Mulheres que lutam para serem reconhecidas como humanas

O Dia Internacional da Mulher, celebrado no dia 8 de março, é sem dúvida uma data importante, uma conquista de todas as mulheres de hoje, de ontem e de amanhã.

Contudo, no Brasil, mulheres negras e periféricas, as mesmas que carregam o país nos ombros e o parem todos os dias, vivenciam a luta do 8 de março no exercício diário do combate ao racismo institucional e ao patriarcado, que exterminam seus afetos, fetos e minam seus espaços vivos, relações e felicidade.

Essas mulheres têm sua humanidade cotidianamente questionada por essa estrutura racista, violadas em seus direitos desde a primeira que aqui aportou. Oriundas de navios negreiros, marcadas pelos seus senhores e senhoras, proibidas de cantarem seus cantos, usarem seus mantos, proferirem seus encantos e fazerem suas políticas. A elas a assinatura da princesa Isabel validou a total exclusão de direitos e a negação de sua humanidade.

Estamos em 2019 e as políticas seguem negando condições de vida a essas mesmas mulheres. Suas mortes são legitimadas, a começar por atos “simples”, como o padrão de beleza imposto que determina o perfil para cargos; os ceps periféricos sempre suspeitos, a domesticação de seus corpos, a ideia de que meninas vestem rosa.

Meninas vestem rosa?

Como vestir rosa, se estão sempre em luto? Meninas falam baixo. Como falar baixo, quando seus gritos foram e são silenciados? Meninas são delicadas. A delicadeza dessas mulheres se manifesta no acordar às 4h da manhã para estarem às 7h na casa das patroas e patrões. Se manifesta também na decisão de se manterem vivas, a despeito dos planos e estratégias de morte para aquelas (poucas ainda) que, munidas de coragem e força, traduzem e inserem suas vozes no ambiente político, macho, branco e heteronormativo.

Delicado, para elas, é apresentar seus traços, receber abraços que fortaleçam seus braços no erguer de suas bandeiras. Pois mesmo as iniciativas de combater as desigualdades sociais bem aproveitadas/ocupadas por elas, demonstram que a exclusão social é estrategicamente nutrida pelo racismo patriarcal.

Mulheres negras pagam mais impostos

Os números usados para descrevê-las demonstram a total falta de reconhecimento humano. São as que mais trabalham, menos recebem e mais contribuem para a máquina do Estado com os impostos proporcionalmente. O mesmo Estado que lhes nega transporte, moradia de qualidade, acesso à saúde, educação e segurança. Estado esse que paga o salário dos que exterminam os seus iguais. Segundo o Mapa da Violência 2015, a taxa de assassinatos de mulheres negras aumentou 54%, enquanto a das mulheres brancas caiu em 9,8%. Se esses números expressam o combate ao feminicídio de um grupo de mulheres específico, as brancas, os mesmos revelam o descaso planejado para com o direito à vida das mulheres negras.

Seus traços e tranças são vistos como inapropriados e suas cores indevidas. Se em vida pedem socorro, correm o risco de serem arrastadas por um carro na saída do morro. Existem Cláudias que aqui não raia, assim como Marielles que não chegaram à presidência – é isso que alimenta as lideranças racistas eleitas.

No entanto, essas mulheres sabem de si, nota-se uma identidade em resgate, reconexão. Observam-se avenidas, blocos, ruas gritando e ecoando seus nomes, enxergam-se cadeiras ocupadas por elas, diversas, mas não dispersas. Toda essa estrutura racista precisa ruir, pois elas, mulheres negras e indígenas, detém em mãos e ações a melhor política: acolher, cuidar, proteger, reconhecer a humanidade em corpos, gêneros e cores diversas.

É preciso observá-las com um olhar de humanidade, só assim será possível construir uma sociedade justa, inclusiva e igualitária. Vida, luta e terra são palavras femininas, sem as quais nenhum só dia é possível. Os impactos sociais, emocionais e econômicos do racismo institucional são grandes, porém maiores têm sido o fazer e tecer. Humanas, combativas e ativas. Assim nascem e renascem nossas Dandaras, Aqualtunes, Marielles, Marias… Negras, Indígenas, mulheres, humanas.

 

Se minhas mãos falassem…

Diriam dos sacos que rasgou no lixão,
Diriam dos olhos que fecharam no mesmo lixão.
Dos maracujás, cana que colheu no Pará.
Das malas que carregou ao ser “convidada” a se retirar.
Diriam das vezes que minhas lágrimas tiveram que secar…
Diriam também, das vezes que sua sinalização causou repreensão.
Mas seguiriam as narrativas
De forma ativa…

Hoje diriam dos quatro sobrinhos que pegou, dos textos que escreveram, do veículo que guiou.
Da argila que no corpo passou,
Do tepi que segurou
Das fogueiras que acendeu
Das velas que firmou
Dos desenhos e pinturas que teceu.

Se minhas mãos falassem, diriam do que viveu, onde viveu, cresceu , nasceu.

Diriam dos aplausos a cada passagem de ano.
Dos apertos a mãos dos internos na medida de socieducação.
De coração, diriam toque o mundo com o coração!
Tenha por mantra a gratidão.
Milite por comunhão entre os seres viventes, lembrando das primeiras sementes.
A minha veio em um porão, com firmeza no coração buscou a redenção de seus corpos.

Se hoje elas lhe escrevem, é em rezo de agradecimentos aos que por aqui passaram,
Das correntes se libertaram para que eu pudesse lhe escrever.

Mãos “livres” hoje, um presente dos ancestrais.

Poema de Dyarley Viana

 

Leia também:

Para meninas marielles, educação e feminismo

Vivas, livres e sem medo: 8 de março pela vida das mulheres

(In)Segurança Alimentar e Nutricional e (Des)Igualdade de Gênero

“A Vale assassinou a todos nós. Enquanto mãe eu morro um pouco a cada dia”

Contra o cinza do medo, colorir as ruas: por uma cidade transformada pelas mulheres

 

Mulheres que lutam para serem reconhecidas como humanas

O Dia Internacional da Mulher, celebrado no dia 8 de março, é sem dúvida uma data importante, uma conquista de todas as mulheres de hoje, de ontem e de amanhã.

Contudo, no Brasil, mulheres negras e periféricas, as mesmas que carregam o país nos ombros e o parem todos os dias, vivenciam a luta do 8 de março no exercício diário do combate ao racismo institucional e ao patriarcado, que exterminam seus afetos, fetos e minam seus espaços vivos, relações e felicidade.

Essas mulheres têm sua humanidade cotidianamente questionada por essa estrutura racista, violadas em seus direitos desde a primeira que aqui aportou. Oriundas de navios negreiros, marcadas pelos seus senhores e senhoras, proibidas de cantarem seus cantos, usarem seus mantos, proferirem seus encantos e fazerem suas políticas. A elas a assinatura da princesa Isabel validou a total exclusão de direitos e a negação de sua humanidade.

Estamos em 2019 e as políticas seguem negando condições de vida a essas mesmas mulheres. Suas mortes são legitimadas, a começar por atos “simples”, como o padrão de beleza imposto que determina o perfil para cargos; os ceps periféricos sempre suspeitos, a domesticação de seus corpos, a ideia de que meninas vestem rosa.

Meninas vestem rosa?

Como vestir rosa, se estão sempre em luto? Meninas falam baixo. Como falar baixo, quando seus gritos foram e são silenciados? Meninas são delicadas. A delicadeza dessas mulheres se manifesta no acordar às 4h da manhã para estarem às 7h na casa das patroas e patrões. Se manifesta também na decisão de se manterem vivas, a despeito dos planos e estratégias de morte para aquelas (poucas ainda) que, munidas de coragem e força, traduzem e inserem suas vozes no ambiente político, macho, branco e heteronormativo.

Delicado, para elas, é apresentar seus traços, receber abraços que fortaleçam seus braços no erguer de suas bandeiras. Pois mesmo as iniciativas de combater as desigualdades sociais bem aproveitadas/ocupadas por elas, demonstram que a exclusão social é estrategicamente nutrida pelo racismo patriarcal.

Mulheres negras pagam mais impostos

Os números usados para descrevê-las demonstram a total falta de reconhecimento humano. São as que mais trabalham, menos recebem e mais contribuem para a máquina do Estado com os impostos proporcionalmente. O mesmo Estado que lhes nega transporte, moradia de qualidade, acesso à saúde, educação e segurança. Estado esse que paga o salário dos que exterminam os seus iguais. Segundo o Mapa da Violência 2015, a taxa de assassinatos de mulheres negras aumentou 54%, enquanto a das mulheres brancas caiu em 9,8%. Se esses números expressam o combate ao feminicídio de um grupo de mulheres específico, as brancas, os mesmos revelam o descaso planejado para com o direito à vida das mulheres negras.

Seus traços e tranças são vistos como inapropriados e suas cores indevidas. Se em vida pedem socorro, correm o risco de serem arrastadas por um carro na saída do morro. Existem Cláudias que aqui não raia, assim como Marielles que não chegaram à presidência – é isso que alimenta as lideranças racistas eleitas.

No entanto, essas mulheres sabem de si, nota-se uma identidade em resgate, reconexão. Observam-se avenidas, blocos, ruas gritando e ecoando seus nomes, enxergam-se cadeiras ocupadas por elas, diversas, mas não dispersas. Toda essa estrutura racista precisa ruir, pois elas, mulheres negras e indígenas, detém em mãos e ações a melhor política: acolher, cuidar, proteger, reconhecer a humanidade em corpos, gêneros e cores diversas.

É preciso observá-las com um olhar de humanidade, só assim será possível construir uma sociedade justa, inclusiva e igualitária. Vida, luta e terra são palavras femininas, sem as quais nenhum só dia é possível. Os impactos sociais, emocionais e econômicos do racismo institucional são grandes, porém maiores têm sido o fazer e tecer. Humanas, combativas e ativas. Assim nascem e renascem nossas Dandaras, Aqualtunes, Marielles, Marias… Negras, Indígenas, mulheres, humanas.

 

Se minhas mãos falassem…

Diriam dos sacos que rasgou no lixão,
Diriam dos olhos que fecharam no mesmo lixão.
Dos maracujás, cana que colheu no Pará.
Das malas que carregou ao ser “convidada” a se retirar.
Diriam das vezes que minhas lágrimas tiveram que secar…
Diriam também, das vezes que sua sinalização causou repreensão.
Mas seguiriam as narrativas
De forma ativa…

Hoje diriam dos quatro sobrinhos que pegou, dos textos que escreveram, do veículo que guiou.
Da argila que no corpo passou,
Do tepi que segurou
Das fogueiras que acendeu
Das velas que firmou
Dos desenhos e pinturas que teceu.

Se minhas mãos falassem, diriam do que viveu, onde viveu, cresceu , nasceu.

Diriam dos aplausos a cada passagem de ano.
Dos apertos a mãos dos internos na medida de socieducação.
De coração, diriam toque o mundo com o coração!
Tenha por mantra a gratidão.
Milite por comunhão entre os seres viventes, lembrando das primeiras sementes.
A minha veio em um porão, com firmeza no coração buscou a redenção de seus corpos.

Se hoje elas lhe escrevem, é em rezo de agradecimentos aos que por aqui passaram,
Das correntes se libertaram para que eu pudesse lhe escrever.

Mãos “livres” hoje, um presente dos ancestrais.

Poema de Dyarley Viana

 

Leia também:

Para meninas marielles, educação e feminismo

Vivas, livres e sem medo: 8 de março pela vida das mulheres

(In)Segurança Alimentar e Nutricional e (Des)Igualdade de Gênero

“A Vale assassinou a todos nós. Enquanto mãe eu morro um pouco a cada dia”

Contra o cinza do medo, colorir as ruas: por uma cidade transformada pelas mulheres

 

Para pensar Suzano

O que aconteceu na escola em Suzano não é corriqueiro no Brasil, mas também não é inédito, já que tivemos dois episódios anteriores: em 2011 no Rio de Janeiro e em 2017 em Goiânia. No entanto, ao que parece, estamos herdando um comportamento comum nos Estados Unidos, onde ataques como este ocorrem com maior frequência.

Quando uma tragédia dessas proporções advém, o que mais se vê são analistas de plantão fazendo interpretações e receitando remédios rápidos e aparentemente eficazes. No caso em questão, solução bizarra foi proposta por dois senadores da República: armar os professores. Ideia, aliás, aventada por Donald Trump, na linha de “imitamos os estadunidenses com prazer”.

Imaginemos a cena: uma professora em sala de aula com um coldre na cintura, armada para proteger seus alunos. E como um dos atiradores era um adolescente de 17 anos, obviamente a solução “redução da idade penal” retorna com força e como panaceia para resolver qualquer mazela, mesmo que estejamos falando de um dos países mais violentos do mundo.

De acordo com o noticiado, o atentado guarda semelhanças com o ocorrido em Columbine, Estados Unidos, em 1999, também praticado por dois jovens ex-alunos da escola, que se inspiraram em videogames e provavelmente teriam sido vítimas de bullying. Então, na época houve uma investida em analisar e até criminalizar jogos, além de trazer o bullying para o centro do debate. No entanto, medida alguma de prevenção foi tomada. Não há programas de atenção e acolhimento à jovens com depressão, mesmo que pesquisas demostrem ser cada vez mais comum os episódios da doença entre esse público. No caso do ex-aluno adolescente, consta na secretaria da escola que ele é evadido. Ele morava na vizinhança e não ocorreu a esta direção procurar saber o porquê do abandono escolar, ou avisar ao Conselho Tutelar, o que é sua obrigação.

O retorno da pauta da redução da idade penal é frequente, o que não acontece é uma discussão sobre a etapa peculiar da adolescência, com a qual é preciso um olhar dedicado e atento para dar apoio no momento de tantas alterações físicas e psíquicas. Contudo, soluções fáceis e violentas são sempre apresentadas, refletindo o quanto somos uma sociedade que apela sempre para medidas punitivas, especialmente, se estivermos tratando de pessoas que estão nas margens, que são diferentes do senso comum, ou que estão em situação de vulnerabilidade.

No entanto, a sanha punitivista não foi capaz de frear a ação de sites racistas e fascistas que incitam ódio, e que estão por trás deste e do atendado de Realengo, por terem sido procurados pelos autores dos ataques para conseguirem armas. Tanto o responsável por Realengo, como este, são tratados como heróis nesses espaços. Uma semana antes do ocorrido, um dos atiradores publicou um agradecimento a este site pelas orientações.

Estamos presenciando um momento de cultura do ódio e culto às armas como grande política de segurança pública. Além disso, a educação vem sendo atacada como ideológica e disseminadora de um tal de “marxismo cultural” e “ideologia de gênero”. Esses discursos e práticas favorecem um ambiente de guerra, além de alastrar racismo, LGBTfobia, dentre outros comportamentos fascistas. Isso também estava presente, de algum modo, na ação desses jovens, que pelo que tem sido noticiado, faziam apologia do ódio e disseminação da cultura armamentista.

Deveríamos esperar como reação ao acontecido que os governos, locais e nacional, em contato com a comunidade escolar, pensassem em formas de acolhimento dos estudantes da escola, mas para além disso, uma política de prevenção a tais ocorrências, para que não se repetissem. E que dialogassem sobre ações reforçadoras de vínculos e não violência. Isso, acompanhado de uma educação que rechaçasse racismos e qualquer tipo de discriminação.

Porém, não há sinal algum que indique este caminho, ao contrário, os governantes e legisladores, em grande maioria, saíram buscando culpados e propondo medidas punitivistas de maneira aleatória, sem analisar o que de fato está na raiz de acontecimentos como este. O horizonte não é promissor, mas nós, como sociedade, temos de reagir de outra forma, exigindo que se vá às causas e, com isso, haja ações de longo prazo que coíbam histórias como de Suzano. Além disso, é urgente uma reação contra a cultura das armas, que é notório, só aumenta a violência e não protege, ao contrário, ameaça ainda mais.

*Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Para pensar Suzano

O que aconteceu na escola em Suzano não é corriqueiro no Brasil, mas também não é inédito, já que tivemos dois episódios anteriores: em 2011 no Rio de Janeiro e em 2017 em Goiânia. No entanto, ao que parece, estamos herdando um comportamento comum nos Estados Unidos, onde ataques como este ocorrem com maior frequência.

Quando uma tragédia dessas proporções advém, o que mais se vê são analistas de plantão fazendo interpretações e receitando remédios rápidos e aparentemente eficazes. No caso em questão, solução bizarra foi proposta por dois senadores da República: armar os professores. Ideia, aliás, aventada por Donald Trump, na linha de “imitamos os estadunidenses com prazer”.

Imaginemos a cena: uma professora em sala de aula com um coldre na cintura, armada para proteger seus alunos. E como um dos atiradores era um adolescente de 17 anos, obviamente a solução “redução da idade penal” retorna com força e como panaceia para resolver qualquer mazela, mesmo que estejamos falando de um dos países mais violentos do mundo.

De acordo com o noticiado, o atentado guarda semelhanças com o ocorrido em Columbine, Estados Unidos, em 1999, também praticado por dois jovens ex-alunos da escola, que se inspiraram em videogames e provavelmente teriam sido vítimas de bullying. Então, na época houve uma investida em analisar e até criminalizar jogos, além de trazer o bullying para o centro do debate. No entanto, medida alguma de prevenção foi tomada. Não há programas de atenção e acolhimento à jovens com depressão, mesmo que pesquisas demostrem ser cada vez mais comum os episódios da doença entre esse público. No caso do ex-aluno adolescente, consta na secretaria da escola que ele é evadido. Ele morava na vizinhança e não ocorreu a esta direção procurar saber o porquê do abandono escolar, ou avisar ao Conselho Tutelar, o que é sua obrigação.

O retorno da pauta da redução da idade penal é frequente, o que não acontece é uma discussão sobre a etapa peculiar da adolescência, com a qual é preciso um olhar dedicado e atento para dar apoio no momento de tantas alterações físicas e psíquicas. Contudo, soluções fáceis e violentas são sempre apresentadas, refletindo o quanto somos uma sociedade que apela sempre para medidas punitivas, especialmente, se estivermos tratando de pessoas que estão nas margens, que são diferentes do senso comum, ou que estão em situação de vulnerabilidade.

No entanto, a sanha punitivista não foi capaz de frear a ação de sites racistas e fascistas que incitam ódio, e que estão por trás deste e do atendado de Realengo, por terem sido procurados pelos autores dos ataques para conseguirem armas. Tanto o responsável por Realengo, como este, são tratados como heróis nesses espaços. Uma semana antes do ocorrido, um dos atiradores publicou um agradecimento a este site pelas orientações.

Estamos presenciando um momento de cultura do ódio e culto às armas como grande política de segurança pública. Além disso, a educação vem sendo atacada como ideológica e disseminadora de um tal de “marxismo cultural” e “ideologia de gênero”. Esses discursos e práticas favorecem um ambiente de guerra, além de alastrar racismo, LGBTfobia, dentre outros comportamentos fascistas. Isso também estava presente, de algum modo, na ação desses jovens, que pelo que tem sido noticiado, faziam apologia do ódio e disseminação da cultura armamentista.

Deveríamos esperar como reação ao acontecido que os governos, locais e nacional, em contato com a comunidade escolar, pensassem em formas de acolhimento dos estudantes da escola, mas para além disso, uma política de prevenção a tais ocorrências, para que não se repetissem. E que dialogassem sobre ações reforçadoras de vínculos e não violência. Isso, acompanhado de uma educação que rechaçasse racismos e qualquer tipo de discriminação.

Porém, não há sinal algum que indique este caminho, ao contrário, os governantes e legisladores, em grande maioria, saíram buscando culpados e propondo medidas punitivistas de maneira aleatória, sem analisar o que de fato está na raiz de acontecimentos como este. O horizonte não é promissor, mas nós, como sociedade, temos de reagir de outra forma, exigindo que se vá às causas e, com isso, haja ações de longo prazo que coíbam histórias como de Suzano. Além disso, é urgente uma reação contra a cultura das armas, que é notório, só aumenta a violência e não protege, ao contrário, ameaça ainda mais.

*Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Contra o cinza do medo, colorir as ruas: por uma cidade transformada pelas mulheres

Você já parou para pensar como caminha por sua cidade? Que sentimentos, afetos e procedimentos passam por sua cabeça antes de sair de casa e enfrentar a rua?  Como você decide a sua rota de deslocamento diário? Por quais locais escolhe ou não passar? E antes de entrar no transporte coletivo, que critérios passam pela sua cabeça? Como, afinal de contas, você vive e se move por sua cidade?

É possível que, para alguns, tais perguntas pareçam despropositadas. Vive-se a cidade como dá para viver, oras. Não há muito a refletir: as escolhas são pautadas pelo que parecem cálculos racionais. A rota de deslocamento escolhida é a que gasta menos tempo. Passa-se nos locais necessários para que o trajeto seja mais rápido. Toma-se o ônibus que passar mais rápido, ou quem sabe o que estiver menos cheio. A rua não se enfrenta, se percorre.

Se você se identificou com as respostas acima, imagine que, de repente, tudo deve ser feito diferente. Ao invés de escolher a rota mais rápida, você passa a percorrer caminhos mais longos. Passa a pensar bem em cada um dos locais em seu trajeto, avaliando-os meticulosamente. Passa a não tomar necessariamente o ônibus mais rápido e, quem sabe, até escolha parar num ponto mais longe do que aquele perto da sua casa. Um exercício imaginativo absurdo? A realidade cotidiana de boa parte das mulheres brasileiras.

O cotidiano das mulheres

Segundo pesquisa realizada pela Action Aid, 73,9% das mulheres brasileiras já desviaram seu trajeto por conta da escuridão da rua; 70,6% já deixou de sair de casa em determinados horários por conta do receio de sofrer algum tipo de violência ou assédio e, para 15% delas, o desvio de trajeto e interdição de horários acontece todos os dias.

Ao utilizar o transporte público, 57,8% das mulheres tem critérios bastante específicos para escolher os veículos que utilizam: 26, 6% não entram em ônibus lotados e, ao mesmo tempo, 13,6% não se arriscam em ônibus vazios. Quando dentro do veículo, há ainda outras preocupações: 54% das mulheres entrevistadas evita sentar no fundo, e 39,6% delas não senta perto de homens.

Mas o que será que transforma o ato cotidiano de se mover pela cidade em um leque de escolhas estranhas, inclusive, contraditórias entre si? O que faz certos locais e horários serem proibidos? O que faz com que ao mesmo tempo em que se deixa passar os ônibus cheios também não se entre em ônibus vazios? O que torna alguns assentos do transporte interditos?

Mesma cidade, diferentes experiências

Ícone do espaço capitalista, a cidade não escapa, mas reinventa suas contradições e desigualdades estruturais. A vivência na rua é marcada por conflitos, disputas, emaranhados de relações que revelam e refazem as hierarquias constituintes de nossa sociedade.  Em outras palavras, uma mesma cidade é, na verdade, várias –  a depender do corpo que a experimenta. Um homem negro que, ao encontrar uma viatura, automaticamente se prepara para a revista policial não vive a cidade do homem branco que respira aliviado ao se deparar com o mesmo carro. Também homens e mulheres (e, entre elas, toda a diversidade que constrói essa categoria) não experimentam a mesma urbanidade.

Nas cidades em que vivemos, uma das marcas da experiência das mulheres é o medo – não apenas o medo de assalto, mas principalmente da violência sexual. O sentimento não é descabido: segundo pesquisa do IPEA, entre os crimes de estupro contra vítimas adultas, 60% deles são praticados por desconhecidos, entre 18h e 6h da manhã, sobretudo nas vias e espaços públicos. A possibilidade real do estupro está ali, todo dia, pautando as escolhas de caminhos, trajetos, horários e veículos a serem utilizados nas ruas, transformando o ato de caminhar em um jogo de estratégias.

Junto à ameaça de estupro estão também outros gestos, aparentemente menores, que atualizam o corpo feminino na rua não como corpo-sujeito, mas corpo-objeto e reafirmam o não pertencimento das mulheres ao espaço urbano. As cantadas e assédios vivenciadas por ao menos 56,9% das mulheres brasileiras, segundo pesquisa já citada da Action Aid, são uma espécie de aviso: corpos femininos são passíveis de invasão se decidem circular na cidade. Os assédios, assim como o medo, servem como demarcação de territórios: se as ruas são perigosas para mulheres, insistir em andar por elas é aceitar as regras do jogo, ou seja, submeter-se às possibilidades de intromissão masculina. Quem avisa amigo é.

Colorir as ruas

Mas e se, em vez de pensarmos novos percursos, deixarmos de sair depois de certa hora, evitarmos tais rotas ou veículos, nós decidíssemos desobedecer? Parássemos de escutar os alertas, os avisos, as ameaças e as cantadas, e simplesmente optássemos por ocupar as ruas?

Difícil imaginar essa ousadia enquanto resolução individual, posto que também o problema está longe de sê-lo. Mas, pensemos bem: é exatamente a possibilidade desse mundo que criamos quando, deliberadamente, enchemos as ruas das cidades com mulheres em marcha, tal como fizemos no último dia 8 de março.

Em nossa multiplicidade de corpos e formas de estar no mundo, pintamos pouco a pouco a cidade de outros tons. Não mais o cinza do medo, mas o colorido das nossas existências. Não mais o cuidado frente à ameaça, mas o cuidado entre nós. Não mais uma cidade feita por homens, mas o espaço urbano transformado por nossa presença – do corpo-objeto aos corpos políticos. Se as opressões fazem de uma cidade muitas, não deixemos o poder todo para eles: cada vez que uma marcha de mulheres toma as ruas, um mundo sem machismos se refaz possível.

Leia também:

Para meninas marielles, educação e feminismo

Vivas, livres e sem medo: 8 de março pela vida das mulheres

(In)Segurança Alimentar e Nutricional e (Des)Igualdade de Gênero

“A Vale assassinou a todos nós. Enquanto mãe eu morro um pouco a cada dia”

Contra o cinza do medo, colorir as ruas: por uma cidade transformada pelas mulheres

Você já parou para pensar como caminha por sua cidade? Que sentimentos, afetos e procedimentos passam por sua cabeça antes de sair de casa e enfrentar a rua?  Como você decide a sua rota de deslocamento diário? Por quais locais escolhe ou não passar? E antes de entrar no transporte coletivo, que critérios passam pela sua cabeça? Como, afinal de contas, você vive e se move por sua cidade?

É possível que, para alguns, tais perguntas pareçam despropositadas. Vive-se a cidade como dá para viver, oras. Não há muito a refletir: as escolhas são pautadas pelo que parecem cálculos racionais. A rota de deslocamento escolhida é a que gasta menos tempo. Passa-se nos locais necessários para que o trajeto seja mais rápido. Toma-se o ônibus que passar mais rápido, ou quem sabe o que estiver menos cheio. A rua não se enfrenta, se percorre.

Se você se identificou com as respostas acima, imagine que, de repente, tudo deve ser feito diferente. Ao invés de escolher a rota mais rápida, você passa a percorrer caminhos mais longos. Passa a pensar bem em cada um dos locais em seu trajeto, avaliando-os meticulosamente. Passa a não tomar necessariamente o ônibus mais rápido e, quem sabe, até escolha parar num ponto mais longe do que aquele perto da sua casa. Um exercício imaginativo absurdo? A realidade cotidiana de boa parte das mulheres brasileiras.

O cotidiano das mulheres

Segundo pesquisa realizada pela Action Aid, 73,9% das mulheres brasileiras já desviaram seu trajeto por conta da escuridão da rua; 70,6% já deixou de sair de casa em determinados horários por conta do receio de sofrer algum tipo de violência ou assédio e, para 15% delas, o desvio de trajeto e interdição de horários acontece todos os dias.

Ao utilizar o transporte público, 57,8% das mulheres tem critérios bastante específicos para escolher os veículos que utilizam: 26, 6% não entram em ônibus lotados e, ao mesmo tempo, 13,6% não se arriscam em ônibus vazios. Quando dentro do veículo, há ainda outras preocupações: 54% das mulheres entrevistadas evita sentar no fundo, e 39,6% delas não senta perto de homens.

Mas o que será que transforma o ato cotidiano de se mover pela cidade em um leque de escolhas estranhas, inclusive, contraditórias entre si? O que faz certos locais e horários serem proibidos? O que faz com que ao mesmo tempo em que se deixa passar os ônibus cheios também não se entre em ônibus vazios? O que torna alguns assentos do transporte interditos?

Mesma cidade, diferentes experiências

Ícone do espaço capitalista, a cidade não escapa, mas reinventa suas contradições e desigualdades estruturais. A vivência na rua é marcada por conflitos, disputas, emaranhados de relações que revelam e refazem as hierarquias constituintes de nossa sociedade.  Em outras palavras, uma mesma cidade é, na verdade, várias –  a depender do corpo que a experimenta. Um homem negro que, ao encontrar uma viatura, automaticamente se prepara para a revista policial não vive a cidade do homem branco que respira aliviado ao se deparar com o mesmo carro. Também homens e mulheres (e, entre elas, toda a diversidade que constrói essa categoria) não experimentam a mesma urbanidade.

Nas cidades em que vivemos, uma das marcas da experiência das mulheres é o medo – não apenas o medo de assalto, mas principalmente da violência sexual. O sentimento não é descabido: segundo pesquisa do IPEA, entre os crimes de estupro contra vítimas adultas, 60% deles são praticados por desconhecidos, entre 18h e 6h da manhã, sobretudo nas vias e espaços públicos. A possibilidade real do estupro está ali, todo dia, pautando as escolhas de caminhos, trajetos, horários e veículos a serem utilizados nas ruas, transformando o ato de caminhar em um jogo de estratégias.

Junto à ameaça de estupro estão também outros gestos, aparentemente menores, que atualizam o corpo feminino na rua não como corpo-sujeito, mas corpo-objeto e reafirmam o não pertencimento das mulheres ao espaço urbano. As cantadas e assédios vivenciadas por ao menos 56,9% das mulheres brasileiras, segundo pesquisa já citada da Action Aid, são uma espécie de aviso: corpos femininos são passíveis de invasão se decidem circular na cidade. Os assédios, assim como o medo, servem como demarcação de territórios: se as ruas são perigosas para mulheres, insistir em andar por elas é aceitar as regras do jogo, ou seja, submeter-se às possibilidades de intromissão masculina. Quem avisa amigo é.

Colorir as ruas

Mas e se, em vez de pensarmos novos percursos, deixarmos de sair depois de certa hora, evitarmos tais rotas ou veículos, nós decidíssemos desobedecer? Parássemos de escutar os alertas, os avisos, as ameaças e as cantadas, e simplesmente optássemos por ocupar as ruas?

Difícil imaginar essa ousadia enquanto resolução individual, posto que também o problema está longe de sê-lo. Mas, pensemos bem: é exatamente a possibilidade desse mundo que criamos quando, deliberadamente, enchemos as ruas das cidades com mulheres em marcha, tal como fizemos no último dia 8 de março.

Em nossa multiplicidade de corpos e formas de estar no mundo, pintamos pouco a pouco a cidade de outros tons. Não mais o cinza do medo, mas o colorido das nossas existências. Não mais o cuidado frente à ameaça, mas o cuidado entre nós. Não mais uma cidade feita por homens, mas o espaço urbano transformado por nossa presença – do corpo-objeto aos corpos políticos. Se as opressões fazem de uma cidade muitas, não deixemos o poder todo para eles: cada vez que uma marcha de mulheres toma as ruas, um mundo sem machismos se refaz possível.

Leia também:

Para meninas marielles, educação e feminismo

Vivas, livres e sem medo: 8 de março pela vida das mulheres

(In)Segurança Alimentar e Nutricional e (Des)Igualdade de Gênero

“A Vale assassinou a todos nós. Enquanto mãe eu morro um pouco a cada dia”

(In)Segurança Alimentar e Nutricional e (Des)Igualdade de Gênero

O que comemos e de que forma comemos depende de como os alimentos são produzidos e distribuídos. Depende também da renda das famílias, dos seus hábitos alimentares, de suas culturas e de políticas públicas de alimentação e nutrição, entre outros fatores. Há, contudo, um elemento central na nossa relação com a comida: os papeis atribuídos a homens e mulheres. Nossas sociedades estão fundadas em uma estrutura dicotômica e machista que, além de separar a esfera privada da pública, hierarquiza e distribui papéis sociais diferenciados para mulheres e homens. Essa assimetria gera uma desigual repartição de atribuições entre os sexos em todas os âmbitos da vida, de uma maneira geral, e em relação aos alimentos, mais especificamente. Segundo o IBGE, em 2017, as mulheres trabalhavam 20,9 horas por semana em afazeres domésticos e no cuidado de pessoas, quase o dobro das 10,8 horas dedicadas pelos homens. E mais: ainda de acordo com o IBGE, 95,6% das mulheres com 14 anos ou mais utilizavam parte deste tempo para preparar ou servir alimentos. Entre os homens, esse percentual é de apenas 59,8%.

Os dados revelam o quanto os estereótipos de gênero ainda reservam às mulheres o destino de cuidar dos filhos, da casa, da família e das refeições. Alguns avanços foram obtidos, pois a participação dos homens nos cuidados da família vem crescendo lentamente em tempos recentes. Contudo, limitam-se a atividades mais próximas do lazer, como, por exemplo, os almoços de final de semana. Aparentemente, o mercado vem dando respostas as demandas das mulheres para diminuir a carga de trabalho na cozinha, disponibilizando produtos e serviços que exigem menor dedicação. Acontece que essas respostas além de criar novos problemas acabam reforçando a desigualdade de gênero.

O mercado de produtos ultraprocessados cresce no mundo, especialmente em países em desenvolvimento. São alimentos que passaram por técnicas e processamentos que adicionam alta quantidade de sal, açúcar, gorduras, realçadores de sabor e texturizantes; as vezes podem conter vitaminas e minerais sintéticos. São produtos pré-prontos ou prontos para o consumo, encontrados em todas as prateleiras, como os salgadinhos, diversos tipos de pães e biscoitos doces e salgados, produtos assados, fritos e congelados. Se a principio parecem facilitar a vida das pessoas, e em especial das mulheres, são na realidade um verdadeiro veneno. Estudos de organismos internacionais e inúmeros estudos nacionais revelam que o aumento do consumo de ultraprocessados está fortemente correlacionado ao aumento do sobrepeso e da obesidade que, por sua vez, está na origem de enfermidades como diabetes, hipertensão e vários tipos de câncer.

Divisão do trabalho doméstico

 

No Brasil, mais da metade da população está com sobrepeso e a obesidade atinge a 20% das pessoas adultas. Temos, pois, um sério problema alimentar que resulta em doença e morte. E mais uma epidemia do século 21. Mais do que nunca precisamos resgatar dietas seguras, adequadas e saudáveis. Para isso, faz-se necessário mudar nossa forma de produzir e consumir alimentos, de modo a valorizar os alimentos in natura livres de transgênicos e de agrotóxicos e, assim, ter acesso a produtos diversos e minimamente processados. Contudo, isso não é suficiente, pois não resolve a desigualdade de gênero. A igualdade entre homens e mulheres passa necessariamente pela progressiva construção de um modelo societário, baseado nos princípios da solidariedade, da reciprocidade e da redistribuição. Passa pela divisão equânime dos trabalhos domésticos e de cuidados entre homens e mulheres. Nesse lugar, todas e todos teremos direito à uma alimentação saudável, digna e em sintonia com os hábitos e culturas alimentares, sem que isso signifique o confinamento das mulheres às responsabilidades de cuidar da alimentação.

Nesse 8 de março de 2019, não há motivos para celebrar. A institucionalidade que tínhamos para avançar na conquista por mais equidade de gênero na segurança alimentar e nutricional foi destruída no primeiro dia do governo Bolsonaro. Com efeito, não somente foi extinto o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) como desapareceu da estrutura federal a Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, antigamente subordinada ao Ministro do Desenvolvimento Social, atual Ministério da Cidadania. Ademais, para liderar a Política para as Mulheres foi nomeada uma jovem conservadora, nada preocupada com essas questões. Felizmente, essa pauta continua viva entre organizações e movimentos sociais. Continuaremos lutando para garantir que nossas demandas sejam atendidas graças à pressão popular. Continuaremos cultivando a justiça de gênero para conquistar a segurança alimentar e nutricional tendo em mente o que nos diz Chimamanda Adichie “A cultura não faz as pessoas. As pessoas fazem a cultura. Se uma humanidade inteira de mulheres não faz parte da cultura, então temos que mudar nossa cultura”.

 

Leia também:

Para meninas marielles, educação e feminismo

Vivas, livres e sem medo: 8 de março pela vida das mulheres

“A Vale assassinou a todos nós. Enquanto mãe eu morro um pouco a cada dia”

Contra o cinza do medo, colorir as ruas: por uma cidade transformada pelas mulheres

Vivas, livres e sem medo: 8 de março pela vida das mulheres

Vivas, livres e sem medo: este é o apelo dos movimentos de mulheres no Brasil e América Latina que tem reverberado nas redes sociais e nas ruas. A agenda política das mulheres, abarca a autonomia econômica e igualdade no mundo do trabalho, educação, saúde, participação nos espaços de poder, direito à terra, moradia digna e sustentabilidade ambiental, cultura e combate ao racismo, entre outras questões centrais para a promoção dos direitos humanos. No entanto, a defesa de direitos tem sido sistematicamente confrontada com a absurda violência letal, uma verdadeira chacina de mulheres em curso: em 2017 a média de homicídios diários foi de 12 mulheres,  contabilizando 4.473 homicídios dolosos e 946 tipificados como feminicídio. Em 2018, o Disque 180, serviço público destinado a denúncias de violência contra a mulher, recebeu, até agosto, 79.661 ligações.

As políticas públicas implementadas no período de maior alocação de recursos e de aumento da participação social foram insuficientes ou reprodutoras do racismo institucional: entre 2003 e 2013 diminuiu 9,8%  o número de homicídios de mulheres brancas e aumentou 54% o de mulheres negras. Porém, uma institucionalidade estava se consolidando  com investimentos públicos: assim, por exemplo, foram realizadas 4 conferencias nacionais, de onde saíram as diretrizes para o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (IIPNPM), foi fortalecido o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, o feminicídio foi tipificado no Código Penal, iniciaram a construção das Casas da Mulher Brasileira, e foram destinados recursos para o fortalecimento da rede de enfrentamento a violência, que envolve um esforço federativo para se sustentar, ou seja, Governo Federal, Estados e Municípios.

O cenário agora é desesperador: com a Emenda Constitucional 95, que estabeleceu o ‘teto de gastos’, o corte de despesas sofrido pela Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres (SPM) foi de 65% entre 2015 a 2018, em termos reais. Para cada R$ 1 cortado do orçamento das políticas para as mulheres entre 2015 e 2016, aumentou R$ 1,3 o orçamento para pagamento dos serviços da dívida pública (Inesc, Oxfam Brasil e CESR, 2017). A redução orçamentária chegou a 79% se compararmos os recursos alocados em 2019 em relação aos de 2013.

Tabela 1. Recursos autorizados, pagos e de restos a pagar pagos no período 2013 a 2017. Programa 2016: Políticas para as Mulheres: Promoção da Igualdade e Enfrentamento à Violência

Estamos nos referindo somente aos cortes do Programa 2016: Políticas para as Mulheres: Promoção da Igualdade e Enfrentamento à Violência, ou seja, há ainda os cortes em outras políticas públicas que afetam as mulheres, como, por exemplo, do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). De todo modo, o mais preocupante é que, ainda que o Disque 180 seja mantido, as mulheres vítimas de violência terão uma porta de entrada para a rede socioassistencial, mas não terão serviços para acessar após este primeiro acolhimento.

É bom lembrar que, segundo pesquisa do Inesc, as mulheres negras – público mais vulnerável e prioritário do II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres – pagam proporcionalmente mais impostos que os demais seguimentos da sociedade, homens e mulheres brancas e homens negros: os 10% mais pobres da população, compostos majoritariamente por negros e mulheres (68,06% e 54,34%, respectivamente) comprometem 32% da renda com os impostos, enquanto os 10% mais ricos, em sua maioria brancos e homens (83,72% e 62,05%, respectivamente) empregam 21% da renda em pagamento de tributos”.

Sem recursos para o combate à violência, sem recursos para a promoção da autonomia. Ao mesmo tempo, mulheres são atiradas pela janela em diferentes lugares, espancadas dentro de suas próprias casas, mortas com requintes de crueldade, impedidas de circular livremente na cidade. A responsável pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, recomendou em entrevista que pais de meninas deveriam fugir do Brasil, desresponsabilizando o Estado de tratar o problema.

O Brasil está em guerra contra as mulheres. Ainda assim elas seguem, trabalhando, criando seus filhos, realizando a maior parte do trabalho doméstico. Seguem com o grito nas ruas, a organização política, a insistência em viver, e a busca pela liberdade. E seguem juntas.

Leia também:

Para meninas marielles, educação e feminismo

(In)Segurança Alimentar e Nutricional e (Des)Igualdade de Gênero

“A Vale assassinou a todos nós. Enquanto mãe eu morro um pouco a cada dia”

Contra o cinza do medo, colorir as ruas: por uma cidade transformada pelas mulheres

 

Vivas, livres e sem medo: 8 de março pela vida das mulheres

Vivas, livres e sem medo: este é o apelo dos movimentos de mulheres no Brasil e América Latina que tem reverberado nas redes sociais e nas ruas. A agenda política das mulheres, abarca a autonomia econômica e igualdade no mundo do trabalho, educação, saúde, participação nos espaços de poder, direito à terra, moradia digna e sustentabilidade ambiental, cultura e combate ao racismo, entre outras questões centrais para a promoção dos direitos humanos. No entanto, a defesa de direitos tem sido sistematicamente confrontada com a absurda violência letal, uma verdadeira chacina de mulheres em curso: em 2017 a média de homicídios diários foi de 12 mulheres,  contabilizando 4.473 homicídios dolosos e 946 tipificados como feminicídio. Em 2018, o Disque 180, serviço público destinado a denúncias de violência contra a mulher, recebeu, até agosto, 79.661 ligações.

As políticas públicas implementadas no período de maior alocação de recursos e de aumento da participação social foram insuficientes ou reprodutoras do racismo institucional: entre 2003 e 2013 diminuiu 9,8%  o número de homicídios de mulheres brancas e aumentou 54% o de mulheres negras. Porém, uma institucionalidade estava se consolidando  com investimentos públicos: assim, por exemplo, foram realizadas 4 conferencias nacionais, de onde saíram as diretrizes para o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (IIPNPM), foi fortalecido o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, o feminicídio foi tipificado no Código Penal, iniciaram a construção das Casas da Mulher Brasileira, e foram destinados recursos para o fortalecimento da rede de enfrentamento a violência, que envolve um esforço federativo para se sustentar, ou seja, Governo Federal, Estados e Municípios.

O cenário agora é desesperador: com a Emenda Constitucional 95, que estabeleceu o ‘teto de gastos’, o corte de despesas sofrido pela Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres (SPM) foi de 65% entre 2015 a 2018, em termos reais. Para cada R$ 1 cortado do orçamento das políticas para as mulheres entre 2015 e 2016, aumentou R$ 1,3 o orçamento para pagamento dos serviços da dívida pública (Inesc, Oxfam Brasil e CESR, 2017). A redução orçamentária chegou a 79% se compararmos os recursos alocados em 2019 em relação aos de 2013.

Tabela 1. Recursos autorizados, pagos e de restos a pagar pagos no período 2013 a 2017. Programa 2016: Políticas para as Mulheres: Promoção da Igualdade e Enfrentamento à Violência

Estamos nos referindo somente aos cortes do Programa 2016: Políticas para as Mulheres: Promoção da Igualdade e Enfrentamento à Violência, ou seja, há ainda os cortes em outras políticas públicas que afetam as mulheres, como, por exemplo, do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). De todo modo, o mais preocupante é que, ainda que o Disque 180 seja mantido, as mulheres vítimas de violência terão uma porta de entrada para a rede socioassistencial, mas não terão serviços para acessar após este primeiro acolhimento.

É bom lembrar que, segundo pesquisa do Inesc, as mulheres negras – público mais vulnerável e prioritário do II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres – pagam proporcionalmente mais impostos que os demais seguimentos da sociedade, homens e mulheres brancas e homens negros: os 10% mais pobres da população, compostos majoritariamente por negros e mulheres (68,06% e 54,34%, respectivamente) comprometem 32% da renda com os impostos, enquanto os 10% mais ricos, em sua maioria brancos e homens (83,72% e 62,05%, respectivamente) empregam 21% da renda em pagamento de tributos”.

Sem recursos para o combate à violência, sem recursos para a promoção da autonomia. Ao mesmo tempo, mulheres são atiradas pela janela em diferentes lugares, espancadas dentro de suas próprias casas, mortas com requintes de crueldade, impedidas de circular livremente na cidade. A responsável pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, recomendou em entrevista que pais de meninas deveriam fugir do Brasil, desresponsabilizando o Estado de tratar o problema.

O Brasil está em guerra contra as mulheres. Ainda assim elas seguem, trabalhando, criando seus filhos, realizando a maior parte do trabalho doméstico. Seguem com o grito nas ruas, a organização política, a insistência em viver, e a busca pela liberdade. E seguem juntas.

Leia também:

Para meninas marielles, educação e feminismo

(In)Segurança Alimentar e Nutricional e (Des)Igualdade de Gênero

“A Vale assassinou a todos nós. Enquanto mãe eu morro um pouco a cada dia”

Contra o cinza do medo, colorir as ruas: por uma cidade transformada pelas mulheres

 

Para meninas marielles, educação e feminismo

E vamos lá falar sobre educação e feminismo em mais um 8M. E por que não falar do desfile da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira e sua aula de história a céu aberto? Em tempos de fundamentalismos rondando as escolas, de militarização, de criminalização dos estudos de gênero, com a famigerada “ideologia de gênero”, que não se explica, nada melhor do que mostrar uma história nua e crua, com seus personagens invisibilizados pelo colonialismo que graça entre nós até hoje.

A Comissão de frente trazendo uma menina negra abrindo um livro para dizer que está presente Marielle Franco e tudo o que ela representa, a luta das mulheres negras pela sobrevivência em um país do “cordialismo”, que as mata e as violenta todos os dias, com o aval de parte da população que insiste em não perceber que vivemos em um dos lugares mais violentos do mundo. E ano a ano os registros apontam aumento do número de agressões e feminicídios, vários com denúncias prévias e sem que providencias fossem tomadas para coibi-los, o que pode ser constatado pela informação constante do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, indicando que menos de 10% dos municípios brasileiros possuem delegacias especializadas.

Foto: Rodrigo Gorosito/G1

E a despeito dessa realidade, há um movimento intitulado “Escola sem Partido”, que há tempos tenta interditar a discussão sobre a promoção da igualdade de gênero, constante dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, o de número 5, propondo “Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas”.

O mais grave é que agora esse movimento está incrustrado no Ministério da Educação e no atual Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, pregando velhos preceitos, contribuindo para perpetuar a cultura patriarcal e machista entre nós, geradora do ciclo de violência que mata cerca de 4,5 mil mulheres ao ano, sendo que desse número, dois terços são mulheres negras. Quando se fala em feminicídio, pois somemos a isso o enorme contingente de mulheres vítimas de violências todos os dias.

De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios contínua (PNAD/IBGE), em 2018, os dados da educação mostravam que enquanto 13% de homens com mais de 25 anos concluíram ensino superior, entre as mulheres o percentual sobe para 17%, acima da média nacional que é de 15%. No entanto, quando o mesmo IBGE divulga dados sobre população desempregada, 52% são mulheres contra 47% de homens. E pior, quando analisamos dados sobre salários, homens recebem em média R$ 2.568,00, contra R$ 2007,00 para mulheres.

Outro dado relevante a ser destacado, diz respeito aos motivos que levam ao abandono escolar. Enquanto os homens abandonam por trabalho ou desinteresse, as mulheres abandonam por gravidez na adolescência, obrigações domésticas de criar irmãos menores ou cuidar de idosos, dificuldade de recursos para transporte. Isso se dá tanto no ensino médio, quanto no acesso ao superior, reforçando a realidade de que às mulheres cabe o espaço privado, os cuidados domésticos, a exclusividade em cuidar das crianças, desde a adolescência. Contudo, mesmo diante desta realidade, elas estão na batalha na esfera pública e alcançam maior sucesso escolar, apesar de não se dar o mesmo no mundo do trabalho.

Apesar desse quadro horrendo, precisamos destacar que hoje há mais mulheres dentre as pessoas que conseguem concluir uma graduação, mesmo com todas as dificuldades impostas na esfera pública, que vai desde a violenta interdição dos espaços de manifestação, passando pelo assédio nos transportes públicos, nas ruas e o cerceamento do espaço de fala. Elas estão em maior número entre formandos.

Então, qual a relevância de um enredo tal qual o apresentado pela Mangueira? A importância de aproximar a população da história da resistência dos povos indígenas e negros, mostrando que houve muita luta, a despeito das narrativas de submissão. A revelação da mentirosa versão de libertação pelas mãos da princesa colonizadora. O embuste sobre bandeirantes heróis, ao serem apresentados como vilões sanguinários e assassinos predadores, o que de fato foram. E a importância, para as mulheres, em reverenciar Marielle Franco, mulher negra, liderança na defesa de direitos humanos, eleita vereadora lutando contra milicianos em espaço dominado por eles. Isso nos fortalece e apresenta às várias meninas marielles, como a que estava na Comissão de Frente, que a batalha está aí para ser continuada, a escola para ser revolucionada e a rua para ser conquistada.

Leia também:

Vivas, livres e sem medo: 8 de março pela vida das mulheres

(In)Segurança Alimentar e Nutricional e (Des)Igualdade de Gênero

“A Vale assassinou a todos nós. Enquanto mãe eu morro um pouco a cada dia”

Contra o cinza do medo, colorir as ruas: por uma cidade transformada pelas mulheres

Para meninas marielles, educação e feminismo

E vamos lá falar sobre educação e feminismo em mais um 8M. E por que não falar do desfile da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira e sua aula de história a céu aberto? Em tempos de fundamentalismos rondando as escolas, de militarização, de criminalização dos estudos de gênero, com a famigerada “ideologia de gênero”, que não se explica, nada melhor do que mostrar uma história nua e crua, com seus personagens invisibilizados pelo colonialismo que graça entre nós até hoje.

A Comissão de frente trazendo uma menina negra abrindo um livro para dizer que está presente Marielle Franco e tudo o que ela representa, a luta das mulheres negras pela sobrevivência em um país do “cordialismo”, que as mata e as violenta todos os dias, com o aval de parte da população que insiste em não perceber que vivemos em um dos lugares mais violentos do mundo. E ano a ano os registros apontam aumento do número de agressões e feminicídios, vários com denúncias prévias e sem que providencias fossem tomadas para coibi-los, o que pode ser constatado pela informação constante do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, indicando que menos de 10% dos municípios brasileiros possuem delegacias especializadas.

Foto: Rodrigo Gorosito/G1

E a despeito dessa realidade, há um movimento intitulado “Escola sem Partido”, que há tempos tenta interditar a discussão sobre a promoção da igualdade de gênero, constante dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, o de número 5, propondo “Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas”.

O mais grave é que agora esse movimento está incrustrado no Ministério da Educação e no atual Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, pregando velhos preceitos, contribuindo para perpetuar a cultura patriarcal e machista entre nós, geradora do ciclo de violência que mata cerca de 4,5 mil mulheres ao ano, sendo que desse número, dois terços são mulheres negras. Quando se fala em feminicídio, pois somemos a isso o enorme contingente de mulheres vítimas de violências todos os dias.

De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios contínua (PNAD/IBGE), em 2018, os dados da educação mostravam que enquanto 13% de homens com mais de 25 anos concluíram ensino superior, entre as mulheres o percentual sobe para 17%, acima da média nacional que é de 15%. No entanto, quando o mesmo IBGE divulga dados sobre população desempregada, 52% são mulheres contra 47% de homens. E pior, quando analisamos dados sobre salários, homens recebem em média R$ 2.568,00, contra R$ 2007,00 para mulheres.

Outro dado relevante a ser destacado, diz respeito aos motivos que levam ao abandono escolar. Enquanto os homens abandonam por trabalho ou desinteresse, as mulheres abandonam por gravidez na adolescência, obrigações domésticas de criar irmãos menores ou cuidar de idosos, dificuldade de recursos para transporte. Isso se dá tanto no ensino médio, quanto no acesso ao superior, reforçando a realidade de que às mulheres cabe o espaço privado, os cuidados domésticos, a exclusividade em cuidar das crianças, desde a adolescência. Contudo, mesmo diante desta realidade, elas estão na batalha na esfera pública e alcançam maior sucesso escolar, apesar de não se dar o mesmo no mundo do trabalho.

Apesar desse quadro horrendo, precisamos destacar que hoje há mais mulheres dentre as pessoas que conseguem concluir uma graduação, mesmo com todas as dificuldades impostas na esfera pública, que vai desde a violenta interdição dos espaços de manifestação, passando pelo assédio nos transportes públicos, nas ruas e o cerceamento do espaço de fala. Elas estão em maior número entre formandos.

Então, qual a relevância de um enredo tal qual o apresentado pela Mangueira? A importância de aproximar a população da história da resistência dos povos indígenas e negros, mostrando que houve muita luta, a despeito das narrativas de submissão. A revelação da mentirosa versão de libertação pelas mãos da princesa colonizadora. O embuste sobre bandeirantes heróis, ao serem apresentados como vilões sanguinários e assassinos predadores, o que de fato foram. E a importância, para as mulheres, em reverenciar Marielle Franco, mulher negra, liderança na defesa de direitos humanos, eleita vereadora lutando contra milicianos em espaço dominado por eles. Isso nos fortalece e apresenta às várias meninas marielles, como a que estava na Comissão de Frente, que a batalha está aí para ser continuada, a escola para ser revolucionada e a rua para ser conquistada.

Leia também:

Vivas, livres e sem medo: 8 de março pela vida das mulheres

(In)Segurança Alimentar e Nutricional e (Des)Igualdade de Gênero

“A Vale assassinou a todos nós. Enquanto mãe eu morro um pouco a cada dia”

Contra o cinza do medo, colorir as ruas: por uma cidade transformada pelas mulheres

Por que somos a favor do Passe Livre Estudantil?

Na última quinta-feira (7/2), o governador Ibaneis Rocha apresentou à Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF) um projeto de lei que tem por objetivo restringir o Passe Livre Estudantil (PLE) somente a estudantes de escolas públicas e aos de escolas privadas que possuem renda familiar inferior a quatro salários mínimos, com o limite de 27 trajetos (ida e volta) no mês.

Como justificativa, o governador alega que a medida trará uma economia para os cofres públicos da ordem de R$ 115 milhões por ano. Desta forma, o custo anual do PLE, que em 2018 foi de R$ 273 milhões, com a nova proposta, diminuiria para R$ 158 milhões[1].

Paradoxalmente, enquanto busca reduzir despesas, através de outro projeto de lei enviado à CLDF, quer reduzir receitas com o corte de impostos. De um lado, deseja restringir um direito conquistado há 10 anos pelos e pelas estudantes do Distrito Federal, por outro, almeja cortar tributos das classes mais beneficiadas. Estima-se que tais reduções de impostos implicarão em uma perda de receita de R$ 240 bilhões[2] em 2020 – valor R$ 125 milhões superior à economia decorrente dos cortes a serem aplicados no Passe Livre Estudantil. Em 2021, a estimativa é de perda de arrecadação maior do que o valor necessário para custear todo o PLE, tal como ele funciona hoje.

O transporte é um direito social garantido no artigo 6º da Constituição Federal, assim como a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados. Além disso, o transporte é um direito essencial para a realização de outros direitos, ou seja, ele possibilita o acesso das pessoas aos equipamentos de saúde, de educação e de cultura, entre outros. Em síntese, o transporte público é crucial para que grande parte da população brasileira e do Distrito Federal acesse os serviços públicos. Garantir a sua gratuidade é uma forma de oportunizar que as pessoas mais desassistidas tenham acesso aos seus direitos, de forma a assegurar maior justiça social.

O Transporte Público Coletivo no DF

Os ônibus do transporte público do DF são geridos por cinco empresas que foram selecionadas em uma licitação realizada a partir de 2011. Esta licitação determinou o valor a ser recebido pelas empresas para transportar cada um dos e das passageiras, o que define o valor da tarifa bem como o subsídio do GDF ao sistema.

Dúvidas pairam sobre esse processo licitatório. Com efeito, decisão do Tribunal de Justiça do DF e Territórios (TJDFT)[3], bem como relatório da CPI do Transporte Público[4] realizada pela CLDF, além de outros estudos[5], identificaram diversas irregularidades que beneficiam as empresas e oneraram a tarifa, fazendo com que o DF apresente a tarifa mais cara do país, impactando diretamente o custo do PLE.

As irregularidades apontadas se referem, por exemplo, à má qualidade do estudo que embasou o edital, se utilizando de dados irreais ou desatualizados da população, da rede viária e quilometragem a ser percorrida pelas empresas; à forma de pagamento às empresas, que estabelece um custo por passageiro transportado em vez de pagar por quilômetro rodado; à participação de empresas de um mesmo grupo econômico, o que era proibido expressamente no edital; à participação de um mesmo advogado na elaboração do edital, nos pedidos de elucidação, recursos administrativos e judiciais e ainda ser advogado de uma das empresas que concorreram (e venceram) o edital, dentre outras.

Destaque-se trecho do acórdão do TJDFT que alerta para as irregularidades citadas anteriormente:

O edital da Concorrência Pública nº 01/2011 continha disposição expressa que vedava a participação de empresas componentes do mesmo grupo econômico (…) Os documentos colacionados aos autos demonstram que as empresas Viação Pioneira e Viação Piracicabana estão umbilicalmente ligadas e fazem parte de um grupo econômico maior que tem como empresa matriz a Expresso-União (…) houve, de fato, ofensa ao interesse público e a terceiros na medida em que o certame beneficiou empresas que possuíam vínculo estreito com extraneus, extraneus este que participou da confecção do edital, estando igualmente ativo nas fases interna e externa da licitação, redigiu as atas de julgamento, bem como analisou as propostas e habilitações. Tal benefício impediu que outras empresas (no caso terceiros) pudessem concorrer de maneira igualitária no procedimento licitatório (…) as empresas vencedoras lograram êxito no certame apresentando tarifas muito próximas ou praticamente iguais às tarifas máximas previstas no edital, o que implica em prejuízo indireto eis que demais empresas, que apresentaram tarifas mais acessíveis, foram consideradas inabilitadas (..) em virtude da licitação ser viciada, após a fase de habilitação, somente um competidor permaneceu na disputa, sendo este justamente o que apresentou a tarifa mais cara, consoante ressaltado acima, inviabilizando por completo a essência da concorrência, onerando, por consequência, os cofres públicos e o bolso do cidadão que faz uso do transporte coletivo (páginas 2, 3 e 4 do acórdão)

Assim, o Tribunal determinou a realização de nova licitação até o final de 2019. Trata-se de uma oportunidade ímpar para que o GDF realize um processo transparente, com parâmetros que tornem o sistema mais eficiente, seguro e confortável, garantindo seu controle social, inclusive de seu custo.

Uma licitação nesses moldes contribuiria para tornar o transporte público menos custoso, o que, consequentemente, diminuiria o valor necessário para custear o Passe Livre Estudantil. O govenador Ibaneis Rocha deveria focar na melhoria da gestão e da operação do sistema ao invés de cortar direitos adquiridos após muita luta da população.

Impacto da redução de impostos

No projeto de lei 104/2019, enviado à CLDF também pelo governador, a proposta de redução dos impostos foi detalhada da seguinte forma:

  • ITBI: de 3% para 2,75% a partir da entrada da lei em vigor; 2,5% a partir de 2020 e 2% a partir de 2021;
  • ITCD: que varia de 4% a 6% será fixado em 4% independente da base de cálculo;
  • IPVA: de 2,5% para 2% (ciclomotores, motocicletas, motonetas, quadriciclos e triciclos) e de 3,5% para 3% (automóveis, caminhonetes, utilitários e demais veículos).

Estes impostos incidem diretamente sobre a propriedade. Quem os paga são as pessoas que possuem veículos automotores (IPVA), que compram e vendem imóveis (ITBI) e que recebem herança (ITCD). Ou seja, são cortes de impostos que beneficiam os mais ricos, que têm carros e propriedades ou que recebem heranças. Por outro lado, os cortes do PLE afetam todos os estudantes que dependem do transporte público para estudar.

Um simples exercício é bastante revelador dessa injustiça: com a redução de impostos, o proprietário de um automóvel de R$ 50.000 passaria a pagar R$ 1.500 de IPVA, ao invés dos atuais R$ 1.750 – uma pequena economia de R$ 250 por ano. Por outro lado, a supressão do Passe Livre Estudantil oneraria em R$ 3.240 anuais as famílias que precisam pagar ônibus para que um de seus filhos estude.

Entre os argumentos listados pelo governo, afirma-se que a desoneração dos impostos resultaria em menor inadimplência e, consequentemente, maior arrecadação. Porém, como podemos observar na tabela 1, a perda da arrecadação é crescente ao longo dos anos, conforme dados apresentados na própria justificativa do projeto.

A tabela 1 revela que em 2021 os valores não arrecadados em decorrência das desonerações, da ordem de R$ 327 milhões, seriam maiores do que o atual custo do Passe Livre Estudantil, que corresponde a R$ 273 milhões. E mais: os subsídios ao PLE vem diminuindo nos últimos anos, conforme pode ser observado na tabela 2, e poderiam ainda ser menores, caso a nova licitação diminua o custo do transporte público coletivo do DF.

Com o intuito de promover maior justiça, o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), em conjunto com diversas outras organizações, defende a progressividade da carga tributária, isto é, quem ganha mais paga mais impostos. O que o governador Ibaneis está propondo é exatamente o contrário, tira dos pobres e alivia a renda dos mais ricos.

O Inesc também defende a progressiva realização de direitos. Atuamos para que os direitos conquistados sejam ampliados e que mais direitos sejam garantidos.

As ações apresentadas pelo atual governador do DF ampliam desigualdades – entre pobres e ricso- e violam direitos dos estudantes. Acreditamos que existem outras maneiras de se reduzir as despesas do governo que não atentam diretamente contra os direitos conquistados, como o Passe Livre Estudantil. Acreditamos, ainda, que por meio de novo processo licitatório é possível reorganizar o sistema de transporte público local, melhorando a sua qualidade e reduzindo seus custos.

*Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

[1] Os dados apresentados na justificativa do referido projeto de lei são: custo PLE em 2018: R$ 299 milhões e R$ 185 milhões o custo após o corte do benefício. Porém, informações obtidas no Portal da Transparência do DF, acessado no dia 08/02/2019, mostram que o custo do PLE em 2018 foi de R$ 273 milhões.

[2] Conforme justificativa apresentada no PL 104/2019.

[3] http://cache-internet.tjdft.jus.br/cgi-bin/tjcgi1?NXTPGM=plhtml06&SELECAO=1&ORIGEM=INTER&CDNUPROC=20130110928920APO

[4] http://www.cl.df.gov.br/web/guest/encerradas/-/document_library_display/l0Ep/view/14482874?_110_INSTANCE_l0Ep_redirect=http%3A%2F%2Fwww.cl.df.gov.br%2Fweb%2Fguest%2Fencerradas%2F-%2Fdocument_library_display%2Fl0Ep%2Fview%2F12161846

[5] http://multimidia.fnp.org.br/biblioteca/documentos/item/723-estudo-evolucao-do-transporte-publico-no-df

[6] 270 reais por mês, considerando 54 deslocamentos mensais, apenas uma viagem casa-escola-casa por dia, com a tarifa de R$ 5,00.

A escassez de verba de fiscalização também explica Brumadinho

Os dados que têm vindo a público sobre a situação das barragens de mineração no país compõem um cenário desconcertante da fragilidade da ANM, a Agência Nacional de Mineração . O órgão é responsável pela fiscalização de 790 barragens de rejeito no país, das quais 139 sob titularidade da Vale S.A.  Em 2017, contando apenas com 35 fiscais, a agência deixou de fiscalizar 73% das barragens. Além disso, falta combustível para abastecer os carros dos fiscais e até para pagar contas de luz das superintendências nos estados.

O orçamento público destinado ao antigo Departamento Nacional de Produção Mineral, agora ANM, e o que dele é gasto para a fiscalização da atividade de mineração, é mais um fator a ser considerado na cadeia de responsabilidades pelo rompimento de barragem da Vale e a tragédia de Brumadinho.

O orçamento público é fruto de decisões políticas que expressam prioridades estabelecidas pelo governo, mas também, em alguns casos, intenções não explícitas. No caso da mineração no Brasil, o interesse do governo é marcado, historicamente, pela geração de superávits comerciais a qualquer custo. Para tanto, a grande mineração…(leia mais no Nexo Jornal).

A mercadoria não vale a gota de sangue de nenhum de nós

Quando a lama tóxica que irrompeu da barragem da Vale em Brumadinho (MG), em seu caminho de destruição, chegou às margens da aldeia Pataxó Hã-hã-Hãe, o cacique Hayó afirmou: “o nosso rio está morto. Estamos com o coração ferido, pois agora não temos como sobreviver”. Diante dos cadáveres dos peixes e do próprio rio Paraopeba, a aldeia – que ali se fixou na tentativa de escapar da hostilidade enfrentada em seu local de origem – enfrenta agora mais um efeito colateral do mesmo modelo de desenvolvimento que fez de suas terras alvo de disputas.

Em 2015, quando a lama vinha de Mariana, ocorreu o mesmo com as cerca de 126 famílias Krenak que então viviam junto ao Rio Doce. Três anos após o ecocídio, impossibilitadas de seguir suas tradições de caça e peça, as sete aldeias Krenak seguem dependendo da assistência do Estado para obter alimentação antes abundante.

A sanha da mineração também corroeu por longos anos as terras Yanomami, em Roraima, no extremo norte do país. Em livro escrito junto ao antropólogo Bruce Albert[1], David Kopenawa nos conta a história de massacres e resistência de seu povo diante da epidemia que atingiu as aldeias (e o mundo), promovida pelo “povo da mercadoria”. Se é verdade que a luta indígena garantiu a demarcação daquela Terra indígena (TI), é também verdade que as investidas contra ela não cessaram: as denúncias contra o garimpo ilegal na região são constantes e se desdobram também em ataques a povos em isolamento voluntário, como os Moxihatétéa. Além disso, em Roraima enfrenta-se de grilagem de terras a grandes projetos, por exemplo, a construção da Linha de Transmissão de energia, que atravessa a terra indígena Waimiri-Atroari.

Já em Pernambuco, onde vivem os Pankararu, as ameaças de morte tem sido constantes, como denunciaram os indígenas ainda ontem. Ali, são os posseiros que antes moravam na terra já demarcada que levam a cabo a violência.  Quando, em 2018, o pedido de usufruto exclusivo da terra feito pelo povo há 25 anos foi aceito pelo Estado, os posseiros receberam indenização para deixarem o local, mas afirmaram desde o início que as coisas não sairiam conforme o combinado. As palavras já se concretizaram em três incêndios em escolas e postos de saúde indígenas, entre outubro e dezembro do ano passado. Os bilhetes ameaçadores enviados esse ano, por enquanto, não saíram do papel.

Tradição colonial ameaça indígenas

A lista de ataques aos direitos e à vida indígena é longa e acontecem de norte a sul do Brasil, como nos mostra o relatório produzido anualmente pelo Conselho Missionário Indigenista (CIMI), assim como a história de nosso país. A combinação de grandes empreendimentos, apropriação de territórios e racismo institucional é velha conhecida dos hoje mais de 900 mil indígenas brasileiros e, apenas nesse recente 2019, já foram seis as invasões às suas terras denunciadas pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil.

Se os ataques acabam sendo estranhamente parecidos entre si, é bom lembrar que a multiplicidade do que chamamos de “índio” é enorme: atualmente são mais de 300 etnias, com línguas, tradições, relações com a terra muito distintas. Tal diversidade étnica e cultural, assim como o direito originário às terras que tradicionalmente ocupam, negados pela política assimilacionista[2] exercida pelo Estado desde que o Brasil é Brasil, foram finalmente consagrados pelo artigo 231 da Constituição Federal de 88, após muitas mobilizações:

Trecho do documentário Índio Cidadão com a fala de Ailton Krenak sobre o seu discurso na Assembleia Constituinte

É bem verdade que entre a garantia constitucional e a efetivação de direitos o caminho a ser percorrido é longo, em especial quando diante de interesses econômicos das proporções dos que desafiam as vidas indígenas. A falta de prioridade tem sido uma marca das ações do país nessa área, apegado como está às suas tradições coloniais, e se evidencia de muitas formas.

Desmonte da Funai

Uma das maneiras de percebê-la é a partir das análises dos recursos públicos investidos na execução das políticas públicas destinadas a promover os direitos indígenas. A Fundação Nacional do Índio (Funai), principal órgão responsável por efetivar tais direitos, tem sofrido um desmonte sistemático que resulta no minguar de sua capacidade orçamentária, como nos aponta o artigo de Alessandra Cardoso, assessora política do Inesc.

Adicionada à pouca capacidade orçamentária da Funai, a Medida Provisória 870/2019 e os Decretos publicados pelo novo presidente levam a situação do órgão para outro patamar de gravidade. No que tange ao tema desse artigo, a medida provisória de reestruturação do governo e seus decretos complementares comete ao menos dois grandes ataques: retira a Funai do Ministério da Justiça, e a esvazia de suas principais atribuições, transferindo a demarcação e homologação de terras e o licenciamento ambiental para o Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento (MAPA).

Tais proposições implicam em um forte ataque aos direitos constitucionais indígenas e é fundamental que entendamos o porquê. Em primeiro lugar, por uma questão principiológica: as TI são por definição terras da União, de usufruto dos indígenas. Cuidar das terras públicas brasileiras é uma das atribuições do MJ, não havendo assim o que justifique a diferença de tratamento para as TI em relação às outras terras públicas. Além disso, a retirada da Funai do Ministério da Justiça ignora a expertise deste órgão para lidar com os principais desafios enfrentados na área, tais como a crescente judicialização envolvendo as demarcações e os constantes conflitos fundiários que exigem, inclusive, ação sólida e urgente da Polícia Federal para proteção dos indígenas.

Por fim, levar para o MAPA as atribuições de demarcação e homologação de terras, sendo esse um órgão historicamente conectado ao interesse dos ruralistas é, difícil acionar outra expressão, entregar o ouro ao bandido. Da mesma forma, transferir o licenciamento para este mesmo órgão implica em ampliar as influências e lobbys dos grandes empreendimentos, transformando os territórios indígenas em objeto de barganha. Fatiada, distante de suas principais funções e desmontada, a Funai caminha para se tornar figurativa e os casos de violência que aqui já comentamos tendem a se multiplicar e intensificar, pois que a tolerância do Estado para com esses crimes parece se explicitar.

Janeiro Vermelho

Em contraposição às medidas tomadas pelo governo, que muito rápido mostrou a que veio, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) lançou a campanha “Janeiro Vermelho – Sangue Indígena, Nenhuma Gota a mais”, que culminará em atos espalhados por todo país e também em manifestações internacionais de apoio hoje, no dia 31 de janeiro.

O apoio, participação e solidariedade de nós, não índios, é fundamental por um sem número de motivos. Quem sabe o primeiro deles seja o de declararmos, em alto e bom som, que não compactuamos com o etnocídio e genocídio que construíram o país, e que agora parecem querer ainda mais espaço. Quiçá o segundo seja o de não deixar se esvaírem as conquistas da Constituição de 88, para os índios e para todos nós.

Mas talvez o mais importante seja o de afirmar com firmeza que não precisamos ser, como Davi Kopenawa chama os brancos, “o povo da mercadoria”. A sanha do modelo de desenvolvimento que matou e mata rios, terras e povos indígenas é a mesma que retira direitos trabalhistas, acaba com a aposentadoria, mata a juventude negra, distribui lama tóxica em nossas cidades. Como afirma o xamã:

“Todas as mercadorias dos brancos jamais serão suficientes em troca de todas as suas árvores, frutos, animais e peixes. As peles de papel de seu dinheiro nunca bastarão para compensar o valor de suas árvores queimadas, de seu solo ressequido e de suas águas emporcalhadas. Nada disso jamais poderá ressarcir o valor dos jacarés mortos e dos queixadas desaparecidos. Os rios são caros demais e nada pode pagar o valor dos animais de caça. Tudo o que cresce e se desloca na floresta ou sob as águas e também todos os xapiri[3] e os humanos têm um valor importante demais para todos as mercadorias e dinheiros dos brancos.”

A mercadoria não é maior que a gente – e não vale as gotas de sangue de nenhum de nós.

Programação dos atos do Janeiro Vermelho

 

[1] “A queda do céu: palavras de um xamã yanomami” Kopenawa, D & Albert, B. São Paulo, Cia das Letras, 2015.

[2]  Narrativa segundo a qual os indígenas devem ser “integrados à sociedade brasileira”, podendo se “desenvolver economicamente como os demais brasileiros” que fundamenta a entrada do grande capital em suas terras e serviu de motor para os massacres realizado contra os indígenas pelo Estado Brasileiro.

[3] Espíritos que dançam e orientam os xamãs Yanomami.

Visibilidade Trans 2019: resistências necessárias

Em 2019, o Dia da Visibilidade Trans parece ganhar mais importância do que nunca no Brasil. Se já éramos o país que mais mata pessoas trans e travestis do mundo, pelo menos contávamos com o reconhecimento pelo Estado da necessidade de atuar para reverter este quadro por meio de políticas públicas.

No dia 2 de janeiro, sem o menor pudor, o presidente Jair Bolsonaro assinou a Medida Provisória 870, que não menciona a população LGBTI das diretrizes do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. No dia 10 de janeiro, o Ministério da Saúde retirou de sua página oficial a cartilha de saúde dos homens trans, uma publicação voltada para um público com pouquíssimo acesso à saúde especializada – existem somente 11 ambulatórios voltados para a população trans no país.

Ainda que o novo governo tenha mantido estruturas já existentes, como a Diretoria de Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, vinculada à Secretaria Nacional de Cidadania e o Conselho Nacional de Combate à Discriminação, A MP torna invisíveis os LGBTI, já que outros públicos atendidos pelo Ministério estão citados, como as mulheres, idosos, crianças, adolescentes e jovens, pessoas com deficiência e indígenas. A MP 870/19 tem validade desde sua publicação, e deverá ser aprovada pelo Congresso Nacional ainda em fevereiro, sendo que o texto poderá sofrer mudanças por meio de emendas parlamentares.

De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais – ANTRA, no ano de 2018 foram 163 assassinatos. São mortes sempre cruéis, com presença de tortura, e até mesmo filmagens que são postadas nas redes sociais. Essas vidas brutalmente ceifadas carregam uma simbologia que reforça a exclusão e a discriminação – pois é ao mesmo tempo o extermínio de uma pessoa, de um corpo, mas também uma mensagem social de não aceitação da diferença.

Durante o período eleitoral, assistimos aos discursos de candidatos, políticos e religiosos de vertente conservadora exacerbando a masculinidade violenta, e, ao mesmo tempo, foram registradas diversas denúncias de ataques a pessoas trans e travestis. O que se anunciava com o retrógrado projeto “Escola sem partido”, baseado no fim de algo que nunca existiu, a saber, a “ideologia de gênero”, culminou em um enorme esquema de divulgação de fake news (notícias falsas) ainda sem uma resposta dos Tribunais Eleitorais sobre quem produziu e disseminou esses conteúdos.

A autorização social para a violência, apoiada no machismo e no racismo estruturais de nossa sociedade, ganha legitimidade como política de Estado na medida em que vão sendo publicados atos pelo poder Executivo – sem diálogo com a sociedade – que suprimem direitos ou impõem novas políticas que podem resultar em mais violência com base nas discriminações de gênero.

Da “bela, recatada e do lar”, evoluímos em apenas 2 anos para o modelo de família onde o homem é o centro da sociedade, tendo o direito ampliado à posse de armas com objetivo de proteger seu “patrimônio”, incluídos aí não só os bens materiais, mas também as mulheres e as crianças, vistas não como seres humanos autônomos, mas como suas propriedades. Aprovada por meio de decreto, a ampliação da posse de armas é mais um ato no “pacote de violência” do novo governo, em um país onde mais da metade dos feminicídios são cometidos por arma de fogo. Na primeira semana do ano, os “príncipes vestidos de azul” já tinham assassinado 21 mulheres, dado que pode ter chegado a mais de cem tentativas de feminicídio até o dia 29 de Janeiro. Neste mesmo país, o único parlamentar homossexual assumido, Jean Wyllys, reeleito com 24 mil votos pelo Rio de Janeiro, desistiu da legislatura por temer ser assassinado e decidiu deixar o Brasil. As mensagens recebidas por ele e publicadas na mídia demonstram a forte misoginia e homofobia social: são recorrentes as ameaças de estupro.

O Dia da Visibilidade Trans surgiu em 2004, quando travestis, mulheres e homens trans entraram no Congresso Nacional para lançar a campanha “Travesti e respeito”. Desde então, foram muitas conquistas dos movimentos sociais pela saúde e despatologização, por promoção de políticas voltadas para inserção no mercado do trabalho e por mais presença em espaços de poder. Em 2018, o Tribunal Superior Eleitoral reconheceu o direito ao nome social para as candidaturas, e foi eleita em São Paulo a deputada estadual Erika Malunguinho – mulher, negra e trans.

Se o governo tem como diretriz “Deus acima de todos” e uma ministra que se declara “terrivelmente cristã”, trata-se de uma teocracia, não de uma democracia. Estamos sob a mira de quem não respeita o Estado laico e a Constituição Federal. Estamos nos referindo, portanto, à cumplicidade do Estado na violação de direitos humanos. Mas o 29 de janeiro – Dia da Visibilidade Trans – está vivo e presente para reafirmar a existência de cidadãs e cidadãos trans e travestis, brasileiros e brasileiras, que continuarão a lutar por uma sociedade mais justa, inclusiva, diversa…e menos triste.

 

Leia também: https://outraspalavras.net/sem-categoria/oito-de-marco-para-luana-e-veronica/

Os “dejeitos” da mineração no Brasil

Foto: Maria Júlia Andrade/ Brasil de Fato

Impossível evitar o uso da palavra criada pelo presidente Bolsonaro em seu primeiro pronunciamento sobre o rompimento da barragem da Vale S.A, em Brumadinho (MG), que tragicamente leva centenas de vidas.

A nova palavra funde dejetos com rejeitos, esta última, vale lembrar, assimilada ao vocabulário da grande maioria dos brasileiros há pouco mais de três anos, quando do rompimento da barragem do Fundão, em Mariana. “Dejeitos” descreve bem a grande mineração no Brasil e sua relação com o Estado brasileiro, com as vidas humanas, com os trabalhadores e com o meio ambiente.

O que aconteceu? Como vão responder por esse crime a empresa, cujo lema é “Mariana nunca mais”; o governo federal, que tem uma supostamente boa Política Nacional de Segurança de Barragens e o governo estadual, que licencia a maioria dos projetos e suas barragens.

Não há resposta fácil, ou possível de ser aceita. Nesse momento, cabe uma reflexão febril sobre como excrementos da mineração se multiplicaram tão rapidamente no Brasil nos últimos 15 anos, sob influência do chamado ciclo de commodities minerais.

A Vale S.A manteve firme sua liderança na produção mundial de minério de ferro por mais de década. A produção, que em 2000 era de 123,5 milhões de toneladas, saltou para 366,5 milhões de toneladas em 2017, sendo esperado novo recorde para 2018.

A extração recorde, ano após ano, foi combinada com a redução sistemática dos seus custos de produção graças à sua agressiva terceirização em tempos de flexibilização da legislação trabalhista, entre muitas outras coisas. Aliás, todas as vidas humanas são igualmente valiosas, mas precisamos nos perguntar: quantos trabalhadores terceirizados foram soterrados pela lama grossa? A combinação de produção recorde e custos reduzidos garantiu à Vale a sua classificação em 2019 como a mais valiosa empresa de minério de ferro do mundo.

O Estado brasileiro, por sua vez, apoiou fortemente a redução de custos, estimulando o crescimento acelerado da produção e, logo, a geração de excrementos minerais. Nos últimos 15 anos, a Vale S.A figurou com a quarta empresa que mais recebeu empréstimos do BNDES. Além dos empréstimos subsidiados, a Vale conta, neste caso há mais de 50 anos, com isenção do pagamento do Imposto de Renda de Pessoa Jurídica (IRPJ) para suas operações na Amazônia. Isto, graças aos incentivos fiscais concedidos pela SUDAM, renovados pelo Congresso Nacional no final de 2018 e sancionados pelo Presidente Bolsonaro, descumprindo a Lei de Responsabilidade Fiscal.

Os instrumentos de licenciamento, fiscalização e regulação, sob responsabilidade do Estado brasileiro, deram seguramente sua contribuição à tragédia que estamos vivendo. Quem ainda pode duvidar da relação entre as fragilidades dos licenciamentos conduzidos pelos estados e as deficiências de fiscalização, acentuadas em tempos de penúria fiscal, e o rompimento da barragem? Que governo pode, depois disto, defender veementemente uma ainda maior flexibilização do licenciamento ambiental no país?

A Lei de Segurança de Barragens ou não foi suficiente ou não foi cumprida, possivelmente os dois. Sobre este ponto, cabe lembrar que, segundo a empresa, a barragem que se rompeu estava inativa há três anos, “em processo de descomissionamento”, ou seja, em processo de desativação.

Fica a pergunta: nestes casos, os procedimentos de segurança e fiscalização são os mesmos? Se olharmos os objetivos da Política Nacional de Segurança de Barragens (Lei 12.334 de 2010) vemos que entre eles está o de “regulamentar as ações de segurança a serem adotadas nas fases de planejamento, projeto, construção, primeiro enchimento e primeiro vertimento, operação, desativação e de usos futuros de barragens em todo o território nacional”. O que diz o regulamento no caso de desativação? Ele foi cumprido?

Respostas não repõem vidas, mas elas precisam ser dadas, pela empresa e pelo Estado brasileiro. O que temos é uma tragédia humana criminosa, recorrente e sem precedentes na história da mineração no Brasil, que aparece surrealmente como produto do crescimento assustador do volume de “dejeitos” produzidos pela mineração.

Talvez, tais excrementos minerais, aprisionados por centenas de barragens, espalhadas em sua maioria por Minas e Pará, estejam se rebelando: os do Fundão estimularam os do Feijão. Estes últimos, por sua vez, talvez tenham também sido estimulados pelo desgosto do esquecimento, provocado pelo processo de desativação.

Assim, ressentidos e revoltados, romperam ferozmente estruturas de contenção, avançaram violentamente e em bloco rumo à liberdade e ao reconhecimento, passando por cima de vilas, povoados e alojamentos de trabalhadores que, tragicamente, reuniam humanos responsáveis pela sua criação.

No Brasil de hoje, dia 25 de janeiro de 2019, tudo soa tão surreal e trágico que o limite entre a realidade e a fantasia perde sentido.

Como chegamos à era Trump – nos EUA e no Brasil

É impossível não traçar paralelos diante da surpreendente eleição de Jair Bolsonaro para a presidência do Brasil em novembro de 2018 e a eleição de Donald Trump no final de 2016 nos Estados Unidos. Tanto que a imprensa internacional passou a chamar o então candidato Bolsonaro de Brazilian Trump para facilmente traduzir a seus leitores e audiência o que ele significava. Afinal, eram os dois participantes de processos eleitorais democráticos e que se apresentavam orgulhosamente antidemocráticos com discursos populistas antidireitos.

Ambos foram eleitos ancorados em uma agenda de retrocessos em direitos, agudização das medidas de austeridade e promessas de avanço na agenda neoliberal, assessorados fortemente por familiares. Além disso, também se identificam e se unem pela própria aliança entre os dois países, buscada em nome dos interesses dos grupos que circundam os dois presidentes.

Em um momento de convergência das crises econômica e climática, de dificuldade dos sistemas internacionais de proteção de direitos em fazer com que seu papel seja reconhecido e garantido, ambos utilizaram a insatisfação para vender uma agenda de mais austeridade e mais conservadorismo como resposta à população. Sem muitas propostas concretas, mas com um discurso destrutivo cuidadosamente construído, ambos venderam soluções simples para um momento de enorme complexidade. Deixaram analistas e ativistas surpreendidos.

Acreditava-se, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, que haveria um despertar e que algo aconteceria para impedir a eleição de lideranças professando discursos de ódio, incitando animosidade e violência e ameaçando a institucionalidade. Os índices de rejeição eram altíssimos e, mesmo assim, não o suficiente para impedir que chegassem ao cargo.

Contudo, o choque de suas eleições não são casos isolados. Vemos processos semelhantes sendo postos em marcha na Hungria e nas Filipinas, em eleições locais pela Europa, em que a agenda de desmanche de direitos e defesa de valores conservadores estão surpreendendo ativistas e analistas que confiavam que o patamar de institucionalidade que alcançamos não seria desafiado a esse ponto. Nunca antes tivemos lideranças orgulhosas de não quererem fazer parte do jogo democrático, de quebrarem regras mínimas de respeito (e demonstrarem desprezo) às instituições e nos falta preparo para responder à altura.

Começamos por ter dois presidentes eleitos que não conquistaram a maioria dos votos. O sistema estadunidense de votos facultativos e de colégio eleitoral não premia a maioria numérica de votos, mas a maioria de colégios eleitorais. Trump recebeu 46.4% dos votos vaĺidos (62.984.825) contra 48.5% (65.853.516) de sua oponente Hillary Clinton, mas eles significaram 306 colégios eleitorais contra apenas 232 para Clinton. O mesmo aconteceu no Brasil, onde o voto é obrigatório: no segundo turno, 57.797.073 pessoas votaram por Bolsonaro enquanto 89.504.543 não votaram por ele.[1]

E o mesmo também ocorreu na Hungria, nas Filipinas e com o Brexit no Reino Unido. Não foi a maioria que votou pelos retrocessos, embora não tenha conseguido transformar essa oposição em ação concreta para barrar os projetos reacionários em curso em prol de proteção a direitos garantidos. Nas Filipinas, vemos que o apoio a esse novo discurso de recuperação de valores conservadores ligados à igreja e à família, de combate ao crime com mão firme, de combate à corrupção apesar de ser bastante corrompido, tem tração suficiente para durar para além do mandato de uma liderança eleita com essa plataforma e deve se estender para eleições futuras. Na Hungria já dura oito anos o governo autoritário de Viktor Orban e novamente a maioria não foi capaz de conter o avanço de sua agenda.

Cobertura da mídia tradicional

No Brasil, com a intensa atuação dos familiares de Bolsonaro nas eleições presidenciais, além dos cargos no legislativo que seus filhos lograram garantir – um filho senador, um filho deputado federal e um filho vereador no Rio de Janeiro que não foi eleito deputado federal porque desistiu da candidatura – cria-se uma dinastia e seus filhos tem se portado publicamente como representantes do presidente, inclusive em declarações sobre decisões em temas de política externa. A falta de preparo de sua família para tratar de temas delicados e com enormes consequências, como a mudança da embaixada brasileira em Israel para Jerusalém, causa espanto.

Uma das explicações para o sucesso da família Bolsonaro em sua campanha foi o uso da internet. O presidente eleito se ausentou de quase todos os debates eleitorais, participando de apenas dois antes mesmo da candidatura de Fernando Haddad ser definida[2]. Após a definição de Haddad como candidato do PT em substituição ao ex-presidente Lula, impedido de concorrer, e o atentado sofrido por Bolsonaro no dia 6 de setembro, ele não participou de debates, apenas entrevistas e teve bastante tempo dedicado a si pelos jornais, revistas e canais de televisão no Brasil durante todo o período entre sua alta hospitalar e o restante da campanha eleitoral. Ficou clara a falta de equilíbrio no tempo fornecido a cada um dos dois candidatos do segundo turno e de forma gritante, os jornais evitavam chamá-lo pelo que é: um populista de extrema direita[3] e forneceram plataforma para que o candidato pudesse expor suas ideias calamitosas com roupagem de “controversas” e “polêmicas”.

Nos Estados Unidos, a cobertura da mídia também impactou positivamente a campanha de Donald Trump. Em pesquisa realizada pelo Kennedy School’s Shorenstein Center da Universidade de Harvard, logo após o pleito, a cobertura realizada pela grande mídia no país foi considerada corrosiva, por ter trazido majoritariamente notícias negativas. De acordo com o autor do estudo, Thomas Patterson, a cobertura negativa tem e teve consequências partidárias.

“A mídia tradicional destaca o que há de errado com a política sem nos mostrar o que estaria correto. É uma versão da política que premia um certo jeito de fazer política. Quando tudo e todos são relatados como profundamente errados e cheios de falhas, não faz sentido fazer distinções, o que acaba premiando quem possui mais falhas. Civilidade e propostas sensatas não fazem mais parte das manchetes, o que dá voz àqueles que têm talento para a arte da destruição.”[4]

E completa ainda lembrando que apesar da direita dizer que a mídia é majoritariamente liberal, os ataques aos governos fazem com que a mídia reforce o discurso antigoverno e anti-política da direita.

Trump recebeu cerca de 15% mais cobertura que Clinton na campanha eleitoral de 2016, de acordo com o mesmo estudo. Não há números para quantificar a atenção extra recebida por Bolsonaro na campanha eleitoral no Brasil, mas seguramente é algo ao redor do mesmo patamar ou acima dele. Duas redes de televisão de alcance massivo cortejaram o candidato com o intento de tornarem-se a “Fox News do Brasil”. Uma delas – concessão a uma grande liderança evangélica e também dona de um portal de notícias – criou regras internas que impediam críticas a Bolsonaro e fomentavam notícias negativas contra Haddad, levando uma editora de notícias sênior a se demitir. Ficou claro durante a campanha que a mídia tradicional brasileira não só estava participando das eleições, como estava apostando em um candidato ser eleito e decidiram por cortejá-lo, esperando estar em suas graças em um eventual governo.

Importação da tática das fake news

A imprensa brasileira tem um terrível histórico de intervenção em processos eleitorais e dessa vez, não foi diferente. Mas ela não foi o único canal que desequilibrou a disputa eleitoral. Assim como nos EUA, a capilaridade das redes sociais foi essencial para reduzir a altíssima rejeição dos eleitores ao candidato e transmitir notícias falsas – as famosas fake news. O uso dessa tática de desinformação foi tão bem sucedido nos EUA que foi importado para outros processos eleitorais e sempre com as digitais de Steve Bannon, o estrategista das direitas e ex-coordenador de campanha de Trump.

Bannon soube se aproveitar do fato de que à época 65% dos adultos[5] nos Estados Unidos utilizava redes sociais (hoje esse número é estimado em 71%[6]) e aliou-se à infame empresa Cambridge Analytica para criar uma estratégia que logrou garantir a Casa Branca à Donald Trump e seu grupo a partir do uso de Google, Snapchat, Twitter, Facebook e Youtube. A principal ferramenta no entanto foi a utilização do Facebook, que forneceu (de forma irregular) dados de milhares de usuários que permitiram direcionar mensagens de campanha. A falta de controle do Facebook, aliada à estratégia da Cambridge Analytica, foi extensamente documentada em reportagens que revelaram a relação entre a manipulação das redes sociais e a eleição de Trump.

A empresa foi criada a partir de experimentos de um professor de psicologia na Universidade de Cambridge, quando a universidade se recusou a permitir que seus experimentos fossem utilizados para fins comerciais. Primeiro surge a Global Science Research em 2014; mas a coleta de dados feita por Aleksandr Kogan é feita através de uma empresa chamada Strategic Communication Laboratories (SCL) que possui uma divisão eleitoral que promete utilizar mensagens direcionadas a partir de dados para entregar sucesso eleitoral. Seu braço nos EUA é a Cambridge Analytica que recebeu enormes investimentos de investidor bilionário Robert Mercer, apoiador de Trump e aconselhado por Steve Bannon. Além dos investimentos no desenvolvimento da empresa, Mercer também colocou à disposição da campanha de Trump enormes somas para que a empresa fosse contratada. Steve Bannon era também funcionário da CA e meses após garantir que seus laços com a empresa tinham sido cortados, cheque da campanha de Trump por serviços da CA foram entregues em um endereço de Bannon em Los Angeles.

O fato é que estima-se que cerca de 100 a 185 mil pessoas tenham preenchidos questionários e disponibilizado seus perfis para coleta de dados sem saber que isso levaria a uma rede que alcançou cerca de 30 milhões de perfis do Facebook e possibilitou que usuários fossem mapeados sem seu consentimento. Cada like e cada post foi analisado por operadores buscando meios de influenciar as eleições nos EUA. No Reino Unido, a CA está sendo investigada pelo Parlamento pela sua atuação possivelmente ilegal na campanha pelo Brexit; de acordo com declarações do ex-diretor da empresa ao parlamento britânico em março desse ano, “pode-se dizer razoavelmente que o resultado do referendo teria sido diferente.”

E enquanto o impacto da CA em si nas eleições estadunidenses é difícil de medir, o uso do próprio Facebook pela campanha, não. A campanha de Trump nunca escondeu o seu uso estratégico, utilizando 80 % do seu orçamento de campanha para mídias digitais no Facebook:

“Joel Pollak, editor do Breitbart, escreveu em suas memórias da campanha sobre os ‘Exércitos de Amigos de Trump no Facebook’ ultrapassando os portões da mídia tradicional. Roger Stone, um colaborador antigo de Trump, escreveu em suas memórias da campanha sobre o foco geográfico em cidades para espalhar a falsa notícia de que Bill Clinton havia tido um filho fora do casamento, e selecionando quem receberia baseado em preferências em música, grupo etário, cultura negra e outros interesses urbanos”.

Além disso, há toda a questão levantada pela investigação do promotor especial Robert Muller sobre a possível interferência russa no processo eleitoral, pela compra de anúncios no Facebook e por possivelmente terem hackeado o Partido Democrata. Mas no fim do dia, Facebook auxiliou a campanha pela ferramenta que é. No Brasil,

As eleições de 2018 representaram uma mudança de paradigma sobre campanha política vigente no país desde 1989, provocada pelo efeito da Operação Lava-Jato no sistema político. Aceitando o forte processo de deslegitimação que a Lava Jato lhe impôs, o sistema político realizou fortes modificações na estrutura das campanhas políticas. Entre estas, vale a pena destacar a redução do período de campanha, do tempo gratuito na TV e do bloco de propaganda gratuita no horário nobre. Todas estas alterações podem ser entendidas dentro de uma lógica de redução dos elementos de debate públicos nas campanhas políticas. Acrescente-se a estes elementos a diminuição da campanha de rua e dos comícios. Com menos atividades públicas, abriu-se, pela primeira vez desde 1989, campo para a campanha exclusivamente privada, como a de Bolsonaro, centrada quase exclusivamente nas redes sociais – ele tinha muito pouco espaço no horário eleitoral gratuito – e no interior das redes, naqueles circuitos mais privados possíveis como é o caso das listas de WhatsApp.” 

Como nos EUA, a estratégia de comunicação da campanha da direita investiu pesadamente no uso das redes sociais. Segundo dados, o Brasil tem 62% da população utilizando redes sociais – Youtube, Facebook e Whatsapp em ordem de usuários (60, 59 e 56% da população utiliza essas redes) e possui o segundo maior tempo diário dedicado a redes sociais no mundo – 3h e 39 minutos, apenas atrás da Filipinas.

Além disso, os brasileiros e brasileiras têm um grau muito baixo de confiança nas instituições[7]. A pesquisa realizada pelo Instituto da Democracia em março de 2018 revela que a confiança nos partidos políticos está em seu nível mais baixo desde 2006, e que apenas 19% dos entrevistados estão satisfeitos com a democracia no Brasil e mais de 80% estão insatisfeitos ou muito insatisfeitos. Isso já era algo apontado há muitos anos pela Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político, que criou propostas para democratizar o sistema político, para além do eleitoral e ampliar a qualidade da democracia no país. Com o envolvimento de partidos políticos em escândalos de corrupção e com a política aberta de barganhas no Congresso e nos corredores do palácio presidencial, tem sido difícil para a população crer que essas agremiações vão proteger o interesse público. Sem mencionar o papel que tiveram em extensivas negociações para a candidatura de Bolsonaro e apoio à sua agenda no primeiro e/ou segundo turno, negociando princípios para se tornarem parte da base do próximo governo.

Mas esse cenário de uso intenso de redes sociais e pouca confiança em instituições, torna-se solo propício para que discursos cuidadosamente construídos como antiestablishment e sinceros, e notícias falsas, sejam espalhadas de forma capilar. As mensagens são criadas sob medida para os perfis, definidos pelas redes sociais a partir de likes e compartilhamentos, sem contar o reforço que essas mensagens recebem de bots e de perfis falsos. Vimos isso claramente durante a campanha de Bolsonaro quando menções a apelidos dados ao candidato nas redes sociais geraram reações desmedidas em notícias sem nenhum conteúdo eleitoral. O melhor exemplo é um tuíte de uma notícia da Folha de São Paulo sobre um clássico dos botecos, o bolovo, que foi bombardeado por comentários em apoio ao candidato.

O que estudiosos têm dito com cada vez mais veemência é que a influência das redes sociais está desequilibrando processos democráticos e comportamentos através da manipulação. Recentemente, o autor de “Likewar: the Weaponization of Social Media”, P.W. Singer, afirmou categoricamente que “a maioria das pessoas não têm a consciência de que é constantemente manipulada por campanhas políticas e de marketing na internet —muito pouco do que ocorre hoje nas redes, seja um vídeo viral, uma hashtag ou foto, é espontâneo.”

Voltando ao fato de que no Brasil a confiança nas instituições é extremamente baixo e que temos um uso intenso de redes sociais, a campanha eleitoral de desenrolou muito mais em canais privados do que em debates públicos. E uma particularidade do Brasil são a prevalência de grupos de familiares e amigos no Whatsapp, que se entende se olhamos para o fato de que nas pesquisas sobre confiança nas instituições: família, amigos e igreja contam com alto grau. Vimos essa ferramenta ser utilizada de forma massiva para espalhar conteúdos falsos, principalmente a partir de setembro, e como essas mensagens provém de amigos e familiares, o nível de confiança nelas é maior do que se chegassem por outras vias.

Mesmo com os desmentidos sobre as notícias falsas relacionadas a Haddad, elas continuaram circulando. Parte disso foi a confiança das pessoas nas mensagens recebidas e repassadas e parte foi a manipulação ilegal da ferramenta em um esquema desvelado por jornalistas[8].

Como paralelo entre os dois processos eleitorais, podemos afirmar que foram candidatos eleitos sem a maioria dos votos, com campanhas que colocam o foco nas redes sociais, que tiveram apoio da mídia tradicional – explícito como no Brasil ou colateral como nos Estados Unidos. Também foram processos que se aproveitaram da liberdade de expressão para manipular informações, criaram mensagens emotivas e alimentaram o medo de seus eleitores através de canais privados, se aliando a agendas socialmente conservadoras para arregimentar apoio. Em ambos os casos, as igrejas neopentecostais tiveram um papel fundamental em apoiar e direcionar as mensagens das campanhas e dos governos. Isso fez com que ambos saíssem de seus nichos, de eleitorados específicos, e virassem figuras apoiadas por uma parcela expressiva, mesmo com suas falas machistas, racistas e retrógradas.

No Brasil, o processo eleitoral ainda teve como componentes importantes: a ingerência da mão pesada do poder judiciário com as ações politicamente motivadas da Operação Lava-Jato e com as decisões acovardadas do Supremo; e dos interesses econômicos das empresas privadas (desde Facebook ao grande agronegócio), das igrejas e de seus aliados, como a bancada BBB e outros que desconhecemos. Sabemos de seu diálogo com Steve Bannon e de sua desmedida admiração pelos Estados Unidos, mas não temos elementos suficientes para analisar que interesses estão por trás da candidatura de uma figura política que tem 30 anos de carreira sem destaque algum.

Na esquerda faltou emoção

Mas e a esquerda nos processos eleitorais desse tipo, como se comportou? Uma reflexão de uma ativista dos EUA reforça a importância de compreender as narrativas em jogo:

“Quando a esquerda finalmente se deu conta de quão ressonante e popular Trump era, respondeu da única forma que uma instituição que se orgulha de ser correta e superior poderia fazer: fazendo checagem de dados das afirmações e ações dele. Ao invés de se engajar com as emoções reais que atraíram as pessoas a ele, ridicularizaram seus apoiadores e ignoraram suas realidades emocionais. Enquanto Trump falou de sentimentos e valores e pintou o quadro de um mundo que genuinamente ressoava com as pessoas e apaziguava seus medos. Não se pode checar dados de um sentimento. Esperamos que isso sirva de lição”. E complementa: “a esquerda gastou muito pouco tempo no que realmente motiva politicamente as pessoas: valores, sentimentos e comunidade”.

A campanha da direita, nos dois países, foi muito mais emotiva do as campanhas de seus adversários. Trump e Bolsonaro certamente encamparam a imagem de homens comuns, indignados com as crises em seus países – econômica e social nos EUA, também política no Brasil e de valores comportamentais. Suas respostas para problemas complexos foram simplistas e no caso de Bolsonaro, estreitamente ligadas a valores conservadores; suas explicações passam por falta de Deus, falta de autoridade na família, e falta de patriotismo como causa das mazelas da vida cotidiana dos brasileiros e brasileiras. Mas ele não oferece solução, apenas aponta o problema, como Trump.

À oposição a eles e demais representantes da política tradicional faltou oferecer explicações que tivessem ressonância com as classes médias e classes populares. O problema é que discutir isso, pressuporia também desvelar a relação nada republicana entre partidos políticos e representantes de grandes lobbies e interesses econômicos. As portas giratórias entre os que ocupam altos postos governamentais de alto interesse público e altos cargos corporativos, as campanhas eleitorais financiadas com recursos privados, a captura corporativa de espaços de debate e decisão de interesse público em prol de lucro de poucos grupos econômicos, o papel dos bancos, da mídia e a relação deles com a vida pública. Mostrar que a corrupção é certamente um problema grave, mas não é ela que priva a maioria da população de viver em condições melhores com seus direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais atendidos.

“Nos Estados Unidos de Donald Trump e no Brasil de Bolsonaro, o capitalismo financeiro quebra e destrói relações sociais e vida associativa, provocando desorientação e isolamento do indivíduo. E, novamente, é dito a ele que o fracasso é culpa dele – e não de um sistema injusto. É uma estrutura fascista, sim, de novo tipo. Que está se internacionalizando e que vive do mesmo tipo de desrespeito e desumanização que fazia o fascismo anterior. Que quer dizer que o outro, por pensar diferente, merece morrer. E a classe média, que sempre odiou o pobre, agora está se sentindo mais à vontade para expressar, explicitar esse ódio. No fim, o ódio é exatamente o que o fascismo produz.”[9]

Ideologia de gênero e globalismo

Para a direita criar respostas às crises que vivemos, nos EUA, no Brasil e no restante do mundo também, cada vez mais comum é levantarem dois temas: ideologia de gênero e globalismo como as origens dos males que sofrem nossas sociedades. A ideologia de gênero não é nova e é um conceito vazio e maleável às necessidades do discurso conjugando de forma esdrúxula feminismo, teorias LGBTI e comunismo; Sonia Correa faz um histórico importante da construção de suas origens desde meados da década de 90 e seu uso nas esferas internacionais e na política internacional sobre questões de gênero. Ela recupera em seus escritos como a ideia foi formatada em negociações internacionais e nas altas esferas teológicas, em princípio na Igreja Católica, mas que hoje conta com a adesão de outras forças religiosas e também com apoio de um amplo espectro da sociedade: de biomédicos, psicanalistas, extremistas de direita, e até políticos da esquerda.

“Acima de tudo, os proponentes da agenda anti-gênero mobilizam lógicas e imaginários simplistas e constituem inimigos voláteis – aqui as feministas, lá os gays, acolá os artistas, por lá os acadêmicos, em algum outro lugar os corpos trans – alimentando pânico moral que distrai as sociedades de temas estruturais que deveriam estar sendo debatidos, como as crescentes desigualdades de gênero, classe, raça e étnicas.”

O mesmo acontece com o globalismo, sendo utilizado como conceito para defender valores cristãos, apresentado como a globalização econômica capitaneada pelo marxismo cultural, segundo definição do próximo Ministro de Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo[10]. O termo antigo, datado da década de 40 foi recuperado por Steve Bannon e seus discípulos, mas foi inicialmente identificado com o projeto expansionista nazista, depois utilizado para nomear atores internos nos EUA que poderiam colocar em risco a soberania nacional dos EUA ao apoiarem políticas internacionais, como em temas migratórios no pós-guerra. A semente do termo vem carregada de preconceito e se coloca como oposição aos projetos de interesse nacional – nos EUA, o “America First” e no Brasil, “Brasil acima de todos, Deus acima de tudo”.

O fato dos EUA capitanearem uma política como America First, muitas vezes imoral e egocêntrica, como no caso da separação de famílias, abre caminho para que outras lideranças deem passos antes inimagináveis diante do sistema internacional e diante dos próprios Estados Unidos. America First nao significa necessariamente apoio a outras lideranças, significa que o país não expressará sua desaprovação diante de políticas autoritárias. Enquanto não houver oposição direta à Trump, o que acontece em cada país, não o interessa – exceto nos países alvo dos discursos (de ataque ou defesa) da direita: Irã, Israel e Venezuela.

Para as sociedades civis dos EUA e do Brasil, e de outros países governados por líderes autoritários ou se encaminhando para que sejam, essas são más notícias. A militância desenvolvida há décadas, mas com maior profissionalização desde a década de 90 já está sofrendo ataques no que chamamos de redução ou encolhimento dos espaços democráticos e que tendem a ser intensificados. As organizações e movimentos sociais que lutam por direitos estão sendo nomeados os inimigos do progresso e o discurso de ódio contra ativistas têm crescido de forma perigosa. Vimos durante a campanha eleitoral no Brasil os ataques a jornalistas e ativistas crescerem de forma assustadora; vimos também que antes mesmo que o novo presidente assuma, há movimentação intensa no congresso para aprovar legislações como o ajuste da lei antiterrorismo para criar mecanismos de reprimir e encarcerar o dissenso.

Nos EUA, resistência no Congresso e legislaturas locais

Nos Estados Unidos, a eleição de Donald Trump gerou um movimento extremamente interessante de mulheres que organizou células locais e catalisou inúmeras candidaturas ao Congresso e legislaturas locais, alcançando um recorde de mulheres eleitas – 107 das 435 cadeiras, além do importantíssimo e oportuno controle do Congresso pelos democratas. O importante disso é que a partir de 2020 o congresso passará por um processo de redefinição dos distritos eleitorais[11].  Atualmente, uma estratégia posta em prática pelo conselheiro do ex-presidente George W. Bush, Karl Rove, chamada RedMap – Redistricting Majority Project – continua rendendo frutos para os republicanos nas eleições, mesmo recebendo menos votos, conseguem garantir o controle de distritos disputados.

A definição do distrito pode ser um atributo dos legisladores estaduais que recorrem a softwares e dados dos eleitores para definir quais são os limites dos 435 distritos congressionais do país, cada um representando aproximadamente 711.000 pessoas. Gerrymandering é o nome da prática de desenhar o distrito de acordo com interesses partidários para garantir o controle de um assento. Os republicanos, liderados por Rove, colocaram essa estratégia em prática depois de terem adquirido o controle do Congresso em 2010 e pressionado estados nos quais a legislatura estava encarregada do processo de redistritamento, para assumir o controle do processo e redesenhar as linhas distritais. Os democratas não esperavam por isso e nada como isso havia sido tentado antes, não nesta escala.

Normalmente, o gerrymandering usa duas técnicas: packing e cracking no inglês, algo como concentrar e pulverizar. No chamado packing, o partido encarregado do redistritamento tenta concentrar os eleitores do partido rival em poucos distritos para minimizar suas oportunidades de garantir assentos. No cracking, blocos de eleitores da oposição são distribuídos em muitos distritos variados para alcançar o mesmo objetivo, reduzir as chances do partido opositor. “Em preparo para o próximo censo, os democratas criaram um plano semelhante ao do RedMap. Eles o chamam de Advantage 2020, e dizem que esperam financiá-lo no valor de setenta milhões de dólares. Os republicanos, por sua vez, anunciaram o RedMap 2020. Seu objetivo de gastos? Cento e vinte e cinco milhões de dólares”.

Mas, além dos enormes investimentos que estão sendo feitos no futuro desenho dos distritos, pela primeira vez desde 1950, o Censo dos EUA planeja perguntar a todos que moram nos Estados Unidos se são cidadãos quando realizarem seu próximo censo decenal em 2020. Já imaginando que alguns imigrantes podem evitar responder à pergunta, o governo Trump quer tentar usar outros registros do governo para preencher as informações necessárias. E esse processo afetará fortemente o processo de redistritamento, os próximos 10 anos de política americana e como o orçamento é alocado aos estados – estimados US $ 800 bilhões por ano em fundos federais.

No Brasil, debate sobre reforma eleitoral e representação

No Brasil, o debate sobre reforma eleitoral e mudanças no modelo de representação deve crescer em 2019. Isso porque em outubro de 2017, o Congresso aprovou novas regras colaterais, mas não conseguiu apoio suficiente para avançar na discussão para adotar um novo modelo de votação. Houve bastante pressão de figuras conhecidas e de partidos de situação para que o voto distrital misto fosse adotado. Nele, diferente do que acontece hoje, com voto proporcional em lista aberta, os eleitores/as teriam candidatos/as apoiados pelos partidos em cada um dos distritos e o restante deles em listas pré-ordenadas.

Os defensores desse modelo alegam que ele pode facilitar maior controle social sobre a atuação dos parlamentares e aproximar eleitores de seus representantes. Entretanto, ele beneficiaria as figuras conhecidas e grandes partidos em detrimento da oportunidade de novos candidatos/as e partidos menores concorrerem de forma equilibrada. O MDB, partido que esteve na base de apoio de todos os governos desde 1989, não importando o espectro político de cada um deles, seria o maior beneficiado por esse modelo, o que mostra que seriam necessários muitos ajustes para que pudesse de fato aproximar a sistema político da população. Além do que, causa preocupação pensar que as atuais lideranças desse partido estariam a cargo de definir os distritos eleitores no Brasil, abusando do gerrymandering.

A reação das resistências

Há muito com o que se preocupar, mas também há muitos passos sendo tomados na direção correta. Temos visto que os movimentos sociais e ativistas têm conseguido cada vez mais fazer com que suas mensagens de solidariedade e justiça cheguem a públicos que não necessariamente os escutaria. Iara Pietricovsky disse em uma troca de mensagens, “eles trarão de volta a ideia do humanismo e da solidariedade, ou seja, são re-humanizantes (para nossas sociedades).”[12]

A reação da resistência tem conseguido conjugar de forma muito mais eficaz o que ocorre nas redes sociais e nas ruas e ocupar espaços como a direita fez com as campanhas eleitorais. A movimentação em torno da campanha de Haddad no Brasil, nas últimas semanas de outubro, deu uma amostra do que será possível fazer – tanto nas ruas, como nas redes através dos enormes grupos de mulheres formados e que estão criando núcleos locais de debate e apoio a ações, no Brasil e fora.

Há muito sendo feito. O fim de períodos igualmente sombrios sempre se deu por ação popular, por grupos e movimentos que não se intimidaram e criaram estratégias criativas e poderosas para quebrar regimes que não tinham o interesse público como princípio norteador. Não será diferente agora; há muito sendo feito nos Estados Unidos, no Brasil e em outras partes, para que grupos se articulem, ajustem mensagens e possam proteger nossas sociedades de maiores estragos e nos devolver a uma lógica de defender e garantir direitos conquistados para ampliá-los e universalizá-los e não mantê-los reféns de outros interesses.

 

*Ana Cernov é ativista de direitos humanos engajada na proteção dos espaços democráticos e em iniciativas para a construção de movimentos e defesa de justiça e igualdade. Atualmente milita no Coletivo por um Brasil Democrático em Los Angeles. Foi assessora da Coalizão para Ação Cívica Vuka! e antes disso, liderou o programa Sul-Sul da Conectas Direitos Humanos de 2014 a 2016. Trabalhou por 15 anos com sindicatos, movimentos sociais, organizações religiosas e ecumênicas e agências de desenvolvimento no Brasil e na América Latina. Possui bacharelado em Relações Internacionais e Mestrado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Esse artigo não reflete necessariamente uma opinião institucional e traz apenas a perspectiva pessoal da autora.

 

Bibliografia:

Avritzer, Leonardo. “Fake News legitimadas por grupos de família e igreja explicam eleição de 2018”. O Globo, 7 de dezembro de 2018, disponível em: https://blogs.oglobo.globo.com/ciencia-matematica/post/fake-news-legitimadas-por-grupos-de-familia-e-igreja-explicam-eleicao-de-2018.html, acesso em dezembro de 2018.

Bump, Phillip. “All the ways Trump’s campaign was aided by Facebook, ranked by importance”, The Washington Post, 22 de marco 2018, disponivel em: https://www.washingtonpost.com/news/politics/wp/2018/03/22/all-the-ways-trumps-campaign-was-aided-by-facebook-ranked-by-importance/?utm_term=.2a293558315a, acesso em dezembro de 2018.

Carty, Nicole. “Our movements are powerful. The institutional left is not the solution. Here is what we should do next.”, novembro 2016, disponível em:

https://medium.com/@nicolecarty/our-movements-are-powerful-92d6788bbbd5, acesso em dezembro de 2018.

Cernov, Ana & Pousadela, Inés.”¿Son las mujeres la última línea de defensa contra la deriva autoritaria brasileña?” Democracia Abierta, 6 de outubro de 2018, disponível em: https://www.opendemocracy.net/democraciaabierta/ana-cernov-in-s-pousadela/son-las-mujeres-la-ltima-l-nea-de-defensa-contra-la-deri acesso em dezembro de 2018.

Conectas. “SUR – Revista Internacional de Direitos Humanos, edição no 26o, dezembro de 2017. Disponível em: http://sur.conectas.org/revista-impressa-edicao-26/, acesso em dezembro de 2018.

Correa, Sonia. “Gender Ideology: tracking its origins and meanings in current gender politics”, The London School of Economics and Political Science – Engenderings Blog, dezembro de 2017, disponível em: http://blogs.lse.ac.uk/gender/2017/12/11/gender-ideology-tracking-its-origins-and-meanings-in-current-gender-politics/, acesso em dezembro de 2018.

Illing, Sean. “Author explains why Democrats will struggle to win the House until 2030”. Vox, 3 de junho de 2017, disponível em:

https://www.vox.com/conversations/2016/10/5/13097066/gerrymandering-redistricting-republican-party-david-daley-karl-rove-barack-obama, acesso em dezembro de 2018.

Ingraham, Christopher. “This is actually what America would look like without gerrymandering”. The Washington Post, 13 de janeiro de 2016, disponível em: https://www.washingtonpost.com/news/wonk/wp/2016/01/13/this-is-actually-what-america-would-look-like-without-gerrymandering/?utm_term=.450058bb5ce8, acesso em dezembro de 2018.

Instituto da Democracia. “A Cara da Democracia”. Marco de 2018, disponivel em: https://www.institutodademocracia.org/a-cara-da-democracia acesso em dezembro de 2018.

Kolbert, Elizabeth. “Drawing the Line – How redistricting turned America from blue to red”. The New Yorker, 27 de junho de 2016, disponível em: https://www.newyorker.com/magazine/2016/06/27/ratfcked-the-influence-of-redistricting, acesso em dezembro de 2018.

Sayuri, Juliana. “Entrevista: “A esquerda foi singularmente incapaz e burra nessas eleicoes”, diz Jessé Souza, The Intercept Brasil, 18 de novembro de 2018, disponivel em: https://theintercept.com/2018/11/18/jesse-souza-entrevista/, acesso em dezembro de 2018.

Schwartz, Mattathias. “Facebook failed to protect 30 million users from having their data harvested by Trump Campaign affiliate”, The Intercept, 30 de marco de 2017, disponível em: https://theintercept.com/2017/03/30/facebook-failed-to-protect-30-million-users-from-having-their-data-harvested-by-trump-campaign-affiliate/, acesso em dezembro de 2018. Em português em: https://theintercept.com/2017/03/31/o-facebook-nao-protegeu-30-milhoes-de-usuarios-de-terem-dados-acessados-por-uma-das-empresas-da-campanha-de-trump/

Youngs, Richard (editor). “The mobilization of conservative civil society”, Carnegie Endowment for International Peace, 2018.

https://carnegieeurope.eu/2018/10/04/mobilization-of-conservative-civil-society-pub-77366, acesso em dezembro de 2018.

We are Social & Hootsuite. “Global Digital Report 2018”, 9 de janeiro de 2018, disponível em: https://digitalreport.wearesocial.com, acesso em dezembro de 2018.

 

 

[1]  Os dados do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) apontam que 47.039.291 votaram por Haddad e um número muito expressivo de pessoas escolheu não votar em nenhum dos dois candidatos: 42.465.252 abstenções, ou votos brancos/nulos, somando assim os 89.504.543 eleitores que não votaram por Bolsonaro nessas eleições.

[2] Durante vários meses as pesquisas de opinião foram sistematicamente lideradas pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, candidato do PT, mesmo se encontrando ele preso após um julgamento politicamente motivado, encabeçado por um juiz que passa a ser ministro da Justiça de Bolsonaro. Como a condenação de Lula ainda poderia ser revogada em segunda instância, o Comitê de Direitos Humanos da ONU instou o governo a garantir seu direito de se candidatar à presidência, chamamento também feito pela Mesa de Articulação de Associações Nacionais e Redes de ONGs da América Latina, entre muitos outros. Entretanto, em tempo recorde, o STF decidiu que o pedido da ONU estaria em conflito com a lei da Ficha Limpa e no dia 11 de setembro passado decidiu impedir a candidatura de Lula e aceitar sua substituição pela do seu candidato à vice, Fernando Haddad, ex-prefeito de São Paulo e em grande medida desconhecido do eleitorado nacional.

[3] O Jornal Nexo ouviu pesquisadores e escritores internacionais para explicar o lugar que o deputado e capitão reformado ocupa no espectro ideológico mundial e o posicionar na extrema direita. Veja em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2018/10/17/O-que-%C3%A9-extrema-direita.-E-por-que-ela-se-aplica-a-Bolsonaro

[4]Tradução da autora de trecho de entrevista ao autor do estudo, trazida neste artigo: https://www.politico.com/blogs/on-media/2016/12/report-general-election-coverage-overwhelmingly-negative-in-tone-232307

[5]  Dados de 2015 de pesquisa realizada pela Pew Research Center http://www.pewinternet.org/2015/10/08/social-networking-usage-2005-2015/

[6] Dados da pesquisa Global Digital Report 2018, realizada pelas agências We Are Social e Hootsuite e divulgada em janeiro de 2018. https://digitalreport.wearesocial.com

[7] Dados da pesquisa “A Cara da Democracia no Brasil”, realizada em março de 2018, que tem como objetivo produzir um retrato atualizado de como o brasileiro enxerga a democracia no país e como se apropria de informação política. Veja em: https://www.institutodademocracia.org/a-cara-da-democracia

[8]https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/entenda-as-irregularidades-envolvendo-uso-do-whatsapp-na-eleicao.shtml

[9] https://theintercept.com/2018/11/18/jesse-souza-entrevista/

[10]https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/11/contra-o-globalismo-e-o-pt-conheca-frases-do-novo-chanceler-brasileiro.shtml

[11]https://www1.folha.uol.com.br/colunas/patriciacamposmello/2018/11/precisamos-falar-de-gerrymandering-e-hegemonia-republicana-no-legislativo.shtml

[12]  Troca de emails entre a autora e a ativista Iara Pietricovsky do INESC em 8 de dezembro de 2018.

>>> Leia a versão em inglês do artigo:

Forus: uma agenda positiva para 2019

Iara Pietricovisky também integra a direção executiva da Abong e o colegiado de gestão do Inesc.  O Forus é uma rede global inovadora que capacita a sociedade civil para uma mudança social efetiva. É uma organização que reúne 69 Plataformas de ONGs Nacionais (PON) e 7 Coalizões Regionais (CR) da África, América, Ásia, Europa e Pacifico – juntas representando mais de 22.000 organizações.

Assista ao vídeo e confira o artigo:

Vivemos tempos difíceis. De um lado um mundo, no limiar de uma explosão de um sistema político predominantemente autoritário e fascista (a não política) e do outro, de uma economia cada vez mais neoliberal, totalitária, que concentra riqueza e homogeniza. Sem falar do risco iminente das consequências do aquecimento do Planeta.

Diante desse cenário preocupante, o papel do Forus é, antes de tudo, ressaltar os princípios inspirados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, do Pacto Internacional relativo aos direitos econômicos, sociais e culturais; dos Acordos da Agenda 2030 e o da Biodiversidade e Clima. Trata-se também de agir numa agenda internacional positiva para além das que estão configuradas pelas Organizações das Nações Unidas (ONU) e tentar montar o quebra-cabeça do poder no mundo contemporâneo.

O Forus, então, pretende contribuir para outra abordagem da política de modo a transformá-la num espaço real de construção de valores, da ética, do direito de oposição e no qual o conflito contribui para a democracia. A democracia que queremos deve abarcar e valorizar a diversidade, a participação, a igualdade, a liberdade de ser e estar, a livre circulação. Não nos dobramos à servidão voluntária estimulada pelo medo histérico de um mundo real que se desenha na violência, na exclusão e nos imobiliza.

O papel do Forus também é o de buscar uma linguagem comunicacional inclusiva e global, onde todas e todos se sintam reconhecidos nas suas singularidades. O Forus pretende lutar contra as novas formas de dominação que emergem das mídias sociais e das novas tecnologias de comunicação, por exemplo, contra aquilo que atualmente se denomina como fenômeno do “firehosing” com o uso massivo de “fake news”, o que representa um risco real às democracias.

Manter o contato com as nossas bases (organizações e representantes da sociedade civil) é um outro desafio para Forus.  Isso implica que nos encontremos, cara a cara, graças às nossas formações e trocas diretas com nossos agentes; implica continuarmos conectados para criar fortes laços e cuidar uns dos outros.

É igualmente importante aprofundar a Iniciativa Global do Forus, que pretende ser uma das contribuições para contrapor a tendência mundial, promovendo um ambiente internacional favorável para o campo da cidadania mundial, tanto no aspecto político como do financiamento.

Como o Banco dos Brics irá atuar?

*Publicado originalmente no site da Carta Capital

Muitas pessoas indagam por que o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD ou Banco dos BRICS) é importante. As razões são diversas e, por vezes, contraditórias.

São vários os argumentos positivos, especialmente ancorados numa proposta bastante inédita: trata-se de instituição multilateral de desenvolvimento do Sul e para o Sul. Integrado pelos países dos BRICS – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul –, até agora o NBD tem emprestado somente para si. Existem movimentos para ampliar os sócios do Banco, que pode ser qualquer país integrante das Nações Unidas, mas a liderança continuaria sendo do Bloco.

A governança da instituição é inclusiva e democrática na medida em que os sócios têm igual peso, não importando o tamanho de sua economia. Os aportes de recursos são em montantes iguais e as decisões ocorrem por consenso ou maioria simples, um país um voto.

A centralidade de sua atuação está voltada para a promoção do desenvolvimento sustentável com ênfase na infraestrutura, um dos principais gargalos dos emergentes e dos países mais pobres. Neste sentido, se propõe a atender as reais necessidades de seus clientes, alinhado com os acordos de clima e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), entre outros.

Seguindo a narrativa do respeito mútuo e da observância da soberania nacional, os projetos são analisados e aprovados pelo Banco a partir dos padrões e leis locais, chamados de sistemas países. Com isso, diminuem as condicionalidades, medidas fortemente criticadas pelos países do Sul em relação aos empréstimos de instituições multilaterais tradicionais, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI).

Observa-se, ainda, preocupação em utilizar mecanismos financeiros adequados às realidades dos seus sócios. O NBD também busca ser “verde” do lado do funding. A primeira captação no mercado foi por meio de um bônus verde em renminbis, o que significa que os recursos dele derivados devem ser aplicados, obrigatoriamente, em projetos considerados verdes por padrões internacionais.

Há o compromisso de manter uma estrutura enxuta, eficiente e conectada com os países. O ciclo dos projetos pretende ser célere. Em apenas três anos de atuação efetiva, foram aprovados 26 projetos no valor total de U$ 6,5 bilhões. O NBD recebeu rating AA+ da S&P e da Fitch, consolidando progressivamente sua inserção nos mercados financeiros globais. Além disso, foi aberto o primeiro centro regional do Banco na África do Sul e o segundo, no Brasil, deverá entrar em operação em 2019.

Por fim, mencione-se uma abertura à interação com organizações da sociedade civil. Até o momento ocorreram diversos diálogos com Vice-Presidentes do Banco, em reuniões bilaterais ou às margens dos encontros anuais do Banco. Além disso, foram realizadas duas reuniões na sede do Banco com organizações da sociedade civil e a direção do NBD.

Mas, nem tudo que brilha é ouro! Os desafios que o NBD enfrenta não são de pequena monta. Existem muitas dúvidas sobre tratar-se de uma institucionalidade de nova geração, capaz de contribuir para um desenvolvimento efetivamente inclusivo e sustentável.

O que garante que os projetos colaboram para a consolidação de uma infraestrutura sustentável?

Aqui tem-se pelo menos dois problemas que dificultam uma resposta clara à pergunta. Em primeiro lugar até hoje não são de domínio público os critérios utilizados pelo Banco para conceituar “infraestrutura sustentável”. Assim, por exemplo, no Brasil apoiam-se projetos de energia eólica que mesmo sendo considerada renovável, a depender de como é produzida, pode gerar impactos sociais e ambientais expressivos. Na Índia, o NBD financia projetos de construção de estradas que reproduzem as mazelas do setor da construção civil local. São exemplos concretos de iniciativas que pouco resultam em sustentabilidade social e ambiental dos povos e comunidades daqueles países.

O segundo problema diz respeito à falta de transparência do Banco. Não somente não existem informações sobre o ciclo dos projetos aprovados, como o NBD não responde às demandas de informação apresentadas por estudiosos ou organizações da sociedade civil. Diante da fragilidade dos critérios e da ausência de informações, é impossível saber se, de fato, os projetos contribuem para a promoção de uma infraestrutura sustentável.

O que garante que os projetos são de qualidade?

Neste caso as incertezas também avolumam-se. A argumentação de que os mecanismos legais dos países protegem os projetos não se sustenta, especialmente considerando as notícias sobre empréstimos duvidosos. Menciona-se o caso de financiamento de U$ 300 milhões à empresa russa Sibur para melhorar a segurança ambiental de um complexo petroquímico na Sibéria. Essa companhia é controlada por três oligarcas do círculo íntimo do presidente Putin. Contando com muita influência política e econômica, estão acima da lei, e a prestação de contas se limita ao chefe do Executivo russo. Destaque-se, ainda, o apoio à empresa estatal sul-africana Transnet para expansão do porto de Durban, envolta em denúncias de corrupção.

Esses exemplos revelam não somente as limitações dos sistemas país, bem como a fragilidade das salvaguardas por parte do NBD. Põem em risco a reputação do Banco como reprodutor das velhas práticas dos bancos multilaterais de desenvolvimento tradicionais.

Qual a inovação do NBD em relação à inclusão e ao combate às desigualdades?

No que se refere à desigualdade de gênero, a atuação do Banco é praticamente inexistente. Organizações articuladas na rede BRICS Feminist Watch têm apresentado diversas propostas, como a de criação e implementação de uma Política de Gênero. O NBD alega não ter recursos para tal, revelando a falta de prioridade e o claro descumprimento dos ODS, especialmente o ODS 5, de “Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas”.

Quanto ao enfrentamento das desigualdades nos países, tampouco existem evidências de que seja de fato uma preocupação do Banco, uma vez que não há qualquer mecanismo de escuta das comunidades, especialmente as afetadas pelos projetos.

É importante destacar que a ausência de políticas de gênero e de mecanismos de participação social acaba reforçando práticas discriminatórias existentes, impossibilitando a progressiva realização de direitos humanos e a conquista da sustentabilidade.

O enfrentamento desse conjunto de desafios urge – falta de transparência, fragilidade dos critérios de sustentabilidade, insuficiência dos sistemas país, pouca inovação social, ausência de políticas de gênero e de participação social. Do contrário, mantendo somente a prioridade de aprovação quantitativa de projetos em tempos recordes, pode comprometer seriamente a qualidade e a credibilidade de uma instituição que (ainda) tem tudo para dar certo.

A essas ambivalências e ambiguidades que rondam o NBD soma-se um novo e temeroso desafio, que é o papel que o governo do presidente Bolsonaro irá desempenhar. Corre-se o sério risco de o Banco ser considerado produto do “marxismo cultural” e, portanto, resultar no seu esvaziamento ou, mesmo na retirada do Brasil da iniciativa. Alea jacta est!

 

Nathalie Beghin é integrante do Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), da Rede Brasileira de Integração dos Povos (REBRIP) e do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI).

Nada a celebrar em Katowice

Após um esforço gigantesco por parte dos negociadores, foi anunciada, na noite de sábado, a aprovação do  “Livro de Regras” do Acordo de Paris. São 156 páginas que expressam um acordo fraco, apesar do esforço para acomodar os mais diferentes interesses dos países membros. Esse foi um dos eixos principais que marcou a COP24, em Katowice, Polônia.

Uma vez mais, a aparente alegria apresentada ao final dos trabalhos, na verdade, não conseguiu esconder a profunda frustração e a angústia generalizada.  Estarmos perdendo a batalha e sabemos disso. O relatório dos cientistas não deixa dúvida: os cenários mais graves desenhados por eles são os que estão se confirmando. Então, me pergunto, celebramos o quê?

No âmbito político, governos se mostram incapazes de agir com rapidez e independência dos interesses corporativos. Tensões entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento permanecem e dificultam resoluções sobre financiamento, que continua sendo um debate interrompido.  Por exemplo, durante o Diálogo de Alto Nível – realizado em paralelo ao debate do financiamento, numa tentativa de encontrar novos caminhos –  os representantes do sistema financeiro foram claros em seu recado: o dinheiro só virá quando destravarem as condicionalidades que dificultam seu investimento.

O Diálogo de Talanoa, que pretendia ser um intercâmbio de experiências de forma a disseminar as boas práticas e, assim,  aumentar a ambição dos países, tampouco funcionou conforme o esperado. A ambição ficou guardada em alguma gaveta para, quem sabe, reaparecer no próximo ano no Chile, durante a COP25.

Acrescente-se a esse desatino geral o papel vergonhoso do Brasil, que sai de uma posição de liderança progressista neste debate para se submeter aos governos que estão identificados com a ultradireita mundial – e que vem questionando as evidências científicas. Esse retrocesso, sem dúvidas, influenciaram as (in)decisões finais da COP24.

Por fim, cabe ressaltar um aspecto positivo, que foi a aprovação do documento final da “Plataforma dos Povos Indígenas e Comunidades Locais”.  Existe uma resistência, em especial de grupos indígenas da África e Ásia, de integrar ao texto o conceito de “comunidades locais”. O argumento é que isso poderia prejudicar o reconhecimento da  especificidade do conhecimento dos povos indígenas.  Desta forma, o debate ainda continuará até 2020.

No European-American Blog, o sociólogo húngaro Tom Kando apresenta 13 pensamentos ou crenças no post intitulado “O Dogma de Kando – Segunda Parte”. Ressalto aqui duas de suas idéias que me parecem expressar o nosso dilema contemporâneo:

“ A ciência distingue entre a verdade e o erro, e por esse meio, aumenta-se o conhecimento. O ser humano avança por meio do conhecimento. E o montante total do conhecimento é infinito.”

“Ao mesmo tempo, as religiões organizadas tem sido a causa principal das mortes em massa ao longo da história. Os outros motivos principais para a guerra e o assassinato massivo tem sido a exploração econômica e o tribalismo/nacionalismo, que são a hostilidade intra e extra grupos, o ‘ódio’ aos outros.”

Ao que parece, nesse fluxo e refluxo da história da humanidade, antevemos uma era de negação do conhecimento cientifico e a adoção de uma crença religiosa por meio do acirramento do ódio ao diferente, como forma de mascarar os verdadeiros interesses do capital. O poder econômico é invisível, porém dirige atentamente todos esses processos.

A Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC sigla em inglês) não está imune a este fenômeno. Ainda que o painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC na sigla em inglês) mostre a urgência em agir contra o aquecimento, o mundo da política resiste numa narrativa parcial, pobre e religiosa, que já está promovendo o caos.

 

Cadastre-se e
fique por dentro
das novidades!