Sexo em troca de comida, violência contra crianças indígenas

 

Foto: Marcello Casal Jr | Agência Brasil

O estupro é uma das violências mais bárbaras que a humanidade é capaz de cometer contra si mesma.

A violência sexual tem uma direção: dos mais fortes e poderosos para as pessoas em condições fragilizadas ou subalternizadas. Inclui-se nessa lógica a força física, idade, cor da pele, etnia, desigualdades econômicas, gênero, sexualidade, questões culturais e morais. Cada aspecto desses, e tantos outros, implica a configuração de assimetrias e opressões que dão suporte para a ocorrência da violência sexual. Com o acúmulo dessas dimensões, o estupro de crianças é especialmente grave e produz efeitos irreparáveis, marcando vidas inteiras de forma irreversível, quando não a morte.

Com a licença do povo Yanomami, tomemos a sua dor para pensar sobre todas as infâncias brasileiras. Em abril de 2022, o estupro e a morte de uma menina Yanomami foram amplamente noticiados. Essa não foi a primeira vez que uma criança indígena foi violada; aliás, desde que  Brasil é Brasil, a violência sexual se faz presente. O contato entre os colonizadores europeus e os povos originários já sinalizava o trágico destino de mulheres indígenas, violência essa que se estendeu mais tarde às escravizadas, aquelas que foram arrancadas de suas terras para serem exploradas pelos que aqui chegaram. Embora protegidas por privilégios, as mulheres brancas também não foram poupadas.

Ao longo da história, são incontáveis os casos de meninas indígenas sequestradas de suas comunidades para casar e servir aos seus agressores, assim como os de homens brancos usufruindo à força de corpos de meninas e mulheres negras. Muitas crianças nasceram desses estupros dando início a uma miscigenação que foi tratada, por muito tempo, como fruto da cordialidade brasileira, discurso que camuflou um mundo de perversidades.

A violência sexual não vem sozinha. Está sempre associada a muitas outras agressões e violações de direitos, mas na sua base podemos dizer que a desumanização é condição para que a bestialidade se consolide. Os garimpeiros são homens, né? Eles vão atrás de riqueza, e isso gera muitos conflitos. Eles não respeitam as mulheres. As mulheres dentro dos garimpos estão na prostituição, estão ali fazendo o serviço que eles querem. Não há respeito porque eles veem as mulheres como um objeto que eles têm ali dentro e que serve a eles” explica Telma Taurepang, coordenadora geral da União das Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira (UMIAB).[1]

O garimpo ilegal, geralmente associado a facções criminosas, avança rapidamente sobre o território Yanomami. Além de degradar o ambiente com desmatamento e contaminação do solo e das águas com mercúrio trazendo seríssimas agravos à saúde, favorece a ocorrência de estupros e da exploração sexual de crianças. Estabelece dinâmicas destruidoras nas comunidades. Estudos e reportagens mostram a estreita relação entre garimpo ilegal e violência.

O relatório da Hutukara Associação Yanomami (2021) denuncia a barganha que os garimpeiros fazem com a comida: “Após os Yanomami solicitarem comida, os garimpeiros rebatem sempre. (…) ‘Vocês não peçam nossa comida à toa! É evidente que você não trouxe sua filha! Somente depois de deitar com tua filha eu irei te dar comida!’”. Na percepção da maioria das mulheres indígenas, diz o relatório, os garimpeiros representam uma terrível ameaça, geram muito medo. São homens violentos que causam terror e angústia permanente nas aldeias. Ainda segundo o relatório, “este é o pior momento de invasão da Terra Indígena Yanomami, desde a demarcação e homologação há 30 anos”.

A pesquisa “Violência física e sexual em crianças e adolescentes no Amazonas, o panorama de uma década” (2022) – levantamento realizado por Patrícia Leite Brito, Rebeca Figueira da Costa, Rayane Thaise Neri de Souza e publicado no Brazilian Journal of Health Review – revela que os casos de estupro em crianças e adolescentes no estado do Amazonas – vêm demonstrando crescimento linear e contínuo.

Descaso do governo brasileiro

As violências crescentes revelam o descaso com que o governo brasileiro lida com o tema. A ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, por exemplo, disse que as crianças da ilha do Marajó são estupradas por falta de calcinha, responsabilizando as meninas pela violência sofrida. Agora, diante da menina Yanomami ela diz: “-Lamento, mas acontece todo dia”, com uma frieza inaceitável. Damares cita o Plano Nacional de Enfretamento da Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes, como ação de sua pasta. No entanto, a falta de transparência da ação no Orçamento Público e sua execução orçamentária não mentem. De acordo com estudo produzido pelo Inesc – “Brasil com Baixa Imunidade, Balanço do Orçamento Geral da União (2019)” fica evidente a redução drástica de recursos públicos ao longo dos últimos anos destinados especificamente ao enfrentamento da violência sexual de crianças e adolescentes, chegando ao seu desaparecimento em 2019. E até os dias atuais, não há nenhuma ação específica na peça orçamentária para enfrentamento das violências contra crianças e adolescentes. E no que diz respeito ao trabalho infantil, os recursos para seu enfrentamento caíram 20 vezes em 2021 quando comparado com 2019. Ou seja, o orçamento para esta ação perdeu 95% de 2019 para 2021 (Balanço do Orçamento Geral da União – 2021).

A Execução da fiscalização para erradicação do trabalho infantil também chega a 2019 sem recursos.

O então ministro da Educação Abraham Weintraub disse em alto e bom som que odeia o termo ‘povos indígenas’ e ‘povos ciganos’, registrando o seu inequívoco desprezo pela diversidade brasileira.

No que diz respeito à Segurança Pública, a Polícia Federal declarou não ter encontrado indícios de crime onde a menina Yanomami foi estuprada e morta causando espanto a toda uma população que espera por justiça.

Já o chefe do executivo, quando candidato à Presidência da República, em 2018, afirmou durante a campanha eleitoral:“No que depender de mim, não terá mais demarcação de terra indígena”, anunciando sua intenção de usurpação de terras e desproteção dos povos, o que, já sabemos, implica diretamente na produção da violência.

Ironicamente, o presidente Jair Bolsonaro comprometido com tanto desmonte foi condecorado pelo Ministério da Justiça com a medalha Mérito Indígena mesmo defendendo exploração de minério em território protegido, não reconhecendo a autodeterminação dos povos (“índio é pobre coitado”). A medalha perde seu significado e se torna patética no pescoço de um ser desprezível que ancora seu governo em mentiras, desmontes e desprezo pela vida.

O complexo enfrentamento

Para enfrentar a violência e exploração sexual de crianças e adolescentes indígenas são necessárias diversas políticas públicas articuladas e um plano objetivo de prevenção, de amparo às vítimas e responsabilização dos agressores. Sugerimos algumas diretrizes:

  • Formulação de um banco de dados criterioso, com levantamento de dados e análises periódicas, de modo a considerar territórios, etnias, perfis das vítimas, locais, situações e contextos que orientem a formulação das políticas públicas mais adequadas a cada realidade.
  • Combate à fome e à pobreza que tanto vulnerabilizam diversos grupos sociais em diferentes territórios.
  • Participação popular, especialmente de crianças e adolescentes, para que as vozes de cada comunidade ecoem, sejam respeitadas suas denúncias e que participem da elaboração de propostas de enfrentamento à violência e à exploração sexual infanto-juvenil.
  • Ação firme do Estado para romper com a naturalização da violência sexual, com políticas educacionais e de comunicação, destacando a educação sexual e educação de gênero como direito.
  • Prevenção e erradicação do trabalho infantil como formas de proteger crianças e adolescentes da exposição a múltiplos riscos.
  • Fortalecimento e ampliação do alcance da campanha Faça Bonito – 18 de Maio – “Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes” entrando nas escolas privilegiando a formação de estudantes e educadores.
  • Fomento de pesquisas acadêmicas sobre gênero, violências, infância e adolescência, segurança pública, educação e outros que deem subsídios para aprimorar as ações do Estado.
  • Educação para crianças e adolescentes no campo da segurança digital, fortalecendo-as para o uso seguro da internet.
  • Fortalecimento das políticas de assistência social para amparar e cuidar das vítimas.
  • Formação de profissionais da saúde para, além de atender com dignidade e respeito às vítimas, fazer a notificação e alimentar os bancos de dados.
  • Apuração e responsabilização de todas as notificações de violência sexual contra crianças e adolescentes, em especial, crianças indígenas.

Ressaltamos ainda que, de nada vale um plano, se não houver orçamento adequado e sua execução exemplar.

Lembrar é combater

Neste dia 18 de maio, trazemos à memória a menina Araceli para manter a indignação, não naturalizarmos a violência e sensibilizar a sociedade em geral.

Hoje, em nome da criança Yanomami, nossa indignação e tristeza intensificam a luta para que todas as crianças, com diferentes cores e sotaques, com diferentes jeitos, línguas e corpos, sejam reconhecidas nas suas diferenças e tenham uma infância disponível para a alegria.

 

(Publicado originalmente na Carta Capital Online)

[1] Brasil de Fato, 2 de maio de 2022

Fundo Nacional do Meio Ambiente: caminhando rumo à repartição justa dos recursos para a proteção ambiental

Ao mesmo tempo em que na COP 26 o governo brasileiro busca demonstrar, sem sucesso, empenho em proteger as florestas e o meio ambiente e pede aos países ricos recursos para financiar as políticas ambientais, o Congresso decide sobre qual será o orçamento para o meio ambiente em 2022.

Tanto em Glasgow quanto no Congresso, um tema chave permanece quase desconhecido e mal resolvido: a necessária repartição justa dos recursos para o meio ambiente entre os entes federativos, para que assumam de forma mais consistente sua parte na competência comum de proteger o meio ambiente, como estabelece a Constituição Federal. Hoje, essa repartição é feita de maneira desigual e os estados e municípios, em especial os da Amazônia, sofrem com crônica falta de recursos.

Um passo histórico nesta direção foi dado por meio da criação do Fundo Nacional de Meio Ambiente (FNMA), aprovado um ano depois da Constituição, pela Lei nº 7.797, de 10 de julho de 1989. Essa lei estabelece que os recursos do FNMA deverão ser aplicados através de órgãos públicos dos níveis federal, estadual e municipal ou de entidades privadas sem fins lucrativos, cujos objetivos estejam em consonância com os do Fundo.

Mas, na prática, pouco se avançou. Em primeiro lugar, porque os recursos são muito pequenos, R$ 30 milhões em 2021, sendo sua principal fonte 20% dos valores arrecadados em pagamento de multas aplicadas pelo Ibama e pelo ICMBio[1]. Além disso, nenhum centavo dos recursos autorizados no FNMA foi executado nas ações finalísticas de 2019 até o presente ano.

Nesse quadro, o fortalecimento orçamentário do Fundo e a transferência de recursos aos estados – por meio de emendas parlamentares ao Projeto de Lei Orçamentária Anulal (PLOA 2022) – pode constituir importante apoio para que as secretarias estaduais de meio ambiente possam atuar em duas áreas críticas: na fiscalização e no licenciamento ambiental.

Hoje, os poucos recursos do Fundo, uma média de R$ 40 milhões anuais nos últimos seis anos, têm sido quase integralmente destinados à reserva de contingência financeira do Ministério do Meio Ambiente. Tal despesa financeira é alocada em cada órgão e destina-se, em especial, ao cumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal e  do Teto de Gastos. Em poucas palavras, bem claras: o recurso não é gasto.

Ainda que se considere a amarra fiscal, é altamente questionável que os recursos do FNMA sejam comprometidos com esta reserva financeira.

Os insuficientes recursos do Fundo são ainda disputados por outros setores. Um projeto de lei relatado pela deputada Carla Zambelli (PSL-SP) pretende desviar os recursos do FNMA de seus objetivos, destinando parte do dinheiro para empresas que atuem na construção de projetos de usinas eólicas e solares, setor sem dúvida importante, mas que já conta com programas de incentivo.

A  crônica falta de recursos nos estados

Os estados, em especial os da Amazônia Legal, sofrem com a crônica falta de recursos para a política ambiental, isto sem falar da situação ainda mais crítica dos municípios. A base de arrecadação própria destes estados é reduzida em decorrência da preponderância de atividades econômicas primárias-extrativas (entre elas as ilegais, a exemplo do desmatamento), e dos efeitos perversos oriundos da Lei Kandir. Por exemlo, com o ICMS – que compõe mais de 80% da arrecadação dos estados – o Pará recolhe apenas 9%, se comparado com o imposto arrecadado por São Paulo. O Acre arrecada apenas 1% do ICMS de São Paulo.

Reconhecendo a também baixa prioridade política de todos os entes na destinação de orçamento para o meio ambiente, a falta de recursos para o fortalecimento das instituições e das políticas ambientais nos estados tem no seu fundamento a desigual repartição de recursos entre o governo federal e os entes subnacionais.

No contexto de histórica fragilidade institucional e orçamentária dos órgãos estaduais de meio ambiente, em todos os níveis, o FNMA deveria favorecer e priorizar o fortalecimento destes órgãos, por meio da execução descentralizada na forma de transferência de recursos. Ele foi pensado como uma ferramenta que inclui apoio federativo.

O Congresso Nacional, durante a tramitação do PLOA 2022, tem a possibilidade de começar a desmontar a histórica fragilização orçamentária do FNMA. Por meio de emendas é possível ampliar seus recursos, garantir que os mesmos não sejam esterilizados por meio da reserva de contingência e orientar sua execução canalizando mais recursos para as políticas ambientais. Em síntese, fazer valer a missão deste importante fundo como agente financiador para a a implementação da Política Nacional do Meio Ambiente.

No lugar de discursos vazios e da presença insossa do Executivo em Glasgow, a atuação de parlamentares aliados do meio ambiente visando ao fortalecimento do FNMA, incluindo a execução descentralizada de parte relevante de seus recursos, seria um passo louvável rumo à repactuação política-orçamentária-federativa para proteção ambiental.

 

* Alessandra Cardoso é doutora em Economia, espaço e meio ambiente pela Unicamp e assessora política do Inesc

* Suely Araújo é doutora em Ciência Política e ex-presidente do Ibama.

[1] O Decreto Nº 6.686/2008 em seu artigo 13 estabelece que este percentual pode ser alterado, a critério dos órgãos arrecadadores.

Mitos sobre a inflação

Pedro Rossi[1]

A inflação voltou com tudo para os noticiários e para o centro das preocupações dos brasileiros que assistem à corrosão do seu poder de compra pela alta dos preços.

Para controlá-la o receituário tradicional propõe aumentar a taxa de juros e cortar gastos públicos. A inflação é tratada como se fosse um problema neutro do ponto de vista distributivo e o seu combate é apontado como técnico, que supostamente beneficia a sociedade em seu conjunto. Nada mais falso.

A inflação é um problema distributivo que afeta indivíduos e classes sociais de forma distinta e o seu combate também não é neutro. Por isso é necessário analisar o tema para além da superfície, avaliar os impactos da inflação sobre a desigualdade social e identificar quando o discurso do combate à inflação esconde interesses econômicos e de classe.

Este artigo busca destacar essa dimensão política, frequentemente oculta no debate público brasileiro, ao explorar mitos que ocupam o senso comum. Assim, busca-se destacar a natureza do processo inflacionário, o conservadorismo no seu tratamento e o conflito distributivo por detrás da inflação e da política monetária.

Mito 1: Inflação se resolve com aumento dos juros e desaceleração econômica

Resumo: Uma política de desaceleração da economia pode até reduzir a inflação, mas tem um alto custo social arcado especialmente pelos mais pobres. A inflação é um problema distributivo e combater inflação com desemprego fragiliza os trabalhadores. Existem outras maneiras de combater a inflação que seriam mais justas no cenário atual.

A taxa de inflação mede o aumento no nível de preços. Ou seja, é o crescimento dos preços de um conjunto de bens e serviços em um determinado período de tempo. Os índices de inflação contam uma parte da história, mas pouco dizem sobre a variação dos salários, lucros, juros, e outros rendimentos que determinam o ganho ou a perda de poder de compra diante da inflação de trabalhadores e capitalistas. Ou seja, o impacto da inflação na nossa vida, depende também de como a nossa remuneração varia e o combate à inflação também afeta essa remuneração.

Há diferentes caminhos para reduzir a inflação. Hoje, o caminho usado pelo governo é desacelerar a economia por meio de um choque monetário (aumento de juros) e fiscal (corte de gastos), o que reduz demanda por bens e serviços. Esse caminho é um freio nas pretensões de recuperação econômica do Brasil, prejudica principalmente os trabalhadores que saem empobrecidos com a economia estagnada e sem empregos embora beneficie quem tem riqueza financeira para aplicar nos juros altos.

O aumento de juros além de fragilizar famílias endividadas também tem impactos distributivos via política fiscal, pois aumenta o custo do carregamento da dívida do governo que transfere para uma parcela mais abastada da população os serviços dessa dívida.

Além disso, esse tipo de política não resolve, por exemplo, a inflação de alimentos. Isso porque a maior parte dos alimentos é pouco afetada pela política monetária uma vez que seu preço pode depender do preço internacional, de fatores climáticos ou de safra. Nesse sentido, diante de uma inflação de alimentos, uma política monetária contracionista pode agravar um problema de segurança alimentar e nutricional ao provocar desemprego e queda da renda sem reduzir substancialmente o problema no preço dos alimentos.

Há outras políticas que auxiliam no combate à inflação, e que também não são neutras do ponto de vista distributivo. Por exemplo, quando a Petrobras não reajusta para cima os preços de combustível, a população tem acesso a combustível mais barato e a inflação fica menos pressionada, ainda que a distribuição de dividendos para acionistas da Petrobras seja prejudicada. Quando não há reajustes no transporte público, grupos econômicos deixam de lucrar, mas trabalhadores comemoram. Quando o governo lança mão de uma política de controle de preços de alimentos ou de taxação de exportação de commodities, esses ficam mais baratos embora produtores podem sair prejudicados. Portanto, a decisão sobre as formas e os instrumentos de combate à inflação é também uma decisão sobre quem ganha e quem perde.

Uma política de combate à inflação pode estar voltada para a redução da alta de preços de bens e serviços que impactam principalmente sobre os mais pobres, como alimentos, gás de cozinha, serviços de água e energia elétrica e para bens e serviços cujos preços que contaminam os demais, como os combustíveis e energia. Para isso teríamos que resgatar o caráter estatal da Petrobras, assim como fazer uso de instrumentos de política fiscal como subsídios e instrumentos tributários que esbarram na regra do teto de gastos e na lógica da austeridade fiscal.

Em vez disso, e fazendo jus a sua diretriz neoliberal, o governo opta por uma política de desaceleração da economia, que pode até reduzir a inflação, mas tem um alto custo social que recai principalmente sobre os mais pobres. Portanto, a forma de combater a inflação importa, trata-se de uma decisão política com consequências distributivas e não de uma decisão técnica.

Combater a inflação não é uma finalidade em si, mas um meio para garantir bem-estar social e direitos humanos. Para isso é necessário, preservar a moeda e suas funções e o poder de compra da população, especialmente a de mais baixa renda.


Mito 2: Gasto e déficit público geram inflação

Resumo: Muitas vezes ouvimos que o gasto público vai levar a inflação. Esse argumento pode ser falso. Especialmente nos momentos de crise econômica quando há desemprego e empresas com máquinas paradas, o aumento do gasto público pode gerar renda e emprego, sem pressionar a inflação. Também é um mito a ideia de que o governo brasileiro só vai conseguir pagar sua dívida com emissão de moeda e inflação.

O discurso pró-austeridade recorre frequentemente ao fantasma da inflação para justificar os cortes de gastos públicos. Afirmações como “se romper o teto de gastos podemos voltar à hiperinflação” buscam interditar o debate: trata-se de terrorismo econômico, ameaças que criam um clima de medo para coagir a aceitação de uma determinada agenda econômica pela opinião pública.

Há dois argumentos comuns que associam gasto público e inflação no debate público. O primeiro defende que o aumento dos gastos no Brasil levará à uma explosão da dívida pública que só poderá ser paga por meio de emissão monetária. Esse aumento na quantidade de moeda, por sua vez, resultará em hiperinflação.

Há vários problemas nesse argumento. A começar pelo fato de que o aumento da dívida pública em relação ao PIB é decorrência de diversos fatores e não apenas das decisões de gasto, como a própria redução do crescimento econômico e a queda da arrecadação pública. A estabilização da dívida pública pode ser alcançada, não com corte de gastos, mas com a retomada do crescimento e do aumento da arrecadação pública. Além disso, não existe um patamar especifico de dívida pública que torne o país incapaz de se financiar com títulos públicos, sendo obrigado a emitir moeda.

O segundo argumento aponta que o déficit público (quando as receitas são menores que as despesas) exerce pressão adicional sobre a demanda por bens e serviços, provocando aumento de preços. O argumento pode ser verdadeiro, mas não necessariamente. Primeiro, porque o déficit público pode ser causado por uma redução da arrecadação que por vezes contribui para redução da inflação. Por exemplo, quando se desoneram produtos da cesta básica a tendência é de aumento de déficit associado à queda (e não aumento) dos preços desses produtos, o que ameniza a inflação.

Além disso, o efeito inflacionário de um aumento do gasto público depende do momento do ciclo econômico em particular da utilização dos fatores de produção de uma economia, trabalho e capital. O tema é complexo mas pode ser pensado de forma intuitiva.

Quando a economia está em pleno emprego e empresas utilizam toda sua capacidade produtiva, um gasto público tende a gerar a inflação, pois aumenta a demanda no momento em que a capacidade de oferta está dada. Por exemplo, quando o governo contrata uma empresa para a construção de uma estrada. Essa, ao operar em plena capacidade, pode deixar de atender projetos do setor privado para atender o setor público e, além disso, pode pedir preços maiores do que de costume, o que gera inflação.

No entanto, quando há desemprego e capacidade ociosa nas empresas, esse mesmo gasto não gera inflação, mas emprego e aumento da renda. Daí a importância do uso do gasto público em momentos de crise econômica e desemprego, na contramão das políticas de austeridade adotadas no Brasil. Portanto, gasto público e déficit público não são necessariamente fontes geradoras de inflação, especialmente em momentos de crise econômica.

 

Mito 3: A inflação é um problema técnico, logo precisamos de um Banco Central independente

Resumo: A decisão sobre as formas e os instrumentos de combate à inflação é também uma decisão sobre quem ganha e quem perde. A defesa de um banco central autônomo ou independente ignora esses aspectos e propõe blindar gestores supostamente técnicos de políticos e eleitores supostamente ignorantes. No entanto, essa visão tecnocrática favorece a captura do banco central pelo mercado cuja rentabilidade é afetada pela atuação do banco central na regulação do sistema financeiro, na definição da taxa de juros, nas interferências na taxa de câmbio, etc. 

A defesa de um banco central autônomo ou independente propõe blindar gestores supostamente técnicos de políticos e eleitores supostamente ignorantes. Com isso, a instituição teria mais credibilidade junto aos investidores internacionais e nacionais, o que levaria um melhor controle da inflação e à queda da taxa de juros.

Mas a autonomia aumenta o poder do mercado financeiro sobre o banco central e favorece a chamada “porta giratória” que ilustra o movimento de quadros do setor privado para o setor público e vice-versa. Ou seja, o Banco Central nomeia, para seu quadro de diretores, profissionais do mercado financeiro que têm incentivos para favorecer seus antigos (e prováveis futuros) chefes. A atuação do banco central interfere na própria rentabilidade do mercado financeiro ao atuar sobre variáveis como a inflação, taxas de juros e de câmbio e ao regular as instituições financeiras. Isto é, na hora de escolher quem ganha e perde com o combate à inflação, o Banco Central pode arbitrar em favor das demandas do mercado a despeito das necessidades da população.

De acordo com um estudo publicado no Banco Mundial[2], um banco central independente tende a aumentar a desigualdade por três motivos. Primeiro porque a instituição pode constranger indiretamente a política fiscal e enfraquecer a capacidade do governo de usar o gasto público como instrumento de redistribuição. Segundo, porque incentiva a desregulamentação financeira, o que gera ganhos para o setor financeiro e bolhas de preços. E, por fim, quando na presença de pressões inflacionárias, faz uso de uma política monetária excessivamente conservadora com aumentos excessivos de juros, o que enfraquece o poder de barganha dos trabalhadores.

Portanto, a inflação não é um problema meramente técnico e um banco central independente tende a favorecer politicamente os interesses do mercado financeiro.

 

Desmistificar para uma política monetária mais justa

Esse breve artigo teve como objetivo estimular o interesse por um debate dominado por um falso tecnicismo e por uma visão estigmatizada sobre inflação.

Não há um patamar mágico para inflação. Sabe-se que uma inflação muito alta pode desorganizar a economia, favorecer a indexação e comprometer a confiança na moeda. No entanto, uma inflação muito baixa também pode não ser saudável como mostram processos históricos de deflação que desestruturam a economia e geram recessão e desemprego.

No Brasil, a inflação é muito suscetível aos choques de preços de commodities, à volatilidade da taxa de câmbio e à indexação de contratos. Sem resolver esses problemas, dificilmente teremos uma inflação baixa como àquela apresentada em países centrais.

Apesar disso, o Banco Central brasileiro tem reduzido a meta de inflação, prevista para 3% em 2024. A decisão se mostra conservadora e os custos de perseguir uma inflação tão baixa pode ser o desemprego que representa a violação do direito humano ao trabalho, além de um desperdício de recursos produtivos.

Portanto, a inflação é um problema econômico complexo. Não se trata de um inimigo comum que afeta a toda população da mesma forma, mas de uma variável cujas causas e consequências afetam a distribuição de recursos entre classes sociais e setores produtivos. Evitar cair no lugar comum nesse debate é difícil, mas necessário, especialmente quando a obsessão com o combate inflacionário resulta em desemprego, juros altos, menos recursos para a garantia de direitos humanos e empobrecimento da população.

[1] O autor agradece as contribuições de Nathalie Beghin e Livi Gerbase, do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). O Inesc está trabalhando em um projeto internacional de conexão entre política monetária, investimentos sociais e direitos humanos, com a divulgação de vários produtos e eventos nos próximos meses. Para saber mais, visite www.inesc.org.br.

[2] Artigo Michaël Aklin, Andreas Kern and Mario Negre, publicado em 2021, intitulado “Does Central Bank Independence Increase Inequality?”.

 

COP 26: o avesso, do avesso, do avesso 

Há poucos meses da realização da Conferência do Clima da ONU, a COP 26, uma coisa já está evidente: tem sido um ano difícil para as negociações planejadas para acontecer em novembro.

 

Depois do seu adiamento, em 2020, por causa da pandemia da Covid-19, o secretariado da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (UNFCCC, na sigla em inglês) prometeu a realização do encontro para 2021. No entanto, entre maio e junho deste ano, a experiência de um diálogo por meio digital com o ​​Órgão Subsidiário de Aconselhamento Científico e Tecnológico (SBSTA, na sigla em inglês) foi marcada por muitas frustrações, manifestadas, em particular, por delegados dos países do Sul Global e pelos representantes da sociedade civil que acompanham o debate sobre mudanças climáticas.

 

Com o objetivo de sistematizar algumas das discussões que vêm sendo feitas, entre especialistas e chefes de estado e governos, sobre as condições para a realização deste evento, reunimos cinco razões pelas quais acreditamos que a conferência do clima da ONU deveria ser adiada mais uma vez.

 

  1. Pandemia

 

A pandemia não acabou. Embora muitos países do Norte Global estejam avançados nos esforços de imunização das suas populações, o surgimento da variante Delta ameaça com uma nova e fulminante onda da doença. Nos países do Sul Global, dificuldades relacionadas à compra, à distribuição e, mesmo, à vontade política para proceder a imunização deixaram essas sociedades em situação de extrema vulnerabilidade, sendo a cobertura vacinal ainda hoje muito precária nesses lugares.

 

Nos últimos dois anos, aprendemos muito a respeito do vírus que causa a Covid-19, mas não o suficiente para expor pessoas ao risco de contrair uma doença que pode ser fatal. Da mesma forma, embora logicamente necessária, a proibição de entrada no Reino Unido dos “não-vacinados” representa uma perda para a diversidade e a complexidade dos debates levados a cabo durante a Conferência.

 

  1. Internet

 

O acesso à internet foi consagrado um direito humano de quarta geração, a partir do seu reconhecimento pela ONU (em interpretação à Declaração Universal dos Direitos Humanos). No entanto, as desigualdades relacionadas à efetiva concretização deste direito são conhecidas, e se tornaram ainda mais evidentes durante o encontro do SBSTA, entre maio e junho de 2021.

 

Há, nos bastidores da Conferência, um burburinho que deixa inferir grande insatisfação com o modelo híbrido escolhido para a discussão, isto é, ao mesmo tempo presencial e virtual. Quem participou do evento por meio virtual relatou problemas com uma espécie de “acreditação virtual”, em particular, com o funcionamento dos códigos de acesso às salas virtuais (que substituíram os crachás das discussões oficiais), bem como dificuldades para acompanhar as discussões pela má qualidade da internet nos seus países de origem.

 

De modo semelhante, no Brasil, o acesso à internet é excludente, e afeta, sobretudo, regiões não alcançadas pelo interesse do mercado de telecomunicações. Isso significa que povos e comunidades do campo-floresta-águas poderiam ficar de fora de debates que os afetam diretamente, tais como os que devem se debruçar sobre a regulamentação das formas de capitalização das riquezas naturais presentes em seus territórios.

 

  1. Custos

 

Os custos de participação na COP 26 serão elevadíssimos! O preço de 1 libra esterlina equivale a mais do que 7 reais. Este foi um dos fatores que convenceu o governo britânico a reduzir o tempo de quarentena exigido dos participantes. Contudo, a “lista vermelha” de países, ou seja, aqueles que acendem o alerta da política sanitária global, continua a incluir majoritariamente latino-americanos e africanos, além de alguns asiáticos. Para estes países, somam-se cinco dias de hospedagem, deslocamento e alimentação aos já quase quinze dias de Conferência.

 

  1. Transparência e participação

 

Um dos temas abordados nesta edição da COP é a transparência na definição das metas e das métricas climáticas adotadas por cada país, já que as contribuições nacionais são voluntárias, ou seja, não são definidas compulsoriamente pelo Acordo de Paris sobre o Clima. No entanto, como vimos, a própria construção da Conferência está atravessada por questões relativas à transparência e às condições para a participação (não tanto das delegações oficiais, embora elas também tenham sofrido com problemas, mas, especialmente, da sociedade civil).

 

Com isso, a legitimidade das discussões e das decisões tomadas durante o evento poderá ser colocada em xeque, e não só por quem foi deixado de lado, sem ser ouvido. Arriscar a legitimidade de um processo que, embora esteja longe do ideal, foi construído sobre uma preocupação real com a democracia e a representação das vozes de todo o mundo é lamentável, principalmente no atual contexto de negacionismo científico e climático.

 

  1. Agenda

 

A COP 26 já está sendo descrita como um novo grande momento das negociações climáticas internacionais. A expectativa é que, nesta edição do evento, o chamado “livro de regras”, documento que regulamenta os artigos do Acordo de Paris, seja finalizado. Nesse sentido, dois temas são cruciais, considerando a inserção brasileira na negociação:

 

(i) o primeiro deles diz respeito ao aumento das ambições dos países para evitar a elevação das temperaturas globais em 1,5ºC, em comparação com os 2ºC de antes. As pressões neste sentido refletem uma série de relatórios e estudos que apontam para a aceleração do aquecimento global.

 

(ii) o segundo relaciona-se ao financiamento das políticas climáticas em cada país, especialmente nos mais pobres. Aqui entra em cena o artigo 6 do Acordo de Paris, que prevê o estabelecimento de mecanismos de mercado e de não-mercado para levantar recursos ao esforço climático.

 

De olho na política brasileira, os grandes incêndios em biomas tais como a Amazônia, o Cerrado e o Pantanal tendem a reduzir ou a eliminar a capacidade do Estado para se comprometer com a meta de 1,5ºC. Já no que tange ao modelo de financiamento planejado para o esforço climático, é possível dizer que a ênfase no uso e na criação de serviços financeiros para essa finalidade reflete uma certa fé cega na convergência de interesses entre o público e o privado, matizada pelo discurso da crise fiscal dos países.

 

Como resultado, observamos uma progressiva erosão do compromisso público em relação ao combate às mudanças climáticas, além da transferência, para empresas e indivíduos ou consumidores, da responsabilidade pela implementação de medidas, lucrativas ou filantrópicas, que sejam capazes de promover um funcionamento “verde” da economia.

 

Portanto, a finalização do livro de regras de Paris, durante a COP 26, deverá apontar para um novo paradigma de desenvolvimento que tem o meio ambiente no centro da elaboração política, ao mesmo tempo que aprofundará o processo de financeirização da economia e da vida. Esse quadro trará consequências dramáticas para os povos do campo-floresta-águas. E, por isso, não pode ser decidido sem esses povos.

 

O desafio do ECA em tempos de pandemia

Julho é o mês em que celebramos o aniversário do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA. Mês de balanços e reflexões. Impossível hoje pensar na infância sem se levar em conta o contexto da pandemia. Com isso, é importante reforçar a ideia de que a proteção da criança depende também do grau de proteção em que se encontra a sua comunidade. Hoje, com mais de meio milhão de mortos pela Covid-19, os bairros com as piores condições de vida concentram o maior número de vítimas, evidenciando os impactos das desigualdades no cenário trágico da pandemia.

A Mortalidade

No início da pandemia alardeou-se a necessidade de proteção aos mais velhos, sem se conhecer exatamente os efeitos sobre crianças. No entanto, segundo dados do Sistema de Informação de Vigilância da Gripe (Sivep-Gripe), até de maio de 2021 morreram948 crianças de 0 a 9 anos por Covid-19 no Brasil. As principais vítimas foram bebês de até 2 anos. Pesquisa realizada pela Agência Pública de Jornalismo Investigativo em São Paulo revela que 93% dos casos de mortes de crianças e adolescentes por Síndrome Respiratória Aguda em 2020 eram de bairros periféricos ou de baixa renda[i]. A realidade fica mais estarrecedora quando comparada a de outros países. O Reino Unido e a França, por exemplo, registraram apenas 4 mortes de crianças de 0 a 9 anos, o que dá uma taxa de 0,5 morte por milhão em cada um dos países. Além de ter destinado valores irrisórios para a saúde da criança, R$ 5 milhões em 2021, o governo brasileiro executou apenas 2,6% até junho do corrente ano. Já para a saúde do adolescente nada foi gasto. Cabe destacar que o Brasil é o segundo país no mundo com o maior número de óbito de crianças por Covid-19; fato que explicita descaso com o público que é, segundo o ECA, PRIORIDADE ABSOLUTA.

A Desigualdade Racial

Cida Bento, diretora do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT), tem denunciado a ocultação ou manipulação do dado raça/cor nas notificações com relação à pandemia, de modo a não termos informações precisas que reflitam a situação de crianças e adolescentes negras; dados fundamentais para orientar uma resposta que seja eficiente para reduzir desigualdades e proteger a todos/as com atenção especial às pessoas vulnerabilizadas. A despeito da subnotificação, de acordo com o Sistema de Informação da Vigilância Epidemiológica da Gripe (Sivep-Gripe), 57% das crianças mortas pela Covid-19 no Brasil eram negras. As crianças brancas correspondem a 21,5% das vítimas, as amarelas (de origem asiática) a 0,9% e 16% não tiveram raça indicada.

A Orfandade

Além das vítimas diretas da Covid-19, até junho de 2021 a pandemia produziu em torno de 45 mil órfãos, segundo estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Como se não bastasse, a perda da mãe ou do pai, crianças também sofreram com a morte de parente a quem amava e/ou que era responsável pelo sustento da família. No que diz respeito ao Auxílio Emergencial, em 2021 foram autorizados no orçamento público cerca de 4 vezes menos recursos (R$ 164 bilhões em 2020 versus R$ 43 bilhões em 2021), de acordo com levantamento do Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos) sendo que a fome e o desemprego chegaram a níveis alarmantes.

A Violência Policial

Pensando na proteção à vida durante a pandemia, mães fazem esforço para manter os filhos em casa. No entanto, algumas foram surpreendidas quando suas crianças foram assassinadas em ações cujos principais suspeitos eram policiais. Foi o que aconteceu com João Pedro, 14 anos, que levou um tiro de fuzil nas costas quando brincava dentro de casa. Com Guilherme Guedes, de 15 anos, encontrado morto depois de desaparecer em frente à casa da avó. E com Igor Rocha Ramos, de 16 anos, morto quando comprava pão na padaria, enquanto sua mãe estava em casa com Covid-19.

O dia 6 de maio de 2021 nunca será esquecido pela comunidade de Jacarezinho (RJ). Uma operação da Polícia Civil mal explicada resultou na morte de 29 pessoas, a operação policial mais letal ocorrida na cidade do Rio de Janeiro, e uma das maiores do estado. O pretexto era combater o aliciamento de crianças para o tráfico, no entanto, além da suspeita não se confirmar, um adolescente de 18 anos foi executado.

A Precariedade da Educação

Na área da educação a situação é bastante preocupante. As propostas das respectivas Secretarias de Estado de Educação têm se concentrado em aulas virtuais. No entanto, o acesso à internet não foi universalizado, assim como grande parte das famílias não dispõem de equipamentos, nem estão todas preparadas para fazer o acompanhamento pedagógico demandado pela escola. Segundo o Ipea, em 2020, mais de 1,8 milhões de estudantes não tinham equipamentos para estudar e 5,5 milhões não tinham acesso à internet.

Além disso, a função educação no Orçamento Geral da União vem sofrendo queda brutal nos valores autorizados desde 2016, como mostrou o Inesc em recente balanço. Em números atualizados pelo IPCA em 2021 a educação tem R$30 bilhões a menos, quando necessitaria muito mais para garantir acesso às aulas e atender às demandas geradas na crise sanitária.

Para enfrentar as consequências da pandemia faz-se necessário atenção permanente e iniciativas imediatas que mitiguem os efeitos danosos sobre todas as pessoas, mas em especial sobre as que já estavam esquecidas pelo poder público. O ECA exige inovações e respostas rápidas. Diante disso, é imprescindível (i) destinar recursos para as políticas de proteção e promoção de direitos, como saúde, assistência social e educação; (ii) elaborar planos objetivos de prevenção à violência e ao trabalho infantil em todos os níveis da federação; (iii) formar conselhos com participação de diversos segmentos da comunidade escolar para desenhar e implementar coletivamente planos de volta às aulas presenciais considerando a universalidade do direito. Além de escolas dignas e equipadas adequadamente, educação de qualidade em igualdade de condições é o mínimo que se espera para que todas as crianças e adolescentes vislumbrem trajetórias de vida plenas, mais felizes.

Quando um presidente da república tira a máscara de uma criança em evento público, ele manda um recado ao país: desprezo pela vida. Sem ação eficaz e urgente do Estado na forma de políticas públicas, a lei não passa de letra morta.

[i] https://apublica.org/2020/06/desigualdade-social-e-fator-de-risco-para-mortes-de-criancas-e-adolescentes-por-covid-19-no-pais/

Vetos do Bolsonaro ao Orçamento 2021: mais uma afronta à garantia de direitos

No último dia 22 de abril, o presidente Bolsonaro sancionou o orçamento para 2021, após um longo e tortuoso percurso, como analisado pelo Inesc. O orçamento aprovado pelo Congresso Nacional havia subestimado despesas obrigatórias e aumentado os recursos para emendas parlamentares, o que obrigou o Executivo a realizar cortes.

Para além do veto, o governo bloqueou despesas, uma nova prática orçamentária introduzida na Lei de Diretrizes Orçamentárias 2021 (a partir do PLN 02/2021). Por meio destes dois dispositivos, o governo cortou R$ 29 bilhões do orçamento, com o objetivo de cumprir o Teto de Gastos.

Mas quais são as consequência destes vetos na garantia dos direitos humanos? Algumas áreas, que já são subfinanciadas há anos, foram, mais uma vez, alvo da tesoura governamental. Pode-se mencionar a saúde e a educação, áreas fundamentais para o enfrentamento à pandemia, além dos cortes para as ações do meio ambiente, prática comum do atual governo. Assim, dá-se continuidade as medidas de austeridade em prol das atuais regras fiscais, a principal delas,  o Teto de Gastos.

Confira a análise por área abaixo:

Saúde: cortes de ações fundamentais para o enfrentamento da crise sanitária

Da função saúde foram vetados R$ 2,2 bilhões. Pode parecer pouco em relação aos R$ 136 bilhões aprovados pelo Legislativo, mas considerando que os recursos na Lei Orçamentária Anual (LOA) encaminhada para sanção presidencial já eram baixos, com certeza esta diminuição será sentida. Todas as unidades orçamentárias do Ministério da Saúde tiveram algum valor reduzido, com exceção da Anvisa. A que sofreu o maior corte (8% do orçamento do autógrafo) foi a Fundação Nacional de Saúde (Funasa), responsável por ações de saneamento e saúde ambiental.

As ações que tiveram o maior volume de recursos vetados são diretamente relacionadas à Covid-19. A ação 2F01, voltada para o enfrentamento da pandemia, que apresentava valor ínfimo comparado a 2020, foi cortada pela metade, restando apenas R$ 620 milhões. A outra ação é referente a um incremento ao custeio de serviços hospitalares, que teve uma redução de R$ 600 milhões, equivalente a quase 10% do orçamento aprovado pelo Congresso Nacional antes dos vetos.

A estratégia do governo Bolsonaro de prever pouquíssimos recursos para o combate à Covid-19, somada ao desfinanciamento da Saúde, tem impactos nefastos. Exemplo disso é o ritmo lento de vacinação da população e a falta de insumos para o tratamento da doença, como remédios e oxigênio, que contribuem para prolongar e agravar a pandemia.

Educação: 30% dos bloqueios de Bolsonaro foram para esta área

A situação do orçamento da educação é gravíssima e não é possível ver a luz no final do túnel. Para 2021, duas regras fiscais recaíram como bombas para a política pública. Em razão da Regra de Ouro, ficou dependente de aprovação via crédito suplementar cerca de R$ 55 bilhões para a educação. Para além desta regra, o que foi aprovado pelo Congresso Nacional em parte foi vetado pelo Executivo. Houve um bloqueio geral de R$ 9,2 bilhões, dos quais R$ 2,7 bilhões apenas na educação, ou seja, cerca de 30% do total.

Quer entender o que é a Regra de Ouro e as outras regras fiscais? Confira nosso guia “Para Ler o Orçamento

A ação orçamentária da educação que teve um dos maiores cortes na LOA 2021, de acordo com a nota informativa da Consultoria de Orçamento, foi “Apoio à Infraestrutura da Educação Básica”, que tem como objetivo, de acordo com o Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento (Siop), fornecer apoio técnico, material e financeiro para construção, ampliação, reforma e adequação de espaços escolares e para aquisição de mobiliário e equipamentos para todas as etapas e modalidades da educação básica. Mesmo com todos esses cortes para a educação, principalmente para a ação de recursos necessários para garantir escolas seguras, a Câmara dos Deputados achou prudente aprovar o Projeto de Lei 5.595/2020, que obriga a volta às aulas presenciais, que segue para apreciação do Senado.

Meio Ambiente: em contraposição ao discurso de Bolsonaro na Cúpula do Clima, mais cortes para a fiscalização de desmatamentos

Na área de meio ambiente, foram vetados R$ 235,32 milhões no total: R$ 19,38 milhões no Ibama, R$ 7 milhões no ICMBio, R$ 204 milhões no MMA, R$ 3,13 milhões no Fundo Nacional de Meio Ambiente e R$ 1,71 milhões no Instituto Jardim Botânico.

No caso do Ibama, o veto ocorreu justamente nas ações de fiscalização e combate ao desmatamento ilegal (ações 214M e 214N). No final, para o Ibama como um todo, de um orçamento para ações finalísticas que era de R$ 258 em 2019, houve um encolhimento para R$ 135 milhões em 2021, ou seja, uma redução de R$ 123 milhões em um orçamento já muito baixo. Não foram considerados neste cálculo os recursos transferidos aos estados da Amazônia oriundos do acordo anticorrupção da Lava Jato.

Quanto ao ICMBio, a ação orçamentária que responde por toda a política de gestão das áreas protegidas sofreu o veto de R$ 7 milhões em um orçamento que já inviabilizava a existência do órgão. No ano de 2021, os recursos finalísticos autorizados para o órgão serão de apenas R$ 73 milhões, um valor R$ 38 milhões inferiores ao orçamento para o ano de 2020.

O veto mais elevado em termos de valor, no total de R$ 203,91 milhões, foi no próprio Ministério do Meio Ambiente, na ação “Implementação de Programas, Planos e Ações para melhoria da qualidade ambiental urbana”. Como analisado pelo Inesc, esta ação havia tido seu orçamento inflado durante a tramitação do PLOA 2021. Com estes recursos o Ministro do Meio Ambiente pretendia multiplicar pelo país usinas de geração de energia a partir de resíduos sólidos urbanos.

Cabe destacar, contudo, que depois destes pesados vetos e de mais um vexame internacional com o discurso falacioso do governo federal durante a Cúpula do Clima, o Ministro do Meio Ambiente anunciou em redes sociais a solicitação ao Ministério da Economia de uma suplementação de R$ 270 milhões para os órgãos ambientais, sem especificação de quais ações, sendo: R$ 72 milhões para o ICMBio; R$ 198 para o Ibama, sendo que R$ 142 milhões direcionados para as atividades de fiscalização. Tal suplementação não foi ainda viabilizada.

Indígenas: mais cortes em um orçamento em queda histórica

Apesar de não ter havido mudanças entre o texto proposto pelo Executivo e o aprovado pelo Parlamento, foram vetados R$ 4,97 milhões da política indigenista a ser executada pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Os cortes referem-se a duas ações orçamentárias: i) a 21BO, “Proteção e Promoção dos Direitos dos Povos Indígenas” – ação guarda-chuva que engloba diversas políticas como as de preservação cultural e as referentes a licenciamento ambiental em Terras Indígenas – da qual foram vetados R$ 658 mil e a ii) a 155L, Aprimoramento da Infraestrutura da Fundação Nacional do Índio – especificamente destinada para melhoria e manutenção do órgão – da qual foram vetados  R$ 4,3 milhões.

O orçamento do órgão indigenista aprovado pelo Parlamento já se mostrava insuficiente e os vetos contribuem para o agravamento do esgarçamento da política. Chama especial atenção a retirada de recursos da infraestrutura do órgão, cuja precariedade foi ressaltada em nosso Relatório “Um país sufocado”. A retirada de recursos da ação 155L afasta ainda mais a possibilidade de realização de concurso para recomposição de quadro técnico da Funai em 2021, apesar da necessidade argumentada por Grupo de Trabalho do órgão em 2020.

*Livi Gerbase, Alessandra Cardoso, Cleo Manhas, Leila Saraiva e Luiza Pinheiro, assessoras políticas do Inesc

Orçamento escancara crise e desmonte da Educação

O novo coronavírus escancarou as desigualdades, ampliadas pela opção do governo federal em jogar com a vida das pessoas, ao não atuar como líder que deveria ser no combate ao vírus e suas consequências.   A começar pela má gestão do orçamento destinado para as ações de mitigação, que em 2020 tiveram recursos não gastos, apesar da necessidade brutal de auxílio emergencial, que ficou suspenso para ser retomado em patamares muito menores, em momento de aumento de inflação, que acometeu especialmente os produtos da cesta básica. É, a fome retornou com força, assim como a falta de acesso ao ensino/aprendizagem, afetando, principalmente, quem já sofre por falta de alimentação, saúde pública, educação pública.

É nítido que se não tivéssemos instituições públicas de pesquisa como o Instituto Butantan e a Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz) estaríamos ainda muito piores, pois sequer teríamos vacinado os 13% da população até aqui, já que a maior parte das doses vem desses dois centros produtores das vacinas Coronavac e AstraZeneca, em parceria com entidades da Inglaterra e da China. Somos bons nisso, o SUS sempre protagonizou grandes campanhas de vacinação, conseguimos erradicar várias doenças em território nacional com pesquisas aqui desenvolvidas.

No entanto, a Emenda do Teto dos gastos, 95 de 2016, em parceria com o atual governo negacionista e genocida, vem ao longo dos últimos anos reduzindo drasticamente os recursos para o ensino superior e para a pesquisa. Quando da votação da emenda, foi reforçado que educação e saúde não seriam afetadas, no entanto, a história é outra, pois mesmo que a arrecadação seja ampliada, os recursos para a educação, congelados em 2017, terão atualização apenas pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), ou seja, é possível que ao final dos 20 anos de vigência do teto dos gastos, o mínimo de 18% da cesta de impostos esteja em patamares bem menores, de acordo com artigo “Austeridade Fiscal e Financiamento da Educação no Brasil”, o que justificou que esta regra fiscal tenha sido concretizada por meio de emenda à Constituição, porque afeta os mínimos para educação e saúde que são dispositivos constitucionais. Somos vítimas de uma guerra de narrativas fictícias, que convencem incautos.

Sobre pesquisa, conforme divulgado no  Balanço do Orçamento Geral da União  ̶  elaborado pelo Inesc  ̶  , para a Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal (Capes), o autorizado entre 2019 e 2020 caiu de R$ 4,6 bilhões para R$ 3,7 bilhões. E, além disso, o pago no ano foi R$ 3,1 bilhões, que significam menos da metade do que foi executado em 2016 (R$ 6,7 bilhões), ano de baixa arrecadação. Como se vê, há um total descaso com a pesquisa, constatado cotidianamente pelos pronunciamentos do governo, que nega a ciência.

Com relação à educação básica, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD COVID19, do IBGE, cerca de 6,5 milhões de estudantes entre 6 e 17 anos ficaram distantes do aprendizado desde o início da pandemia, somando os que não se matricularam em 2020 (1,4 milhão) com aqueles que, mesmo matriculados, não tiveram acesso ao ensino (5,5 milhões). O que equivale a cerca de 15% da população de crianças e adolescentes na citada faixa etária.

Orçamento 2021

A situação é gravíssima e não é possível ver a luz no final do túnel, até porque, para 2021, duas regras fiscais recaíram como bombas para a política pública. Em razão da regra de ouro, ficou para ser aprovado em crédito suplementar, cerca de R$ 55 bilhões para a educação. E do que foi aprovado, parte foi bloqueado devido ao teto de gastos. Houve um bloqueio geral de R$ 9,2 bilhões, dos quais R$ 2,7 bilhões apenas na educação, ou seja, a maior parte do bolo, ou cerca de 30% do total

Com relação à pesquisa, o orçamento aprovado (inicial) para Capes caiu ainda mais, desta vez pela metade do que foi aprovado para 2020, agora serão R$ 1,9 bilhão, contra os R$ 3,8 bilhões de 2020, que já foram R$ 7,3 bilhões em 2016, ou seja, ladeira abaixo. Não há bolsas de iniciação científica, mestrado ou doutorado, a crise é gigante para um país que vinha percorrendo um caminho virtuoso no que diz respeito a inclusão no ensino superior.

E por falar em ensino superior, etapa de ensino cujo responsável é o governo federal, de 2016 para 2021, o orçamento aprovado já caiu R$ 8 bilhões – o que significa menos vagas nas universidades e institutos públicos, menos pesquisa, menos inclusão.

Volta às aulas sem recursos?

Mesmo com todos esses cortes para a educação, a Câmara dos Deputados achou prudente aprovar o Projeto de Lei 5595/2020, que obriga a volta às aulas presenciais, que segue para apreciação do Senado. Uma enorme contradição, visto que a ação orçamentária da educação com um dos maiores cortes orçamentários na LOA 2021, de acordo com a nota informativa da Consultoria de Orçamento do Congresso Nacional, foi “Apoio à Infraestrutura da Educação Básica, que tem como descrição, “Apoio técnico, material e financeiro para construção, ampliação, reforma e adequação de espaços escolares e para aquisição de mobiliário e equipamentos para todas as etapas e modalidades da educação básica. Apoio à infraestrutura e ao uso pedagógico das tecnologias de informação e comunicação para todas as etapas e modalidades da educação básica com o objetivo de melhorar o processo de ensino-aprendizagem”, de acordo com o Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento (SIOP). Ou seja, os recursos necessários para garantir escolas seguras, ou mais equipamentos para educação remota.

Portanto, temos de nos mobilizar para impedir que o projeto seja aprovado. Chega de política genocida, precisamos de mais recursos orçamentários, vacinas e distanciamento social que garantam a educação de crianças, adolescentes e jovens, e a vida de todas as pessoas.

Orçamento 2021: entre erros, chantagens e falta de recursos para enfrentar a pandemia

Após quatro meses de atraso, finalmente temos um orçamento aprovado para 2021. A disputa pelos recursos públicos tomou contornos dramáticos, porém, mais uma vez, as regras fiscais ficaram acima das necessidades da população. Estamos em finais de abril de 2021 com dois orçamentos concomitantes, ambos muito aquém do necessário para enfrentar as consequências das crises sanitária, econômica e social que afetam profundamente o Brasil.

De um lado, a  Lei Orçamentária Anual (LOA 2021) que, além de ameaçar um apagão geral da máquina pública por insuficiência de recursos, apresenta cortes expressivos nas políticas sociais. De outro, um orçamento paralelo de enfrentamento da pandemia, estimado em R$ 100 bilhões, mais de seis vezes menor do que o aprovado no ano passado, apesar do crescimento contínuo da mortalidade decorrente do Sars-CoV-2, da fome, da pobreza e do desemprego.

Mas como chegamos até aqui? O Inesc preparou uma linha do tempo das principais decisões orçamentárias dos últimos meses.

Preâmbulo: é importante entender que o orçamento brasileiro é amarrado por regras fiscais que o impedem de realizar progressivamente direitos ou de responder a crises, como a provocada pelo novo coronavírus. Trata-se, principalmente, do Teto de Gastos, que congelou as despesas federais por 20 anos, até 2026, e da Lei de Resultado Primário, que estima anualmente quanto deve ser a relação receita-despesa, levando a cortes bimestrais quando as receitas estão abaixo do estimado. Em suma, não é possível aumentar gastos e, além disso, as despesas podem ser cortadas se há queda de receita – como quando uma crise econômica diminui a arrecadação.

O Estado de Calamidade Pública neutraliza as regras fiscais

Março a maio de 2020: foi declarado Estado de Calamidade Nacional como resposta à pandemia da Covid-19 e criado um Orçamento de Guerra. Estes instrumentos autorizam o Executivo a não cumprir a Lei de Resultado Primário, nem o Teto de Gastos e, consequentemente, a criar despesas para além do estimado na Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2020. No total, foram autorizados R$ R$ 604,7 bilhões para um conjunto de medidas, como transferências a estados e municípios e apoio à saúde. Ao longo do ano, R$ 524,0 bilhões foram de fato gastos (ver Tabela 1). A principal ação a receber recursos foi a do Auxílio Emergencial, aprovada dia 30 de março pelo Congresso Nacional, fruto da mobilização da oposição e da sociedade civil. Para mais informações, veja o relatório do Inesc com o Balanço do Orçamento Geral da União de 2020 aqui.

Regras fiscais acima de tudo: o governo federal decreta o fim da pandemia

Abril de 2020: foi enviada a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para 2021 pelo Executivo ao Congresso Nacional. A LDO é a base para a LOA e deve ter, como seu nome diz, as diretrizes para a elaboração da lei orçamentária. Ela apontou que o governo não incluiria no orçamento o combate à pandemia como previsto pelo Inesc nesta análise.

Agosto de 2020: o Executivo encaminhou ao Legislativo a proposta de LOA para 2021 com erros, pois algumas despesas obrigatórias estavam subestimadas. O documento, seguindo o proposto pela LDO, mantém as regras fiscais e, para assegurar seu cumprimento, não destina recursos para a pandemia e apresenta expressivos cortes em gastos sociais. O Teto de Gastos passaria a ser a “âncora fiscal” do orçamento. O Inesc analisou a proposta aqui.

Atraso na aprovação do orçamento na compra de vacinas

Apesar da importância de discutir o orçamento para 2021, e de legalmente o Congresso Nacional ser obrigado a votar a LDO até 17 de julho e a LOA até 31 de dezembro de cada ano, isto não ocorreu:

Dezembro de 2020: o Congresso Nacional aprovou a LDO. Apesar de ela não conter qualquer espaço no orçamento para o combate à pandemia, ela impedia o congelamento de recursos para a compra de vacinas contra o novo coronavírus. Mas este dispositivo foi vetado pelo Executivo quando da sanção da LDO, que ocorreu em janeiro de 2021.

Dezembro de 2020: apesar do agravamento da crise sanitária, o governo não postergou o Estado de Calamidade ou o Orçamento de Guerra para 2021, impedindo que se continuasse com o afrouxamento de regras fiscais. Tal situação gerou automaticamente um problema, pois seria necessário criar novas formas de disponibilizar recursos extra orçamentários para enfrentar a crise. Por outro lado, foram autorizados, por meio de medidas provisórias, R$ 22,29 bilhões para a aquisição de vacinas, que começaram a serem gastos somente em 2021. Ou seja, em 2020, o governo não gastou recursos para a compra de imunizantes e ainda recusou um acordo proposto pela Pfizer que garantiria 70 milhões de vacinas ainda em dezembro.

Janeiro e fevereiro de 2021: em um cenário de aumento diário da mortalidade decorrente da Covid-19, o governo federal seguiu sem orçamento para a pandemia, priorizando pautas como a autonomia do Banco Central e a Reforma Administrativa. Contudo, houve autorização de R$ 2,8 bilhões à saúde por meio de Medida Provisória. Outras medidas se sucederam ao longo de março e abril de 2021, totalizando R$ 10,88 bilhões, como pode ser observado na Tabela 2.

Os puxadinhos e as chantagens

12 de março de 2021: é aprovada a Emenda Constitucional 109, conhecida como PEC Emergencial, que condicionou a aprovação de uma nova versão do Auxílio Emergencial à proibição de promoção funcional ou progressão de carreira de qualquer servidor ou empregado público. Ainda assim, os gastos com Auxílio Emergencial foram muito inferiores ao do ano anterior, caindo de R$ 322,00 bilhões para R$ 44,86 bilhões. Com a aprovação, o governo criou um crédito extraordinário para custear o Auxílio, cuja primeira parcela foi paga apenas em abril, com valores de R$ 150, R$ 250 ou R$ 375 – muito mais restritos que os de 2020, a despeito do agravamento da crise econômica, alta do preço dos alimentos e aumento do desemprego.

25 de março de 2021: após a aprovação da PEC Emergencial, a LOA finalmente entrou em discussão no Congresso e foi votada em 25 de março. O texto aprovado, porém, foi muito criticado por subestimar despesas obrigatórias e aumentar os recursos para emendas parlamentares. Desde 2020, estas emendas são em sua maioria de execução obrigatória – isto é, não podem ser cortadas pelo Executivo. Desta forma, o texto não poderia ser sancionado como estava, pois poderia causar uma paralisação da máquina pública, além de descumprir a meta de déficit primário estimada pela LDO e o Teto de Gastos, devido à subestimação das despesas obrigatórias.

Apesar desse aumento significativo de valores para emendas parlamentares, recursos para o enfrentamento à pandemia praticamente não foram adicionados pelos congressistas ao texto da LOA. Foi estimado apenas R$ 1,18 bilhão para apoio a ações de saúde, além de levar a outros cortes em gastos com a garantia de direitos, como analisou o Inesc.

Abril de 2021: crescem as tensões entre o governo federal e os parlamentares, pois ninguém queria assumir a responsabilidade pelo orçamento apresentado pelo Executivo e aprovado pelo Congresso Nacional. Para resolver o imbróglio, foi aprovado o Projeto de Lei do Congresso Nacional n° 2, que alterou a LDO para desobrigar o Estado a cumprir a Lei de Resultado Primário no que se refere aos recursos de combate à pandemia – o que poderia ter sido feito desde janeiro de 2021 com a prorrogação do Estado de Calamidade. Além disso, o PLN 02/2021 autorizou créditos extraordinários para medidas de enfrentamento à pandemia, como o Pronampe e o Benefício de Manutenção de Emprego e Renda. O governo promete R$ 5 bilhões para a primeira política e 10 bilhões para a segunda.

22 de abril de 2021: o Executivo sancionou a LOA 2021 com vetos – acordados com o Legislativo – para diminuir principalmente os valores destinados às emendas parlamentares. Entre os recursos vetados estão R$ 200 milhões que seriam utilizados para o desenvolvimento da vacina contra a Covid-19 no Brasil, além de cortes na saúde (veto de R$ 2,2 bilhões) e na educação (veto de R$ 1,1 bilhão e bloqueio de R$ 2,7 bilhões). O Censo corre risco de não ser realizado com os vetos de Bolsonaro. Ainda é possível que o Congresso Nacional reveja estes vetos.

Conclusões: temos um orçamento que não reflete a realidade e os recursos aprovados irão resultar na violação de direitos. As verbas para o enfrentamento da pandemia, além de insuficientes, seguem fora da LOA 2021, comprometendo sua transparência e monitoramento. Lamentável observar que nem o Executivo nem o Legislativo colocam como prioridade o enfrentamento à crise sanitária. O primeiro é obcecado pela manutenção das regras fiscais, ignora o sofrimento do povo e chantageia o Congresso. O segundo, para além da prioridade na responsabilidade fiscal, é preocupado com as eleições do ano que vem e está interessado nas emendas que poderão garantir votos.

Descaso com pandemia e direitos humanos marca orçamento federal de 2021

Artigo originalmente publicado no Congresso em Foco

 

Estamos passando pelo pior momento da pandemia no Brasil e não temos um orçamento para enfrentá-la. O Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) 2021 foi enviado pelo Executivo em agosto de 2020 e, após alterações feitas pelo Legislativo, foi aprovado no final de março, com três meses de atraso. Agora, o texto aguarda a sanção presidencial. Mas o que foi proposto é impraticável, pois subestimou os gastos obrigatórios para dar lugar a emendas parlamentares. Aprová-lo, portanto, significa possivelmente um crime de responsabilidade, o que está impedindo sua sanção pelo presidente da República.

Enquanto esperamos a resolução do imbróglio, milhares de pessoas estão diariamente perdendo suas vidas devido à covid-19 e milhões estão com fome. Em 2020, graças à pressão da sociedade, tivemos recursos volumosos para o enfrentamento da pandemia, ainda que com morosidade em sua execução e inexplicáveis saldos de recursos não utilizados em relação aos  valores autorizados – é o que apontamos no relatório “Um país sufocado – Balanço do Orçamento Geral da União 2020”, no qual também concluímos que várias políticas sociais e ambientais  tiveram, apesar da pandemia, seus recursos cortados.

Mas o que podemos dizer da Lei Orçamentária de 2021 aprovada pelo Congresso Nacional? Avaliamos neste artigo o orçamento previsto para o enfrentamento da pandemia e para as áreas de atuação do Inesc. Ainda que estes não sejam dados definitivos, pois o Executivo precisa sancionar a LOA e provavelmente vetará partes dela, já é possível fazer uma primeira estimativa da proposta para os gastos orçamentários de 2021.

Gastos para o enfrentamento da covid-19

Ano passado foram gastos R$ 524,0 bilhões para o enfrentamento da pandemia, para ações como auxílio emergencial, fortalecimento do sistema de saúde e apoio às empresas e aos estados e municípios. Esses gastos, porém, só foram possíveis devido à decretação de um estado de calamidade e à autorização de créditos extraordinários pelo Executivo, que criaram as condições fiscais necessárias para realizar gastos além do determinado na LOA aprovada no final de 2019.

O esperado seria, dado que estamos no segundo ano da pandemia, que o orçamento de 2021 refletisse o esforço orçamentário necessário para o enfrentamento da crise, que possui tanto um caráter econômico quanto sanitário e social. Entretanto, não foi isso que ocorreu: devido às regras fiscais vigentes, principalmente o teto de gastos, não foi possível adicionar ao texto da LOA recursos para o enfrentamento da pandemia e, novamente, vamos ficar nas mãos do Executivo e sua prerrogativa de criação de créditos extraordinários. O governo Bolsonaro já informou que não vai declarar o estado de calamidade e que o auxílio emergencial, única medida proposta para enfrentar a crise em 2021, será em valores muito inferiores aos R$ 600 de 2020: ele será pago em quatro parcelas, com valores de R$ 150, R$ 250 ou R$ 375, dependendo da família e limitado a um benefício por família.

Em resumo, não há recursos no orçamento de 2021 para o enfrentamento da pandemia. O único valor que aparece no texto da LOA aprovada pelo Congresso Nacional para combater a crise é de R$ 1,18 bilhão de recursos destinados à saúde. Para comparação, o valor gasto com o mesmo fim em 2020 foi de R$ 42 bilhões. Não há menção a outros programas de combate à crise, como o apoio a trabalhadores que perderem seus empregos ou tiveram suas jornadas de trabalho reduzidas.

Mesmo na saúde a situação não é muito positiva. Para além dos recursos específicos para a pandemia, em 2021 a área como um todo perdeu quase metade dos recursos autorizados no ano anterior, R$ 196,9 bilhões, e ficou um uma dotação inicial de R$ 136 bilhões. É como se a pandemia não tivesse se agravado neste ano, e não houvesse nenhum impacto de longo prazo.

Educação

O orçamento federal aprovado para 2021 está repleto de questões que precisarão ser resolvidas, ou inviabilizarão várias políticas públicas fundamentais. A Educação terá R$ 55 bilhões condicionados à aprovação do Congresso Nacional, porque afetam uma das regras fiscais, a regra de ouro, então, a responsabilidade ficará a cargo do Legislativo.

Para a função educação, que engloba todos os gastos para esta área no Executivo, foram autorizados R$ 113,8 bilhões para 2021. Quando comparamos com o aprovado em 2020, que foi R$ 116,6 bilhões, são R$ 3 bilhões a menos para uma área que vem perdendo recursos desde 2015 – em 2020, esta perda foi de ordem de R$ 7 bilhões.

Não é ocioso lembrar que, em 2016, ano de crise e de referência para a emenda do teto de gastos, o autorizado foi R$ 135,5 bilhões. Boa parte dos cortes está no ensino superior, inviabilizando atividades importantes em várias universidades federais. Para 2021 estão previstos R$ 33,7 bilhões, ou R$ 3 bilhões a menos que em 2020. A título de comparação, também com 2016, o autorizado para esta etapa de ensino foi de R$ 41,4 bilhões.

Direito à cidade

As três funções analisadas no orçamento de direito à cidade, urbanismo, habitação e saneamento tiveram altas em seus orçamentos. Ainda não temos como saber o porquê, mas como há várias ações com locais já predeterminados, podemos inferir que sejam fruto de emendas parlamentares. A maior alta se deu nos recursos para urbanismo, com aporte de mais R$ 3 bilhões em comparação com 2020,  onde há várias políticas para as cidades, dentre elas o transporte público urbano, que apesar de estar em profunda crise em várias cidades, teve recursos extras vetados pelo presidente e o que está previsto para esta ação é menor que em 2020. E a maior parte vai para infraestrutura e não para apoiar os sistemas de transporte público urbano.

Apesar do aumento dos recursos em urbanismo, para a subfunção transporte público urbano, os recursos que eram da ordem de R$ 545 milhões, em 2021 são R$ 494 milhões. Se já eram insuficientes, agora ainda mais, visto que o projeto de apoio aos sistemas de transporte vetado pelo presidente no final de 2020 previa um aporte de R$ 4 bilhões apenas para o custeio do sistema. E o que está previsto, que é 10% do que foi vetado, apenas uma pequena parte é para apoio ao serviço prestado. Estamos vendo diariamente a precariedade da oferta de transporte coletivo, cujos veículos viraram pesadelo para os trabalhadores e trabalhadoras que precisam circular e que não têm segurança alguma de que não se contaminarão, pois trafegam sempre com lotação máxima e sem fiscalização por parte do poder público.

Meio ambiente

O PLOA 2021 evidenciou, mais uma vez, a irresponsabilidade na condução da política ambiental. Para o ICMBio, cuja principal missão é fazer a gestão das Unidades de Conservação, o corte de R$ 119 milhões reduziu pela metade a capacidade de gasto do órgão. No Ibama, o governo propôs cortar em 2021 R$ 118 milhões para o órgão e as duas ações orçamentárias referentes ao combate ao desmatamento ilegal também sofreram pesados cortes na proposta do governo, perdendo R$ 49 milhões se comparado a 2019.

A despeito da campanha Floresta Sem Cortes e do trabalho do relator setorial do PLOA para o meio ambiente (deputado Nilto Tatto, PT-SP), no Congresso Nacional foram aumentados em apenas R$ 14,6 milhões estes valores, muito pouco perto do tamanho do corte que o Executivo propôs. O orçamento aprovado para o meio ambiente em 2021 torna, assim, inviável a própria existência do ICMBio e compromete severamente a fiscalização ambiental do Ibama.

Ao mesmo tempo, a ação do ministro do meio ambiente, Ricardo Salles, junto ao relator e em articulação com parlamentares, multiplicou quase 18 vezes (de R$ 12,6 milhões em 2020 para R$ 244,74 milhões em 2021) os recursos para uma ação orçamentária do Ministério do Meio Ambiente denominada “Implementação de programas, planos e ações para melhoria da qualidade ambiental urbana – Aquisição de Máquinas, Equipamentos e Materiais Permanentes”. Com estes recursos, o governo pretende multiplicar pelo país, com concentração em São Paulo, usinas de geração de energia a partir de resíduos sólidos urbanos.

Crianças e adolescentes

O orçamento para crianças e adolescentes seguirá em 2021 priorizando o programa Criança Feliz, de acompanhamento de crianças de 0 a seis anos com o objetivo de promover desenvolvimento na primeira infância, que consumirá 98% de todos os recursos para a assistência à criança e o adolescente no ano. O programa, que ainda precisa ser avaliado em relação aos seus resultados, deverá ter um aumento de seus recursos em 7,1% em 2021 comparados ao valor autorizado em 2020.

Enquanto isso, em 2020 os recursos para a educação infantil foram quase três vezes menores quando comparados com 2019, e vários programas da área como o enfrentamento do trabalho infantil ou a educação de jovens e adultos (EJA) tiveram seus orçamentos drasticamente reduzidos. Para 2021, o orçamento aprovado pelo Congresso Nacional prevê a reestruturação do orçamento para a educação infantil, com aumento de 66,1% nos seus recursos – ainda que, quando comparamos com o executado em 2019, o valor é 30,8% inferior, o que sinaliza que os recursos para esta política continuam em processo de queda. A EJA segue sem recursos autorizados suficientes para seu funcionamento adequado – como mostramos em nosso relatório, ele se mantém na sobrevida nos últimos anos, apenas com pagamentos relacionados a anos anteriores.

Igualdade racial e quilombolas

Na ação Promoção e Defesa de Direitos para Todos, de execução do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), estão previstos R$ 2,5 milhões espalhados principalmente em quatro políticas: ações de promoção da igualdade racial e promoção dos direitos de matriz africana (R$1,4 milhões); igualdade racial no estado de Sergipe (R$ 800 mil); povos e comunidades tradicionais – nacional (R$ 100 mil), e povos e comunidades tradicionais no Rio Grande do Norte (R$ 200 mil).

Em relação aos quilombolas, alguns programas e ações tiveram seus recursos aumentados pelo Congresso Nacional. Para saneamento básico em comunidades quilombolas, estão previstos R$ 160,4 milhões –  no PLOA 2021 proposto pelo Executivo a previsão era de R$ 80 milhões. Para a distribuição de alimentos a grupos populacionais tradicionais e específicos, de R$ 18,6 milhões saltou para R$ 100,3 milhões com as emendas parlamentares. Esta política executou R$ 12,5 milhões em 2020.

A Fundação Palmares, porém, segue em um cenário desesperador de redução de recursos. Para ela foram destinados apenas R$ 1,4 milhão, na proposta do Executivo estavam previstos R$2,7 milhões.

Mulheres

Os recursos para garantir direitos humanos no orçamento do governo Bolsonaro foram, em sua maior parte, aglutinados em um só programa orçamentário Programa 5034: Proteção da Vida, Fortalecimento da Família e Diretos Humanos, executado pelo MMFDH, que abriga políticas para diversos públicos: mulheres, população negra, idosos, crianças e adolescentes, pessoas com deficiência, indígenas e quilombolas. A LOA 2021 prevê R$ 336,2 milhões para este programa, R$204 milhões a mais que os R$132,3 milhões previstos no PLOA 2021. Em 2020, este programa teve R$ 416,1 milhões na LOA 2020, e após os créditos extraordinários decorrentes da pandemia chegou a R$ 599,7 milhões autorizados (dados corrigidos pela inflação, acesso em abril de 2021). Ou seja, o recurso para 2021 é 19,2% inferior ao inicialmente aprovado para 2020, e 43,9% menor que o recurso total autorizado ano passado.

É possível encontrar alguns recursos específicos para políticas para mulheres, que aumentaram devido às emendas adicionadas pelo Congresso Nacional. As ações de enfrentamento a violência contra a mulher receberam R$ 2,5 milhões e as Casas da Mulher Brasileira, que oferecem serviços de assistência às mulheres, tiveram R$ 28,9 milhões de recursos garantidos, um aumento de R$ 1 milhão se comparado com o valor apresentado pelo Executivo no PLOA.

Indígenas

Para a área indígena, não houve mudanças do texto enviado pelo Executivo para o aprovado pelo Parlamento. As projeções para a Funai parecem otimistas: para 2021 o órgão contará com cerca de R$ 11,5 milhões a mais do que no PLOA 2020. No entanto, boa parte desses recursos está sujeita à aprovação legislativa: dos R$ 648,5 milhões atribuídos para a Funai em 2021, R$ 338,5 milhões estão sujeitos à aprovação do Congresso. Além disso, o acréscimo orçamentário previsto para o ano que vem está longe de ser suficiente para recuperar a esgarçada estrutura do órgão. O valor, por exemplo, está muito distante dos R$ 870 milhões atribuídos à Fundação em 2013.

No que tange à Saúde Indígena, a LOA 2021 atribuiu R$ 67,9 milhões a mais para a principal ação orçamentária da área, totalizando R$ 1,4 bilhão, algo muito positivo dado o elevado número de mortes indígenas devido ao novo coronavírus em 2020. É possível que tal aumento seja resultado das mobilizações dos movimentos sociais junto ao STF por ações mais efetivas no enfrentamento ao novo coronavírus nos territórios indígenas. De qualquer forma, é necessário monitorar os gastos para que os recursos cheguem à ponta, pois houve lentidão orçamentária ano passado: em 2020 chegamos em setembro com apenas 62% de execução orçamentária.

* Livi Gerbase, Nathalie Beghin, Carmela Zigoni, Alessandra Cardoso, Cleo Manhas, Thallita de Oliveira, Leila Saraiva e Luiza Pinheiro, integrantes da equipe do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).

O recrudescimento da pandemia e a polêmica volta às aulas

Vários estados brasileiros começaram a se preparar para o retorno ou já estão em aulas presenciais em 2021, visto que as redes públicas nos estados e municípios, em maioria, estão com aulas presenciais suspensas desde março de 2020. No entanto, as curvas de contágio e morte que vinham caindo, voltaram a subir, em alguns lugares de forma assustadora. Quase todos os estados estão com hospitais lotados e com filas de espera. E isso ocorreu após relaxamento nos cuidados preventivos para evitar contágio na retomada de aulas presenciais.

Amazonas e Pará retomaram aulas em agosto e setembro de 2020 e, conforme anunciado, foi no mesmo Amazonas que o contágio e a letalidade aumentaram, se espalhando em seguida por todo o Brasil. Na Bahia há uma disputa entre judiciário, que quer voltar as aulas até março, e o executivo, que ainda tenta adiar o retorno. Em Maceió, escolas da rede privada retomaram aulas presenciais em janeiro, mas já em fevereiro tiveram de fechar várias por casos suspeitos de contaminação.  Piauí aprovou o retorno em setembro, mas em janeiro aprovou sistema híbrido.

Na região Centro-Oeste, as redes pública e privada de Goiás retomaram de forma híbrida em janeiro. O estado, em fevereiro, estava com leitos 100% ocupados e tendo de fazer isolamento social mais rígido em várias regiões. No Distrito Federal as escolas privadas retomaram presencialmente em setembro de 2020, com adesão de no máximo 30% dos estudantes. As públicas ainda estão em sistema remoto apesar da forte pressão, com resistência por parte de professores principalmente.

Em São Paulo, o retorno seria no início de março e foi adiado para 1 de abril devido as altas de contágio e letalidade. No entanto, muitas atividades estão funcionando, mesmo que com toque de recolher, e certamente em duas semanas a questão não se resolverá. Todos os estados do sul estão com capacidade máxima e filas de espera por leitos para tratamento da Covid-19.

O que são de fato atividades essenciais em meio a uma pandemia?

Estamos em um dos momentos mais críticos da pandemia, com filas de espera em todas as redes públicas de saúde de estados e municípios. No entanto, as medidas de isolamento não estão sendo eficazes, pois são confusas e parciais, deixando muita gente em circulação, não ajudando a abaixar as curvas de contágio e letalidade. Então, os setores obrigados a parar ficam revoltados, pois nem todas as áreas se submetem ao lockdown e, portanto, não resolve, apenas satura os que precisam parar.

“Atividades essenciais” é um termo que ficou esvaziado, já que varia de local para local. Em Brasília, por exemplo, academias para prática de esporte podem ficar abertas, escolas privadas estão funcionando, escolas públicas apenas em modo remoto. Daí tantos questionamentos, pois há uma confusão de prioridades, movida por interesses econômicos e pressão de empresários contra o que preconiza a saúde pública.

Surgem, então, muitas narrativas conflitantes. Por exemplo, sobre professores da rede pública não quererem trabalhar, como se não o fizessem no ensino remoto. Fazem até com mais dificuldades, pois para muitas (os) a utilização de plataformas de ensino está fora da prática cotidiana ou do que fizeram ao longo da vida em sala de aula.

Retorno às aulas presenciais significa 25% da população brasileira em circulação

Há vários casos de profissionais da educação e mesmo estudantes que foram contaminados pelo novo Coronavírus após retorno das atividades presenciais. Até mesmo casos de óbito em decorrência do contágio. Para se ter uma ideia do que significa o retorno total às aulas presenciais em todos os níveis e em todos os municípios, de acordo com o Censo Escolar da Educação Básica MEC/Inep, 2020, o Brasil tem apenas na educação básica (da infantil ao ensino médio normal e técnico) 45 milhões de estudantes. Sem contar o ensino superior que acrescenta mais 8,6 milhões, totalizando 53,6 milhões de pessoas. Somando as professoras e professores nesta conta temos mais 2,6 milhões. Então, se todos os sistemas de ensino no país funcionarem de forma presencial, serão cerca de 56 milhões de pessoas circulando, ou 25% da população.

Ensino Híbrido e possibilidade de inovação

Sabe-se, ainda, que as propostas de retorno híbrido especialmente para as escolas públicas, que não têm infraestrutura para receber todos os estudantes, não resolverá as enormes lacunas sedimentadas durante esse um ano em que convivemos com a pandemia. As professoras e os professores que terão que dar conta do ensino presencial e remoto são os mesmos. O revezamento para acesso ao presencial faz com que estudantes frequentem a escola em espaços muito grandes de tempo e o restante por ensino remoto. O modelo não ajudará a reduzir desigualdades existentes dentro das próprias escolas públicas, com assimetrias de acesso; e principalmente entre redes pública e privada.

Estamos fazendo o primeiro aniversário da convivência com o novo coronavírus sem, no entanto, pensar e propor novas formas de ensino/aprendizagem. Mesmo diante dessa enorme adversidade, as caixinhas continuam as mesmas, o máximo que fizeram, tanto rede pública quanto privada, foi transpor para plataformas virtuais o modelo de educação bancária criticada por Paulo Freire desde a década de 1970.

Estamos presos em modelos retrógrados, com dificuldades de repensar as salas de aula, conectados com Bases Nacionais Comuns Curriculares que se prendem ao conteudismo, a despeito da criatividade. E que neste momento ainda convivem com propostas fundamentalistas, criacionistas, ligadas à escola sem partido.

Paulo Freire tem sido atacado por todos os lados, mesmo sendo o intelectual brasileiro mais citado e respeitados em universidades mundo afora. Talvez porque em seus escritos e a partir de sua experiência é possível vermos luz no fim do túnel da ignorância. Por que não nos inspirarmos na educação popular para propor novas formas de interação mesmo que à distância? Menos opressão de conteúdos descontextualizados e mais história de gente? Maior conexão com o que estamos vivendo aqui e agora, estimulando pesquisa e criatividade por parte dos estudantes? Autonomia é a grande saída para esse imbróglio de desigualdades que estamos vivenciando. Há vida inteligente mesmo que de forma remota, basta abrirmos nossas mentes para o novo, não tão novo assim, diria Freire.

O Auxílio Emergencial faz diferença na vida das mulheres

As mulheres negras são as mais afetadas pelas consequências da pandemia da Covid-19 no Brasil. Contudo, o Auxilio Emergencial – conquistado após pressão da sociedade civil – foi um importante mecanismo de diminuição da pobreza e das desigualdades de gênero e raça. Sua interrupção voltou a penalizar as mulheres, em especial as negras, daí a urgência de retomar o programa, considerando a gravidade do momento.

A crise tem rosto de mulher

Raquel tem 28 anos. Tem quatro filhos, é parda e mora na periferia da capital federal. Com a pandemia, teve que lagar o emprego para cuidar das crianças, pois não tinha mais com quem deixá-las – uma vez que a escola e a creche fecharam em razão do necessário distanciamento social. Por ser mãe solteira foi beneficiada com o Auxílio Emergencial no valor de R$ 1.200, o que corresponde a dois benefícios. “Foi o que nos salvou”, disse-me ela, “com esses recursos, pude dar de comer para meus filhos e, também, comprar remédios, pois um deles tem bronquite, e comprar créditos para o celular para que o menino possa assistir as aulas”.

Agora Raquel vive com o Bolsa Família, com pouco mais de quatrocentos reais mensais. Se não fosse o apoio da rede de solidariedade que a circunda, não daria conta de fechar o mês, pois continua sem trabalhar porque os equipamentos públicos de educação permanecem fechados em decorrência da nova onda da Covid-19, que vem resultando em mais de mil mortes por dia.

A situação da Raquel é a expressão de milhões de mulheres no Brasil. A crise econômica, que se agravou com a crise sanitária em 2020, tem rosto de mulher.

Com efeito, as mulheres vinham perdendo mais com o baixo crescimento econômico em tempos recentes, pois apresentavam uma taxa de desocupação, em 2019, 4 pontos percentuais acima da masculina, algo em torno de 14%. Em relação à informalidade, homens e mulheres eram penalizados de forma similar, segundo dados da Pnad Contínua, mas por um longo período as mulheres foram maioria nas relações de trabalho precarizadas. Também permaneceu o diferencial de renda por gênero: o rendimento das mulheres foi em média 77% do masculino em 2019[1].

Com a pandemia, a desigualdade de gênero se agravou. Em primeiro lugar, porque as mulheres são maioria no setor de serviços, especialmente na saúde, educação, limpeza e comércio essencial, estando assim na linha de frente e mais suscetíveis ao vírus. Também são maioria nos serviços não essenciais como cabeleireiras, podólogas e manicures, sofrendo mais com o desemprego ou falta de clientes.

Em segundo lugar, porque a paralisação de aulas presenciais provocou um substantivo aumento na demanda de trabalho doméstico voltado aos cuidados (limpeza da casa, preparo das refeições, cuidados dos filhos e idosos, acompanhamento da educação “virtual” das crianças, entre outros), que foi em grande parte absorvido pelas mulheres.

E mais: o Brasil apresenta a maior mortalidade por Covid-19 entre gestantes e puérperas do mundo, com 77% dos casos mundiais de mortes neste grupo, o que demonstra as fragilidades do nosso sistema de saúde nessa área.

Como se não bastasse, as dificuldades econômicas provocam aumento da violência doméstica, com possível aumento da subnotificação. As vítimas estão em casa sob controle dos abusadores, enquanto os sistemas públicos de apoio às vítimas – que já vinham sofrendo cortes orçamentários em função das medidas de austeridade – são prejudicados pela crise.

As desigualdades raciais se acirram

A situação é ainda mais grave para as mulheres negras. Com efeito, entre 2014 e 2019, a taxa de informalidade das negras e brancas elevou-se de maneira geral, mas o patamar foi bem distinto segundo a raça/cor: para as negras, em 2019, a taxa foi de quase 45%, enquanto para as brancas foi de 32%. Também, em 2019, observaram-se significativas diferenças de taxa de subutilização da força de trabalho por raça/cor: para mulheres brancas este índice ficou em 22%, para mulheres negras ele foi de 34%. Em outras palavras, as negras entraram na pandemia em pior situação.

No que se refere à mortalidade entre gestantes e puérperas, a taxa entre brancas foi de quatro pontos percentuais abaixo da taxa do grupo que engloba todas as outras raças, essencialmente mulheres negras.

A importância do Auxílio Emergencial

O Auxílio Emergencial foi um poderoso mecanismo de alívio da fome em meio à crise econômica que se seguiu à crise sanitária provocada pelo alastramento do Sars-Cov-2. Dados produzidos pelo Ibre/FGV, a partir da Pnad-Covid, revelam que o benefício contribuiu para que a extrema pobreza no Brasil chegasse ao seu nível mais baixo da história recente, 2,3%, o que inclui as mulheres. Como a maior parte dos recursos do Auxílio se destinou a compras de alimentos, o impacto desse programa na fome foi inegável.

Os benefícios do Auxílio Emergencial não param por aí. O programa foi fundamental para diminuir as desigualdades de gênero e raça. Com efeito, estudo publicado pelo Made/USP mostra que no caso de domicílios chefiados por mulheres negras, o Auxilio Emergencial mais do que compensou a perda da renda do trabalho em decorrência da Covid-19. E mais: antes da pandemia, a renda per capita dos domicílios chefiados por homens brancos era 2,5 vezes superior à renda per capita dos lares chefiados por mulheres negras. Com o Auxílio Emergencial, essa razão caiu para 2.

 

[1] A esse respeito, ver “Austeridade, pandemia e gênero” de Ana Luíza Matos de Oliveira, Luana Passos, Ana Paula Guidolin, Arthur Welle e Luiza Nassif Pires. In “Economia Pós-Pandemia – Desmontando os mitos da austeridade fiscal e construindo um novo paradigma econômico”, coordenado por Pedro Rossi, Esther Dwek e Ana Luíza Matos de Oliveria, disponível na página: https://pedrorossi.org/wp-content/uploads/2020/11/Economia-Po%CC%81s-Pandemia-compactado.pdf

E a educação pública poderá ir para o ralo…

Final de 2020, em meio a tantas notícias ruins, houve vitória do movimento social pela educação, com a aprovação de um Fundeb permanente e com potencial de mais recursos de 2021 até 2025. No entanto, há uma crença popular de que quem muito ri, em seguida há de chorar. E não é que a pequena vitória está se voltando contra nós, com a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 186, que acaba com vinculações orçamentárias de saúde e educação? Ainda com a falsa premissa que sem isso não é possível oferecer o auxílio emergencial.

Como linguista de formação, mas não de profissão, fico triste com os usos que muitas pessoas têm feito da língua, significado e significante não se juntam mais nem no infinito. Além disso, não há compromisso com a verossimilhança: fala-se o que quer, sem que o dito tenha lastro com o que de fato é. O presidente da Câmara dos Deputados, por exemplo, falou para o Portal UOL que muitos prefeitos jogam dinheiro fora para cumprir com os mínimos constitucionais, quando se sabe que os mínimos não são suficientes nem para educação, nem para a saúde; e que há tempos gasta-se além dos mínimos.

Com relação à educação, sabe-se que as escolas públicas estão longe de serem centros de excelência, ou mesmo de oferta da educação de qualidade que se quer; não por falta de empenho dos profissionais da educação, mas porque o cobertor é curto. Os recursos não são suficientes para que tenhamos escolas com quadras cobertas, laboratórios, bibliotecas equipadas com computadores, menos alunos por sala de aula. Há, até mesmo, 2 milhões de estudantes sem acesso à água potável em suas escolas. Uma educação mais voltada para o século XXI e menos século XIX.  No entanto, foi a partir da Constituição de 1988 que o direito a educação para todas as pessoas tornou-se real.

Até então, as escolas públicas eram para poucos, que conseguiam aprovação em seleções difíceis, ou sorteio de vagas, ou mesmo por indicação de alguém do andar de cima, afinal, sempre fomos o país do “sabe com quem está falando?”. Desse período sobrou uma lembrança idílica de que as escolas públicas eram maravilhosas e hoje são péssimas. Às vezes cansa repetir que direito restrito a poucos, não é direito, mas sim privilégio. E quando é para poucos, fica mais fácil ser de excelência.

Então, quando o acesso foi universalizado caiu a qualidade, porque as redes públicas cresceram vertiginosamente. E é por isso que lutamos por mais recursos, com a aplicação do Custo Aluno Qualidade- CAQ, criado e defendido pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, que estabelece referenciais para que alcancemos a educação de qualidade, onde quer que as escolas estejam. Leva-se em consideração o tamanho das turmas, infraestrutura das escolas, salários dos profissionais da educação compatíveis com outras carreiras de nível superior, formação continuada para professoras e professores. O CAQ inverte a lógica da política orçamentária de partir do que se tem disponível para decidir o quanto vai para cada área, propondo que se veja o valor necessário para se ter educação de qualidade e aplicar.

O Plano Nacional de Educação, aprovado em 2014, Lei 13.005/2014, parece peça de museu guardada dentro de uma redoma, amarelado pelo tempo e esquecido por aqueles que deveriam cumpri-lo, em especial, o Ministério da Educação (MEC). Na meta 20, que se refere ao financiamento da educação, as estratégias 20.7 e 20.8 mencionam o CAQ, estabelecendo que este seja o referencial para financiamento de todas as etapas da educação básica, implantado em 3 anos, ou seja, deveria ser 2017, acompanhado pelo Fórum Nacional de Educação (FNE).  Moral da história, até mesmo o FNE foi extinto, bem como todas as instâncias de participação popular no atual governo.

Então, a expectativa apresentada com a aprovação do PNE, de que teríamos 7% do PIB para a educação pública até 2019 e 10% até 2024 virou fumaça e dispersou-se antes mesmo de 2019. E agora, em 2021, com a situação precária de todas as políticas públicas realizadoras de direitos, educação e saúde públicas estão em risco de extinção.

E é isso que precisa ficar nítido para toda a população brasileira. Há um projeto neoliberal de acabar com políticas públicas. Reduzindo o Estado ao mínimo que garanta boa vida a grandes empresários, agronegócio, privilégios aos de sempre. Não podemos esquecer que um dos grandes incômodos provocados pelos governos do PT foi a ampliação de vagas nas universidades para pessoas negras e oriundas das escolas públicas.  Além de ampliar significativamente as universidades públicas em número e tamanho.

Neste momento estão negociando o fim do financiamento obrigatório para as universidades e institutos federais. Pode ser a pá de cal que faltava para acabar com ensino superior público, nos assemelhando aos Estados Unidos, onde as melhores universidades são pagas e os valores acessíveis apenas para a elite econômica. Se já somos um dos países mais desiguais do mundo, talvez agora cheguemos em primeiro lugar no ranking do horror.

Ao que parece estamos presenciando um momento verdade daqueles que sempre foram os donos do poder, que financiaram a escravidão, que fazem casas e apartamentos com “dependência completa para empregadas”, que dizem que índios e quilombolas são preguiçosos, que colocam no paredão qualquer pessoa negra, mas preservam os seus, mesmo que assassinos, milicianos, genocidas…

Vídeo: Caatinga, hierarquias e pandemias

“Nós, para vivermos de forma integrada, para termos qualidade de vida, nós precisamos respeitar todas as vidas, sem hierarquizar e sem classificar.” (Nêgo Bispo).

A marca do modo de pensar de Antonio Bispo dos Santos, Nêgo Bispo, é a originalidade. Provocado a falar sobre a Covid-19, ele escolheu abordar o aspecto socioambiental. “Há no Brasil, uma super-discriminação em relação ao bioma semiárido.” E emendou: “Subestimar um bioma é subestimar as vidas que ali existem. É também praticar a pandemia. Todas as vidas importam. Todos os biomas importam.”

Este vídeo foi feito respeitando o distanciamento social. A produção e direção é de Dacia Ibiapina, com apoio do Inesc e da Conaq. O depoimento foi gravado por Sérgio Gomes com seu celular, em dezembro/2020. As demais imagens foram gravadas por Ivan Costa, em Saco Curtume, comunidade quilombola onde reside Nêgo Bispo, em São João do Paiuí (PI). Foi durante as comemorações dos 60 anos de Nêgo Bispo, em dezembro/2019, antes da Covid-19. A direção é de Dácia Ibiapina, a edição é de Isabelle Araújo, a edição de som é de Guile Martins e a música é de Luiz de Chubel.

Dacia Ibiapina, cineasta

 

 

Quilombolas no contexto da pandemia Covid-19

Carmela Zigoni, Assessora Política do Inesc

A pandemia Covid-19 vitimou mais de 179 quilombolas no Brasil, e contaminou mais de 5 mil. Os dados são da Coordenação Nacional de Comunidades Negras Rurais Quilombolas ( Conaq), que tem feito o registro de casos e óbitos, pois os órgãos de saúde não têm marcadores étnico-raciais que os contemplem.

As comunidades quilombolas estão presentes em todo o território nacional e são um dos grupos mais afetados por projetos com impactos socioambientais negativos, tais como mineração e agronegócio. Somente 7% dos territórios quilombolas são titulados no país, a despeito do direito previsto na Constituição de 1988 e no Decreto 4887/2004. Desde 2017, nenhum recurso orçamentário foi alocado para regularização fundiária destes territórios.

Em contrapartida, os territórios quilombolas permanecem resistindo, e buscam praticar outros modelos de produção não predatório, como a agroecologia e a agricultura familiar.

Os quilombolas lutam desde o início da pandemia contra a invisibilidade e por políticas públicas específicas que respeitem sua cultura e vulnerabilidade das comunidades.  No entanto, têm sido sistematicamente vítimas do racismo institucional. Durante todo o ano de 2020, incidiram em busca de direitos, o que se materializou pela ADPF 742 enviada ao Supremo Tribunal Federal – STF.

O ano de 2021 iniciou com a notícia de que os quilombolas estão sendo excluídos dos grupos prioritários de acesso a vacina contra o coronavírus.

A contribuição do mestre Antônio Bispo dos Santos para a reflexão sobre a pandemia, feita por meio do vídeo dirigido pela cineasta Dacia Ibiapina, se inscreve neste contexto. Para o mestre, a pandemia é fruto de processos de hierarquização e discriminação mais amplos, nos quais não só os humanos são afetados, mas todos os seres daquilo que os humanos denominam natureza. Essa falsa oposição entre humanidade e natureza intensifica processos socioambientais destrutivos que desembocaram na pandemia Covid-19.

Suas reflexões sobre a colonialidade perene e contemporânea na sociedade brasileira, bem como seus conceitos de confluência e transfluência como formas de contra-colonialidade, estão desenvolvidas no livro Colonização – Quilombos! Modos e Significações (2019), bem como no artigo Somos da Terra (2018). Nestas obras, Mestre Bispo sinaliza para a inviabilidade do modelo colonial – mal disfarçado por instituições ditas democráticas – para a reprodução dos modos de vida quilombola, e da própria vida no planeta.

Ao construir um conceito local de pandemia no vídeo “Caatinga, Hierarquias e Pandemias”, Antonio Bispo dos Santos se posiciona em relação a esta colonialidade, trazendo para o centro a visão de mundo e os modos de vida quilombola e a sua relação particular com o território, visto como um espaço de compartilhamento entre pessoas e meio ambiente.

Funai gastou apenas 52% dos recursos para enfrentamento da Covid entre indígenas

Levantamento inédito do Inesc (Instituto de Estudos Socioecnômicos) mostra que até o início de dezembro, a Funai gastou apenas 52% dos recursos destinados ao enfrentamento do novo coronavírus entre povos indígenas. Os gastos do órgão com o programa “Proteção e Promoção dos Direitos dos Povos Indígenas” também seguiram ritmo contrário ao exigido pela gravidade da pandemia: apenas 46% do orçamento foi executado até agora. “O baixo índice de execução orçamentária é emblemático da fragilização da política indigenista que, esvaziada de pessoal, corpo técnico e prioridade política, ausenta-se de cumprir seus deveres constitucionais”, alertou Leila Saraiva, assessora política do Inesc.

Os números endossam o relatório  Nossa luta é pela vida, lançado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) na semana passada, que apresenta um panorama sobre as situações vividas pelos povos indígenas do Brasil em decorrência da pandemia. O novo coronavírus já atingiu diretamente mais da metade dos 305 povos indígenas que vivem no Brasil. Até 9 de dezembro, o Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígena registrou 41.250 infectados e 889 óbitos em decorrência da Covid-19.

 

Leia a íntegra do levantamento:

Genocídio em curso: até o início de dezembro de 2020, Funai gastou apenas 52% dos recursos destinados ao enfrentamento do novo Coronavírus entre povos indígenas.

Com a chegada do novo Coronavírus em território brasileiro, foram destinados para a Fundação Nacional do Índio (Funai) R$18.340.000,00 em recursos extraordinários e redirecionados R$23.073.386,00 dos recursos próprios para o enfrentamento da pandemia entre povos indígenas. O gasto efetivo do recurso, no entanto, não acompanha a gravidade dos efeitos do vírus entre os povos originários: apenas 52% dos recursos foram efetivamente pagos até o início de dezembro de 2020.

O Gráfico 1 aponta para uma taxa de execução orçamentária de 74% nos recursos extraordinários, mas de apenas 33% nos recursos próprios da Funai redirecionados para o enfrentamento da pandemia. Pode-se aferir que a taxa de execução dos recursos extraordinários responde à pressão e organização dos movimentos indígenas que, entre outras coisas, obtiveram sucesso na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 709, exigindo, no Supremo Tribunal Federal, ação do Executivo contra a pandemia. O ritmo de execução dos recursos próprios, no entanto, segue mesmo ritmo dos demais gastos do órgão: dados do Siga Brasil demonstram que apenas 46% do orçamento de seu principal programa finalístico (0617 – Proteção e Promoção dos Direitos dos Povos Indígenas) foram gastos até o início de dezembro. O baixo índice de execução orçamentária é emblemático da fragilização da política indigenista que, esvaziada de pessoal, corpo técnico e prioridade política, ausenta-se de cumprir seus deveres constitucionais.

Os efeitos do novo Coronavírus entre os povos indígenas foram, desde a chegada da pandemia no Brasil, dramáticos. Dados do monitoramento autônomo realizado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil em parceria com o Instituto Socioambiental do dia 8 de dezembro afirmam que há 41.250 casos confirmados em 161 povos afetados, resultando em 889 indígenas mortos em decorrência da doença. As perdas, como o movimento indígena tem afirmado desde maio, não são mensuráveis: representam mais um ataque na série de ofensivas contra os povos originários que, além da pandemia, enfrentam também invasões e violações de seus territórios, violência política e ambiental e a sanha de um governo que se posiciona explicitamente contra seus direitos.

 

Para que piorar as coisas?

Em artigo para o Le Monde Diplomatique Brasil, Adhemar Mineiro, consultor do Inesc, explica como os acordos de livre comércio com a União Europeia e EFTA ampliam pressão do agronegócio sobre o meio ambiente. Para saber mais sobre os acordos acesse os informativos do Inesc sobre o assunto:

> > Entenda o acordo Mercosul – EFTA

>> Entenda o acordo Mercosul – União Europeia

 

Leia a íntegra do artigo:

Dois biomas brasileiros estão em chamas. De acordo com dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) para setembro de 2020, a Amazônia teve seu segundo pior mês de setembro, só superado pelo ano de 2017, com 32.017 focos de calor – um aumento de cerca de 60% em relação ao mesmo mês do ano passado. No Pantanal, o aumento foi três vezes maior: 180% em relação ao mesmo mês do ano passado, chegando a 8.106 focos de calor, constituindo, de longe, o pior setembro da série desde 1998.

Analisando as informações entre 2016 e 2019 para a Amazônia, o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) é bastante claro em sua avaliação: “As queimadas associadas ao manejo agropecuário foram o principal tipo de fogo registrado no período.” E isso não acontece por acaso: entre 2016 e 2020, os governos que se sucederam no Brasil (Michel Temer e Jair Bolsonaro), implícita ou explicitamente, foram apoiados pelo agronegócio, e no caso do segundo, o seu discurso de campanha foi um incentivo não apenas ao agronegócio, mas a madeireiros, garimpeiros e grileiros, especialmente no Norte do país.

Assim, o crescimento do agronegócio corresponde a uma pressão pelo aumento da produção, seja pela intensificação em áreas onde já se produz, seja pela ocupação de novas áreas. Parte expressiva dessa pressão ocorreu a partir da virada do século com a busca dos chineses por produtos agropecuários, e o aumento da intensidade do comércio do Brasil (e muitos outros países da América Latina e do restante do Mundo) com a China. Essa já era uma pressão existente, e com fortes danos ambientais causados pela extensão da área de produção do agronegócio,  e pelo aumento de adubos, defensivos e outros produtos agressivos ao meio ambiente.

A questão agora é que esse processo pode ser ampliado com a assinatura de acordos de livre comércio com a União Europeia e com a Área Europeia de Livre Comércio (conhecida pelo acrônimo em inglês EFTA, European Free Trade Area, e que inclui Suíça, Liechtenstein, Noruega e Islândia). Esses acordos, embora representem universos diferentes (enquanto os quatro países do EFTA representam pouco mais de 14 milhões de habitantes e cerca de US$ 1 trilhão de PIB, a EU representa cerca de 32 vezes a população do EFTA, e cerca de 20 vezes o PIB dos países que compõem o EFTA), vão no mesmo sentido em geral – um sentido que poderia se chamar de “neo-colonial”, onde os países do Mercosul se especializam em produzir produtos primários, do agronegócio ou da mineração, e em importar produtos de mais alto valor agregado industrial e serviços, seja da UE, seja do EFTA. Assim, teremos uma pressão ainda maior nos países do Mercosul em geral, e no Brasil, em particular, pelo aumento da produção do agronegócio caso sejam ratificados esses acordos já negociados.

É importante observar que os impactos negativos dos acordos não se restringem à área ambiental, já que a pressão pela expansão da área de produção do agronegócio ameaça áreas hoje ocupadas por reservas indígenas, populações tradicionais (ribeirinhos, quilombolas, quebradeiras de coco, e outras populações), assim como áreas onde hoje produz a pequena agricultura camponesa e a agricultura familiar em geral. Assim, existe também uma forte pressão social na expansão do agronegócio.

Outro ponto é que os impactos ambientais dos acordos não se restringem à expansão da área de produção do agronegócio e ao desmatamento. Na área industrial, com a liberalização de tarifas e os acordos, acaba cabendo ao Mercosul se especializar em produtos de menor valor agregado, muitos deles intensivos em impactos ambientais, ou em consumo de energia (e aí, sabemos que vai nos caber gerar energia para as cadeias industriais, o que também têm custos ambientais, como as barragens).

Cabe então uma pergunta importante: para que piorar a situação ratificando os acordos comerciais em discussão?

Adhemar S. Mineiro é economista e consultar da Rede Brasileira pela Integração dos Povos e do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).

Eleições 2020: perfil das candidaturas eleitas em 1º turno

Considerando o resultado das eleições nos 5.408 municípios onde o pleito foi definido no último domingo (15/11)[1], já é possível visualizar um “perfil do poder”, relacionando raça, gênero, patrimônio e posição ideológica dos eleitos para mandatos de prefeitura e vereança nos próximos quatro anos. Haverá segundo turno em 57 municípios e 102 cidades estão com candidatos, eleitos ou ainda disputando, sub judice.

Nas capitais, os partidos de centro elegeram 2 prefeitos no 1º turno (Campo Grande e Palmas), os de direita, 5 (Belo Horizonte, Curitiba, Florianópolis, Natal e Salvador) e os de esquerda nenhum. O confronto entre esquerda e direita ocorrerá em 3 capitais no segundo turno (Belém, Rio Branco, Vitória);  entre centro e direita em 5 (Cuiabá, Goiânia, João Pessoa, Manaus, Porto Velho); entre esquerda e esquerda em 2 (Aracaju, Recife); entre centro e centro em 2 (Boa Vista, Teresina), entre centro e esquerda em 4 (Fortaleza, Maceió, Porto Alegre, São Paulo) e entre direita e direita em 2 (Rio de Janeiro, São Luís)[2].

Para vereança, as proporções foram:

Mais mulheres eleitas

A proporção de mulheres eleitas no primeiro turno foi de 15,7%, um aumento de 2,3% em relação ao primeiro turno de 2016, quando foram eleitas 13,4% de mulheres para todos os cargos. Os partidos que mais elegeram mulheres foram MDB (1.468), PP (1.155) e PSD (977); e os que mais elegeram negros foram MDB (3.064), PSD (3.060) e PP (2.958).

As prefeituras serão chefiadas por mulheres em 12,1% de municípios (659).  Destas 32% serão mulheres negras, 66,5% brancas, 1,1% amarelas, 0,15% indígena, 0,15% sem informação. Para o cargo de vereadora, foram 16% de mulheres eleitas. Das quais, 39,3% são negras e 59% brancas.

Das mais de 88 mil mulheres negras candidatas, 4,54% (4.026) foram eleitas (3.510 pardas e 516 pretas). Das 706 mulheres indígenas que se candidataram, 31 foram eleitas.

Os homens negros representaram 33,84% do total de candidaturas, sendo 6,92% pretos e 26,92% pardos, e a proporção de eleitos até agora foi de 36,9% (38,4% para vereador e 28,2% para prefeitos). Os homens brancos, que  representavam 47,15% dos candidatos, são 59,6% dos eleitos para prefeituras e 44,1% para vereança.

Das 695 mulheres indígenas candidatas, 29 foram eleitas vereadoras, 1 prefeita e 2 vice-prefeitas. Dos 1.407 homens indígenas candidatos, 168 foram eleitos – 153 vereadores, 8 vice-prefeitos e 7 prefeitos.

Considerando homens e mulheres, e perfil raça/cor, a proporção de brancos e negros para os próximos quatro anos é a seguinte:

Entre os jovens eleitos (18 a 35 anos), foram 4.813 homens negros e 803 mulheres negras. Mas já na juventude a desigualdade se reproduz: foram 5.737 homens brancos eleitos e 1.166 mulheres brancas. As jovens negras representaram 22.193 candidaturas a vereadora, 94 a prefeita e 266 a vice-prefeita (18 a 35 anos), mas foram eleitas 735, 32 e 36, respectivamente.

Em relação ao patrimônio, as candidaturas eleitas se concentram mais na faixa de R$ 100 a R$ 500 mil, R$ 1 milhão a R$ 5 milhões, e R$ 500 mil a R$ 1 milhão, respectivamente. Como demonstramos em artigo, cerca de 19,69% dos candidatos receberam pelo menos uma parcela do auxílio emergencial, e 30% das candidatas negras com patrimônio inferior a R$ 50 mil recorreram ao auxílio.  Destas, se elegeram 170.

Das 151 candidaturas de pessoas trans para vereança inscritas no TSE com nome social, 3 foram eleitas: Filipa Brunelli (PT, Araraquara/SP), Anabella Pavão (PSOL, Batatais/SP) e Paulinha da Saúde (MDB, Eldorado dos Carajás/PA). Não houve candidaturas para prefeitura inscritas com nome social no TSE.

Das 328 candidaturas coletivas que identificamos  registradas no TSE, 24 foram eleitas. Destas, 16 têm como nome de urna uma mulher, e 5 de uma mulher negra.

Em 2.054 municípios brasileiros houve um cenário com apenas duas candidaturas para prefeitura. A proporção dos resultados por espectro político neste caso foi 27,4%  de centro, 53,3%  de direita e 19,3%  de esquerda. Lembrando que, conforme demonstramos em artigo anterior, em 112 municípios, a disputa se deu somente entre candidatos de partidos de centro; em 488 a disputa ocorreu apenas entre partidos de direita; e, em 60 municípios, somente entre partidos de esquerda. Nos confrontos que envolvem dois espectros políticos diferentes, temos 666 municípios em que a disputa será entre centro e direita; 487, entre direita e esquerda; e 240, entre centro e esquerda.

Promoção da equidade

Podemos dizer que há um saldo positivo, pois a cada eleição aumenta o número de candidaturas de mulheres, negros, indígenas e LGBTIs, ainda que, estatisticamente, sejam aumentos discretos. O simbolismo de algumas candidatas eleitas também contribui para mudanças importantes na cultura política do país, como a primeira mulher negra no legislativo de Curitiba, Carol Dartora (PT) e a vereadora mais votada de São Paulo ser uma mulher trans negra, Erika Hilton (PSOL). Há também que ampliar o debate sobre representatividade nos espaços de poder, pois em termos de resultados, o perfil das candidaturas eleitas em sua maioria ainda é de pessoas brancas, sendo os homens, brancos, com idade acima de 40 anos a maioria para todos os cargos. Até as próximas eleições, em 2022, existe o desafio de aperfeiçoar os mecanismos obrigatórios para promoção de equidade, como a distribuição do Fundo Eleitoral para mulheres e negros, mas também fazer propostas para que sejam criados outros mecanismos, para que de fato estas candidaturas possam ser eleitas.

 

Coordenação: Inesc
Tratamento de dados: CommonData

 

[1] Até o momento do fechamento das análises, o Tribunal Superior Eleitoral não havia liberado os microdados completos dos resultados e boletins de urna do 1º turno das Eleições Municipais 2020. Os dados apresentados são resultado de um trabalho de coleta dos painéis interativos disponibilizados pelo TSE, com as prévias.

[2] O Brasil conta hoje com 33 partidos. Para fins de análise, adotamos a classificação elaborada pelo Congresso em Foco (2019),, que divide os partidos em três grandes grupos do espectro político: direita, centro e esquerda: Direita: DC; DEM; NOVO; PATRIOTA; PL; PMB; PODEMOS; PP; PRTB; PSC; PSD; PSL; PTB; PTC; e REPUBLICANOS; Centro: AVANTE; MDB; PROS; PSDB; e SOLIDARIEDADE; Esquerda: CIDADANIA; PCB; PCdoB; PCO; PDT; PMN; PSB; PSOL; PSTU; PT; PV; REDE; e UP.

 

Eleições 2020: os casos de municípios com apenas uma ou duas candidaturas

Uma parceria do Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos) com o coletivo científico Common Data resultou em artigo publicado no UOL sobre municípios com apenas uma ou duas candidaturas disputando os cargos para a prefeitura nas Eleições 2020. Os dados levantados traçam um perfil por gênero, raça e espectro ideológico.

>>> Leia a íntegra do artigo publicado no UOl aqui

Saiba mais sobre o levantamento:

O sistema político brasileiro permite acontecimentos pouco imaginados pela maioria das pessoas: nas Eleições 2020, serão 2.053 municípios com apenas dois candidatos(as) a prefeito(a) e 108 municípios onde existe apenas uma candidatura registrada para concorrer à prefeitura. Nestes cenários, predomina a polarização observada na política nacional? O que significam candidaturas únicas em um processo de exercício da soberania popular pelo voto?

Nos casos de municípios com apenas um(a) candidato(a) observamos a ausência de contraponto ao concorrente para chefe do executivo municipal durante o período eleitoral, ainda que durante o mandato outras formas de controle social possam ser exercidas pela sociedade, por meio de conselhos, audiências públicas, pelas organizações e movimentos sociais. Existem diversas barreiras (inclusive materiais) ao registro de candidaturas e isso também restringe a possibilidade de organização partidária.  Portanto, o fato de existir só uma candidatura não indica, de forma alguma, homogeneidade política ou consenso. É mais provável que indique um certo apagamento/silenciamento da oposição, dos conflitos e das divergências.

Nos processos eleitorais com duas candidaturas, um cenário que será realidade em 36,87% dos municípios brasileiros, a polarização, enquanto disputa de apenas duas propostas políticas para a cidade, estaria posta na largada das eleições. No entanto, a dinâmica partidária e as características estruturais da sociedade brasileira – de reprodução de privilégios e desigualdades – incidem para complexificar a noção de polarização.

Ressaltamos que a polarização política é um conceito complexo que guarda divergências entre analistas e cientistas políticos. Trata-se de um fenômeno que pode ser entendido pelo viés do debate democrático ou pela interdição do mesmo, a depender da intensidade com que ocorre. O cientista político Leonardo Avritzer (2019) afirma que a polarização é expressa pelo “(…) aumento da distância entre os diferentes polos políticos, já que extremos sempre existem e sua existência não parece ser o problema. O problema ocorre quando a distância entre direita e esquerda aumenta e a questão analítica é entender o significado dessa ampliação”. Para o cientista político Armando Boito Junior (2020)[1], no caso brasileiro recente, o sistema partidário que vigorou até 1990, pluripartidário e com polarização moderada entre PT e PSDB estaria em crise, dando lugar a “(…) uma nova polarização, agora entre a extrema direita neofascista e a centro esquerda capitaneada pelo PT.” Já a antropóloga Rosana Pinheiro Machado, estudiosa das jornadas de junho de 2013 e da ascensão do bolsonarismo, aposta em uma “outra etapa da polarização no Brasil”, para além de esquerda e direita, entre homens brancos do patriarcado e mulheres negras e LGBT[2].

Estas análises se debruçam sobre a política nacional e não podem ser facilmente aplicadas para as dinâmicas eleitorais locais, onde a polarização – se existir – pode se dar por questões variadas. Por exemplo, a instalação ou não de um projeto de mineração pode dividir uma cidade, trazendo interesses transnacionais ao território, mobilizando atores políticos externos ao município, e alinhando a política local à política nacional. Por outro lado, podem existir contextos onde as querelas são de natureza estritamente local, como a construção de uma praça ou um posto de saúde – não que sejam menos importantes, mas mobilizam menos capital político relacionado à política nacional.

O Brasil conta hoje com 33 partidos. Para fins de análise, adotamos a classificação elaborada pelo Congresso em Foco (2019)[3],, que divide os partidos em três grandes grupos do espectro político: direita, centro e esquerda.

  • Direita: DC; DEM; NOVO; PATRIOTA; PL; PMB; PODEMOS; PP; PRTB; PSC; PSD; PSL; PTB; PTC; e REPUBLICANOS;
  • Centro: AVANTE; MDB; PROS; PSDB; e SOLIDARIEDADE;
  • Esquerda: CIDADANIA; PCB; PCdoB; PCO; PDT; PMN; PSB; PSOL; PSTU; PT; PV; REDE; e

Destaca-se os municípios com uma ou duas candidaturas tem população inferior a 20.000 habitantes (90,19%), porém temos 3 municípios com mais de 100 mil habitantes com candidaturas duplas: Ourinhos-SP, Tailândia-PA e Sobral-CE. Lembrando que o segundo turno só é possível em municípios com mais de 200 mil eleitores, os casos em tela podem sinalizar para tentativas de mudança no poder local, pois a disputa ocorre em uma só rodada de votação.

Municípios com apenas uma candidatura

Em 108 municípios brasileiros, os perfis dos novos governantes municipais já estão definidos antes mesmo das eleições. Considerando o espectro político acima, dos 108 casos em que há apenas um(a) candidato(a), 50 possuem um(a) candidato(a) da direita; 38 possuem uma candidatura ligada ao centro; e 20 possuem um(a) candidato(a) da esquerda.

 

Os cenários deste tipo estão espalhados em todas as regiões do Brasil, mas concentram-se sobretudo na Região Sul (43,51%)[4].

Dos 108 candidatos a prefeituras que não enfrentarão concorrência, 100 (92,59%) são homens e, dentre eles:

  • 45 são de partidos de direita; 20 são de esquerda; e 35 são de centro;
  • 82 são brancos; 16 são pardos; 1 é amarelo; e 1 é preto;
  • 61 possuem ensino superior completo; 24 possuem ensino médio completo; 7 possuem ensino fundamental completo; e 8 não concluíram o ensino fundamental.

Das 8 mulheres (7,40%) concorrendo:

  • 3 são de partidos de centro e 5 são de direita, ou seja, não há candidatas de esquerda nestes perfis únicos;
  • 7 mulheres são brancas e 01 mulher é parda;
  • 3 declararam sua ocupação como prefeita;
  • 7 destas mulheres possuem ensino superior completo e 01 não concluiu o ensino superior (possui, então, ensino médio completo);
  • 3 destes municípios com apenas uma candidata mulher se encontram no Rio Grande do Norte; 1 no Piauí; 1 em Santa Catarina; 1 no Paraná; e 2 no Rio Grande do Sul.

 

 

 

Municípios com duas candidaturas

São 2.053 municípios brasileiros que irão enfrentar esse cenário dicotômico nas eleições para o Executivo municipal. Em 112 municípios, a disputa se dará somente entre candidatos de partidos de centro; em 488 a disputa será somente entre partidos de direita; e, em 60 municípios, somente entre partidos de esquerda. Nos confrontos que envolvem dois espectros políticos diferentes, temos 666 municípios em que a disputa será entre centro e direita; 487, entre direita e esquerda; e 240, entre centro e esquerda.

 

 

 

 

Os dados coletados demonstram que o risco de polarização não é tão grande nas disputas com apenas dois candidatos: a polarização direita-esquerda, por exemplo, ocorre em apenas 23,7% dos casos e em 32,2% dos casos a disputa se dará dentro do mesmo espectro. Por outro lado, o elevado número de candidatos homens e brancos concorrendo entre si revela um sistema político em que ainda prevalecem as hegemonias branca e masculina, reproduzindo, portanto, os privilégios do grupo social com maior concentração de poder e riqueza na sociedade brasileira

Das eleições com duas candidaturas, 1.581 disputas serão entre homens (77%), 443 serão entre candidaturas masculinas x candidaturas femininas (21,57%) e 29 serão entre candidaturas femininas (1,15%). Nos casos onde a disputa é entre homens e mulheres, as mulheres estão mais concentradas no MDB, PP e PSD, somando 239 de direita, 122 de centro e 82 candidatas de esquerda; no caso da disputa entre as mulheres, há 33 de direita, 12 de centro e 13 de esquerda.

Em relação ao perfil racial, a hegemonia branca nas disputas é marcante: as disputas entre dois candidatos brancos representam 52% (1084), seguido de disputas entre brancos e pardos, 26,7%, e brancos e pretos somam 2%. As candidaturas de raça/cor parda disputando entre si representam 14,08% (289).  Se utilizarmos a categoria negro (pretos + pardos) disputando entre si o percentual é de 15,73% (323). Os brancos aparecem em seis das quinze combinações possíveis a partir das categorias raciais do IBGE (se contarmos o cruzamento com candidaturas sem informação). Os dados evidenciam, sobretudo, a predominância de disputas entre candidatos brancos, mas também revelam que em 323 municípios (15,73%), o próximo governante será, necessariamente, preto ou pardo.

Sobre a polarização ideológica, observamos que o embate entre direita e esquerda não passará de ⅓ da totalidade de confrontos entre dois candidatos. Se considerarmos o tipo de polarização impressa no âmbito nacional pelo PSL em relação ao PT, temos apenas 03 municípios onde isso acontece: Nova Resende – MG (16.645 habitantes), Guiricema-MG (8.697 habitantes) e Quilombo-SC (10.255 habitantes). Se considerarmos a correlação de forças implementada pelo chamado centrão – que apoia o bolsonarismo como implementador de políticas neoliberais, a exemplo do Teto de Gastos – a polarização entre PT, de um lado, e DEM/MDB/PSDB/PP/PL/PSD, de outro, ocorre em 166 casos. Destaca-se, porém, o predomínio de disputas envolvendo partidos apenas de direita e de centro: em 1.266 casos (61,67%), os partidos de esquerda sequer participarão da disputa eleitoral: enquanto o próximo governante será obrigatoriamente de um partido de direita em 488 municípios, para a esquerda, essa garantia só existe em 60 municípios.

 

[1] Avanços do Conservadorismo e do Neofascismo no Brasil recente – Entrevista com Armando Boito Jr., por Bruna Andrade Irineu e Leon     ardo Nogueira. 360Revista Direitos, trabalho e política social, CUIABÁ, V. 6, n. 10, p. 352-362, Jan./jun. 2020. file:///C:/Users/Admin/AppData/Local/Temp/9759-Texto%20do%20Artigo-34842-1-10-20200131.pdf

[2] Em: https://catarinas.info/homens-brancos-contra-mulheres-negras-e-lgbts-a-nova-polarizacao-politica-brasileira/ ; para mais detalhes das análises da autora sobre o tema, ver Amanhã vai ser maior, Ed. Planeta do Brasil 2019.

[3] Os novos partidos, que não estavam arrolados na classificação do Congresso em Foco, foram analisados e enquadrados em um dos três grupos, considerando a forma como os próprios partidos se definem.

[4] Dentre os municípios com apenas um candidato, 01 fica na Bahia; 01 no Ceará; 04 em Goiás; 17 em Minas Gerais; 02 em Mato Grosso do Sul; 07 em Mato Grosso; 01 na Paraíba; 03 em Pernambuco; 03 no Piauí; 14 no Paraná; 01 no Rio de Janeiro; 01 no Rio Grande do Norte; 01 em Rondônia; 31 no Rio Grande do Sul; 02 em Santa Catarina; 09 em São Paulo; e 02 em Tocantins.

*Carmela Zigoni é doutora em antropologia social e assessora política do Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos), parceiro da Campanha Quero Me Ver no Poder, da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político, com apoio do Fundo Pulsante. Janaina Peres é doutora em desenvolvimento e políticas públicas. Lara Laranja e Luciana Guedes são doutorandas em desenvolvimento, tecnologias e políticas públicas, e Camila Fraccaro é cientista de dados. Todas integram o Coletivo CommonData.

Um passo à frente, dez passos para trás – a volta da fome

O Dia Mundial da Alimentação é celebrado todo 16 de outubro desde 1981. Esta data corresponde ao dia de criação da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), em 1945. A FAO, que este ano celebra seu 75º aniversário, foi fundada logo após o término da IIª Guerra Mundial, com o objetivo primordial de erradicar a fome, a desnutrição e a insegurança alimentar e nutricional ao redor do mundo.

Este ano, o lema do Dia Mundial da Alimentação é “Crescer, Nutrir, Sustentar. Juntos”. E como estamos no Brasil?

Não estamos bem, não havendo nada para celebrar, muito pelo contrário. Apesar do nosso agronegócio dito pujante e chamado de “pop”, não só a fome aumentou como pioraram as condições de sustentabilidade ambiental e climática da produção de alimentos.

A fome, uma mazela que pensávamos resolvida, nos ronda novamente. Segundo os dados mais recentes do IBGE, em 2017/2018, 85 milhões de brasileiros habitavam em domicílios com algum grau de insegurança alimentar e nutricional, dos quais 10 milhões sofriam de Insegurança Alimentar Grave (IAG). Isso equivale a toda a população de Portugal.

Insegurança Alimentar Grave é a expressão da fome vivenciada no domicilio, que corresponde a uma ruptura nos padrões de alimentação resultante da falta de alimentos entre todos os moradores, incluindo as crianças. Como pode ser observado no Gráfico 1, entre 2004 e 2013, o número de pessoas em IAG caiu pela metade, passando de 14,9 milhões para 7,2 milhões no período. Contudo, a partir de 2013, a situação vem piorando e em 2017/2018 o número de pessoas com fome aumentou para 10,2 milhões. Isso foi antes da pandemia da Covid-19, agora o quadro deve ser muito pior devido à crise econômica que resultou na perda de milhões de empregos e de diminuição da renda, especialmente dos mais pobres, associada ao pouco caso que o governo federal vem dando ao tema.

A fome tem endereço, cor e sexo

Como não poderia deixar de ser em um país eminentemente racista e sexista, a fome tem endereço, cor e sexo. Com efeito, ela está proporcionalmente mais presente nas áreas rurais, no Nordeste e em famílias chefiadas por mulheres ou negros. Assim, por exemplo, 74% dos domicílios com Insegurança Alimentar Grave têm como referência uma pessoa negra.

Diante desse quadro, qual a resposta do governo federal? Acabar com a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, que, até então, gozava de reconhecimento internacional devido aos expressivos resultados que vinha apresentando, especialmente com a diminuição da fome no Brasil. Esse foi um dos primeiros atos do governo Bolsonaro, em janeiro de 2019.

Piso mínimo emergencial para combater a fome

É para se contrapor a esse absurdo que 200 organizações da sociedade civil, entre elas o Inesc, articuladas na Coalização Direitos Valem Mais, apresentaram ao Congresso Nacional propostas concretas de um piso mínimo emergencial destinado a serviços essenciais para o Orçamento da União de 2021, dentre os quais, os de combate à fome.

Como se não bastasse desarticular a agricultura familiar e a agroecologia, o governo Bolsonaro desmontou as políticas socioambientais, desconsiderou os acordos de clima e incentivou o avanço da agropecuária, especialmente na Amazônia, contribuindo para o aumento das queimadas e do desmatamento. No Brasil do presidente Bolsonaro, fome, destruição do meio ambiente e aumento das emissões de gazes de efeito estufa andam juntos formando uma perfeita tempestade.

Se é verdade que o auxílio emergencial contribuiu para evitar o pior, a diminuição do valor pela metade a partir de outubro e sua interrupção no final do ano irão resultar em crise alimentar grave. Não seremos capazes de cumprir nenhum dos itens do bordão do Dia Mundial da Alimentação: não iremos crescer, não iremos nutrir, nem sustentar e muito menos juntos, uma vez que, tanto o governo quanto nossas elites que o sustentam, se preocupam mais com a diminuição dos gastos para atender o mercado do que com a fome de seu povo.

No Brasil, clima e floresta tornaram-se questão de polícia

No apagar das luzes de agosto, o governo enviou ao Congresso o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA), que detalha as expectativas de despesa para 2021. O documento reforça as especulações que vinham sendo feitas desde 18 de agosto, quando uma versão do documento vazou à imprensa. De um lado, a peça revela a estratégia agressiva dos militares a fim de garantir recursos para as suas áreas. De outro lado, mostra que o governo cedeu à pressão e optou por proteger recursos para o Ministério da Defesa.

A imprensa havia divulgado a informação de que militares pressionaram o governo para ampliar a fatia de recursos “ressalvados”, ou seja, aqueles sobre os quais o Legislativo tem baixo poder de veto. Relatou-se, ainda, que a equipe econômica pretendia abrir ampla negociação a respeito das ações subordinadas à aprovação do Legislativo. No entanto, uma série de atropelos e um suposto acordo entre militares e a Junta de Execução Orçamentária, aparentemente sem o conhecimento do Ministério da Economia, teria garantido a proteção dos recursos para Defesa em 2021.

Mas essa não foi a única polêmica envolvendo o orçamento público e os militares no governo durante o mês de agosto. No dia 21, a Defesa anunciou que gastaria R$145 milhões com a compra de microssatélites, sob a alegação de que os novos equipamentos seriam mais eficazes para o monitoramento do desmatamento e das queimadas na Amazônia. A aquisição favorece o Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia (Censipam), vinculado à Defesa. O Inpe, que vem sendo desacreditado e sucateado, afirmou não ter sido consultado sobre esta aquisição. O órgão também questionou a compra, alegando que não há vantagem em relação aos instrumentos que já se encontram em uso.

Quem tem poder no governo Bolsonaro?

Tais notícias deixam dúvidas sobre quem terá o poder para direcionar a prioridade dos gastos no governo Bolsonaro, se o Ministério da Economia ou os militares. Além disso, no contexto da pandemia da Covid-19 e da piora significativa da qualidade de vida dos brasileiros (enlutados, doentes e desempregados), parece inapropriado insistir que os gastos com o equipamento da Defesa definam a prioridade orçamentária do governo. Mas o que diz o projeto de lei orçamentária para o próximo ano?

Na comparação com 2020, o PLOA para 2021 aumenta os recursos destinados à Defesa. A comparação foi feita entre os projetos de lei orçamentária de ambos os anos. Os dados foram extraídos do Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento (SIOP). Para 2021, a Defesa terá R$ 110,8 bilhões. Isto representa R$ 5,1 bilhões extras em comparação com o previsto na proposta orçamentária anterior (R$ 105,7 bilhões). Também é necessário considerar que, no correr do ano orçamentário, recursos podem ser adicionados (ou subtraídos) desta previsão inicial.

Em relação a outros ministérios, a tendência foi de recuo: Saúde, Educação, Infraestrutura e Meio Ambiente tiveram perdas reais. Educação, crianças e adolescentes e saúde sofreram cortes. Na saúde, a perda foi de cerca de R$ 40 bilhões. Na Infraestrutura, a aposta do governo são concessões, privatizações, finanças mistas e títulos verdes. Embora trate-se de um setor que se beneficia, comumente, pela concessão de créditos suplementares, a redução do orçamento antecipa o desejo do governo em experimentar novas modalidades de financiamento disponíveis no mercado.

Militares disputam recursos do Meio Ambiente

O Meio Ambiente parece levar para o próximo ano a grave crise que corrói suas capacidades. Na comparação com o PLOA de 2020, a pasta, cujo orçamento já vinha caindo de forma dramática, perdeu 35%. O Programa de Prevenção e Controle do Desmatamento e dos Incêndios nos Biomas (6014) não aparece nesta proposta. A Funai teve leve aumento no orçamento. Mas os novos recursos não são suficientes para repor as perdas dos últimos anos.

Com a criação do Conselho Nacional da Amazônia, o ministério passou a concentrar recursos e funções de órgãos com mandato legal para administrar a política ambiental. Em 2020, créditos suplementares garantiram a entrada dos militares na disputa pelo meio ambiente. Para 2021, o grupo se esforçou para garantir, no projeto de lei, os recursos para implementação das suas políticas.

Por tudo isso, é possível dizer que o clima e a gestão das florestas, no Brasil, tornaram-se questão de polícia. Além disso, a articulação dos militares para apropriação crescente de recursos e a opção por proteger uma agenda de gastos fútil, no cenário de pandemia e de crise social, parece um enorme equívoco. O desinvestimento em áreas fundamentais para garantir direitos cobra o seu preço climático, social e econômico.

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Os impactos do PLOA 2021 na política indigenista

Um rápido olhar para o Projeto de Lei Orçamentária (PLOA) 2021 parece trazer boas notícias para a política indigenista. O projeto de lei prevê R$11,49 milhões a mais para o principal órgão indigenista, a Fundação Nacional do Índio (Funai) e R$6,1 milhões a mais que a dotação atual do órgão no ano em curso. É importante, no entanto, que façamos duas observações.

Em primeiro lugar, esse pequeno acréscimo está longe de remediar os impactos de anos de estrangulamento. Os R$648,6 milhões atribuídos para a Funai em 2021 estão, por exemplo, muito distantes dos R$870 milhões atribuídos à fundação em 2013. A queda orçamentária contínua é aliada da reorientação do atual executivo para política indigenista, marcada por um retorno ao viés militarizado e assimilacionista do órgão.

Em segundo lugar, boa parte dos recursos apontados no PLOA 2021 estão sujeitos à aprovação legislativa, devido ao sufocamento orçamentário fruto da regra de ouro: dos R$648,6 milhões atribuídos para a Funai em 2021, R$ 338,6 mi estão sujeitos à aprovação do congresso. Desses, boa parte é para gastos com a já precária estrutura do órgão: são R$230,2 milhões condicionados destinados a pessoal e encargos sociais.

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É importante ressaltar esse alto índice de recursos condicionados à aprovação legislativa, mesmo que nos últimos dois anos o governo tenha sido autorizado pelo congresso a quebrar a regra de ouro. Isso porque os 52% dos recursos condicionados no PLOA 2021 para Funai contrastam com os 20% na mesma situação no PLOA 2020.  O quadro levanta ainda mais suspeitas se considerarmos que, mesmo com os valores condicionados de 2020 aprovados pelo Congresso, até agora nada deste recurso foi executado pela Funai no ano em curso.  Parece até mesmo que estamos diante de uma diretriz tácita, seguida pela chefia da Funai, de seguir reduzindo os gastos do órgão para aproximá-lo mais do orçamento não condicionado – o que basicamente impossibilitaria a atuação indigenista no ano que vem.

Por fim, é bom retomarmos a situação da Funai em 2020 para termos a dimensão real da gravidade da situação. Mesmo diante do violento impacto do novo coronavírus nos territórios indígenas, os gastos executados pelo órgão indigenistas seguem a passos lentos.  Até o início de setembro, apenas 58% da dotação atual da Funai foi efetivamente pago (R$376,9 milhões). O quadro torna-se ainda mais dramático quando analisamos as ações finalísticas do órgão. Apenas 30% dos recursos destinados para regularização, demarcação e fiscalização das terras indígenas e para proteção dos povos indígenas em isolamento voluntário (ação orçamentária 20UF) foram executados, (R$6,3 milhões). Já a ação que passou a reunir todos os demais direitos indígenas (direitos sociais, gestão ambiental e territorial, preservação cultural etc.) teve apenas 14% dos seus recursos efetivamente pagos até agora (R$6,5 milhões).  Mesmo a ação orçamentária criada a partir da atribuição de recursos extraordinários para contenção da pandemia teve apenas 50% de seu orçamento executado (R$9,2 milhões). Ou seja, até o nono mês de um ano dramático, apenas R$22 milhões foram gastos em ações finalísticas pelo órgão indigenista.

Simultaneamente, crescem as ameaças de toda sorte aos territórios: além do avanço da Covid-19, também abundam invasões, perseguição de lideranças, projetos de altos impactos para as comunidades e destruição dos biomas por elas ocupados. Como nunca deixou dúvidas o atual mandatário do governo federal, a crise da política indigenista não é crise, é projeto.

Leia também: Orçamento de 2021 mantém equilíbrio fiscal acima das necessidades da população.

Baixe o infográfico que resume os principais pontos do PLOA 2021 e a política indigenista.

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