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Direitos Humanos para Humanos Direitos? A construção de inimigos e a legitimação da violência estatal

Jair Bolsonaro, em sua campanha política para a presidência da República, recorreu amplamente ao discurso anticorrupção e ao da necessária implementação de novas medidas de segurança pública. No seu plano de governo se encontra a demarcação do que entende ser o inimigo a ser combatido: o Partido dos Trabalhadores (PT), mas também de forma mais ampla a esquerda, o “marxismo cultural e suas derivações como o gramscismo, (que) se uniu às oligarquias corruptas para minar os valores da Nação e da família brasileira” (Plano de Governo Bolsonaro 2018).

Podemos identificar a demarcação de uma distinção binária no escopo da sociedade: direita versus esquerda. Ainda, tais distinções entre segmentos da sociedade justificariam a adoção de medidas estatais específicas diante da qualidade distintiva dos sujeitos, mas não na perspectiva da equidade. A distinção aqui opera como linha de demarcação entre quem é sujeito beneficiário das políticas, e quem é objeto da coerção do Estado.

Direito Penal do Inimigo

No campo do Direito, tais prerrogativas remetem a uma controversa teoria penalista denominada Direito Penal do Inimigo. Criada em 1985 pelo alemão Günther Jakobs, tal teoria serviria para justificar a suspensão de garantias jurídicas para sujeitos identificados como ameaça ao Estado e à sociedade, legitimando um Estado de exceção parcializado sob a justificativa de que, diante de inimigos, a justiça deveria operar de modo mais veemente. Outro termo que tem sido adotado para se referir a perseguições políticas é o de lawfare, quando se usa os mecanismos legais e institucionais para atingir um suposto inimigo.

Um exemplo recente da aplicação desta lógica do inimigo seria a condenação sem provas do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A condenação midiática prévia e a construção de sua figura política como inimigo político a ser combatido teria decorrido na aplicação da sanção da privação de liberdade, a despeito da ausência de provas materiais que respaldassem tal decisão jurídica.

De um modo mais abrangente, podemos também afirmar que o Direito Penal do Inimigo funciona no Brasil na lógica do encarceramento massivo da população negra, construída inimiga pública por meio da estigmatização de pessoas negras como criminosas em si. Foi assim que Rafael Braga foi detido e encarcerado: bode expiatório na condenação de ativistas que tomaram as ruas no levante de Junho de 2013. Um homem negro, pobre, portando uma garrafa de Pinho Sol e outra de água sanitária, nas redondezas do território em que os protestos ganharam lugar: foi condenado por ser quem é, e não por provas que o ligassem a um ataque a bombas contra o patrimônio público e privado que, no fim das contas, nunca ocorrera.

De maior gravidade ainda é a condenação sumária na forma da execução homicida, impondo a determinados sujeitos penas nunca tramitadas pelo sistema de justiça e que não se justificariam em nosso ordenamento penal. A pena de morte é realidade recorrente para homens negros no país, levados ao óbito por ações policiais que os executam, sob a justificativa da necessidade do punho firme do Estado no combate ao tráfico de drogas e ao crime organizado. Foi o que ocorreu com Evaldo dos Santos Rosa, alvejado por militares junto à sua família, quando confundido com um assaltante. Ocorre que a família estava se dirigindo a uma confraternização, mas caso o carro atingido estivesse em uso por reais assaltantes a opinião pública sobre o caso teria sido diferente? Teria alguma legitimidade moral a ação letal dos militares?

Criminalização da pobreza e do povo negro

Esta lógica de exceção não é exatamente uma novidade no contexto brasileiro, remetendo à história de manutenção do racismo e do genocídio contra populações negras e indígenas, mesmo durante o regime republicano. É de se notar, no entanto, que a retórica adotada por Jair Bolsonaro endossa a lógica do Direito Penal do Inimigo, com implicações graves em nosso ordenamento normativo, mas também nas representações coletivas sobre diversidade social.

O pacote anticrimes apresentado pelo atual ministro da justiça Sérgio Moro na gestão Jair Bolsonaro, por exemplo, além de acirrar penalidades (com perspectiva de agravar o já excessivo contingente carcerário brasileiro), propõe a exclusão do ilícito diante de agravos e assassinatos realizados por agentes de segurança em situação de legítima defesa de si ou de outrem, ou, nos termos do projeto, em situações de “medo, surpresa ou violenta emoção”.

Em uma perspectiva ampliada, Jair Bolsonaro prometeu, em seu Plano de Governo apresentado em campanha, enfrentar “os grupos de interesses escusos que quase destruíram o país”, na sequência mencionando “a esquerda”. Vivemos um momento histórico em que está em curso a construção discursiva e política de “inimigos a serem combatidos”. Para além da criminalização da pobreza e do povo negro, também são entoadas narrativas de identificação de variados movimentos sociais como inimigos do Estado.

O Movimento dos Trabalhadores sem Teto e o Movimento dos Sem Terra enfrentam investidas legislativas para a tipificado de suas estratégias de protesto como crime terrorista. Feministas contam com ampla difamação como sujeitos escusos, cuja política afrontaria os interesses da nação, da família e da Igreja. No dia 27 de Março de 2019 ocorreu, promovido pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, o Seminário “O Protagonismo da Mulher Jovem no Brasil”, em que a Deputada Estadual Ana Caroline Campagnolo (PSL/SC) apresentou suas ideias sobre “as armadilhas do feminismo”, supostamente desmascarando os danos decorrentes da luta feminista. Estamos falando de uma ação governamental para deslegitimar as reivindicações de um movimento social organizado, bem como de um campo interdisciplinar de conhecimento; estamos diante da ação deliberada do Estado na deslegitimação de determinadas lutas políticas de segmentos específicos da população, como se possível fosse lhes destituir, ideologicamente, os direitos políticos.

 Quem é humano direito?

Jair Bolsonaro, em sua costura entre os interesses da Bala e da Bíblia, estaria inaugurando uma era de explícita exclusão de parcelas da sociedade brasileira do escopo da cidadania? O que podemos verificar, nesses três primeiros meses de gestão, é a decisão pela demarcação de uma fronteira simbólica entre cidadãos que mereceriam a proteção do Estado e aqueles diante dos quais só restaria o enfrentamento governamental na lógica da destituição de sua legitimidade cidadã. Como costumava entoar Jair Bolsonaro, os direitos humanos seriam para humanos direitos, pregando um deslocamento de perspectiva que destrói o fundamento da Declaração Universal dos Direitos Humanos, reafirmado em nossa própria Constituição democrática de 1988: o de que todos seriam iguais perante a lei, com igual proteção da lei, sem qualquer distinção.

Ao sedimentar a ideia de que nem todos os seres humanos seriam humanos direitos, o que Jair Bolsonaro dissemina é a ampliação da lógica do Direito Penal do Inimigo para a ampla consideração do status social e político de sujeitos específicos, que passariam a dispor do estatuto da inimizade diante do atual governo federal. Diante de inimigos, a violência estatal (seja esta homicida, ou omissiva diante de necessidades prementes, ou difamatória) se justificaria moralmente como medida legítima. Caso os movimentos sociais, opositores políticos, e mesmo funções públicas como a docência, sejam compreendidos pelo senso comum e pela retórica governamental como inimigos a serem combatidos, poderíamos ainda assim afirmar que dispomos de uma condição democrática?

A retórica da inimizade, partindo de um sujeito que ocupa o cargo de Presidente da República, sinaliza para o caráter não democrático da atual gestão. Ainda que busque justificar moralmente seu afã pelo uso da força para a manutenção da ordem social, o que tal retórica impulsiona é uma condição de guerra moral, de sedimentação das estigmatizações não apenas contra sujeitos e movimentos sociais, mas a suspensão, para tais sujeitos, de seus direitos humanos, sociais e políticos.

Seria Jair Bolsonaro um inimigo para nós, ativistas feministas e ativistas pelos direitos humanos? Prefiro argumentar que é um político despreparado para a ocupação do cargo, um mau gestor que descumpre preceitos constitucionais, que carece de recursos emocionais e políticos para lidar com o contraditório, com a oposição a seus próprios posicionamentos, e que precisa investir na destruição das alteridades para afirmar a si mesmo. Nós somos diferentes e podemos fazer melhor: podemos nos manter firmes sem o abuso da força, podemos seguir argumentando nossa diferença de perspectiva ainda que tenham buscado nos destruir moralmente. Não é tão fácil assim nos silenciar e nos reduzir ao inimigo a ser combatido. Nossa dignidade se mantém invicta, disputando imaginários. Nossa potência é a esperança, e não a destruição.

 

*Tatiana Lionço é doutora em Psicologia, professora da UnB e ativista feminista

O que esperar do novo ministro de Meio Ambiente

O que esperar do novo ministro de Meio Ambiente

 

           Ricardo Verdum

 

 

O pedido de demissão da ex-ministra Marina Silva no último dia 13 de maio já era esperado. Anunciado em outras ocasiões — como quando da polêmica em torno da liberação do cultivo de soja transgênica, ou quando foram desqualificados pela própria presidência da República os dados apresentados pelo INPE e MMA (abrir essas siglas) sobre a inflexão ascendente no nível de desmatamento na Amazônia no segundo semestre de 2007, num ato de sutil solidariedade com os reclamos da base de apoio ruralista do governo federal —, a renúncia de fato não deixou de causar espanto e clima de “fim de mundo”. A saída do governo de um símbolo de luta e compromisso com a causa socioambiental, representado pela ex-ministra, acendeu a luz amarela em relação aos riscos de retrocesso, particularmente entre atores que, individual e coletivamente, têm levado a sério o desafio de promover desenvolvimento econômico associado com sustentabilidade ambiental e promoção e defesa de direitos das populações, povos e comunidades.

Passado o período de especulações e de análises em torno do sentido de seu ato e das razões que teriam levado a ex-ministra Marina Silva a pedir demissão, é chegada à hora de focar nos desafios e oportunidades que a nós, movimentos e organizações da sociedade civil, somos apresentados. Demanda revisar alguns pressupostos (para não dizer ilusões) alimentados ao longo dos últimos cinco anos; demanda aprofundar e aprimorar nossa capacidade de análise e percepção das transformações políticas, econômicas e sociais em curso no Brasil, e sua relação com as profundas mudanças igualmente observadas na América latina.

A partir dos anos 1990, e num ritmo mais acelerado nos últimos anos, acentuou-se a inserção dos países da região no contexto global como exportadores de commodities. No caso do Brasil, o atual modelo de desenvolvimento tem provocado relevante impacto sobre o meio ambiente, em decorrência das demandas crescentes por recursos naturais. As regiões Norte e Centro–Oeste ocupam papel fundamental no atual modelo nacional de desenvolvimento. O complexo do agronegócio e da mineração estão hoje na linha de frente das transformações em curso na forma de ocupação e de exploração das potencialidades do patrimônio ambiental nestas regiões. Estão também orientando a oferta de infra-estrutura de transporte e de geração de energia a ser reforçada pelo Plano de Aceleração do Crescimento (PAC).

Juntos (agronegócio, mineração e infra-estrutura econômica) orientam o planejamento estratégico do governo federal para os próximos quatro anos (PPA 2008-2011) e os objetivos de desenvolvimento de médio e longo prazo, tratados na pasta coordenada pelo ministro Mangabeira Unger (Assuntos Estratégicos), atual coordenador do Plano Amazônia Sustentável (PAS).

A força tarefa montada pelo governo e pelo setor mineral, visando aprovar no Congresso Nacional uma legislação específica destinada a viabilizar a exploração de recursos minerais nos territórios indígenas; e a pressão exercida sobre o governo federal pelos governadores dos estados de Rondônia e Mato Grosso, Ivo Cassol e Blairo Maggi respectivamente, contrários à resolução aprovada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), que vincula a concessão de crédito rural a comprovação de regularidade ambiental e fundiária a partir de 1º de julho (principal ponto de pauta da reunião do Fórum dos Governadores da Amazônia, a ser realizada com a presença do presidente Lula da Silva na próxima sexta-feira, dia 30, na cidade de Belém), são na prática manifestações empíricas e simbólicas deste modelo de desenvolvimento econômico.

Vamos ver como se comportará o setor de licenciamento ambiental do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) na análise das grandes obras de infra-estrutura do PAC e as do setor privado; vamos ver que medidas serão tomadas para superar os gargalos que provocaram, no período 2004/2007, o baixo desempenho do Plano de Ação para a Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PAPCDAL) em termos orçamentários e metas alcançadas.

Estes são a nosso ver, se não o maiores, os principais desafios a serem enfrentados pelo novo Ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, que assumiu o posto numa singela cerimônia na terça-feira (27). Se ele terá condições de dar um jeito na própria casa e se impor junto a seus pares, isto só o tempo dirá. Pelo andar da carruagem, isto não demorará muito para sabermos. 

Orçamento: o cobertor ficou mais curto

A novela da prorrogação da CPMF teve seu desfecho na madrugada do último dia 13 quando o Senado Federal rejeitou a proposta feita pelo governo de estender o seu prazo de vigência até 2011. Nesta mesma Proposta de Emenda à Constituição estava também a prorrogação da DRU. Ao enterrar a CPMF e aprovar a DRU os/as parlamentares mostraram de que lado estão. Acabaram com os recursos direcionados às políticas sociais, como saúde, assistência social e outras, e mantiveram a desvinculação das receitas da União que permite que se retire 20% do que é arrecadado e que tem destino certo e se aplique livremente aonde o governo desejar. Nos últimos anos esses recursos desvinculados tem tido destino certo: engordar o superávit primário para pagar juros da dívida pública.

Ficou clara a posição do Senado em favor da manutenção dos ganhos dos bancos e de algumas famílias que faturam alto com a negociação de títulos da dívida pública no mercado financeiro. Asseguraram o dinheiro da banca financeira e acabaram com os quase 40 bilhões destinados às políticas sociais.

Além de explicitar sua posição, a decisão dos senadores e senadoras trouxe alguns problemas de solução bastante complicada tanto para o governo federal quanto para o próprio Congresso Nacional. A diminuição da receita afeta substancialmente o Projeto de Lei Orçamentária (PLOA 2008) em discussão avançada na Comissão Mista de Orçamento. Está instalada uma polêmica entre governo e Legislativo.

Passados o susto e a ressaca da decisão do Senado, o governo federal, por meio de vários ministros, tem dito que vai retirar o projeto enviado para o Congresso Nacional para poder redimensionar as receitas e adequar as despesas previstas. O presidente da Comissão Mista e o relator geral do PLOA 2008 alegam não ser mais possível a retirada, que ela seria inconstitucional. Que o certo seria o próprio Legislativo promover as alterações de comum acordo com o governo.

Ainda não se sabe quem vai ganhar com esta queda de braço, mas o que se tem como certeza é que a sociedade brasileira só irá conhecer o orçamento da União para 2008 em março, isto se tudo correr bem, pois, os parlamentares só retomarão as discussões em fevereiro de 2008. Eles entrarão de recesso sem entregar à Nação o orçamento aprovado.

Outra polêmica que já está instalada é a localização dos cortes de despesa que necessariamente serão feitos.  Vai se cortar nos recursos para a saúde e outras áreas sociais e nos investimentos? Ou vai se diminuir o superávit primário e os vultosos recursos para pagar os serviços da dívida? Será bastante revelador do nível de prioridades que tem o governo federal e o Legislativo quando se apresentar a lei orçamentária com os devidos cortes.

A maioria da população terá que continuar a pagar a conta para sustentar o ganho dos rentistas, ou se terá coragem de manter as propostas de gastos nos programas sociais e de investimentos e diminuir o que se paga de juros da dívida pública?

O discurso das autoridades até agora tem sido cauteloso. É preciso manter os programas sociais, mas também é fundamental preservar a responsabilidade fiscal. O ministro da fazenda já disse que as metas fiscais serão cumpridas. O cobertor ficou mais curto sem os quase 40 bilhões da CPMF.  Vai se cobrir os pés e deixar a cabeça de fora. A julgar pelo que tem sido os últimos anos, o país continuará pagando religiosamente os encargos da dívida, mantendo os privilégios e deixando ao relento a maioria da população.  Quem é prioridade, o “mercado” ou os direitos dos cidadãos e cidadãs?

           

             

 

Orçamento Público

O acompanhamento, monitoramento e decodificação do processo orçamentário federal, sua execução financeira e a permanente busca pela ampliação de transparência e publicização das informações de planos e gastos públicos são metas permanentes do Inesc. Para além de ser um tema de intervenção política, a questão orçamentária também se constitui em eixo da intervenção, formação e construção de conhecimento pela instituição.

O tempo das cobras que voam

A atitude do governo em relação às políticas para a reforma agrária indica que há uma avaliação interna cristalizada. Setores estratégicos entendem que o ritmo dos assentamentos deve ser ditado pelo governo e não pelas organizações rurais. Ocorre que o ritmo imprimido pelo governo está aquém ao de tartaruga. E o papel dos movimentos sociais tem sido, até agora, o de apressar esse passo.

Esses setores entendem que esses coletivos devem servir aos interesses políticos do Estado. Assim, aos poucos, foram cooptando as organizações, facilitando a entrada nos cargos de último escalão, ensinando como elaborar os projetos e como acessar os recursos públicos.

 

Com esse ilusório fortalecimento, as organizações foram perdendo o poder de ação e reação. Foram desaprendendo a arrecadar fundos para suas atividades de forma independente – coisa que era normal nos governos anteriores. Os governos neoliberais obrigavam os movimentos sociais a desenvolverem sua criatividade. As organizações patronais obrigavam as entidades de trabalhadores e trabalhadoras rurais a recriarem as articulações políticas e a consolidar pactos de classe.

 

O atual governo, esquerdo-liberal, foi se imiscuindo na vida dos movimentos como uma aragem de esperança. As lideranças abraçaram essa possibilidade, pois se reconheciam como construtoras do Partido dos Trabalhadores, de onde vinha o Lula – líder metalúrgico. Havia um entrelaçamento de avalistas: o partido e o homem.

 

Lula, assim que assumiu o Executivo, prometeu aos movimentos que a reforma agrária seria resolvida com uma canetada. Com uma canetada também seria resolvida a questão do índice de produtividade, que serve para mensurar o grau de utilização econômica da terra, que é a base do processo desapropriatório. Seria extinto o decreto que proibia a ocupação dos imóveis improdutivos e criminalizava os movimentos sociais. Os transgênicos jamais seriam liberados. Essas e outras promessas não foram cumpridas. As organizações pressionaram o governo, mas sempre havia uma desculpa de Estado.

 

A essa desculpa, se associava uma chantagem: o governo se mostrava sempre ameaçado pelas elites; sempre sua governabilidade estava em jogo; sempre havia uma conspiração pronta para ser desencadeada. Mas as lideranças foram percebendo que as políticas estavam sendo implementadas em favor das elites econômicas, políticas e sociais. Como elas poderiam ameaçar aquele que sustentava sua acumulação de riqueza?

 

Assim, foram entendendo que a reforma agrária não era parte do modelo de desenvolvimento do governo esquerdo-liberal. Os formadores de opinião do governo passaram a declarar que a reforma agrária não era mais necessária; que o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) não têm sentido na estrutura do Estado; que esses órgãos anacrônicos são perfeitamente dispensáveis. Reagindo a esses pronunciamentos, os movimentos sociais do campo se mobilizaram e saíram às ruas, pressionaram o Congresso Nacional, o Executivo e garantiram uma sobrevida ao MDA e ao Incra.

 

Porém, os tempos são de cobras que voam. A palavra não-dita afeta o discurso. O governo foi minando a força das organizações do campo. Os projetos de assentamentos foram sendo questionados. Os números foram sumindo dos sites oficiais. As metas não se realizavam. Os percentuais foram se reduzindo. Os recursos minguaram. As verbas para a reforma agrária crescem nas mesmas proporções que aumentam os acampamentos na beira das estradas. Um paradoxo que só pode ser resolvido por meio do compartilhamento na busca das soluções.

 

As lideranças sociais se desdobram em audiências para manter um número mínimo de assentamentos para suas bases. Batem à porta do MDA/Incra, são bem recebidas, mas os processos continuam engavetados. As reuniões se multiplicam como se inimigos travassem uma disputa feroz. Os gestores esperam vencer os movimentos sociais pelo cansaço. A fraternidade foi minada pela desconfiança ou pela falsa confiança.

 

O governo que, de início, financiava as mobilizações das organizações sociais, em um dado momento começou a recuar. As mobilizações auxiliavam o governo esquerdo-liberal a projetar políticas que, sem apoio social, teriam dificuldades de ser implementadas. As elites agrárias sempre se opuseram à realização de uma reforma agrária ampla e massiva. Bastava o governo aventar a possibilidade de executá-la que a memória de Jango ressurgia nas manchetes do dia. Políticas como as da terra não foram realizadas no primeiro mandato e dificilmente serão recuperadas no segundo mandato. Naquele contexto, os financiamentos não eram gastos inúteis, eram um investimento do governo para conseguir um aval para suas boas intenções.

 

No início do segundo mandato, as bases começaram a perceber que a terra foi ficando cada vez mais distante dos seus sonhos. A realidade passou a ser o acampamento. As explicações das lideranças começaram a ser contestadas. As bases avançam na sua compreensão da realidade política no mesmo compasso latino-americano.

 

Com o Projeto de Aceleração do Desenvolvimento (PAC), o governo deixa claro o modelo no qual acredita. Não será a reforma agrária um dos motores do desenvolvimento. Não será a reforma agrária do século XXI que vai liberar as forças produtivas do campo, tal como no século XIX. Aliás, a reforma agrária brasileira inverte esse conceito: concentrar a mão-de-obra produtiva no campo para produzir mais com agregação de valor. É o retorno do campesinato moderno e não a sua fuga para a cidade.

 

Para garantir a execução do seu modelo, o Executivo faz uma opção: prefere perder o apoio dos movimentos sociais do que perder o apoio da base de sustentação parlamentar. O governo precisa desesperadamente desse apoio para aprovar os projetos do PAC. Assim, ele rifa os antigos companheiros e companheiras de jornada no momento em que percebe que seus interesses são distintos.

 

Essa opção sangra as bases dos movimentos; desatina as lideranças; obriga-as a recuperar a memória esquecida das antigas práticas. Os movimentos estão despertando e buscam reconquistar a opinião pública. Perceberam, a tempo, que ficar dependente do governo não ajuda a avançar a luta. Cada qual desempenha uma função específica na vida da sociedade.

 

Por isso, o Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça no Campo (FNRA) vai relançar a campanha pelo limite da propriedade. Essa campanha foi suspensa para atender um pedido do então candidato a presidente da República, Luis Ignácio Lula da Silva, em 2003. Para não provocar constrangimentos eleitorais à elite rural e urbana, o FNRA aceitou. Ao se submeter a esse pedido, rebaixou a política da reforma agrária e apostou na identidade ideológica do candidato. Assim, colocou em risco a confiança das bases. Agora, busca recuperar o campo perdido.

Em tempos de cobras voadoras, os sapos aprendem a fazer gaiola.

 

 

 

O peso político das Comissões no Parlamento do MERCOSUL

O peso político das Comissões no Parlamento do MERCOSUL

Edélcio Vigna, assessor do INESC

As dez Comissões Permanentes criadas pelo Parlamento do MERCOSUL (ParlaSur) têm como função debater de forma especializada os assuntos e preparar as proposições que serão encaminhadas ao plenário para apreciação dos parlamentares. Não me parece necessário repetir a importância dos trabalhos das comissões e que estas são as primeiras portas para o trabalho da sociedade civil.

Como em todo trabalho político a confiança é a base do relacionamento e é necessário que representantes da sociedade civil estejam freqüentemente participando das reuniões legislativas. Como as organizações brasileiras não têm condições financeiras para estar presente uma vez por mês, quando as comissões se reúnem, em Montevidéu/Uruguai, o Inesc está dialogando com o Observatório do MERCOSUL, de Montevidéus, para que exerça o papel de interlocutor.

Avaliamos que se o Inesc estivesse presente, pelo menos, duas vezes por semestre nas reuniões do Parlamento as informações e a incidência política seria muito mais efetiva. Além de poder estruturar com o Observatório critérios para avaliar os temas e as proposições em discussão nas comissões, a postura política dos membros e traçar estratégias comuns.

Enquanto isso não ocorrer, o Instituto pode apenas analisar de forma fria a composição das comissões. As comissões estão compostas de sete a onze membros distribuídos entre os representantes de todos os países. Em todas as comissões há pelo menos um parlamentar do Brasil e de outros países. A escolha para participar desta ou daquela comissão depende, hoje, menos da estratégia da Representação brasileira e mais do interesse do parlamentar. Pode-se inferir, também, que a quantidade de parlamentares indicados para uma comissão está proporcionalmente relacionada a importância desta comissão.

De acordo com Regimento Interno o número de membros das comissões permanentes será estabelecido por ato da Mesa Diretora na primeira sessão, para um mandato de dois anos. A designação dos Parlamentares que integrarão as comissões permanentes ou especiais se fará, tanto quanto possível, refletindo de forma proporcional a presença dos grupos políticos.

A representação brasileira nas comissões

Conforme discorremos, as comissões não têm ou não lhes é dado uma densidade política uniforme. As representações dos diversos países, em geral, escolhem as comissões de acordo com as temáticas que estão em destaque nos seus países. Dessa forma, podem-se inferir os interesses e os temas que estão sendo debatidos com maior intensidade em cada país. Essa correlação não é tão linear, mas indicativa.

Partindo dessa premissa, seguem as comissões permanentes e o número de parlamentares que cada país, em especial o Brasil, indicou.

Na Comissão de Assuntos Jurídicos e Institucionais o Brasil possui um representante (Geraldo Mesquita Jr) e os outros países (Argentina, Paraguai e Uruguai), dois.

Na de Assuntos Econômicos, Financeiros, Comerciais, Fiscais e Monetários, o Uruguai e o Brasil indicaram três representantes (Pedro Simon, Cezar Schirmer e Aloizio Mercadante), o Paraguai e a Argentina indicaram dois parlamentares.

Na comissão de Assuntos Internacionais, Inter-regionais e de Planejamento Estratégico o Paraguai e o Uruguai indicaram três representantes, a Argentina e o Brasil dois (Sergio Zambiasi e Max Rosenmann).

Na Comissão de Educação, Cultura, Ciência, Tecnologia e Desporte, todos os países indicaram dois parlamentares. Os representantes brasileiros são a senadora Marisa Serrano e o senador Cristovam Buarque.

Na comissão de Trabalho, Políticas de Emprego, Seguridade Social e Economia Social, só a há um parlamentar brasileiro, o deputado George Hilton. Os demais países indicaram dois representantes.

Na comissão de Desenvolvimento Regional Sustentável, Ordenamento Territorial, Habitação, Saúde, Meio Ambiente e Turismo – a comissão mais concorrida com onze membros – a Argentina, Uruguai e o Paraguai indicaram três representantes e o Brasil, dois (Germano Bonow e Paulo Tóffano).

Na comissão de Cidadania e Diretos Humanos os países indicaram dois representantes cada e o Brasil, apenas o deputado Geraldo Thadeu.

Na comissão de Assuntos Interiores, Seguridade e Defesa, igualmente, os países indicaram dois representantes cada e o Brasil, apenas o senador Romeu Tuma.

Na comissão de Infra-estrutura, Transportes, Recursos Energéticos, Agricultura, Pecuária e Pesca, a Argentina indicou dois representantes e os demais países três parlamentares. O Brasil indicou o senador Inácio Arruda e os deputados Efraín Morais e Beto Albuquerque.

Na comissão de Orçamento e Assuntos Internos todos os países indicaram dois representantes. Os do Brasil foram os deputados Dr. Rosinha e Claudio Diaz.

Para a formação das comissões permanentes é necessário uma discussão política entre os parlamentares, para que coloquem na mesa de negociação suas preferências e temas onde apresentam maior acúmulo e massa crítica. É necessário sempre fazer uma escolha estratégica e, a representação fez a sua escolha a partir dos interesses conjunturais brasileiros e regionais.  

A partir de um critério comum, a representação brasileira jogou força na Comissão de Assuntos Econômicos, Financeiros, Comerciais, Fiscais e Monetários e na Comissão de Infra-estrutura, Transportes, Recursos Energéticos, Agricultura, Pecuária e Pesca, indicando três parlamentares. Por outro lado, indicou somente um representante para a Comissão de Assuntos Jurídicos e Institucionais, Trabalho, Políticas de Emprego, Seguridade Social e para a Comissão de Economia Social e Cidadania e Diretos Humanos.

De acordo com nossa avaliação a representação brasileira está com seus interesses colados no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e com a Iniciativa para a Integração da Infra-Estrutura Regional Sul Americana (IRSA). Por isso, apostou nas comissões cujas temáticas lhe servem como referências para os debates e interesses internos. Por outro lado, minimizou a temática social. Essa postura assemelha-se a política que o Executivo vem conduzindo no âmbito interno. Priorizando o comercial-econômico e secundarizando o social.

Já foi exaustivamente demonstrado que há uma ambigüidade nos discursos oficiais. Estes falam do social e alocam recursos nos programas econômicos e de infra-estrutura. O que se destaca não é uma contraposição entre social e econômico, mas a prática unilateral do governo que conduz a um aprofundamento da desigualdade. Espera-se que esta prática não se reproduza no âmbito do Parlamento do MERCOSUL. 

Como este é o primeiro mandato do Parlamento do Mercosul é necessário observar como os trabalhos das comissões vão transcorrer para depois fazermos uma análise mais aprimorada. Uma coisa é certa, os parlamentares que ficaram sozinhos nas comissões poderão necessitar um maior apoio por parte da representação brasileira e das organizações da sociedade civil organizada. E, as organizações sociais do campo democrático estão dispostas a cooperar.

 

Edélcio Vigna

Assessor para Políticas de Reforma Agrária e Soberania Alimentar

INESC – Instituto de Estudos Socioeconômicos

+55 (61) 3212-0230

www.inesc.org.br

 

Fórum Social Mundial: Rompendo os limites do possível

O Fórum Social Mundial realiza neste final de semana a sua oitava edição, demonstrando que é possível manter viva e pulsante a energia trazida pelo processo desde a primeira edição do evento em 2001, em Porto Alegre. Ao longo desse período, o processo FSM ganhou densidade política, espalhou-se pelo mundo e revelou a tremenda capacidade inovadora contida no chamado movimento por uma outra globalização. Os eventos anuais, os fóruns regionais, nacionais e temáticos, milhares de ações, lutas e campanhas — algumas locais e nacionais e outras efetivamente globais —, realizadas sob o guarda-chuva do FSM, legitimaram o processo como expressão da diversidade dos movimentos que se contrapõem à globalização neoliberal.

 

Os primeiros três anos em Porto Alegre surpreenderam por sua novidade, pela capacidade de mobilizar milhares de pessoas e pelo impacto político no confronto com a globalização econômico-financeira. Depois ganhou raízes na Índia, em 2004, quando realizou o primeiro evento mundial fora do Brasil, na cidade de Mumbai. A Índia foi um choque cultural de grandes proporções que contribuiu imensamente para expandir o universo de pertencimentos do FSM. A presença massiva dos movimentos de pobres e excluídos, dos discriminados e submetidos, cores e sabores de um país pouco conhecido do resto do mundo, reforçou em muitos a convicção de que o destino do FSM era mesmo se espalhar pelo mundo, aceitar a diversidade das lutas e dos movimentos, sem abdicar dos preceitos expressos na sua Carta de Princípios.

 

Após um retorno a Porto Alegre, em 2005, o FSM parte para a reinvenção de novos léxicos organizativos e se propõe, em 2006, como evento policêntrico, realizando fóruns mundiais em Caracas, na Venezuela, em Bamako, no Mali, e em Karachi, no Paquistão. Em 2007, o evento mundial volta a se concentrar em apenas um país, desta vez no Quênia, na África. Em Nairóbi, o FSM não apenas realiza o que pode ser considerado o maior evento da sociedade civil mundial jamais organizado na África, mas — ainda mais importante do que isso — resgata o continente e as suas lutas para a linha de frente das lutas sociais por um outro mundo.

 

Este ano, mais uma vez, o FSM inovou em seu formato e radicalizou a aposta na descentralização, na capacidade de iniciativa das organizações das sociedades civis nacionais e na mundialização da ação política, sem sacrifício das diversidades locais.  Ao convocar para esta semana uma Jornada de Ação e Mobilização Global e escolher o dia 26 de janeiro com o Dia de Ação Global, o conselho internacional do FSM confirma a sua aposta em uma outra maneira de fazer política em tempos de globalização. Pelo mundo inteiro serão centenas, talvez milhares, de eventos, manifestações, concertos, debates — todos conectados e mobilizados em torno da idéia de que é preciso expressar o descontentamento e explorar as alternativas que brotam da vivência e das lutas sociais.

 

Finalmente, gostaria de ressaltar algumas das características do processo FSM e dos desafios que estão colocados, na minha perspectiva, diante de todas que se identificam com o que Boaventura Santos chama de “movimentos contra-hegemônicos”:

 

        Processo/evento em estado permanente de mudança. Muda-se tudo o tempo inteiro no processo FSM desde o primeiro evento. Com isso, o Fórum se reconhece e quer ser reconhecido como espaço de invenção permanente de novas formas de fazer política e experimentação. Contra o velho mundo da política e da ideologia neoliberal não se trata de erguer outro dogma, mas sim reconhecer a diversidade e disputar os conceitos de justiça social, direitos e democracia;

 

        Aposta deliberada na mundialização das lutas por outra globalização. As lutas sociais modernas são potencialmente mundiais, mesmo quando localizadas, o que renova o conceito de solidariedade internacional a partir de processos de conhecimento e auto-reconhecimento, entre atores sociais distintos, que criam novas identidades políticas, plurais e multiculturais;

 

        Catalisador da revolta e do protesto. O processo fórum demonstrou ser capaz de catalisar um sentimento de revolta e protesto que se expressa desde a década de 1980 nas diferentes lutas contra as políticas neoliberais e a militarização. O exemplo mais impressionante disso foi a mobilização mundial contra a guerra do Iraque no dia 15 de fevereiro de 2003, quando cerca de 11 milhões de pessoas se mobilizaram em cerca de 800 cidades do mundo. Na ocasião, o New York Times descreveu a sociedade civil global como sendo o “a segunda superpotência” no mundo;

 

        Ampliou o campo do possível e fortaleceu o sentido utópico da ação política. O FSM faz parte de um processo — expresso nas manifestações de Seattle e em muitas outras manifestações da revolta global — de ruptura com o mantra da falta de alternativas, do modelo único, do fim da história e todas as teorias paralisantes e conformistas difundidas pelas mídias dominantes. Ao dar visibilidade às lutas e propostas nascidas de mobilizações e lutas de resistência em diferentes partes do mundo, o processo FSM amplia o campo do possível e resgata e alimenta as utopias;

 

        Incorporou à esfera pública global setores e movimentos antes excluídos ou marginalizados, ampliando e diversificando os circuitos de conversação política da chamada “sociedade civil global”. A diversidade afirmada como princípio é também encontrada entre os atores que participam do FSM. A mundialização permitiu a conexão entre lutas sociais que tinham o seu campo de expressão reduzido aos territórios ou temáticas específicas;

 

        “Woodstock de esquerda”. O FMS é sim uma festa, um lugar de celebração e trocas multiculturais, surpresas e descobertas de novas formas de expressão políticas, artísticas, religiosas, comportamentais, entre outras. O FSM é antes de tudo provocação simbólica, espanto com o novo, reconhecimento (auto-reconhecimento) do velho, revolução cultural no sentido pleno;

 

        Protagonismo do Sul. O FSM trouxe para o centro do debate político global uma perspectiva de luta social nascida nos países localizados no Sul político do mundo, nos países submetidos à hegemonia do Norte, dos países ricos. O fato de uma iniciativa deste porte nascer no Brasil — e a partir de Porto Alegre chegar a Mumbai, Karachi, Bamako, Caracas, Nairóbi, apenas para citar os lugares que receberam os eventos mundiais — é por si só um acontecimento político de grandes proporções. Mas o FSM também mobilizou o chamado “Sul” que vive no Norte — as lutas sociais dos excluídos da Europa e dos Estados Unidos —, elevando o patamar das relações políticas do tipo Norte-Sul. Os eventos do FSM na Europa e, mais recentemente, nos Estados Unidos, revelam o potencial do “processo FSM” para renovar a vida política nos países ricos.

 

Enquanto isso, em meio à neve, os participantes do Fórum de Davos mal conseguem domar os próprios demônios e prometem passar os próximos dias falando da crise financeira que, mais uma vez, “assusta o mercado”, esse animal sem rosto ou coração que se presta aos mais puros jogos do poder hegemônico.

 

Por tudo isso, eu acredito que o FSM já cumpriu a sua missão inicial. Reduziu o Fórum Econômico de Davos a sua pequenez simbólica, expressão de um auto-contentamento neoliberal incapaz de escapar do círculo de giz conceitual, que um dia almejou o fim da história e a vitória absoluta do mercado.

 

Agora é preciso continuar a acreditar que a mudança e as revoluções precisam ser inventadas a cada dia através das lutas sociais e do conflito. O mundo não se encontra dividido entre anjos e demônios. Deuses e diabos, sejam lá os nomes que tenham, convivem faceiros entre nós, às vezes até esquecidos deles mesmos. Apenas a participação plena de todas as pessoas, com suas contradições, erros e acertos, cores música, inquietações e sonhos, será capaz de destilar as escolhas que vão delinear o mundo em que os nossos filhos e netos viverão. Um mundo que, espero, seja colorido e diverso como Porto Alegre, Mumbai e Nairóbi. Um mundo que o processo do FSM tem sido capaz de mostrar que é possível.

 

 

24/01/2008

O PAC da Mineração nas Terras Indígenas

O Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) da mineração em terras indígenas segue a passos largos. Atualmente circula (in off) no Congresso Nacional uma nova versão do anteprojeto que pretende regulamentar o parágrafo primeiro do artigo 176 e o parágrafo terceiro do artigo 231 da Constituição Federal. A dúvida do governo federal é se ele será apresentado como um novo projeto de lei (PL) ou como um substitutivo ao projeto de lei nº 1.610/96 do senador Romero Jucá (PMDB/RR).

Ao contrário da versão anterior, comentada em Nota Técnica lançada pelo Inesc em outubro de 2006 (https://inesc.org.br/publicacoes/notas-tecnicas/NT%20112%20-%20MA.pdf), nessa foi eliminada a referência nominal aos ministérios e órgão, sendo substituída por “órgão federal competente”. Um problema que pode ser apontado sobre está “técnica de persuasão” – a de não mencionar órgãos com o “filme queimado” no meio indígena e indigenista, como é o caso da Fundação Nacional do Índio (Funai) – é que em alguns artigos e parágrafos fica pouco claro a qual órgão o texto remete.

Outro ponto que chama a atenção na versão atual é a eliminação da Funai como gestor do denominado Fundo de Compartilhamento de Receitas sobre a mineração em Terras Indígenas. Ficamos sem saber quem ficará responsável pela gestão do Fundo. Será o “órgão federal competente”? Sob que condições? Como fica o direito a autodeterminação dos povos indígenas sobre seus territórios, os recursos naturais existentes e os benefícios derivados do seu uso econômico?

O Inesc entende que a questão da mineração, assim como o tema do aproveitamento dos recursos hídricos, deve ser tratada no marco das discussões e encaminhamentos relacionados com a regulamentação da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Daí a importância da refundação da Frente Parlamentar de Defesa dos Direitos Indígenas (FPDDI) e a instalação imediata da comissão parlamentar com a incumbência de tratar, de forma organizada e participativa, dos processos legislativos que tramitam na Casa, em particular o Estatuto dos Povos Indígenas.

Ricardo Verdum
Assessor de Políticas Indígena e Socioambiental
Instituto de Estudos Socioeconômicos – Inesc

Uma questão de ética e justiça social

 

19/12/2006

Por Eliana Graça, assessora política do Inesc

O Supremo Tribunal Federal acaba de criar as condições para a derrubada do o aumento de 90,7% que os parlamentares generosamente concederam aos seus próprios vencimentos. A decisão do STF se deve ao fato de que o processo utilizado pelas mesas diretoras das duas Casas  é contrário ao que prevê a Constituição Federal. A decisão não é pelo mérito do aumento em si. Tanto é que se os parlamentares tiverem coragem de votar no Plenário do Congresso Nacional o mesmo aumento, o Supremo não poderá cancelá-lo, pois estarão cumprindo o ritual previsto.

O STF não julga a ética nem a moral, ele julga se fere ou não os preceitos constitucionais. Como a Constituição prevê que a cada quatro anos, ao final de cada legislatura, os parlamentares revejam seus vencimentos e estabeleçam o aumento a que terão direito os membros do novo Congresso que assumirá em fevereiro, nada de errado no mérito. No caso atual, o que foi errado foi o processo, o fato de o aumento ter sido concedido por uma resolução conjunta  das mesas das duas Casas, baseada em um decreto legislativo, que no entender do Supremo teve sua validade cancelada com a edição da emenda constitucional  41, de 2003.

Quem julga a ética e a moral somos nós, a sociedade brasileira, que tem o direito de se indignar frente a tamanho absurdo. Enquanto se discute, na tramitação do Orçamento da União para 2007, a firula de 8 reais de aumento no salário mínimo, os mesmos parlamentares se concedem um aumento de mais de 12 mil reais. É isso que escandaliza. É isso que nos deixa indignados.

Aliás, ultimamente temos tido vários e muitos motivos para isso. Para ficar só nos exemplos mais recentes, há duas semanas ouvimos a presidente da suprema corte justificar o aumento de seus vencimentos em 6 mil reais como forma de não trabalhar de graça para o Estado. Como pode uma Juíza que já recebe mais de 24 mil reais por mês dizer que precisa de remuneração a mais para participar de duas reuniões mensais do Conselho Nacional de Justiça?

O que se percebe é que os parâmetros da ética, da moral e da solidariedade foram para o espaço. O que esperar dessas autoridades máximas da Nação quando o interesse particular de cada vez mais engordar seus próprios bolsos se sobrepõe ao interesse público. Como pensar em combater as desigualdades sociais que assolam historicamente a nossa sociedade se o Estado continua sendo usado para atender os interesses particulares de alguns?

 
Ainda bem que nós da sociedade civil estamos aprendendo a não aceitar esses absurdos calados. As manifestações contra esse estado de coisas são muitas. E é nelas que temos que confiar para que a decisão do Supremo não seja só um round perdido. Mas, que os parlamentares tenham vergonha de votar em Plenário tal aumento. Somente a nossa pressão poderá segurar a falta de ética, moral e solidariedade que assola os detentores de poder no nosso País.

Velhas e nocivas práticas

 

A luta de setores progressistas da sociedade civil para regular a radiodifusão brasileira e construir, de forma democrática e participativa, uma Lei Geral de Comunicação Eletrônica de Massa, ganhou mais motivos para inspirar uma forte mobilização coletiva.

 O novo Congresso Nacional, eleito em 2006, repete as velhas e nocivas práticas no que se refere ao setor de comunicação. Nada menos que 20% dos deputados da Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI), encarregada de rever as regras de outorga e renovação de concessões, estão ligados a veículos de comunicação, segundo informa o site Congresso em Foco.

 Esse cenário é histórico, embora represente um flagrante desrespeito à Constituição Federal, que, no seu artigo 54, proíbe parlamentares de manterem ligação com empresas concessionárias de serviço público, sob pena de perda do mandato.

 Não apenas na CCTCI, mas em todo o Congresso, há parlamentares vinculados a empresas de radiodifusão. Estima-se que esse número possa chegar a 100 parlamentares. Na última legislatura, o Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo (Projor) entrou com representação no Ministério Público Federal cobrando medidas judiciais: à época, em 2005, apurou-se que pelo menos 51 dos 513 deputados eram concessionários diretos de rádio e TV.

 Diante dessa situação, fica a pergunta: como construir uma Lei Geral de Comunicação efetivamente democrática, capaz de assegurar direitos a todos e todas, se o projeto de lei será discutido num ambiente onde parlamentares das duas Casas – Câmara e Senado – têm interesse direto no assunto?

 A subcomissão da CCTCI destinada a rever regras de outorga e renovação de concessões é presidida pela deputada Luiza Erundina (PSB-SP), que promete empreender uma investigação e não descarta a criação de CPI para apurar possíveis irregularidades. Para a sociedade civil, é uma oportunidade de fortalecer as iniciativas que visem à transparência dos processos relacionados à radiodifusão. Esse é o primeiro passo para assegurar o respeito à lei e a construção de uma comunicação verdadeiramente democrática.

 

* Assessora de Comunicação do Inesc

 

 

 

 

O Estatuto é um só, as infâncias são muitas

A infância é quando ainda não é demasiado tarde. É quando estamos disponíveis para nos surpreendermos, para nos deixarmos encantar.

Mia Couto

Tratar de infância significa falar de um colorido sem fim que cobre o mundo. Não se trata de um único modo de ser, mas de infinitos, tanto quanto crianças há sobre a terra. A diversidade é o que caracteriza a natureza humana.

Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA):

Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.

A infância poética e querida, tal como a conhecemos no mundo moderno, além de ter sido fruto de uma longa construção histórica e antropológica, não é – e nunca foi – igual para todas as crianças. Nem todas que habitam um mesmo território, ou fazem parte da mesma família desfrutam de modo igual de suas condições de existência.

As desigualdades e a pobreza impulsionam crianças a um amadurecimento precoce, forjam um lapso da vida subtraindo delas o direito humano de brincar. O trabalho precoce agride seus corpos e tortura suas mentes. A atividade laboral as impede de se desenvolver na interação permanente com outras crianças. O trabalho de crianças representa o esmagamento do direito de serem protegidas.

Desigualdade na infância

Há infâncias cujos povos não são reconhecidos. Esta forma de opressão intenciona provocar o silenciamento ou até o desaparecimento de coletividades. Sem voz não há plenitude. Crianças expulsas de suas terras e, privadas de seus territórios, perdem contato com as suas referências e ancestralidades. Corta-se o fio que as conecta a outras gerações.

Há crianças amadas e outras não queridas, determinando ora preferências, ora descasos e negligências na própria família ou na escola. Outras são treinadas para o sucesso e se privam de experiências lúdicas com uma sobrecarga de compromissos.Crianças de cores diferentes experimentam a vida de formas diferentes. Privilégios e intolerâncias determinam suas vivências.

Nos discursos institucionais, a infância costuma ser tratada como um ‘vir a ser’ de um futuro distante como se a sua condição presente estivesse presa ao fardo de se responsabilizar pela construção de um ‘depois feliz’ para o país e, quiçá, para o mundo. O papel da criança, neste caso, estaria vinculado unicamente à sua futura participação na vida adulta. Portanto, falar de infâncias também exige um olhar sobre seus territórios e suas comunidades. Não há infância sem suas complexas relações familiares, comunitárias e ambientais.

Outra concepção usual de infância a considera propriedade dos adultos (herança do Código de Menores, lei que antecede o ECA), perspectiva que permite uma infinidade de violências e de abusos.

Fundamentado na doutrina da Situação Irregular o Código de Menores permitia às autoridades recolherem crianças que estivessem desprotegidas nas ruas como se elas mesmas fossem responsáveis pelo próprio abandono. Nesta concepção o espaço público é hierarquizado e as crianças indesejáveis (negras e pobres) eram tidas como ‘sujeira’. Ao poder público cabia ‘higienizar’ as ruas livrando-as dos sujeitos considerados incômodos.

ECA: paradigma da proteção integral

O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90) nasce pelos movimentos populares para inaugurar uma nova lógica. Pela primeira vez, se reconhece no Brasil a criança e o adolescente como sujeitos de direitos. O ECA nomeia a família, a sociedade e o poder público como responsáveis pela proteção e pelo desenvolvimento de todas e de cada criança e de cada adolescente. Entre a universalidade e a particularidade, o ECA acolhe a todas no princípio da prioridade absoluta.

Em vez de se recolher crianças, o ECA obriga um conjunto de instituições a promover direitos. O paradigma da Proteção Integral constitui um abraço simbólico em cada criança por todas as políticas públicas e por toda a sociedade de tal maneira que, se a família estiver fragilizada e não der conta de seu papel, outro setor estará presente enquanto o núcleo familiar também é amparado.

Em tempos de retrocessos e exacerbação das intolerâncias e violências, crianças e adolescentes são alvos fáceis. O PSL, partido do presidente Bolsonaro, move uma ação contra os dispositivos do ECA que impedem a detenção de crianças e adolescentes para averiguação por motivo de perambulação nas ruas. O objetivo é ressuscitar a lógica seletiva, elitista e perversa que fundamentava o antigo Código de Menores. Recolher seria a palavra de ordem, restrição da liberdade, nada mais.

A liberação de armas de fogo, por exemplo, representa um perigo objetivo: o de morrer ou ver morrer um familiar. As armas têm uma mira precisa. Apontam para as cabeças de moradores das favelas, população negra. Não há bala perdida, há bala que faz vítimas. A bala encontra corpos. Corpos negros com endereço certo. Estudo do Unicef (2017) revela dados sobre a raça/cor das vítimas de homicídio no Brasil: 75% dos mortos são negros ou multirraciais, 18% brancos, 7% das vítimas não possuem raça/cor declarada.

O desafio posto é fazer com que o Estatuto da Criança e do Adolescente se concretize nas diversas comunidades e contextos, assegurando o mesmo acesso a direitos, ainda que as condições sejam múltiplas. O importante é que o ECA garanta a dignidade e o pleno desenvolvimento, respeitadas as diferenças étnicas, culturais e pessoais, entre outras. Só com a convergência de todas as políticas públicas, com maior atenção aos que mais necessitam, é possível assegurar o pleno desenvolvimento e o direito de ser feliz de um conjunto tão diverso de crianças que compõe o que chamamos de infância.

O Estatuto é um só, as infâncias são muitas

A infância é quando ainda não é demasiado tarde. É quando estamos disponíveis para nos surpreendermos, para nos deixarmos encantar.

Mia Couto

Tratar de infância significa falar de um colorido sem fim que cobre o mundo. Não se trata de um único modo de ser, mas de infinitos, tanto quanto crianças há sobre a terra. A diversidade é o que caracteriza a natureza humana.

Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA):

Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.

A infância poética e querida, tal como a conhecemos no mundo moderno, além de ter sido fruto de uma longa construção histórica e antropológica, não é – e nunca foi – igual para todas as crianças. Nem todas que habitam um mesmo território, ou fazem parte da mesma família desfrutam de modo igual de suas condições de existência.

As desigualdades e a pobreza impulsionam crianças a um amadurecimento precoce, forjam um lapso da vida subtraindo delas o direito humano de brincar. O trabalho precoce agride seus corpos e tortura suas mentes. A atividade laboral as impede de se desenvolver na interação permanente com outras crianças. O trabalho de crianças representa o esmagamento do direito de serem protegidas.

Desigualdade na infância

Há infâncias cujos povos não são reconhecidos. Esta forma de opressão intenciona provocar o silenciamento ou até o desaparecimento de coletividades. Sem voz não há plenitude. Crianças expulsas de suas terras e, privadas de seus territórios, perdem contato com as suas referências e ancestralidades. Corta-se o fio que as conecta a outras gerações.

Há crianças amadas e outras não queridas, determinando ora preferências, ora descasos e negligências na própria família ou na escola. Outras são treinadas para o sucesso e se privam de experiências lúdicas com uma sobrecarga de compromissos.Crianças de cores diferentes experimentam a vida de formas diferentes. Privilégios e intolerâncias determinam suas vivências.

Nos discursos institucionais, a infância costuma ser tratada como um ‘vir a ser’ de um futuro distante como se a sua condição presente estivesse presa ao fardo de se responsabilizar pela construção de um ‘depois feliz’ para o país e, quiçá, para o mundo. O papel da criança, neste caso, estaria vinculado unicamente à sua futura participação na vida adulta. Portanto, falar de infâncias também exige um olhar sobre seus territórios e suas comunidades. Não há infância sem suas complexas relações familiares, comunitárias e ambientais.

Outra concepção usual de infância a considera propriedade dos adultos (herança do Código de Menores, lei que antecede o ECA), perspectiva que permite uma infinidade de violências e de abusos.

Fundamentado na doutrina da Situação Irregular o Código de Menores permitia às autoridades recolherem crianças que estivessem desprotegidas nas ruas como se elas mesmas fossem responsáveis pelo próprio abandono. Nesta concepção o espaço público é hierarquizado e as crianças indesejáveis (negras e pobres) eram tidas como ‘sujeira’. Ao poder público cabia ‘higienizar’ as ruas livrando-as dos sujeitos considerados incômodos.

ECA: paradigma da proteção integral

O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90) nasce pelos movimentos populares para inaugurar uma nova lógica. Pela primeira vez, se reconhece no Brasil a criança e o adolescente como sujeitos de direitos. O ECA nomeia a família, a sociedade e o poder público como responsáveis pela proteção e pelo desenvolvimento de todas e de cada criança e de cada adolescente. Entre a universalidade e a particularidade, o ECA acolhe a todas no princípio da prioridade absoluta.

Em vez de se recolher crianças, o ECA obriga um conjunto de instituições a promover direitos. O paradigma da Proteção Integral constitui um abraço simbólico em cada criança por todas as políticas públicas e por toda a sociedade de tal maneira que, se a família estiver fragilizada e não der conta de seu papel, outro setor estará presente enquanto o núcleo familiar também é amparado.

Em tempos de retrocessos e exacerbação das intolerâncias e violências, crianças e adolescentes são alvos fáceis. O PSL, partido do presidente Bolsonaro, move uma ação contra os dispositivos do ECA que impedem a detenção de crianças e adolescentes para averiguação por motivo de perambulação nas ruas. O objetivo é ressuscitar a lógica seletiva, elitista e perversa que fundamentava o antigo Código de Menores. Recolher seria a palavra de ordem, restrição da liberdade, nada mais.

A liberação de armas de fogo, por exemplo, representa um perigo objetivo: o de morrer ou ver morrer um familiar. As armas têm uma mira precisa. Apontam para as cabeças de moradores das favelas, população negra. Não há bala perdida, há bala que faz vítimas. A bala encontra corpos. Corpos negros com endereço certo. Estudo do Unicef (2017) revela dados sobre a raça/cor das vítimas de homicídio no Brasil: 75% dos mortos são negros ou multirraciais, 18% brancos, 7% das vítimas não possuem raça/cor declarada.

O desafio posto é fazer com que o Estatuto da Criança e do Adolescente se concretize nas diversas comunidades e contextos, assegurando o mesmo acesso a direitos, ainda que as condições sejam múltiplas. O importante é que o ECA garanta a dignidade e o pleno desenvolvimento, respeitadas as diferenças étnicas, culturais e pessoais, entre outras. Só com a convergência de todas as políticas públicas, com maior atenção aos que mais necessitam, é possível assegurar o pleno desenvolvimento e o direito de ser feliz de um conjunto tão diverso de crianças que compõe o que chamamos de infância.

Eu conheci a Marielle

Muito se tem falado sobre o adoecimento de defensores de direitos humanos nos tempos mais recentes. De fato, nossa mente, nosso corpo e nossa alma suportam realidades que nem sempre damos conta, nós que estamos em luta permanente contra a violência e pelo direito a uma existência humana plena.

Ontem minha mente/corpo/alma me pregaram uma peça. Eu acordei sem memória. Fui para o trabalho de manhã, para uma roda de conversa sobre racismo religioso, mas não lembrava de estar vivendo o dia 14 de março, um ano da execução da vereadora, socióloga e ativista Marielle Franco. Cheguei ao evento e um colega me perguntou se queria iniciar a atividade com palavras sobre ela, e eu respondi que não. Me dei conta naquele momento que havia um vazio em mim, e que eu não tinha me preparado para viver este dia. Mãe Bahiana e outras ativistas do movimento de mulheres negras fizeram as falas, um pai de santo cantou pra Oxalá. Ali começou a cair a ficha.

A notícia: soco e falta de ar

Há um ano, eu estava no Fórum Social Mundial em Salvador (BA), com companheiras de organizações de diversas partes do Brasil responsáveis pelo projeto Mulheres Jovens Negras na Luta contra o Racismo e o Sexismo[i], conhecido como Hub das Pretas, além de colegas da organização em que trabalho, o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).

Viajamos cheias de esperança para participar do Fórum, renovar as energias para o ano de agendas políticas pesadas, e viabilizar a participação de jovens negras em um espaço histórico de propostas para “um outro mundo possível”. No dia 14 de março, após uma jornada de intenso trabalho, paramos para comer um acarajé em Rio Vermelho, fechar o dia com dendê, que alegria. Caminhando de volta para o hotel, nos encontramos com outros companheiros de luta, e um deles me chamou de lado: “Mataram a Marielle.” Dali pra frente, nem sei por onde fomos e o que fizemos, só sei que eu estava com amigas do Rio de Janeiro e a prioridade era cuidá-las e viabilizar a volta delas pra casa.

A dor e a empatia

O dia seguinte foi dia de marcha, pelo menos para as pessoas negras que se encontravam no Fórum. E para mim. Não sei nem como descrever aquele momento de luto, revolta, tristeza, estar ali caminhando e pensando que enterrar os seus, que morreram de forma violenta e prematura, é o cotidiano de todas as periferias e favelas do Brasil, de tantas famílias destruídas pela guerra ao tráfico, que na verdade é uma guerra contra o povo negro desse país.

A partir de então, uma música passou a tocar na minha mente e ficou por meses tocando e tocando: Zé do Caroço, na voz de Leci Brandão. O recado estava dado: vocês podem trabalhar, construir lideranças, podem até vencer no voto, mas nós vamos matar vocês. A esperança que eu sempre senti ouvindo sobre o nascimento do novo líder na favela estava abafada. O luto permanente, estratégia de desmobilização dos pobres neste duro Brasil, estava amplificado. Mulher, negra, mãe, favelada, bissexual: o corpo que expressava tanto e de tantas formas, tombava diante de nós, estarrecidas, perdidas.

A semente

Meses depois, tive a oportunidade de ouvir Leci Brandão ao vivo, ao lado de Luedji Luna, na comemoração dos 30 anos do Geledés – Instituto da Mulher Negra, em São Paulo. Ali o Zé do Caroço ganhou outro sentido: elas dançavam e cantavam, grandes nomes como Sueli Carneiro, Jurema Wernek, Nilza Iraci, e tantas outras. Era a memória viva que dançava e cantava celebrando décadas de resistência. É sobre força, estratégia, coletividade e beleza na luta.

Este texto nasce do processo de viver este dia 14 de março de 2019, um dos dias mais longos da minha vida, em que pouco ou nada controlei de mim. Dia de falar de racismo no trabalho, de ir ao ato na Praça Zumbi dos Palmares, onde se multiplicaram as placas azuis inscritas com Marielle Franco. Dia de estar com amigas, de enviar mensagens àquelas que estão longe, que estiveram comigo um ano atrás (e de ter dor de cabeça). Dia de conectar-me a estas mulheres que seguiram buscando respirar e lembrar que há 519 anos se luta nesse território por liberdade, justiça e diversidade. Amigas que estão no Rio, Recife, São Paulo, aqui no DF, e outra lá na Finlândia. Mulheres negras, ativistas, de diferentes idades e histórias, que ensinam, acolhem, produzem conhecimento.

Quando vi o belíssimo vídeo de homenagem da Mídia Ninja, eu só queria gritar: eu conheci a Marielle! Não, nós não fomos amigas. Mas eu conheci o seu trabalho, eu acompanhei sua trajetória e torci por ela, e em uma noite de roda de conversa sobre mobilidade urbana no Teatro Dulcina, promovida pelo Movimento Nossa Brasília, nós conversamos. O sorriso, a energia, a inteligência, um momento fugaz, que me faz sentir “abençonhada”, palavra inventada por Mia Couto que junta sonho e benção, o que está dentro e a magia que vem de fora, do coletivo. Marielle é semente, ensinam sua companheira e aqueles que estiveram ao seu lado. Ela transcendeu a pessoa. Se multiplicou. Eu a conheço porque há muitas como ela, de geração em geração. Porque é um presente da vida contar com esta referência, e neste sentido, presente é presença.

Eles latem, nós carnavalizamos

Foto: Rodrigo Gorosito/G1

O carnaval provou que política de rua incomoda, e a Mangueira causou alvoroço com seu samba enredo de 2019: lembrou Leci, Jamelão, Dandara e Zumbi. Tornou verde e rosa a multidão quando interpelou: “Brasil, chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês”. Lavou a alma de tantas nós, que saímos para os blocos para escrachar a política, os laranjas, as milícias e o fundamentalismo religioso. Carnaval é festa política desde sempre, ora pois. E foi ali, na avenida, que Marielle Franco se juntou às pessoas que viveram para a transformação social, e que nunca serão esquecidas, ainda que os livros de história tentem apagar.

Eles dizem que não conheciam Marielle. Que ela teria ficado conhecida após sua morte. Eles mentem. Ao (literalmente) latir no Parlamento, os donos do poder comprovaram que são títeres do espetáculo das eleições do golpe, do caixa dois e notícias falsas, do racismo, homofobia. O nosso palco é outro. Da alegria, da afetividade. E com nossa força seguiremos interpelando: Quem mandou matar Marielle Franco?

*Dedico este texto a Lucia Xavier, Silvana Bahia, Rachel Barros e Marina Ribeiro, que me ajudaram respirar em momentos de muita dor.

[i] Oxfam Brasil, Fase Recife, Fase Rio, Ibase, Criola, Instituto Pólis.

Eu conheci a Marielle

Muito se tem falado sobre o adoecimento de defensores de direitos humanos nos tempos mais recentes. De fato, nossa mente, nosso corpo e nossa alma suportam realidades que nem sempre damos conta, nós que estamos em luta permanente contra a violência e pelo direito a uma existência humana plena.

Ontem minha mente/corpo/alma me pregaram uma peça. Eu acordei sem memória. Fui para o trabalho de manhã, para uma roda de conversa sobre racismo religioso, mas não lembrava de estar vivendo o dia 14 de março, um ano da execução da vereadora, socióloga e ativista Marielle Franco. Cheguei ao evento e um colega me perguntou se queria iniciar a atividade com palavras sobre ela, e eu respondi que não. Me dei conta naquele momento que havia um vazio em mim, e que eu não tinha me preparado para viver este dia. Mãe Bahiana e outras ativistas do movimento de mulheres negras fizeram as falas, um pai de santo cantou pra Oxalá. Ali começou a cair a ficha.

A notícia: soco e falta de ar

Há um ano, eu estava no Fórum Social Mundial em Salvador (BA), com companheiras de organizações de diversas partes do Brasil responsáveis pelo projeto Mulheres Jovens Negras na Luta contra o Racismo e o Sexismo[i], conhecido como Hub das Pretas, além de colegas da organização em que trabalho, o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).

Viajamos cheias de esperança para participar do Fórum, renovar as energias para o ano de agendas políticas pesadas, e viabilizar a participação de jovens negras em um espaço histórico de propostas para “um outro mundo possível”. No dia 14 de março, após uma jornada de intenso trabalho, paramos para comer um acarajé em Rio Vermelho, fechar o dia com dendê, que alegria. Caminhando de volta para o hotel, nos encontramos com outros companheiros de luta, e um deles me chamou de lado: “Mataram a Marielle.” Dali pra frente, nem sei por onde fomos e o que fizemos, só sei que eu estava com amigas do Rio de Janeiro e a prioridade era cuidá-las e viabilizar a volta delas pra casa.

A dor e a empatia

O dia seguinte foi dia de marcha, pelo menos para as pessoas negras que se encontravam no Fórum. E para mim. Não sei nem como descrever aquele momento de luto, revolta, tristeza, estar ali caminhando e pensando que enterrar os seus, que morreram de forma violenta e prematura, é o cotidiano de todas as periferias e favelas do Brasil, de tantas famílias destruídas pela guerra ao tráfico, que na verdade é uma guerra contra o povo negro desse país.

A partir de então, uma música passou a tocar na minha mente e ficou por meses tocando e tocando: Zé do Caroço, na voz de Leci Brandão. O recado estava dado: vocês podem trabalhar, construir lideranças, podem até vencer no voto, mas nós vamos matar vocês. A esperança que eu sempre senti ouvindo sobre o nascimento do novo líder na favela estava abafada. O luto permanente, estratégia de desmobilização dos pobres neste duro Brasil, estava amplificado. Mulher, negra, mãe, favelada, bissexual: o corpo que expressava tanto e de tantas formas, tombava diante de nós, estarrecidas, perdidas.

A semente

Meses depois, tive a oportunidade de ouvir Leci Brandão ao vivo, ao lado de Luedji Luna, na comemoração dos 30 anos do Geledés – Instituto da Mulher Negra, em São Paulo. Ali o Zé do Caroço ganhou outro sentido: elas dançavam e cantavam, grandes nomes como Sueli Carneiro, Jurema Wernek, Nilza Iraci, e tantas outras. Era a memória viva que dançava e cantava celebrando décadas de resistência. É sobre força, estratégia, coletividade e beleza na luta.

Este texto nasce do processo de viver este dia 14 de março de 2019, um dos dias mais longos da minha vida, em que pouco ou nada controlei de mim. Dia de falar de racismo no trabalho, de ir ao ato na Praça Zumbi dos Palmares, onde se multiplicaram as placas azuis inscritas com Marielle Franco. Dia de estar com amigas, de enviar mensagens àquelas que estão longe, que estiveram comigo um ano atrás (e de ter dor de cabeça). Dia de conectar-me a estas mulheres que seguiram buscando respirar e lembrar que há 519 anos se luta nesse território por liberdade, justiça e diversidade. Amigas que estão no Rio, Recife, São Paulo, aqui no DF, e outra lá na Finlândia. Mulheres negras, ativistas, de diferentes idades e histórias, que ensinam, acolhem, produzem conhecimento.

Quando vi o belíssimo vídeo de homenagem da Mídia Ninja, eu só queria gritar: eu conheci a Marielle! Não, nós não fomos amigas. Mas eu conheci o seu trabalho, eu acompanhei sua trajetória e torci por ela, e em uma noite de roda de conversa sobre mobilidade urbana no Teatro Dulcina, promovida pelo Movimento Nossa Brasília, nós conversamos. O sorriso, a energia, a inteligência, um momento fugaz, que me faz sentir “abençonhada”, palavra inventada por Mia Couto que junta sonho e benção, o que está dentro e a magia que vem de fora, do coletivo. Marielle é semente, ensinam sua companheira e aqueles que estiveram ao seu lado. Ela transcendeu a pessoa. Se multiplicou. Eu a conheço porque há muitas como ela, de geração em geração. Porque é um presente da vida contar com esta referência, e neste sentido, presente é presença.

Eles latem, nós carnavalizamos

Foto: Rodrigo Gorosito/G1

O carnaval provou que política de rua incomoda, e a Mangueira causou alvoroço com seu samba enredo de 2019: lembrou Leci, Jamelão, Dandara e Zumbi. Tornou verde e rosa a multidão quando interpelou: “Brasil, chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês”. Lavou a alma de tantas nós, que saímos para os blocos para escrachar a política, os laranjas, as milícias e o fundamentalismo religioso. Carnaval é festa política desde sempre, ora pois. E foi ali, na avenida, que Marielle Franco se juntou às pessoas que viveram para a transformação social, e que nunca serão esquecidas, ainda que os livros de história tentem apagar.

Eles dizem que não conheciam Marielle. Que ela teria ficado conhecida após sua morte. Eles mentem. Ao (literalmente) latir no Parlamento, os donos do poder comprovaram que são títeres do espetáculo das eleições do golpe, do caixa dois e notícias falsas, do racismo, homofobia. O nosso palco é outro. Da alegria, da afetividade. E com nossa força seguiremos interpelando: Quem mandou matar Marielle Franco?

*Dedico este texto a Lucia Xavier, Silvana Bahia, Rachel Barros e Marina Ribeiro, que me ajudaram respirar em momentos de muita dor.

[i] Oxfam Brasil, Fase Recife, Fase Rio, Ibase, Criola, Instituto Pólis.

Mulheres que lutam para serem reconhecidas como humanas

O Dia Internacional da Mulher, celebrado no dia 8 de março, é sem dúvida uma data importante, uma conquista de todas as mulheres de hoje, de ontem e de amanhã.

Contudo, no Brasil, mulheres negras e periféricas, as mesmas que carregam o país nos ombros e o parem todos os dias, vivenciam a luta do 8 de março no exercício diário do combate ao racismo institucional e ao patriarcado, que exterminam seus afetos, fetos e minam seus espaços vivos, relações e felicidade.

Essas mulheres têm sua humanidade cotidianamente questionada por essa estrutura racista, violadas em seus direitos desde a primeira que aqui aportou. Oriundas de navios negreiros, marcadas pelos seus senhores e senhoras, proibidas de cantarem seus cantos, usarem seus mantos, proferirem seus encantos e fazerem suas políticas. A elas a assinatura da princesa Isabel validou a total exclusão de direitos e a negação de sua humanidade.

Estamos em 2019 e as políticas seguem negando condições de vida a essas mesmas mulheres. Suas mortes são legitimadas, a começar por atos “simples”, como o padrão de beleza imposto que determina o perfil para cargos; os ceps periféricos sempre suspeitos, a domesticação de seus corpos, a ideia de que meninas vestem rosa.

Meninas vestem rosa?

Como vestir rosa, se estão sempre em luto? Meninas falam baixo. Como falar baixo, quando seus gritos foram e são silenciados? Meninas são delicadas. A delicadeza dessas mulheres se manifesta no acordar às 4h da manhã para estarem às 7h na casa das patroas e patrões. Se manifesta também na decisão de se manterem vivas, a despeito dos planos e estratégias de morte para aquelas (poucas ainda) que, munidas de coragem e força, traduzem e inserem suas vozes no ambiente político, macho, branco e heteronormativo.

Delicado, para elas, é apresentar seus traços, receber abraços que fortaleçam seus braços no erguer de suas bandeiras. Pois mesmo as iniciativas de combater as desigualdades sociais bem aproveitadas/ocupadas por elas, demonstram que a exclusão social é estrategicamente nutrida pelo racismo patriarcal.

Mulheres negras pagam mais impostos

Os números usados para descrevê-las demonstram a total falta de reconhecimento humano. São as que mais trabalham, menos recebem e mais contribuem para a máquina do Estado com os impostos proporcionalmente. O mesmo Estado que lhes nega transporte, moradia de qualidade, acesso à saúde, educação e segurança. Estado esse que paga o salário dos que exterminam os seus iguais. Segundo o Mapa da Violência 2015, a taxa de assassinatos de mulheres negras aumentou 54%, enquanto a das mulheres brancas caiu em 9,8%. Se esses números expressam o combate ao feminicídio de um grupo de mulheres específico, as brancas, os mesmos revelam o descaso planejado para com o direito à vida das mulheres negras.

Seus traços e tranças são vistos como inapropriados e suas cores indevidas. Se em vida pedem socorro, correm o risco de serem arrastadas por um carro na saída do morro. Existem Cláudias que aqui não raia, assim como Marielles que não chegaram à presidência – é isso que alimenta as lideranças racistas eleitas.

No entanto, essas mulheres sabem de si, nota-se uma identidade em resgate, reconexão. Observam-se avenidas, blocos, ruas gritando e ecoando seus nomes, enxergam-se cadeiras ocupadas por elas, diversas, mas não dispersas. Toda essa estrutura racista precisa ruir, pois elas, mulheres negras e indígenas, detém em mãos e ações a melhor política: acolher, cuidar, proteger, reconhecer a humanidade em corpos, gêneros e cores diversas.

É preciso observá-las com um olhar de humanidade, só assim será possível construir uma sociedade justa, inclusiva e igualitária. Vida, luta e terra são palavras femininas, sem as quais nenhum só dia é possível. Os impactos sociais, emocionais e econômicos do racismo institucional são grandes, porém maiores têm sido o fazer e tecer. Humanas, combativas e ativas. Assim nascem e renascem nossas Dandaras, Aqualtunes, Marielles, Marias… Negras, Indígenas, mulheres, humanas.

 

Se minhas mãos falassem…

Diriam dos sacos que rasgou no lixão,
Diriam dos olhos que fecharam no mesmo lixão.
Dos maracujás, cana que colheu no Pará.
Das malas que carregou ao ser “convidada” a se retirar.
Diriam das vezes que minhas lágrimas tiveram que secar…
Diriam também, das vezes que sua sinalização causou repreensão.
Mas seguiriam as narrativas
De forma ativa…

Hoje diriam dos quatro sobrinhos que pegou, dos textos que escreveram, do veículo que guiou.
Da argila que no corpo passou,
Do tepi que segurou
Das fogueiras que acendeu
Das velas que firmou
Dos desenhos e pinturas que teceu.

Se minhas mãos falassem, diriam do que viveu, onde viveu, cresceu , nasceu.

Diriam dos aplausos a cada passagem de ano.
Dos apertos a mãos dos internos na medida de socieducação.
De coração, diriam toque o mundo com o coração!
Tenha por mantra a gratidão.
Milite por comunhão entre os seres viventes, lembrando das primeiras sementes.
A minha veio em um porão, com firmeza no coração buscou a redenção de seus corpos.

Se hoje elas lhe escrevem, é em rezo de agradecimentos aos que por aqui passaram,
Das correntes se libertaram para que eu pudesse lhe escrever.

Mãos “livres” hoje, um presente dos ancestrais.

Poema de Dyarley Viana

 

Leia também:

Para meninas marielles, educação e feminismo

Vivas, livres e sem medo: 8 de março pela vida das mulheres

(In)Segurança Alimentar e Nutricional e (Des)Igualdade de Gênero

“A Vale assassinou a todos nós. Enquanto mãe eu morro um pouco a cada dia”

Contra o cinza do medo, colorir as ruas: por uma cidade transformada pelas mulheres

 

Mulheres que lutam para serem reconhecidas como humanas

O Dia Internacional da Mulher, celebrado no dia 8 de março, é sem dúvida uma data importante, uma conquista de todas as mulheres de hoje, de ontem e de amanhã.

Contudo, no Brasil, mulheres negras e periféricas, as mesmas que carregam o país nos ombros e o parem todos os dias, vivenciam a luta do 8 de março no exercício diário do combate ao racismo institucional e ao patriarcado, que exterminam seus afetos, fetos e minam seus espaços vivos, relações e felicidade.

Essas mulheres têm sua humanidade cotidianamente questionada por essa estrutura racista, violadas em seus direitos desde a primeira que aqui aportou. Oriundas de navios negreiros, marcadas pelos seus senhores e senhoras, proibidas de cantarem seus cantos, usarem seus mantos, proferirem seus encantos e fazerem suas políticas. A elas a assinatura da princesa Isabel validou a total exclusão de direitos e a negação de sua humanidade.

Estamos em 2019 e as políticas seguem negando condições de vida a essas mesmas mulheres. Suas mortes são legitimadas, a começar por atos “simples”, como o padrão de beleza imposto que determina o perfil para cargos; os ceps periféricos sempre suspeitos, a domesticação de seus corpos, a ideia de que meninas vestem rosa.

Meninas vestem rosa?

Como vestir rosa, se estão sempre em luto? Meninas falam baixo. Como falar baixo, quando seus gritos foram e são silenciados? Meninas são delicadas. A delicadeza dessas mulheres se manifesta no acordar às 4h da manhã para estarem às 7h na casa das patroas e patrões. Se manifesta também na decisão de se manterem vivas, a despeito dos planos e estratégias de morte para aquelas (poucas ainda) que, munidas de coragem e força, traduzem e inserem suas vozes no ambiente político, macho, branco e heteronormativo.

Delicado, para elas, é apresentar seus traços, receber abraços que fortaleçam seus braços no erguer de suas bandeiras. Pois mesmo as iniciativas de combater as desigualdades sociais bem aproveitadas/ocupadas por elas, demonstram que a exclusão social é estrategicamente nutrida pelo racismo patriarcal.

Mulheres negras pagam mais impostos

Os números usados para descrevê-las demonstram a total falta de reconhecimento humano. São as que mais trabalham, menos recebem e mais contribuem para a máquina do Estado com os impostos proporcionalmente. O mesmo Estado que lhes nega transporte, moradia de qualidade, acesso à saúde, educação e segurança. Estado esse que paga o salário dos que exterminam os seus iguais. Segundo o Mapa da Violência 2015, a taxa de assassinatos de mulheres negras aumentou 54%, enquanto a das mulheres brancas caiu em 9,8%. Se esses números expressam o combate ao feminicídio de um grupo de mulheres específico, as brancas, os mesmos revelam o descaso planejado para com o direito à vida das mulheres negras.

Seus traços e tranças são vistos como inapropriados e suas cores indevidas. Se em vida pedem socorro, correm o risco de serem arrastadas por um carro na saída do morro. Existem Cláudias que aqui não raia, assim como Marielles que não chegaram à presidência – é isso que alimenta as lideranças racistas eleitas.

No entanto, essas mulheres sabem de si, nota-se uma identidade em resgate, reconexão. Observam-se avenidas, blocos, ruas gritando e ecoando seus nomes, enxergam-se cadeiras ocupadas por elas, diversas, mas não dispersas. Toda essa estrutura racista precisa ruir, pois elas, mulheres negras e indígenas, detém em mãos e ações a melhor política: acolher, cuidar, proteger, reconhecer a humanidade em corpos, gêneros e cores diversas.

É preciso observá-las com um olhar de humanidade, só assim será possível construir uma sociedade justa, inclusiva e igualitária. Vida, luta e terra são palavras femininas, sem as quais nenhum só dia é possível. Os impactos sociais, emocionais e econômicos do racismo institucional são grandes, porém maiores têm sido o fazer e tecer. Humanas, combativas e ativas. Assim nascem e renascem nossas Dandaras, Aqualtunes, Marielles, Marias… Negras, Indígenas, mulheres, humanas.

 

Se minhas mãos falassem…

Diriam dos sacos que rasgou no lixão,
Diriam dos olhos que fecharam no mesmo lixão.
Dos maracujás, cana que colheu no Pará.
Das malas que carregou ao ser “convidada” a se retirar.
Diriam das vezes que minhas lágrimas tiveram que secar…
Diriam também, das vezes que sua sinalização causou repreensão.
Mas seguiriam as narrativas
De forma ativa…

Hoje diriam dos quatro sobrinhos que pegou, dos textos que escreveram, do veículo que guiou.
Da argila que no corpo passou,
Do tepi que segurou
Das fogueiras que acendeu
Das velas que firmou
Dos desenhos e pinturas que teceu.

Se minhas mãos falassem, diriam do que viveu, onde viveu, cresceu , nasceu.

Diriam dos aplausos a cada passagem de ano.
Dos apertos a mãos dos internos na medida de socieducação.
De coração, diriam toque o mundo com o coração!
Tenha por mantra a gratidão.
Milite por comunhão entre os seres viventes, lembrando das primeiras sementes.
A minha veio em um porão, com firmeza no coração buscou a redenção de seus corpos.

Se hoje elas lhe escrevem, é em rezo de agradecimentos aos que por aqui passaram,
Das correntes se libertaram para que eu pudesse lhe escrever.

Mãos “livres” hoje, um presente dos ancestrais.

Poema de Dyarley Viana

 

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Vivas, livres e sem medo: 8 de março pela vida das mulheres

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“A Vale assassinou a todos nós. Enquanto mãe eu morro um pouco a cada dia”

Contra o cinza do medo, colorir as ruas: por uma cidade transformada pelas mulheres

 

Para pensar Suzano

O que aconteceu na escola em Suzano não é corriqueiro no Brasil, mas também não é inédito, já que tivemos dois episódios anteriores: em 2011 no Rio de Janeiro e em 2017 em Goiânia. No entanto, ao que parece, estamos herdando um comportamento comum nos Estados Unidos, onde ataques como este ocorrem com maior frequência.

Quando uma tragédia dessas proporções advém, o que mais se vê são analistas de plantão fazendo interpretações e receitando remédios rápidos e aparentemente eficazes. No caso em questão, solução bizarra foi proposta por dois senadores da República: armar os professores. Ideia, aliás, aventada por Donald Trump, na linha de “imitamos os estadunidenses com prazer”.

Imaginemos a cena: uma professora em sala de aula com um coldre na cintura, armada para proteger seus alunos. E como um dos atiradores era um adolescente de 17 anos, obviamente a solução “redução da idade penal” retorna com força e como panaceia para resolver qualquer mazela, mesmo que estejamos falando de um dos países mais violentos do mundo.

De acordo com o noticiado, o atentado guarda semelhanças com o ocorrido em Columbine, Estados Unidos, em 1999, também praticado por dois jovens ex-alunos da escola, que se inspiraram em videogames e provavelmente teriam sido vítimas de bullying. Então, na época houve uma investida em analisar e até criminalizar jogos, além de trazer o bullying para o centro do debate. No entanto, medida alguma de prevenção foi tomada. Não há programas de atenção e acolhimento à jovens com depressão, mesmo que pesquisas demostrem ser cada vez mais comum os episódios da doença entre esse público. No caso do ex-aluno adolescente, consta na secretaria da escola que ele é evadido. Ele morava na vizinhança e não ocorreu a esta direção procurar saber o porquê do abandono escolar, ou avisar ao Conselho Tutelar, o que é sua obrigação.

O retorno da pauta da redução da idade penal é frequente, o que não acontece é uma discussão sobre a etapa peculiar da adolescência, com a qual é preciso um olhar dedicado e atento para dar apoio no momento de tantas alterações físicas e psíquicas. Contudo, soluções fáceis e violentas são sempre apresentadas, refletindo o quanto somos uma sociedade que apela sempre para medidas punitivas, especialmente, se estivermos tratando de pessoas que estão nas margens, que são diferentes do senso comum, ou que estão em situação de vulnerabilidade.

No entanto, a sanha punitivista não foi capaz de frear a ação de sites racistas e fascistas que incitam ódio, e que estão por trás deste e do atendado de Realengo, por terem sido procurados pelos autores dos ataques para conseguirem armas. Tanto o responsável por Realengo, como este, são tratados como heróis nesses espaços. Uma semana antes do ocorrido, um dos atiradores publicou um agradecimento a este site pelas orientações.

Estamos presenciando um momento de cultura do ódio e culto às armas como grande política de segurança pública. Além disso, a educação vem sendo atacada como ideológica e disseminadora de um tal de “marxismo cultural” e “ideologia de gênero”. Esses discursos e práticas favorecem um ambiente de guerra, além de alastrar racismo, LGBTfobia, dentre outros comportamentos fascistas. Isso também estava presente, de algum modo, na ação desses jovens, que pelo que tem sido noticiado, faziam apologia do ódio e disseminação da cultura armamentista.

Deveríamos esperar como reação ao acontecido que os governos, locais e nacional, em contato com a comunidade escolar, pensassem em formas de acolhimento dos estudantes da escola, mas para além disso, uma política de prevenção a tais ocorrências, para que não se repetissem. E que dialogassem sobre ações reforçadoras de vínculos e não violência. Isso, acompanhado de uma educação que rechaçasse racismos e qualquer tipo de discriminação.

Porém, não há sinal algum que indique este caminho, ao contrário, os governantes e legisladores, em grande maioria, saíram buscando culpados e propondo medidas punitivistas de maneira aleatória, sem analisar o que de fato está na raiz de acontecimentos como este. O horizonte não é promissor, mas nós, como sociedade, temos de reagir de outra forma, exigindo que se vá às causas e, com isso, haja ações de longo prazo que coíbam histórias como de Suzano. Além disso, é urgente uma reação contra a cultura das armas, que é notório, só aumenta a violência e não protege, ao contrário, ameaça ainda mais.

*Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Para pensar Suzano

O que aconteceu na escola em Suzano não é corriqueiro no Brasil, mas também não é inédito, já que tivemos dois episódios anteriores: em 2011 no Rio de Janeiro e em 2017 em Goiânia. No entanto, ao que parece, estamos herdando um comportamento comum nos Estados Unidos, onde ataques como este ocorrem com maior frequência.

Quando uma tragédia dessas proporções advém, o que mais se vê são analistas de plantão fazendo interpretações e receitando remédios rápidos e aparentemente eficazes. No caso em questão, solução bizarra foi proposta por dois senadores da República: armar os professores. Ideia, aliás, aventada por Donald Trump, na linha de “imitamos os estadunidenses com prazer”.

Imaginemos a cena: uma professora em sala de aula com um coldre na cintura, armada para proteger seus alunos. E como um dos atiradores era um adolescente de 17 anos, obviamente a solução “redução da idade penal” retorna com força e como panaceia para resolver qualquer mazela, mesmo que estejamos falando de um dos países mais violentos do mundo.

De acordo com o noticiado, o atentado guarda semelhanças com o ocorrido em Columbine, Estados Unidos, em 1999, também praticado por dois jovens ex-alunos da escola, que se inspiraram em videogames e provavelmente teriam sido vítimas de bullying. Então, na época houve uma investida em analisar e até criminalizar jogos, além de trazer o bullying para o centro do debate. No entanto, medida alguma de prevenção foi tomada. Não há programas de atenção e acolhimento à jovens com depressão, mesmo que pesquisas demostrem ser cada vez mais comum os episódios da doença entre esse público. No caso do ex-aluno adolescente, consta na secretaria da escola que ele é evadido. Ele morava na vizinhança e não ocorreu a esta direção procurar saber o porquê do abandono escolar, ou avisar ao Conselho Tutelar, o que é sua obrigação.

O retorno da pauta da redução da idade penal é frequente, o que não acontece é uma discussão sobre a etapa peculiar da adolescência, com a qual é preciso um olhar dedicado e atento para dar apoio no momento de tantas alterações físicas e psíquicas. Contudo, soluções fáceis e violentas são sempre apresentadas, refletindo o quanto somos uma sociedade que apela sempre para medidas punitivas, especialmente, se estivermos tratando de pessoas que estão nas margens, que são diferentes do senso comum, ou que estão em situação de vulnerabilidade.

No entanto, a sanha punitivista não foi capaz de frear a ação de sites racistas e fascistas que incitam ódio, e que estão por trás deste e do atendado de Realengo, por terem sido procurados pelos autores dos ataques para conseguirem armas. Tanto o responsável por Realengo, como este, são tratados como heróis nesses espaços. Uma semana antes do ocorrido, um dos atiradores publicou um agradecimento a este site pelas orientações.

Estamos presenciando um momento de cultura do ódio e culto às armas como grande política de segurança pública. Além disso, a educação vem sendo atacada como ideológica e disseminadora de um tal de “marxismo cultural” e “ideologia de gênero”. Esses discursos e práticas favorecem um ambiente de guerra, além de alastrar racismo, LGBTfobia, dentre outros comportamentos fascistas. Isso também estava presente, de algum modo, na ação desses jovens, que pelo que tem sido noticiado, faziam apologia do ódio e disseminação da cultura armamentista.

Deveríamos esperar como reação ao acontecido que os governos, locais e nacional, em contato com a comunidade escolar, pensassem em formas de acolhimento dos estudantes da escola, mas para além disso, uma política de prevenção a tais ocorrências, para que não se repetissem. E que dialogassem sobre ações reforçadoras de vínculos e não violência. Isso, acompanhado de uma educação que rechaçasse racismos e qualquer tipo de discriminação.

Porém, não há sinal algum que indique este caminho, ao contrário, os governantes e legisladores, em grande maioria, saíram buscando culpados e propondo medidas punitivistas de maneira aleatória, sem analisar o que de fato está na raiz de acontecimentos como este. O horizonte não é promissor, mas nós, como sociedade, temos de reagir de outra forma, exigindo que se vá às causas e, com isso, haja ações de longo prazo que coíbam histórias como de Suzano. Além disso, é urgente uma reação contra a cultura das armas, que é notório, só aumenta a violência e não protege, ao contrário, ameaça ainda mais.

*Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Contra o cinza do medo, colorir as ruas: por uma cidade transformada pelas mulheres

Você já parou para pensar como caminha por sua cidade? Que sentimentos, afetos e procedimentos passam por sua cabeça antes de sair de casa e enfrentar a rua?  Como você decide a sua rota de deslocamento diário? Por quais locais escolhe ou não passar? E antes de entrar no transporte coletivo, que critérios passam pela sua cabeça? Como, afinal de contas, você vive e se move por sua cidade?

É possível que, para alguns, tais perguntas pareçam despropositadas. Vive-se a cidade como dá para viver, oras. Não há muito a refletir: as escolhas são pautadas pelo que parecem cálculos racionais. A rota de deslocamento escolhida é a que gasta menos tempo. Passa-se nos locais necessários para que o trajeto seja mais rápido. Toma-se o ônibus que passar mais rápido, ou quem sabe o que estiver menos cheio. A rua não se enfrenta, se percorre.

Se você se identificou com as respostas acima, imagine que, de repente, tudo deve ser feito diferente. Ao invés de escolher a rota mais rápida, você passa a percorrer caminhos mais longos. Passa a pensar bem em cada um dos locais em seu trajeto, avaliando-os meticulosamente. Passa a não tomar necessariamente o ônibus mais rápido e, quem sabe, até escolha parar num ponto mais longe do que aquele perto da sua casa. Um exercício imaginativo absurdo? A realidade cotidiana de boa parte das mulheres brasileiras.

O cotidiano das mulheres

Segundo pesquisa realizada pela Action Aid, 73,9% das mulheres brasileiras já desviaram seu trajeto por conta da escuridão da rua; 70,6% já deixou de sair de casa em determinados horários por conta do receio de sofrer algum tipo de violência ou assédio e, para 15% delas, o desvio de trajeto e interdição de horários acontece todos os dias.

Ao utilizar o transporte público, 57,8% das mulheres tem critérios bastante específicos para escolher os veículos que utilizam: 26, 6% não entram em ônibus lotados e, ao mesmo tempo, 13,6% não se arriscam em ônibus vazios. Quando dentro do veículo, há ainda outras preocupações: 54% das mulheres entrevistadas evita sentar no fundo, e 39,6% delas não senta perto de homens.

Mas o que será que transforma o ato cotidiano de se mover pela cidade em um leque de escolhas estranhas, inclusive, contraditórias entre si? O que faz certos locais e horários serem proibidos? O que faz com que ao mesmo tempo em que se deixa passar os ônibus cheios também não se entre em ônibus vazios? O que torna alguns assentos do transporte interditos?

Mesma cidade, diferentes experiências

Ícone do espaço capitalista, a cidade não escapa, mas reinventa suas contradições e desigualdades estruturais. A vivência na rua é marcada por conflitos, disputas, emaranhados de relações que revelam e refazem as hierarquias constituintes de nossa sociedade.  Em outras palavras, uma mesma cidade é, na verdade, várias –  a depender do corpo que a experimenta. Um homem negro que, ao encontrar uma viatura, automaticamente se prepara para a revista policial não vive a cidade do homem branco que respira aliviado ao se deparar com o mesmo carro. Também homens e mulheres (e, entre elas, toda a diversidade que constrói essa categoria) não experimentam a mesma urbanidade.

Nas cidades em que vivemos, uma das marcas da experiência das mulheres é o medo – não apenas o medo de assalto, mas principalmente da violência sexual. O sentimento não é descabido: segundo pesquisa do IPEA, entre os crimes de estupro contra vítimas adultas, 60% deles são praticados por desconhecidos, entre 18h e 6h da manhã, sobretudo nas vias e espaços públicos. A possibilidade real do estupro está ali, todo dia, pautando as escolhas de caminhos, trajetos, horários e veículos a serem utilizados nas ruas, transformando o ato de caminhar em um jogo de estratégias.

Junto à ameaça de estupro estão também outros gestos, aparentemente menores, que atualizam o corpo feminino na rua não como corpo-sujeito, mas corpo-objeto e reafirmam o não pertencimento das mulheres ao espaço urbano. As cantadas e assédios vivenciadas por ao menos 56,9% das mulheres brasileiras, segundo pesquisa já citada da Action Aid, são uma espécie de aviso: corpos femininos são passíveis de invasão se decidem circular na cidade. Os assédios, assim como o medo, servem como demarcação de territórios: se as ruas são perigosas para mulheres, insistir em andar por elas é aceitar as regras do jogo, ou seja, submeter-se às possibilidades de intromissão masculina. Quem avisa amigo é.

Colorir as ruas

Mas e se, em vez de pensarmos novos percursos, deixarmos de sair depois de certa hora, evitarmos tais rotas ou veículos, nós decidíssemos desobedecer? Parássemos de escutar os alertas, os avisos, as ameaças e as cantadas, e simplesmente optássemos por ocupar as ruas?

Difícil imaginar essa ousadia enquanto resolução individual, posto que também o problema está longe de sê-lo. Mas, pensemos bem: é exatamente a possibilidade desse mundo que criamos quando, deliberadamente, enchemos as ruas das cidades com mulheres em marcha, tal como fizemos no último dia 8 de março.

Em nossa multiplicidade de corpos e formas de estar no mundo, pintamos pouco a pouco a cidade de outros tons. Não mais o cinza do medo, mas o colorido das nossas existências. Não mais o cuidado frente à ameaça, mas o cuidado entre nós. Não mais uma cidade feita por homens, mas o espaço urbano transformado por nossa presença – do corpo-objeto aos corpos políticos. Se as opressões fazem de uma cidade muitas, não deixemos o poder todo para eles: cada vez que uma marcha de mulheres toma as ruas, um mundo sem machismos se refaz possível.

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Para meninas marielles, educação e feminismo

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Você já parou para pensar como caminha por sua cidade? Que sentimentos, afetos e procedimentos passam por sua cabeça antes de sair de casa e enfrentar a rua?  Como você decide a sua rota de deslocamento diário? Por quais locais escolhe ou não passar? E antes de entrar no transporte coletivo, que critérios passam pela sua cabeça? Como, afinal de contas, você vive e se move por sua cidade?

É possível que, para alguns, tais perguntas pareçam despropositadas. Vive-se a cidade como dá para viver, oras. Não há muito a refletir: as escolhas são pautadas pelo que parecem cálculos racionais. A rota de deslocamento escolhida é a que gasta menos tempo. Passa-se nos locais necessários para que o trajeto seja mais rápido. Toma-se o ônibus que passar mais rápido, ou quem sabe o que estiver menos cheio. A rua não se enfrenta, se percorre.

Se você se identificou com as respostas acima, imagine que, de repente, tudo deve ser feito diferente. Ao invés de escolher a rota mais rápida, você passa a percorrer caminhos mais longos. Passa a pensar bem em cada um dos locais em seu trajeto, avaliando-os meticulosamente. Passa a não tomar necessariamente o ônibus mais rápido e, quem sabe, até escolha parar num ponto mais longe do que aquele perto da sua casa. Um exercício imaginativo absurdo? A realidade cotidiana de boa parte das mulheres brasileiras.

O cotidiano das mulheres

Segundo pesquisa realizada pela Action Aid, 73,9% das mulheres brasileiras já desviaram seu trajeto por conta da escuridão da rua; 70,6% já deixou de sair de casa em determinados horários por conta do receio de sofrer algum tipo de violência ou assédio e, para 15% delas, o desvio de trajeto e interdição de horários acontece todos os dias.

Ao utilizar o transporte público, 57,8% das mulheres tem critérios bastante específicos para escolher os veículos que utilizam: 26, 6% não entram em ônibus lotados e, ao mesmo tempo, 13,6% não se arriscam em ônibus vazios. Quando dentro do veículo, há ainda outras preocupações: 54% das mulheres entrevistadas evita sentar no fundo, e 39,6% delas não senta perto de homens.

Mas o que será que transforma o ato cotidiano de se mover pela cidade em um leque de escolhas estranhas, inclusive, contraditórias entre si? O que faz certos locais e horários serem proibidos? O que faz com que ao mesmo tempo em que se deixa passar os ônibus cheios também não se entre em ônibus vazios? O que torna alguns assentos do transporte interditos?

Mesma cidade, diferentes experiências

Ícone do espaço capitalista, a cidade não escapa, mas reinventa suas contradições e desigualdades estruturais. A vivência na rua é marcada por conflitos, disputas, emaranhados de relações que revelam e refazem as hierarquias constituintes de nossa sociedade.  Em outras palavras, uma mesma cidade é, na verdade, várias –  a depender do corpo que a experimenta. Um homem negro que, ao encontrar uma viatura, automaticamente se prepara para a revista policial não vive a cidade do homem branco que respira aliviado ao se deparar com o mesmo carro. Também homens e mulheres (e, entre elas, toda a diversidade que constrói essa categoria) não experimentam a mesma urbanidade.

Nas cidades em que vivemos, uma das marcas da experiência das mulheres é o medo – não apenas o medo de assalto, mas principalmente da violência sexual. O sentimento não é descabido: segundo pesquisa do IPEA, entre os crimes de estupro contra vítimas adultas, 60% deles são praticados por desconhecidos, entre 18h e 6h da manhã, sobretudo nas vias e espaços públicos. A possibilidade real do estupro está ali, todo dia, pautando as escolhas de caminhos, trajetos, horários e veículos a serem utilizados nas ruas, transformando o ato de caminhar em um jogo de estratégias.

Junto à ameaça de estupro estão também outros gestos, aparentemente menores, que atualizam o corpo feminino na rua não como corpo-sujeito, mas corpo-objeto e reafirmam o não pertencimento das mulheres ao espaço urbano. As cantadas e assédios vivenciadas por ao menos 56,9% das mulheres brasileiras, segundo pesquisa já citada da Action Aid, são uma espécie de aviso: corpos femininos são passíveis de invasão se decidem circular na cidade. Os assédios, assim como o medo, servem como demarcação de territórios: se as ruas são perigosas para mulheres, insistir em andar por elas é aceitar as regras do jogo, ou seja, submeter-se às possibilidades de intromissão masculina. Quem avisa amigo é.

Colorir as ruas

Mas e se, em vez de pensarmos novos percursos, deixarmos de sair depois de certa hora, evitarmos tais rotas ou veículos, nós decidíssemos desobedecer? Parássemos de escutar os alertas, os avisos, as ameaças e as cantadas, e simplesmente optássemos por ocupar as ruas?

Difícil imaginar essa ousadia enquanto resolução individual, posto que também o problema está longe de sê-lo. Mas, pensemos bem: é exatamente a possibilidade desse mundo que criamos quando, deliberadamente, enchemos as ruas das cidades com mulheres em marcha, tal como fizemos no último dia 8 de março.

Em nossa multiplicidade de corpos e formas de estar no mundo, pintamos pouco a pouco a cidade de outros tons. Não mais o cinza do medo, mas o colorido das nossas existências. Não mais o cuidado frente à ameaça, mas o cuidado entre nós. Não mais uma cidade feita por homens, mas o espaço urbano transformado por nossa presença – do corpo-objeto aos corpos políticos. Se as opressões fazem de uma cidade muitas, não deixemos o poder todo para eles: cada vez que uma marcha de mulheres toma as ruas, um mundo sem machismos se refaz possível.

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