundações que desviaram dinheiro público em beneficio próprio e não em beneficio do interesse coletivo.

Essas ONGs históricas e comprometidas com a luta contra a miséria e pela dignidade humana passaram a depender dos recursos dos governos municipais, estaduais e federal, mas não se enquadram em um marco jurídico que levem em conta suas especificidades e originalidade na forma de intervir localmente. Muitas foram obrigadas a demitir parte de seus quadros, de se desfazer do patrimônio imobiliário adquirido com a ajuda internacional. Muitas atividades e projetos foram interrompidos. Apesar do avanço na luta contra a exclusão, o território brasileiro continua convivendo com desigualdades e desequilíbrios regionais.

O governo Lula prometeu estabelecer um marco regulatório para essas entidades, mas depois de dois mandatos nada tinha sido resolvido. Agora é a vez da Presidente Dilma tentar resolver as aberrações jurídicas e dar oportunidades a esses atores de continuarem atuando junto às populações carentes e sair deste imbróglio jurídico. Como continuar uma associação não governamental, se muitas passam a ser executoras de políticas publicas?  A própria Constituição Brasileira garante a liberdade e independência das associações no artigo 5 do parágrafo XVIII. (ver constituição).

Os cidadãos que integram uma Organização de Desenvolvimento solidário e de Cidadania têm direito a usufruir ao acesso de fontes de financiamento público, e de guarda, ao mesmo tempo, sua liberdade de atuação critica, no sentido de garantir o exercício da cidadania política. Os cidadãos são guardiões do bom funcionamento democrático das instituições republicanas e estes, enquanto contribuintes pagam impostos e taxas que mantém os serviços públicos. Se certas medidas assumidas pelo governo são contraditórias à sua visão de desenvolvimento territorial solidário, estes cidadãos estão no seu direito de tecer criticas construtivas. Ser um aliado do governo na luta por um desenvolvimento com inclusão social, não quer dizer ser instrumentalizado. Uma democracia sem a vitalidade dos movimentos sociais e da sociedade civil organizada é uma democracia amorfa e seus cidadãos vão continuar elegendo deputados, senadores, governadores, prefeitos, vereadores que nunca serão dignos da casa do povo.  Governar para o povo e com o povo soará sempre como demagogia e não como principio da democracia.

A presidente Dilma que possui uma visão política dos atores sociais no Brasil, sabe o quanto é necessário, às vezes, ter contra-poderes em sociedades conservadoras, principalmente numa jovem democracia não muito acostumada com a democratização dos poderes, infelizmente, ainda existem saudosistas da ditadura no Brasil. Para fazer evoluir a sociedade e para poder avançar nas reformas estruturais que espera fazer do Brasil uma grande Nação, a ação militante na luta por outro desenvolvimento continua sendo fundamental. Assim como é necessário uma pratica maior do exercício da cidadania para consolidar a democracia social, parceira ideal para o funcionamento da democracia representativa. O governo por enquanto não tem uma maioria politicamente coerente, ela é mais fisiológica que ideológica. Por isso, também, o governo precisa de uma sociedade civil mais combativa.

Marilza de Melo Foucher, especializada em questões de desenvolvimento territorial, é doutora em economia, analista política,  escreve para o Jornal Mediapart em Paris colabora com vários sites de informações na América latina, com o Le Monde diplomático do Brasil, Outras Palavras, Correio do Brasil, Adital.

 

Um relato sobre o Fórum Social Mundial 2013 na Tunísia

O Fórum Social Mundial 2013 aconteceu na última semana de março na Tunísia, dois anos depois que a Primavera Árabe começou nesse pequeno país do norte da África, aproximando o movimento global anti-capitalista das lutas revolucionárias da região. Apesar das apreensões com o clima político instável pouco mais de um mês depois do assassinato do líder do Movimento dos Patriotas Democratas e da coligação Frente Popular, Chokri Belaïd, e em um país ainda em processo de profunda transformação, do ponto de vista organizativo o FSM foi exitoso, com algumas poucas dificuldades – que perto dos problemas de infra-estrutura de Dakar ou Belém não merecem menção.

Internet sem fio livre em todo o campus, restaurante universitário bom e barato, ônibus barato levando as pessoas do Fórum até o centro… quem foi às edições de Porto Alegre nunca viu algo assim.

Tunis surpreende e não cabe em lugares-comuns. Mulheres vestidas de maneira ocidentalizada convivem lado a lado com mulheres cobertas por véus negros. Um sistema de tram um pouco depredado, mas barato e eficiente, cobre toda a cidade de 2 milhões e meio de habitantes. Táxis em abundância podem resultar em uma conversa simpática sobre a situação política do país e os jogadores de futebol brasileiros ou em uma disputa desagradável pelo preço. Na minha condição de mulher claramente estrangeira, passei por situações desconfortáveis em momentos que estava desacompanhada fora do campus, mas na maioria das vezes contei com a gentileza local e a vontade de todas e todos em falar sobre o processo revolucionário em curso.

Em conversas assim, aprendemos que a queda de Ben Ali não representou a tomada do poder pelas forças revolucionárias, mas sim a transição de uma ditadura militar para uma ditadura civil de forte cunho islâmico, em muitos sentidos mais agressiva que a anterior e que tem gerado apreensões quanto à situação das mulheres do país. Mas as pessoas vivem em um misto de medo e de esperança de mudança. As “músicas da revolução” – referentes da mística da Primavera Árabe – foram cantadas catarticamente  pela multidão presente na Assembleia dos Movimentos Sociais no final do Fórum. Também em festas se dança e canta ao som destas. A principal praça da cidade teve seu nome mudado para 14 janvier 2011, data marco do processo atual. A revolução não é algo que já foi, é algo que está sendo, segue viva.

As lutas dos povos da região como a do povo Palestino contra a ocupação israelense criminosa e a solidariedade de todas e todos com xs palestinxs foram constantemente expressas. O embate entre os povos do Saara Ocidental que lutam pela autonomia em relação ao resto do Marrocos e xs nacionalistas marroquinos gerou fortes tensões enquanto se leía a declaração final da Assembleia dos movimentos sociais. Conflitos entre os apoiadores do ditador sírio Assad e dos apoiadores das forças de resistência também geraram situações de violência no campus.

Se por um lado sentimos falta de maior presença dos povos da região em algumas atividades, em outros espaços eles estiveram absolutamente no centro: importante mencionar a Assembleia das mulheres que abriu o Fórum expressando a força das mulheres da região e seu papel na Primavera Árabe.

Inaceitável foi o fato da organização local exigir crachás para entrada no campus, elitizando o acesso da população local, o que felizmente não conteve a entrada das pessoas. No entanto, isso gerou acusações por parte de alguns locais – com especial apoio dos “ocupa” e “indignados” presentes – de que este seria um “Forum du capital”.  Isso, associado ao fato já recorrente da presença ostensiva de algumas empresas transnacionais no Fórum, impõem a necessidade urgente de reafirmar princípios claros, rejeitando a mercantilização do espaço que deve ser acima de tudo de autonomia dos movimentos sociais, território livre de transnacionais, e com participação não mediada monetariamente. O Fórum não deixa de ser um espaço contraditório e em disputa, embora ainda centralmente um espaço de construção coletiva anti-sistêmica.

Este foi também o primeiro FSM com presença dos movimentos “ocupa” europeus e americanos (incluindo os “indignados” espanhóis), que emergiram no contexto da crise com forte referencia nas lutas árabes, especialmente na praça Tahir egípcia. Com um forte enfoque em metodologias “horizontais”, estes “novos” movimentos fizeram assembleias ao ar livre para discutir o Fórum. Em diversas atividades do Fórum, alguns “ocupa” interviram com críticas às metodologias “engessadas” das sessões dos movimentos “tradicionais” que não conduziriam a fóruns abertos de construção coletiva. Muitos desafios que estes “novos” movimentos propõem devem gerar efetiva reflexão e nos fazer repensar criticamente como nos organizamos. Por outro lado, os “ocupa” têm sido pouco abertos a reconhecer a história de lutas dos movimentos organizados que os precederam e que continuam sendo as plataformas das lutas mais expressivas, ao menos no Sul global. Com uma certa obsessão pela “horizontalidade” – que podem gerar discussões longas até se alcançar consenso sobre as questões organizativas mais simples, desmobilizando a energia dos participantes – os “ocupa” encontram limites claros na falta de vontade de abrir mão de expressar sempre posições políticas individuais em prol de bandeiras coletivas. De certa forma, representam uma reemergência do anarquismo no Norte global e ainda se mantêm muito restrito às classes médias que têm acesso às novas tecnologias, recurso fundamental em suas lutas. Neste sentido, os movimentos “tradicionais” organizados que resistem por anos têm muito a ensinar a esses movimentos, que têm se diluído em apenas pouco mais de dois anos de vida. Acima de tudo, é necessário um aprendizado mútuo e a construção de fortes alianças, afinal para construir alternativas necessitamos das diversidades das lutas anti-capitalistas existentes no mundo.

O Fórum Social Mundial 2013 em Tunis foi um êxito por expressar tão enfaticamente essas reflexões e por fortalecer os laços entre os movimentos da região e os movimentos mais “globalizados”. E isso em um contexto onde se debate mais do que nunca o futuro (ou não) do Fórum é ainda mais relevante. Ainda temos que ser mais efetivos em partir do diálogo para ações e mobilizações comuns, apesar das tentativas da Assembleia dos Movimentos Sociais nesse sentido. Mas arrisco a dizer que quem foi a Tunis partiu nostálgicx com a sensação de ter participado de um momento histórico na construção de convergências de lutas. Vive la Tunisie!!

Diana Orrico, da Rebrip

De um lado, a esperança; do outro lado, o medo

por Immanuel Wallerstein
do Outras Palavras

O Fórum Social Mundial (FSM), que acaba de encerrar sua edição atualmente bienal, aconteceu este ano em Túnis. Foi vastamente ignorado pela imprensa mundial mainstream. Muitos de seus participantes eram céticos que falavam de sua irrelevância, algo que acontece a cada encontro desde sua segunda edição, em 2002. Foi marcado por debates sobre sua própria estrutura e esteve repleto de polêmicas sobre qual a estratégia política correta para o mundo da esquerda. Apesar disso, foi um enorme sucesso.

Uma maneira de medir seu êxito é relembrar o que ocorreu no último dia do último FSM, em Dakar, em 2011. Neste dia, Hosni Mubarak foi forçado a abandonar a presidência do Egito. Todos no Fórum aplaudiram. Mas muitos disseram que esse ato em si provava a irrelevância do encontro. Algum dos revolucionários na Tunísia ou no Egito buscou inspiração no evento? Eles ao menos tinha ouvido falar sobre o Fórum Social Mundial?

Mas, dois anos depois, o Fórum reuniu-se em Túnis, a convite dos próprios grupos que iniciaram a revolução na Tunísia. Parecem ter considerado que sediá-lo em sua capital ampliaria a força de sua luta para preservar as conquistas da revolução, contra as forças que, acreditam, estão agindo para domá-la, e levar ao poder novamente um governo opressivo e anti-secular.

O slogan de longa data do FSM é “outro mundo é possível”. Os tunisianos insistiram em adicionar um novo, exibido com igual proeminência no encontro. A palavra era “Dignidade” — nos crachás de todos, em sete línguas. De muitas maneiras, o slogan adicional enfatiza o elemento essencial que une as organizações e indivíduos presentes no Fórum — a busca por igualdade verdadeira, que respeita e aumenta a dignidade de todos, em todos os lugares.

Não significa que houve total acordo no Fórum. Longe disso! Uma maneira de analisar as diferenças é observá-las como reflexo do contraste entre a ênfase na esperança e a ênfase no medo. Em sua composição, o FSM tem sido sempre uma grande e inclusiva arena de participantes, que situam-se desde a extrema esquerda até o centro-esquerda. Para alguns, isso tem sido sua força, permitindo educação recíproca entre pessoas e organizações ligadas diversas tendências, ou com foco em distintos temas — uma educação mútua que levaria a médio prazo a unir ações, para transformar nosso sistema capitalista existente. Para outros, isso parece ser o caminho da cooptação por aqueles que desejam meramente atenuar as desigualdades existentes, sem fazer nenhuma mudança fundamental. Esperança versus medo.

Outra fonte de constante discussão foi o papel dos partidos políticos de esquerda no processo de transformação. Para alguns, não é possível fazer mudanças significativas, tanto em curto quanto em médio prazos, sem partidos de esquerda no poder. E uma vez no poder, essas pessoas sentem que é essencial mantê-los lá. Outros resistem a essa ideia. Sentem que, mesmo se ajudarem tais partidos a chegarem ao poder, os movimentos sociais devem permanecer de fora, como controle crítico destes partidos, que com a prática quase certamente descumprirão suas promeessas. Mais uma vez, esperança versus medo.

A atitude a adotar diante dos novos países emergentes — os chamados BRICS e outros — é outra fonte de divisão. Para alguns, os BRICS representam uma importante contra-força ao norte clássico — Estados Unidos, Europa Ocidental e Japão. Para outros, eles levantam suspeitas sobre um novo grupo de poderes imperialistas. O papel da China na Ásia, África e América Latina hoje é particularmente controverso. Esperança versus medo.

O estado concreto da esquerda mundial é outra fonte de debate interno. Para alguns, o FSM tem sido bom na negação — oposição ao imperialismo e neoliberalismo. Mas está, lamentavelmente, atrasado na formulação de alternativas específicas. Essas pessoas clamam pelo desenvolvimento de objetivos programáticos concretos para a esquerda mundial. Mas para outros, a tentativa de fazê-lo serviria primariamente para dividir e enfraquecer as forças unidas no Fórum. Esperança versus medo.

Outra discussão constante é sobre o que tem sido chamada de “descolonização” do FSM. Para alguns, ele está exageradamente, desde seu início, em mãos de gente do mundo pan-Europeu: de homens, pessoas mais velhas, das chamadas populações privilegiadas do mundo. O Fórum tem, como organização, buscado estender-se além de sua base inicial — espalhando-se geograficamente, procurando fazer suas estruturas refletirem cada vez mais demandas a partir da base. Isso tem sido um esforço contínuo, e ao comparar cada edição sucessiva do Fórum, percebe-se que ele tem se tornando, neste aspecto, cada vez mais inclusivo. A presença em Túnis de todos os tipos de “novas” organizações — Occupy, Indignados etc — é prova disso. Para outros, este objetivo está longe de ser alcançado, a ponto de produzir dúvidas sobre se há uma real intenção de cumprir este objetivo. Esperança versus medo.

O FSM fundou um espaço de resistência. Doze anos depois, permanece o único lugar onde todas partes destes debates reúnem-se para continuar a discussão. Existem pessoas que estão cansadas dos mesmos debates contínuos? Sim, é claro. Mas também parece sempre haver novas pessoas e grupos chegando, que buscam participar e contribuir para a construção de um mundo de esquerda eficaz. O Fórum Social Mundial está vivo e está bem.

http://www.canalibase.org.br/fsm-entre-a-esperanca-e-o-medo/

Conselhos e conferências: como ocorre o monitoramento de suas propostas?

Confira o PDF.

Parlamento e Racismo na Mídia

O Deboche, a Palhaçada e o Jogo de Interesses – a Câmara dos Deputados e os Direitos Humanos: uma análise crítica

Publicado originalmente em ABGLT.

Testemunhei pessoalmente o troca-troca na Câmara dos Deputados na semana passada (6 e 7 de março) para eleger o presidente e indicar integrantes da Comissão de Direitos Humanos e Minorias, criada há 18 anos para institucionalizar a luta pela igualdade e contra a discriminação. Foi escandaloso, vergonhoso e inaceitável. Vi com meus próprios olhos a manipulação e o jogo de interesses. Vi o machismo e autoritarismo desrespeitosos do líder do PSC para com a deputada Antônia Lúcia (PSC/AC). Tive a infelicidade de ouvir Jair Bolsanaro (PP/RJ) falar que foi o melhor presente de aniversário e natal que já teve de todos os tempos.

Oito deputados do mesmo partido numa só Comissão não é coincidência, é trampa, e a maioria é ligada ao fundamentalismo religioso evangélico. Ao total, agora 13 dos 18 titulares da Comissão são pastores. Estuprar a proporcionalidade da representação partidária na Comissão está equivocado e fere o Regimento Interno da Câmara: as Comissões devem ser plurais.

Com essa eleição, a Câmara dos Deputados rasgou a Constituição Federal e a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Tornou-se, mais uma vez, uma vergonha para o Brasil e para o mundo. O Parlamento Brasileiro retornou à idade das trevas. É preciso que os(as) parlamentares relembrem e ajam de acordo com o princípio (e a lei) de que o Brasil é um Estado Laico. Com a ascendência do fundamentalismo religioso no Congresso Nacional, assiste-se a um espetáculo que relembra o surgimento da tomada do poder pelos nazistas na Alemanha dos anos 1930.

O episódio foi especialmente vergonhoso pela conivência do PMDB, PSDB, PR, PTB e PP em cederem vagas na Comissão para o PSC, além da incabível indicação de Jair Bolsonaro (PP/RJ) para integrá-la, bem como o PSB, o PSD e o PV indicando pastores em detrimento de pessoas historicamente atuantes no campo dos direitos humanos.

As origens de alguns desses partidos simbolizam a luta pela democracia e o rechaço ao autoritarismo no Brasil da Abertura. Quem diria?! Das 20 Comissões Permanentes da Câmara dos Deputados, a de Direitos Humanos foi a penúltima a ser escolhida, mostrando uma falta de prioridade generalizada.

Não é de se surpreender a estimativa de que uma pessoa é assassinada a cada 10 minutos no Brasil (Instituto Sangari, 2011) e que em 2011, segundo o UNODC, o país estava em primeiro lugar no ranking do mundo neste quesito. O exemplo vem de cima, o Congresso Nacional não está preocupado com os direitos humanos e as consequências que este descaso traz.

Decepcionou também a falta de prioridade dada pelo PT e pelo PCdoB. Uma pergunta que ficou no ar é por que o PT priorizou a Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional em detrimento da Comissão de Direitos Humanos e Minorias?

Repetiu-se mais uma vez a imperdoável negociação dos direitos humanos em troca de interesses políticos e do projeto de manutenção do poder, o que – no caso da população LGBT, negra, mulheres, indígenas – tem se tornado corriqueiro na atual legislatura. Estamos cansados(as) de ser moeda de troca.

É uma aberração eleger para presidir a Comissão de Direitos Humanos e Minorias uma pessoa que é objeto de inquérito no Supremo Tribunal Federal, acusada de estelionato, racismo e homofobia.

Não faltam exemplos nas redes sociais comprovando algumas dessas alegações contra o Pastor Marco Feliciano (PSC/SP), eleito presidente da Comissão em 07 de março:

• Em 30 de março de 2011 afirmou em sua página no Twitter, que os africanos são descendentes de um “ancestral amaldiçoado por Noé” e que “sobre o continente africano repousa a maldição do paganismo, ocultismo, misérias, doenças oriundas de lá: ebola, Aids, fome…”;

• no seguinte link http://portugues.christianpost.com/news/marco-feliciano-denuncia-o-ativismo-gay-conexoes-com-hitler-e-a-aids-video-12838/
consta vídeo no qual afirmou que “A Aids é uma doença gay”; que existe um ativismo gay promovido por satanás que está “infiltrado” no governo brasileiro; que “enquanto crentes não saem para evangelizar… satanás levantou o seu ativismo [das pessoas LGBT] neste país. Ação de satanás contra a família brasileira”; que “O problema é o ativismo gay, o problema são pessoas que têm na sua cabeça o engendramento de satanás”; “São homens e mulheres que usam dos mesmos mecanismos que Stanley usou no seu comunismo nazista, usam a mesma linguagem de Hitler… uma mentira contada várias vezes com muita ênfase se torna verdade”.

Da mesma forma, no caso da censura presidencial ao vídeo da campanha do Ministério da Saúde de combate a DST/AIDS no carnaval de 2012, com personagens gays, o deputado Marco Feliciano não só comemorou a retirada do vídeo da campanha com o casal gay do ar como também creditou à Frente Evangélica o “feito”. Em seu Twitter, o deputado postou o link de uma matéria sobre a censura do material e sentenciou: “Pressão nossa”, numa clara demonstração da interferência religiosa na laicidade do Estado.

Em outra ocasião afirmou que “a podridão dos sentimentos dos homoafetivos leva ao ódio, ao crime e à rejeição”.

Pastor Marco Feliciano, que diz não ser homofóbico, também é autor das seguintes proposições, entre outras, que visam a negar a igualdade de direitos à população LGBT:

Projeto de Decreto Legislativo 637/2012 – Ementa: Susta a aplicação da decisão do Supremo Tribunal Federal proferida na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, que reconhece como entidade familiar a união entre pessoas do mesmo sexo.

Projeto de Decreto Legislativo 521 e 495/2011 – Ementa: convoca plebiscito sobre o reconhecimento legal da união homossexual como entidade familiar.

Também apoia o Projeto de Decreto Legislativo 234/2011 – Ementa: Susta a aplicação do Parágrafo Único do Artigo 3º e Artigo 4º da Resolução do Conselho Federal de Psicologia nº 1, de 23 de março de 1999, que estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação à questão da orientação sexual.

A cruzada anti-LGBT promovida por Feliciano e outros fundamentalistas no Parlamento Brasileiro vai contra a maré internacional, tanto dos países vizinhos como Argentina e Uruguai, quanto a França e a Inglaterra, todos se esforçando para garantir o alcance da plena igualdade de direitos pelas pessoas LGBT. No nosso continente também o presidente Obama não tem medo de expressar essa convicção publicamente, como fez no discurso da posse em janeiro deste ano: “Nossa jornada não será completa até que nossos irmãos e irmãs LGBT sejam tratados como qualquer outro perante a lei – pois se somos verdadeiramente criados iguais, então certamente o amor que dedicamos um ao outro deve ser igual também.” Não queremos privilégios, queremos tão somente direitos iguais, nem menos, nem mais.

Assim com Feliciano, os correligionários eleitos na mesma ocasião na semana passada também atuam na contramão da plenitude e universalidade dos direitos humanos em outras questões também, como as terras indígenas, os direitos sexuais e os direitos reprodutivos das mulheres, as políticas afirmativas de acesso da população negra às universidades, e assim por diante. Com sua nova composição, como bem disse a deputada Luiza Erundina (PSB/SP) “esta Comissão não é mais de direitos humanos”.

Entendemos que o fundamentalismo e a intolerância religiosos manifestados pelo Pastor Marco Feliciano e seus asseclas não são representativos da maioria das pessoas evangélicas e somos defensores intransigentes da liberdade de opinião e crença, desde que não se tornem apologia de preconceitos, discriminação, violência e crimes, como o racismo e a homofobia.

Que a Câmara prime pelo bom senso e que realize uma nova eleição da Comissão de Direitos Humanos e Minorias, uma vez que a maneira como a eleição foi realizada a portas fechadas no dia 7 de março de 2013 contrariou o artigo 48 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados. Isto faz lembrar os idos de 1964.

Perdemos uma batalha, mas não perdemos a guerra. Todo apoio à criação da Frente Parlamentar dos Direitos Humanos e nossos agradecimentos pelos esforços expendidos pelos/as seguintes parlamentares, entre outros(as), na tentativa de reverter a desastrosa eleição: Janete Pietá (PT/SP), Domingos Dutra (PT/MA), Jean Wyllys (PSOL/RJ), Érika Kokay (PT/DF), Ivan Valente (PSOL/SP), Chico Alencar (PSOL/RJ), Padre Ton (PT/RO), Nilmário Miranda (PT/MG), Luiza Erundina (PSB/SP), Dr. Rosinha (PT/PR), Janete Capiberibe (PSB/AP), Jandira Feghali (PCdoB/RJ), Luiz Couto (PT/PB), Paulão (PT/AL) e Arnaldo Jordy (PPS/PA).

Que o ministro Marco Aurélio do Supremo Tribunal Federal conclua a análise do inquérito sobre o Pastor Marco Feliciano e que seja realizado o julgamento o mais brevemente possível.

No sábado, 9 de março de 2013, em todo o Brasil milhares pessoas que ficaram revoltadas com a imoralidade da eleição da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados saíram às ruas para protestar e exigir a correção deste erro. Em Curitiba as palavras de ordem incluíam: “Nem podridão, nem maldição, queremos igualdade na nação.” “Pelos direitos humanos, fora Feliciano”.

O paralelo com as manifestações Fora Collor ficou evidente. Agora tem-se o movimento Fora Feliciano. Que continue havendo protestos até que sejam reinstaladas a democracia e a ética na Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados. Que as organizações de classe, sindicatos e todas as pessoas e instituições ligadas à promoção e defesa dos direitos humanos se juntem às manifestações de repúdio ao acontecido e reforcem a mobilização em prol da anulação dessa eleição indigna.

Não aceitamos e não acataremos este estupro coletivo da Comissão de Direitos Humanos. De forma que está, ela está acabada. Não existe mais. Se continuar assim, sugerimos que os partidos aliados dos direitos humanos não indiquem membros para esta Comissão.

A luta tem que continuar:

“Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor do nosso jardim.
E não dizemos nada.

Na segunda noite, já não se escondem;
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.

Até que um dia,
o mais frágil deles,
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.”

A vida de uma mulher equivale a uma lata de manteiga?

Em 2006, o noticiário divulgou o julgamento de uma jovem de 19 anos, empregada doméstica, por ter tentado roubar um pote de manteiga num comércio em São Paulo. O roubo foi evitado pelo dono do estabelecimento. A jovem foi condenada a 4 anos de prisão, em regime semi-aberto.
Em fevereiro de 2008, Antonio Francisco Araújo da Silva cometeu um grave crime no interior do Ceará, na cidade de Ubajara. Espancou todo o corpo e deu marteladas na cabeça de Francisca das Chagas Oliveira (conhecida como Fran), mulher com quem era casado. Fran, depois de muito machucada, inclusive com afundamento da caixa craniana, desmaiou em meio a tamanha agressividade. O desmaio fez o agressor acreditar que ela havia morrido e por isso ele parou com seu ataque de fúria. Fran sobreviveu, mas em decorrência desse crime brutal, até hoje tem seqüelas que alteraram radicalmente a sua vida: toma medicamentos, vive submetida a tratamento psicológico, perdeu 50% da audição e sofre com dores no braço direito, entre outras. A dor e o transtorno na família de Fran também não podem ser esquecidos.

Diante da impossibilidade de apagar esse crime na história de sua vida, ao longo desses 5 anos, familiares e amigas/os da Fran, movimentos feministas – em especial o Movimento Ibiapabano de Mulheres – MIM, vem clamando por justiça, na tentativa desse crime não ficar impune. Esse sentimento foi alimentado ainda mais pelo fato do acusado não ter ficado preso um dia sequer pelo crime cometido.
Ontem, 27/02, finalmente Antonio Silva foi julgado no Fórum Clóvis Bevilaqua, em Fortaleza. Ao final do julgamento, veio a sentença: 4 anos de condenação em regime aberto. O argumento absurdo de que o agressor não tem antecedentes criminais, funcionou mais uma vez para abrandar a pena.

A condenação do Antonio Francisco Araujo da Silva foi mais amena do que a da jovem mulher que tentou roubar uma lata de manteiga, alegadamente para ajudar aliviar a fome do seu filho. Isso nos faz concluir que a vida de uma mulher vale menos do que uma lata de manteiga. Como pode haver uma mesma punição para dois casos tão díspares, quando o primeiro relaciona-se com a possível violação de uma mercadoria e o outro caso, tem relação com a violação efetiva da vida de uma mulher?


Enquanto ainda estamos inconformadas com a sentença, permanecem em nós os sentimentos ruins provocado durante o julgamento, ao rememorar os fatos da violência e tocar novamente nas feridas. Tudo isso diante do agressor, frio, calculista. Há quem o classifique como “monstro”, mas queremos considerá-lo na sua condição humana e por isso mesmo, tem a consciência de que a sua presença no mundo tem uma dimensão ética, que o torna capaz de tomar decisões, de fazer escolhas, de prever as conseqüências dos seus atos, de viver em relação com suas/seus semelhantes.
Não, ele não é monstro! É um homem, adulto, machista, que certamente aprendeu a acreditar ser o dono da vida das mulheres com quem se relaciona, que usa da força e da violência contra as mulheres para impor suas vontades e interesses, que estabelece uma relação desigual com uma mulher e se acha no direito de maltratá-la, de espancá-la e de tentar tirar sua vida covardemente, que usa a violência como recurso para resolução de conflitos. Temos que reconhecer que esse comportamento é tipicamente humano. Somente o considerando humano, é que podemos querer que ele assuma a conseqüência dos seus atos, que ele seja punido por ter cometido um grave crime de violência contra a mulher, que podemos pressionar a justiça para retirar do criminoso o direito de ir e vir livremente. Mas se um crime desta gravidade não é devidamente punido, fica um péssimo exemplo para outros homens que são ou que poderão ser violentos com as mulheres que estão em volta deles.

E o que tudo isso tem a ver com cada uma/um de nós? Qual a nossa responsabilidade em desconstruir as bases de uma sociedade marcadamente machista? Quando ousaremos educar nossas crianças para a igualdade e o respeito entre mulheres e homens? Que mudanças no cotidiano podemos fazer para que outros Antônios não sejam formados e outras Franciscas não sejam vítimas de violência sexista? Quando teremos a ousadia de semear outros valores para nossos meninos em formação? Quando deixaremos de presentear nossos filhos com revólveres e espadas de brinquedo, para que eles aprendam desde cedo a exercitar a violência? Quando exigiremos que a justiça brasileira não amenize os crimes de violência contra as mulheres, sob o pífio argumento de que o homem não tem antecedentes criminais? Até quando a violência contra as mulheres?

A violência sofrida pela Fran nos enche de indignação! E nossa indignação é porque esta sentença deixa em nós o sabor de impunidade; porque certamente este homem não cumprirá nem metade desta pena; porque ele permanecerá solto representando uma ameaça à vida de Fran, de sua família e também de outras mulheres que se aproximarem dele; porque a justiça é cega para os crimes cometidos contra as mulheres; porque esse crime não é isolado, mas engrossa as estatísticas da marca de 1 bilhão de mulheres que sofre com a violência em todo o mundo.

Mas esta indignação, aliada ao desejo de justiça, também nos mobiliza. Em nome delas continuaremos a ir pras ruas, a levantar nossas bandeiras, a lutar pelo fim da violência contra as mulheres, a tocar tambores denunciando as opressões e, sobretudo, a continuar lutando pela defesa, efetivação e ampliação dos direitos das mulheres.
Enquanto houver injustiça, sempre haverá luta!!!

Francisca Sena – militante do Instituto Negra do Ceará e do Fórum Cearense de Mulheres


1ª série “Orçamento Socioambiental”

Veja o PDF aqui

Que tipo de Papa? As tensões internas da Igreja atual

Não me proponho apresentar uma balanço do pontificado de Bento XVI, coisa que foi feito com competência por outros. Para os leitores talvez seja mais interessante conhecer melhor uma tensão sempre viva dentro da Igreja e que marca o perfil de cada Papa. A questão central é esta: qual a posição e a missão da Igreja no mundo?

Antecipamos dizendo que uma concepção equilibrada deve assentar-se sobre duas pilastras fundamentais: o Reino e o mundo. O Reino é a mensagem central de Jesus, sua utopia de uma revolução absoluta que reconcilia a criação consigo mesma e com Deus. O mundo é o lugar onde a Igreja realiza seu serviço ao Reino e onde ela mesma se constrói. Se pensarmos  a Igreja demasiadamente ligada ao Reino, corre-se o risco de espiritualização e de idealismo. Se demasiadamente próxima do mudo, incorre-se na tentação da mundanização e  da politização. Importa saber articular Reino-Mundo-Igreja. Ela pertence ao Reino e também ao mundo. Possui uma dimensão histórica com suas contradições e outra transcendente.

Como viver esta tensão dentro do mundo e da história? Apresentam-se dois modelos diferentes e, por vezes, conflitantes: o do testemunho e o do diálogo.

O modelo do testemunho afirma com convicção: temos o depósito da fé, dentro do qual estão todas as verdades necessárias para a salvação; temos o sacramentos que comunicam graça; temos uma moral bem definida; temos a certeza de que a Igreja Católica é a Igreja de Cristo, a única verdadeira; temos o Papa que goza de infalibilidade em questões de fé e moral; temos uma hierarquia que governa o povo fiel; e temos a promessa de assistência permanente do Espírito Santo. Isto tem que ser testemunhado face a um mundo que não sabe para onde vai e que por si mesmo jamais alcançará a salvação. Ele terá que passar pela mediação da Igreja, sem a qual não há salvação.

Os cristãos deste modelo, desde Papas até os simples fiéis, se sentem imbuídos de uma missão salvadora única. Nisso são fundamentalistas e pouco dados ao diálogo. Para que dialogar? Já temos tudo. O diálogo é para facilitar a conversão e é um gesto de civilidade.

O modelo do diálogo parte de outros pressupostos: O Reino é maior que a Igreja e conhece também uma realização secular, sempre onde há verdade, amor e justiça; o Cristo ressuscitado possui dimensões cósmicas e empurra a evolução para um fim bom; o Espírito está sempre presente na história e nas pessoas do bem; Ele chega antes do missionário, pois estava nos povos na forma de solidariedade, amor e compaixão. Deus nunca abandonou os seus e a todos oferece chance de salvação, pois os tirou de seu coração para um dia viverem felizes no Reino dos libertos. A missão da Igreja é ser sinal desta história de Deus dentro da história humana e também um instrumento de sua implementação junto com outros caminhos espirituais. Se a realidade tanto religiosa quanto secular está empapada de Deus devemos todos dialogar: trocar, aprender uns dos outros e tornar a caminhada humana rumo à promessa feliz, mais fácil e mais segura.

O primeiro modelo do testemunho é da Igreja da tradição, que promoveu as missões na África, na Ásia e na América latina, sendo até cúmplice em nome do testemunho da dizimação e dominação de muitos povos originários, africanos e asiáticos. Era o modelo do Papa João Paulo II que corria o mundo, empunhando a cruz como testemunho de que ai vinha a salvação. Era o modelo, mais radicalizado ainda, de Bento XVI que negou o título de “Igreja” às igrejas evangélicas, ofendendo-as duramente; atacou diretamente a modernidade pois a via negativamente como relativista e secularista. Logicamente não lhe negou todos os valores mas via neles como fonte a fé cristã. Reduziu a Igreja a uma ilha isolada ou a uma fortaleza, cercada de inimigos por todos os lados contra os quais importa se defender.

O modelo do diálogo é do Concílio Vaticano II, de Paulo VI e  de Medellin e de Puebla na América Latina. Viam o cristianismo não como um depósito, sistema fechado com o risco de ficar fossilizado, mas como uma fonte de águas vivas e cristalinas que podem ser canalizadas por muitos condutos culturais, um lugar de  aprendizado mútuo porque todos são portadores do Espírito Criador e  da essência do  sonho de Jesus.

O primeiro modelo, do testemunho, assustou a muitos cristãos que se sentiam infantilizados e desvalorizados em seus saberes profissionais; não sentiam mais a Igreja como um lar espiritual e, desconsolados, se afastavam da instituição mas não do Cristianismo como valor e utopia generosa de Jesus.

O segundo modelo, do diálogo, aproximou a muitos pois se sentiam em casa, ajudando a construir uma Igreja-aprendiz e aberta ao diálogo com todos. O efeito era o sentimento de liberdade e de criatividade. Assim vale a pena ser cristão.

Esse modelo do diálogo se faz urgente caso a instituição-Igreja quiser sair da crise em que se meteu e que atingiu seu ponto de honra: a moralidade (os pedófilos), a espiritualidade,  a falta de transparencia (roubo de documentos secretos e outros problemas graves  no Banco do Vaticano), e a perda de fieis, sobretudo entre a juventude.

Devemos discernir com inteligência o que atualmente melhor serve à mensagem cristã  no interior de uma crise ecológica e social  de gravíssimas consequências. O problema central do mundo não é a Igreja (cada vez mais européia e branca)mas o  futuro da Mãe Terra, da vida e da nossa civilização. Como a Igreja ajuda nessa travessia? Só dialogando e somando forças com todos.

 

 

Leonardo Boff é autor de Igreja: carisma e poder, livro ajuizado pelo então Cardeal Joseph Ratzinger.

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