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(In)Segurança Alimentar e Nutricional e (Des)Igualdade de Gênero

O que comemos e de que forma comemos depende de como os alimentos são produzidos e distribuídos. Depende também da renda das famílias, dos seus hábitos alimentares, de suas culturas e de políticas públicas de alimentação e nutrição, entre outros fatores. Há, contudo, um elemento central na nossa relação com a comida: os papeis atribuídos a homens e mulheres. Nossas sociedades estão fundadas em uma estrutura dicotômica e machista que, além de separar a esfera privada da pública, hierarquiza e distribui papéis sociais diferenciados para mulheres e homens. Essa assimetria gera uma desigual repartição de atribuições entre os sexos em todas os âmbitos da vida, de uma maneira geral, e em relação aos alimentos, mais especificamente. Segundo o IBGE, em 2017, as mulheres trabalhavam 20,9 horas por semana em afazeres domésticos e no cuidado de pessoas, quase o dobro das 10,8 horas dedicadas pelos homens. E mais: ainda de acordo com o IBGE, 95,6% das mulheres com 14 anos ou mais utilizavam parte deste tempo para preparar ou servir alimentos. Entre os homens, esse percentual é de apenas 59,8%.

Os dados revelam o quanto os estereótipos de gênero ainda reservam às mulheres o destino de cuidar dos filhos, da casa, da família e das refeições. Alguns avanços foram obtidos, pois a participação dos homens nos cuidados da família vem crescendo lentamente em tempos recentes. Contudo, limitam-se a atividades mais próximas do lazer, como, por exemplo, os almoços de final de semana. Aparentemente, o mercado vem dando respostas as demandas das mulheres para diminuir a carga de trabalho na cozinha, disponibilizando produtos e serviços que exigem menor dedicação. Acontece que essas respostas além de criar novos problemas acabam reforçando a desigualdade de gênero.

O mercado de produtos ultraprocessados cresce no mundo, especialmente em países em desenvolvimento. São alimentos que passaram por técnicas e processamentos que adicionam alta quantidade de sal, açúcar, gorduras, realçadores de sabor e texturizantes; as vezes podem conter vitaminas e minerais sintéticos. São produtos pré-prontos ou prontos para o consumo, encontrados em todas as prateleiras, como os salgadinhos, diversos tipos de pães e biscoitos doces e salgados, produtos assados, fritos e congelados. Se a principio parecem facilitar a vida das pessoas, e em especial das mulheres, são na realidade um verdadeiro veneno. Estudos de organismos internacionais e inúmeros estudos nacionais revelam que o aumento do consumo de ultraprocessados está fortemente correlacionado ao aumento do sobrepeso e da obesidade que, por sua vez, está na origem de enfermidades como diabetes, hipertensão e vários tipos de câncer.

Divisão do trabalho doméstico

 

No Brasil, mais da metade da população está com sobrepeso e a obesidade atinge a 20% das pessoas adultas. Temos, pois, um sério problema alimentar que resulta em doença e morte. E mais uma epidemia do século 21. Mais do que nunca precisamos resgatar dietas seguras, adequadas e saudáveis. Para isso, faz-se necessário mudar nossa forma de produzir e consumir alimentos, de modo a valorizar os alimentos in natura livres de transgênicos e de agrotóxicos e, assim, ter acesso a produtos diversos e minimamente processados. Contudo, isso não é suficiente, pois não resolve a desigualdade de gênero. A igualdade entre homens e mulheres passa necessariamente pela progressiva construção de um modelo societário, baseado nos princípios da solidariedade, da reciprocidade e da redistribuição. Passa pela divisão equânime dos trabalhos domésticos e de cuidados entre homens e mulheres. Nesse lugar, todas e todos teremos direito à uma alimentação saudável, digna e em sintonia com os hábitos e culturas alimentares, sem que isso signifique o confinamento das mulheres às responsabilidades de cuidar da alimentação.

Nesse 8 de março de 2019, não há motivos para celebrar. A institucionalidade que tínhamos para avançar na conquista por mais equidade de gênero na segurança alimentar e nutricional foi destruída no primeiro dia do governo Bolsonaro. Com efeito, não somente foi extinto o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) como desapareceu da estrutura federal a Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, antigamente subordinada ao Ministro do Desenvolvimento Social, atual Ministério da Cidadania. Ademais, para liderar a Política para as Mulheres foi nomeada uma jovem conservadora, nada preocupada com essas questões. Felizmente, essa pauta continua viva entre organizações e movimentos sociais. Continuaremos lutando para garantir que nossas demandas sejam atendidas graças à pressão popular. Continuaremos cultivando a justiça de gênero para conquistar a segurança alimentar e nutricional tendo em mente o que nos diz Chimamanda Adichie “A cultura não faz as pessoas. As pessoas fazem a cultura. Se uma humanidade inteira de mulheres não faz parte da cultura, então temos que mudar nossa cultura”.

 

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Vivas, livres e sem medo: este é o apelo dos movimentos de mulheres no Brasil e América Latina que tem reverberado nas redes sociais e nas ruas. A agenda política das mulheres, abarca a autonomia econômica e igualdade no mundo do trabalho, educação, saúde, participação nos espaços de poder, direito à terra, moradia digna e sustentabilidade ambiental, cultura e combate ao racismo, entre outras questões centrais para a promoção dos direitos humanos. No entanto, a defesa de direitos tem sido sistematicamente confrontada com a absurda violência letal, uma verdadeira chacina de mulheres em curso: em 2017 a média de homicídios diários foi de 12 mulheres,  contabilizando 4.473 homicídios dolosos e 946 tipificados como feminicídio. Em 2018, o Disque 180, serviço público destinado a denúncias de violência contra a mulher, recebeu, até agosto, 79.661 ligações.

As políticas públicas implementadas no período de maior alocação de recursos e de aumento da participação social foram insuficientes ou reprodutoras do racismo institucional: entre 2003 e 2013 diminuiu 9,8%  o número de homicídios de mulheres brancas e aumentou 54% o de mulheres negras. Porém, uma institucionalidade estava se consolidando  com investimentos públicos: assim, por exemplo, foram realizadas 4 conferencias nacionais, de onde saíram as diretrizes para o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (IIPNPM), foi fortalecido o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, o feminicídio foi tipificado no Código Penal, iniciaram a construção das Casas da Mulher Brasileira, e foram destinados recursos para o fortalecimento da rede de enfrentamento a violência, que envolve um esforço federativo para se sustentar, ou seja, Governo Federal, Estados e Municípios.

O cenário agora é desesperador: com a Emenda Constitucional 95, que estabeleceu o ‘teto de gastos’, o corte de despesas sofrido pela Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres (SPM) foi de 65% entre 2015 a 2018, em termos reais. Para cada R$ 1 cortado do orçamento das políticas para as mulheres entre 2015 e 2016, aumentou R$ 1,3 o orçamento para pagamento dos serviços da dívida pública (Inesc, Oxfam Brasil e CESR, 2017). A redução orçamentária chegou a 79% se compararmos os recursos alocados em 2019 em relação aos de 2013.

Tabela 1. Recursos autorizados, pagos e de restos a pagar pagos no período 2013 a 2017. Programa 2016: Políticas para as Mulheres: Promoção da Igualdade e Enfrentamento à Violência

Estamos nos referindo somente aos cortes do Programa 2016: Políticas para as Mulheres: Promoção da Igualdade e Enfrentamento à Violência, ou seja, há ainda os cortes em outras políticas públicas que afetam as mulheres, como, por exemplo, do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). De todo modo, o mais preocupante é que, ainda que o Disque 180 seja mantido, as mulheres vítimas de violência terão uma porta de entrada para a rede socioassistencial, mas não terão serviços para acessar após este primeiro acolhimento.

É bom lembrar que, segundo pesquisa do Inesc, as mulheres negras – público mais vulnerável e prioritário do II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres – pagam proporcionalmente mais impostos que os demais seguimentos da sociedade, homens e mulheres brancas e homens negros: os 10% mais pobres da população, compostos majoritariamente por negros e mulheres (68,06% e 54,34%, respectivamente) comprometem 32% da renda com os impostos, enquanto os 10% mais ricos, em sua maioria brancos e homens (83,72% e 62,05%, respectivamente) empregam 21% da renda em pagamento de tributos”.

Sem recursos para o combate à violência, sem recursos para a promoção da autonomia. Ao mesmo tempo, mulheres são atiradas pela janela em diferentes lugares, espancadas dentro de suas próprias casas, mortas com requintes de crueldade, impedidas de circular livremente na cidade. A responsável pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, recomendou em entrevista que pais de meninas deveriam fugir do Brasil, desresponsabilizando o Estado de tratar o problema.

O Brasil está em guerra contra as mulheres. Ainda assim elas seguem, trabalhando, criando seus filhos, realizando a maior parte do trabalho doméstico. Seguem com o grito nas ruas, a organização política, a insistência em viver, e a busca pela liberdade. E seguem juntas.

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As políticas públicas implementadas no período de maior alocação de recursos e de aumento da participação social foram insuficientes ou reprodutoras do racismo institucional: entre 2003 e 2013 diminuiu 9,8%  o número de homicídios de mulheres brancas e aumentou 54% o de mulheres negras. Porém, uma institucionalidade estava se consolidando  com investimentos públicos: assim, por exemplo, foram realizadas 4 conferencias nacionais, de onde saíram as diretrizes para o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (IIPNPM), foi fortalecido o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, o feminicídio foi tipificado no Código Penal, iniciaram a construção das Casas da Mulher Brasileira, e foram destinados recursos para o fortalecimento da rede de enfrentamento a violência, que envolve um esforço federativo para se sustentar, ou seja, Governo Federal, Estados e Municípios.

O cenário agora é desesperador: com a Emenda Constitucional 95, que estabeleceu o ‘teto de gastos’, o corte de despesas sofrido pela Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres (SPM) foi de 65% entre 2015 a 2018, em termos reais. Para cada R$ 1 cortado do orçamento das políticas para as mulheres entre 2015 e 2016, aumentou R$ 1,3 o orçamento para pagamento dos serviços da dívida pública (Inesc, Oxfam Brasil e CESR, 2017). A redução orçamentária chegou a 79% se compararmos os recursos alocados em 2019 em relação aos de 2013.

Tabela 1. Recursos autorizados, pagos e de restos a pagar pagos no período 2013 a 2017. Programa 2016: Políticas para as Mulheres: Promoção da Igualdade e Enfrentamento à Violência

Estamos nos referindo somente aos cortes do Programa 2016: Políticas para as Mulheres: Promoção da Igualdade e Enfrentamento à Violência, ou seja, há ainda os cortes em outras políticas públicas que afetam as mulheres, como, por exemplo, do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). De todo modo, o mais preocupante é que, ainda que o Disque 180 seja mantido, as mulheres vítimas de violência terão uma porta de entrada para a rede socioassistencial, mas não terão serviços para acessar após este primeiro acolhimento.

É bom lembrar que, segundo pesquisa do Inesc, as mulheres negras – público mais vulnerável e prioritário do II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres – pagam proporcionalmente mais impostos que os demais seguimentos da sociedade, homens e mulheres brancas e homens negros: os 10% mais pobres da população, compostos majoritariamente por negros e mulheres (68,06% e 54,34%, respectivamente) comprometem 32% da renda com os impostos, enquanto os 10% mais ricos, em sua maioria brancos e homens (83,72% e 62,05%, respectivamente) empregam 21% da renda em pagamento de tributos”.

Sem recursos para o combate à violência, sem recursos para a promoção da autonomia. Ao mesmo tempo, mulheres são atiradas pela janela em diferentes lugares, espancadas dentro de suas próprias casas, mortas com requintes de crueldade, impedidas de circular livremente na cidade. A responsável pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, recomendou em entrevista que pais de meninas deveriam fugir do Brasil, desresponsabilizando o Estado de tratar o problema.

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E vamos lá falar sobre educação e feminismo em mais um 8M. E por que não falar do desfile da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira e sua aula de história a céu aberto? Em tempos de fundamentalismos rondando as escolas, de militarização, de criminalização dos estudos de gênero, com a famigerada “ideologia de gênero”, que não se explica, nada melhor do que mostrar uma história nua e crua, com seus personagens invisibilizados pelo colonialismo que graça entre nós até hoje.

A Comissão de frente trazendo uma menina negra abrindo um livro para dizer que está presente Marielle Franco e tudo o que ela representa, a luta das mulheres negras pela sobrevivência em um país do “cordialismo”, que as mata e as violenta todos os dias, com o aval de parte da população que insiste em não perceber que vivemos em um dos lugares mais violentos do mundo. E ano a ano os registros apontam aumento do número de agressões e feminicídios, vários com denúncias prévias e sem que providencias fossem tomadas para coibi-los, o que pode ser constatado pela informação constante do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, indicando que menos de 10% dos municípios brasileiros possuem delegacias especializadas.

Foto: Rodrigo Gorosito/G1

E a despeito dessa realidade, há um movimento intitulado “Escola sem Partido”, que há tempos tenta interditar a discussão sobre a promoção da igualdade de gênero, constante dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, o de número 5, propondo “Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas”.

O mais grave é que agora esse movimento está incrustrado no Ministério da Educação e no atual Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, pregando velhos preceitos, contribuindo para perpetuar a cultura patriarcal e machista entre nós, geradora do ciclo de violência que mata cerca de 4,5 mil mulheres ao ano, sendo que desse número, dois terços são mulheres negras. Quando se fala em feminicídio, pois somemos a isso o enorme contingente de mulheres vítimas de violências todos os dias.

De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios contínua (PNAD/IBGE), em 2018, os dados da educação mostravam que enquanto 13% de homens com mais de 25 anos concluíram ensino superior, entre as mulheres o percentual sobe para 17%, acima da média nacional que é de 15%. No entanto, quando o mesmo IBGE divulga dados sobre população desempregada, 52% são mulheres contra 47% de homens. E pior, quando analisamos dados sobre salários, homens recebem em média R$ 2.568,00, contra R$ 2007,00 para mulheres.

Outro dado relevante a ser destacado, diz respeito aos motivos que levam ao abandono escolar. Enquanto os homens abandonam por trabalho ou desinteresse, as mulheres abandonam por gravidez na adolescência, obrigações domésticas de criar irmãos menores ou cuidar de idosos, dificuldade de recursos para transporte. Isso se dá tanto no ensino médio, quanto no acesso ao superior, reforçando a realidade de que às mulheres cabe o espaço privado, os cuidados domésticos, a exclusividade em cuidar das crianças, desde a adolescência. Contudo, mesmo diante desta realidade, elas estão na batalha na esfera pública e alcançam maior sucesso escolar, apesar de não se dar o mesmo no mundo do trabalho.

Apesar desse quadro horrendo, precisamos destacar que hoje há mais mulheres dentre as pessoas que conseguem concluir uma graduação, mesmo com todas as dificuldades impostas na esfera pública, que vai desde a violenta interdição dos espaços de manifestação, passando pelo assédio nos transportes públicos, nas ruas e o cerceamento do espaço de fala. Elas estão em maior número entre formandos.

Então, qual a relevância de um enredo tal qual o apresentado pela Mangueira? A importância de aproximar a população da história da resistência dos povos indígenas e negros, mostrando que houve muita luta, a despeito das narrativas de submissão. A revelação da mentirosa versão de libertação pelas mãos da princesa colonizadora. O embuste sobre bandeirantes heróis, ao serem apresentados como vilões sanguinários e assassinos predadores, o que de fato foram. E a importância, para as mulheres, em reverenciar Marielle Franco, mulher negra, liderança na defesa de direitos humanos, eleita vereadora lutando contra milicianos em espaço dominado por eles. Isso nos fortalece e apresenta às várias meninas marielles, como a que estava na Comissão de Frente, que a batalha está aí para ser continuada, a escola para ser revolucionada e a rua para ser conquistada.

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Foto: Rodrigo Gorosito/G1

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De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios contínua (PNAD/IBGE), em 2018, os dados da educação mostravam que enquanto 13% de homens com mais de 25 anos concluíram ensino superior, entre as mulheres o percentual sobe para 17%, acima da média nacional que é de 15%. No entanto, quando o mesmo IBGE divulga dados sobre população desempregada, 52% são mulheres contra 47% de homens. E pior, quando analisamos dados sobre salários, homens recebem em média R$ 2.568,00, contra R$ 2007,00 para mulheres.

Outro dado relevante a ser destacado, diz respeito aos motivos que levam ao abandono escolar. Enquanto os homens abandonam por trabalho ou desinteresse, as mulheres abandonam por gravidez na adolescência, obrigações domésticas de criar irmãos menores ou cuidar de idosos, dificuldade de recursos para transporte. Isso se dá tanto no ensino médio, quanto no acesso ao superior, reforçando a realidade de que às mulheres cabe o espaço privado, os cuidados domésticos, a exclusividade em cuidar das crianças, desde a adolescência. Contudo, mesmo diante desta realidade, elas estão na batalha na esfera pública e alcançam maior sucesso escolar, apesar de não se dar o mesmo no mundo do trabalho.

Apesar desse quadro horrendo, precisamos destacar que hoje há mais mulheres dentre as pessoas que conseguem concluir uma graduação, mesmo com todas as dificuldades impostas na esfera pública, que vai desde a violenta interdição dos espaços de manifestação, passando pelo assédio nos transportes públicos, nas ruas e o cerceamento do espaço de fala. Elas estão em maior número entre formandos.

Então, qual a relevância de um enredo tal qual o apresentado pela Mangueira? A importância de aproximar a população da história da resistência dos povos indígenas e negros, mostrando que houve muita luta, a despeito das narrativas de submissão. A revelação da mentirosa versão de libertação pelas mãos da princesa colonizadora. O embuste sobre bandeirantes heróis, ao serem apresentados como vilões sanguinários e assassinos predadores, o que de fato foram. E a importância, para as mulheres, em reverenciar Marielle Franco, mulher negra, liderança na defesa de direitos humanos, eleita vereadora lutando contra milicianos em espaço dominado por eles. Isso nos fortalece e apresenta às várias meninas marielles, como a que estava na Comissão de Frente, que a batalha está aí para ser continuada, a escola para ser revolucionada e a rua para ser conquistada.

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Por que somos a favor do Passe Livre Estudantil?

Na última quinta-feira (7/2), o governador Ibaneis Rocha apresentou à Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF) um projeto de lei que tem por objetivo restringir o Passe Livre Estudantil (PLE) somente a estudantes de escolas públicas e aos de escolas privadas que possuem renda familiar inferior a quatro salários mínimos, com o limite de 27 trajetos (ida e volta) no mês.

Como justificativa, o governador alega que a medida trará uma economia para os cofres públicos da ordem de R$ 115 milhões por ano. Desta forma, o custo anual do PLE, que em 2018 foi de R$ 273 milhões, com a nova proposta, diminuiria para R$ 158 milhões[1].

Paradoxalmente, enquanto busca reduzir despesas, através de outro projeto de lei enviado à CLDF, quer reduzir receitas com o corte de impostos. De um lado, deseja restringir um direito conquistado há 10 anos pelos e pelas estudantes do Distrito Federal, por outro, almeja cortar tributos das classes mais beneficiadas. Estima-se que tais reduções de impostos implicarão em uma perda de receita de R$ 240 bilhões[2] em 2020 – valor R$ 125 milhões superior à economia decorrente dos cortes a serem aplicados no Passe Livre Estudantil. Em 2021, a estimativa é de perda de arrecadação maior do que o valor necessário para custear todo o PLE, tal como ele funciona hoje.

O transporte é um direito social garantido no artigo 6º da Constituição Federal, assim como a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados. Além disso, o transporte é um direito essencial para a realização de outros direitos, ou seja, ele possibilita o acesso das pessoas aos equipamentos de saúde, de educação e de cultura, entre outros. Em síntese, o transporte público é crucial para que grande parte da população brasileira e do Distrito Federal acesse os serviços públicos. Garantir a sua gratuidade é uma forma de oportunizar que as pessoas mais desassistidas tenham acesso aos seus direitos, de forma a assegurar maior justiça social.

O Transporte Público Coletivo no DF

Os ônibus do transporte público do DF são geridos por cinco empresas que foram selecionadas em uma licitação realizada a partir de 2011. Esta licitação determinou o valor a ser recebido pelas empresas para transportar cada um dos e das passageiras, o que define o valor da tarifa bem como o subsídio do GDF ao sistema.

Dúvidas pairam sobre esse processo licitatório. Com efeito, decisão do Tribunal de Justiça do DF e Territórios (TJDFT)[3], bem como relatório da CPI do Transporte Público[4] realizada pela CLDF, além de outros estudos[5], identificaram diversas irregularidades que beneficiam as empresas e oneraram a tarifa, fazendo com que o DF apresente a tarifa mais cara do país, impactando diretamente o custo do PLE.

As irregularidades apontadas se referem, por exemplo, à má qualidade do estudo que embasou o edital, se utilizando de dados irreais ou desatualizados da população, da rede viária e quilometragem a ser percorrida pelas empresas; à forma de pagamento às empresas, que estabelece um custo por passageiro transportado em vez de pagar por quilômetro rodado; à participação de empresas de um mesmo grupo econômico, o que era proibido expressamente no edital; à participação de um mesmo advogado na elaboração do edital, nos pedidos de elucidação, recursos administrativos e judiciais e ainda ser advogado de uma das empresas que concorreram (e venceram) o edital, dentre outras.

Destaque-se trecho do acórdão do TJDFT que alerta para as irregularidades citadas anteriormente:

O edital da Concorrência Pública nº 01/2011 continha disposição expressa que vedava a participação de empresas componentes do mesmo grupo econômico (…) Os documentos colacionados aos autos demonstram que as empresas Viação Pioneira e Viação Piracicabana estão umbilicalmente ligadas e fazem parte de um grupo econômico maior que tem como empresa matriz a Expresso-União (…) houve, de fato, ofensa ao interesse público e a terceiros na medida em que o certame beneficiou empresas que possuíam vínculo estreito com extraneus, extraneus este que participou da confecção do edital, estando igualmente ativo nas fases interna e externa da licitação, redigiu as atas de julgamento, bem como analisou as propostas e habilitações. Tal benefício impediu que outras empresas (no caso terceiros) pudessem concorrer de maneira igualitária no procedimento licitatório (…) as empresas vencedoras lograram êxito no certame apresentando tarifas muito próximas ou praticamente iguais às tarifas máximas previstas no edital, o que implica em prejuízo indireto eis que demais empresas, que apresentaram tarifas mais acessíveis, foram consideradas inabilitadas (..) em virtude da licitação ser viciada, após a fase de habilitação, somente um competidor permaneceu na disputa, sendo este justamente o que apresentou a tarifa mais cara, consoante ressaltado acima, inviabilizando por completo a essência da concorrência, onerando, por consequência, os cofres públicos e o bolso do cidadão que faz uso do transporte coletivo (páginas 2, 3 e 4 do acórdão)

Assim, o Tribunal determinou a realização de nova licitação até o final de 2019. Trata-se de uma oportunidade ímpar para que o GDF realize um processo transparente, com parâmetros que tornem o sistema mais eficiente, seguro e confortável, garantindo seu controle social, inclusive de seu custo.

Uma licitação nesses moldes contribuiria para tornar o transporte público menos custoso, o que, consequentemente, diminuiria o valor necessário para custear o Passe Livre Estudantil. O govenador Ibaneis Rocha deveria focar na melhoria da gestão e da operação do sistema ao invés de cortar direitos adquiridos após muita luta da população.

Impacto da redução de impostos

No projeto de lei 104/2019, enviado à CLDF também pelo governador, a proposta de redução dos impostos foi detalhada da seguinte forma:

  • ITBI: de 3% para 2,75% a partir da entrada da lei em vigor; 2,5% a partir de 2020 e 2% a partir de 2021;
  • ITCD: que varia de 4% a 6% será fixado em 4% independente da base de cálculo;
  • IPVA: de 2,5% para 2% (ciclomotores, motocicletas, motonetas, quadriciclos e triciclos) e de 3,5% para 3% (automóveis, caminhonetes, utilitários e demais veículos).

Estes impostos incidem diretamente sobre a propriedade. Quem os paga são as pessoas que possuem veículos automotores (IPVA), que compram e vendem imóveis (ITBI) e que recebem herança (ITCD). Ou seja, são cortes de impostos que beneficiam os mais ricos, que têm carros e propriedades ou que recebem heranças. Por outro lado, os cortes do PLE afetam todos os estudantes que dependem do transporte público para estudar.

Um simples exercício é bastante revelador dessa injustiça: com a redução de impostos, o proprietário de um automóvel de R$ 50.000 passaria a pagar R$ 1.500 de IPVA, ao invés dos atuais R$ 1.750 – uma pequena economia de R$ 250 por ano. Por outro lado, a supressão do Passe Livre Estudantil oneraria em R$ 3.240 anuais as famílias que precisam pagar ônibus para que um de seus filhos estude.

Entre os argumentos listados pelo governo, afirma-se que a desoneração dos impostos resultaria em menor inadimplência e, consequentemente, maior arrecadação. Porém, como podemos observar na tabela 1, a perda da arrecadação é crescente ao longo dos anos, conforme dados apresentados na própria justificativa do projeto.

A tabela 1 revela que em 2021 os valores não arrecadados em decorrência das desonerações, da ordem de R$ 327 milhões, seriam maiores do que o atual custo do Passe Livre Estudantil, que corresponde a R$ 273 milhões. E mais: os subsídios ao PLE vem diminuindo nos últimos anos, conforme pode ser observado na tabela 2, e poderiam ainda ser menores, caso a nova licitação diminua o custo do transporte público coletivo do DF.

Com o intuito de promover maior justiça, o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), em conjunto com diversas outras organizações, defende a progressividade da carga tributária, isto é, quem ganha mais paga mais impostos. O que o governador Ibaneis está propondo é exatamente o contrário, tira dos pobres e alivia a renda dos mais ricos.

O Inesc também defende a progressiva realização de direitos. Atuamos para que os direitos conquistados sejam ampliados e que mais direitos sejam garantidos.

As ações apresentadas pelo atual governador do DF ampliam desigualdades – entre pobres e ricso- e violam direitos dos estudantes. Acreditamos que existem outras maneiras de se reduzir as despesas do governo que não atentam diretamente contra os direitos conquistados, como o Passe Livre Estudantil. Acreditamos, ainda, que por meio de novo processo licitatório é possível reorganizar o sistema de transporte público local, melhorando a sua qualidade e reduzindo seus custos.

*Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

[1] Os dados apresentados na justificativa do referido projeto de lei são: custo PLE em 2018: R$ 299 milhões e R$ 185 milhões o custo após o corte do benefício. Porém, informações obtidas no Portal da Transparência do DF, acessado no dia 08/02/2019, mostram que o custo do PLE em 2018 foi de R$ 273 milhões.

[2] Conforme justificativa apresentada no PL 104/2019.

[3] http://cache-internet.tjdft.jus.br/cgi-bin/tjcgi1?NXTPGM=plhtml06&SELECAO=1&ORIGEM=INTER&CDNUPROC=20130110928920APO

[4] http://www.cl.df.gov.br/web/guest/encerradas/-/document_library_display/l0Ep/view/14482874?_110_INSTANCE_l0Ep_redirect=http%3A%2F%2Fwww.cl.df.gov.br%2Fweb%2Fguest%2Fencerradas%2F-%2Fdocument_library_display%2Fl0Ep%2Fview%2F12161846

[5] http://multimidia.fnp.org.br/biblioteca/documentos/item/723-estudo-evolucao-do-transporte-publico-no-df

[6] 270 reais por mês, considerando 54 deslocamentos mensais, apenas uma viagem casa-escola-casa por dia, com a tarifa de R$ 5,00.

A escassez de verba de fiscalização também explica Brumadinho

Os dados que têm vindo a público sobre a situação das barragens de mineração no país compõem um cenário desconcertante da fragilidade da ANM, a Agência Nacional de Mineração . O órgão é responsável pela fiscalização de 790 barragens de rejeito no país, das quais 139 sob titularidade da Vale S.A.  Em 2017, contando apenas com 35 fiscais, a agência deixou de fiscalizar 73% das barragens. Além disso, falta combustível para abastecer os carros dos fiscais e até para pagar contas de luz das superintendências nos estados.

O orçamento público destinado ao antigo Departamento Nacional de Produção Mineral, agora ANM, e o que dele é gasto para a fiscalização da atividade de mineração, é mais um fator a ser considerado na cadeia de responsabilidades pelo rompimento de barragem da Vale e a tragédia de Brumadinho.

O orçamento público é fruto de decisões políticas que expressam prioridades estabelecidas pelo governo, mas também, em alguns casos, intenções não explícitas. No caso da mineração no Brasil, o interesse do governo é marcado, historicamente, pela geração de superávits comerciais a qualquer custo. Para tanto, a grande mineração…(leia mais no Nexo Jornal).

A mercadoria não vale a gota de sangue de nenhum de nós

Quando a lama tóxica que irrompeu da barragem da Vale em Brumadinho (MG), em seu caminho de destruição, chegou às margens da aldeia Pataxó Hã-hã-Hãe, o cacique Hayó afirmou: “o nosso rio está morto. Estamos com o coração ferido, pois agora não temos como sobreviver”. Diante dos cadáveres dos peixes e do próprio rio Paraopeba, a aldeia – que ali se fixou na tentativa de escapar da hostilidade enfrentada em seu local de origem – enfrenta agora mais um efeito colateral do mesmo modelo de desenvolvimento que fez de suas terras alvo de disputas.

Em 2015, quando a lama vinha de Mariana, ocorreu o mesmo com as cerca de 126 famílias Krenak que então viviam junto ao Rio Doce. Três anos após o ecocídio, impossibilitadas de seguir suas tradições de caça e peça, as sete aldeias Krenak seguem dependendo da assistência do Estado para obter alimentação antes abundante.

A sanha da mineração também corroeu por longos anos as terras Yanomami, em Roraima, no extremo norte do país. Em livro escrito junto ao antropólogo Bruce Albert[1], David Kopenawa nos conta a história de massacres e resistência de seu povo diante da epidemia que atingiu as aldeias (e o mundo), promovida pelo “povo da mercadoria”. Se é verdade que a luta indígena garantiu a demarcação daquela Terra indígena (TI), é também verdade que as investidas contra ela não cessaram: as denúncias contra o garimpo ilegal na região são constantes e se desdobram também em ataques a povos em isolamento voluntário, como os Moxihatétéa. Além disso, em Roraima enfrenta-se de grilagem de terras a grandes projetos, por exemplo, a construção da Linha de Transmissão de energia, que atravessa a terra indígena Waimiri-Atroari.

Já em Pernambuco, onde vivem os Pankararu, as ameaças de morte tem sido constantes, como denunciaram os indígenas ainda ontem. Ali, são os posseiros que antes moravam na terra já demarcada que levam a cabo a violência.  Quando, em 2018, o pedido de usufruto exclusivo da terra feito pelo povo há 25 anos foi aceito pelo Estado, os posseiros receberam indenização para deixarem o local, mas afirmaram desde o início que as coisas não sairiam conforme o combinado. As palavras já se concretizaram em três incêndios em escolas e postos de saúde indígenas, entre outubro e dezembro do ano passado. Os bilhetes ameaçadores enviados esse ano, por enquanto, não saíram do papel.

Tradição colonial ameaça indígenas

A lista de ataques aos direitos e à vida indígena é longa e acontecem de norte a sul do Brasil, como nos mostra o relatório produzido anualmente pelo Conselho Missionário Indigenista (CIMI), assim como a história de nosso país. A combinação de grandes empreendimentos, apropriação de territórios e racismo institucional é velha conhecida dos hoje mais de 900 mil indígenas brasileiros e, apenas nesse recente 2019, já foram seis as invasões às suas terras denunciadas pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil.

Se os ataques acabam sendo estranhamente parecidos entre si, é bom lembrar que a multiplicidade do que chamamos de “índio” é enorme: atualmente são mais de 300 etnias, com línguas, tradições, relações com a terra muito distintas. Tal diversidade étnica e cultural, assim como o direito originário às terras que tradicionalmente ocupam, negados pela política assimilacionista[2] exercida pelo Estado desde que o Brasil é Brasil, foram finalmente consagrados pelo artigo 231 da Constituição Federal de 88, após muitas mobilizações:

Trecho do documentário Índio Cidadão com a fala de Ailton Krenak sobre o seu discurso na Assembleia Constituinte

É bem verdade que entre a garantia constitucional e a efetivação de direitos o caminho a ser percorrido é longo, em especial quando diante de interesses econômicos das proporções dos que desafiam as vidas indígenas. A falta de prioridade tem sido uma marca das ações do país nessa área, apegado como está às suas tradições coloniais, e se evidencia de muitas formas.

Desmonte da Funai

Uma das maneiras de percebê-la é a partir das análises dos recursos públicos investidos na execução das políticas públicas destinadas a promover os direitos indígenas. A Fundação Nacional do Índio (Funai), principal órgão responsável por efetivar tais direitos, tem sofrido um desmonte sistemático que resulta no minguar de sua capacidade orçamentária, como nos aponta o artigo de Alessandra Cardoso, assessora política do Inesc.

Adicionada à pouca capacidade orçamentária da Funai, a Medida Provisória 870/2019 e os Decretos publicados pelo novo presidente levam a situação do órgão para outro patamar de gravidade. No que tange ao tema desse artigo, a medida provisória de reestruturação do governo e seus decretos complementares comete ao menos dois grandes ataques: retira a Funai do Ministério da Justiça, e a esvazia de suas principais atribuições, transferindo a demarcação e homologação de terras e o licenciamento ambiental para o Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento (MAPA).

Tais proposições implicam em um forte ataque aos direitos constitucionais indígenas e é fundamental que entendamos o porquê. Em primeiro lugar, por uma questão principiológica: as TI são por definição terras da União, de usufruto dos indígenas. Cuidar das terras públicas brasileiras é uma das atribuições do MJ, não havendo assim o que justifique a diferença de tratamento para as TI em relação às outras terras públicas. Além disso, a retirada da Funai do Ministério da Justiça ignora a expertise deste órgão para lidar com os principais desafios enfrentados na área, tais como a crescente judicialização envolvendo as demarcações e os constantes conflitos fundiários que exigem, inclusive, ação sólida e urgente da Polícia Federal para proteção dos indígenas.

Por fim, levar para o MAPA as atribuições de demarcação e homologação de terras, sendo esse um órgão historicamente conectado ao interesse dos ruralistas é, difícil acionar outra expressão, entregar o ouro ao bandido. Da mesma forma, transferir o licenciamento para este mesmo órgão implica em ampliar as influências e lobbys dos grandes empreendimentos, transformando os territórios indígenas em objeto de barganha. Fatiada, distante de suas principais funções e desmontada, a Funai caminha para se tornar figurativa e os casos de violência que aqui já comentamos tendem a se multiplicar e intensificar, pois que a tolerância do Estado para com esses crimes parece se explicitar.

Janeiro Vermelho

Em contraposição às medidas tomadas pelo governo, que muito rápido mostrou a que veio, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) lançou a campanha “Janeiro Vermelho – Sangue Indígena, Nenhuma Gota a mais”, que culminará em atos espalhados por todo país e também em manifestações internacionais de apoio hoje, no dia 31 de janeiro.

O apoio, participação e solidariedade de nós, não índios, é fundamental por um sem número de motivos. Quem sabe o primeiro deles seja o de declararmos, em alto e bom som, que não compactuamos com o etnocídio e genocídio que construíram o país, e que agora parecem querer ainda mais espaço. Quiçá o segundo seja o de não deixar se esvaírem as conquistas da Constituição de 88, para os índios e para todos nós.

Mas talvez o mais importante seja o de afirmar com firmeza que não precisamos ser, como Davi Kopenawa chama os brancos, “o povo da mercadoria”. A sanha do modelo de desenvolvimento que matou e mata rios, terras e povos indígenas é a mesma que retira direitos trabalhistas, acaba com a aposentadoria, mata a juventude negra, distribui lama tóxica em nossas cidades. Como afirma o xamã:

“Todas as mercadorias dos brancos jamais serão suficientes em troca de todas as suas árvores, frutos, animais e peixes. As peles de papel de seu dinheiro nunca bastarão para compensar o valor de suas árvores queimadas, de seu solo ressequido e de suas águas emporcalhadas. Nada disso jamais poderá ressarcir o valor dos jacarés mortos e dos queixadas desaparecidos. Os rios são caros demais e nada pode pagar o valor dos animais de caça. Tudo o que cresce e se desloca na floresta ou sob as águas e também todos os xapiri[3] e os humanos têm um valor importante demais para todos as mercadorias e dinheiros dos brancos.”

A mercadoria não é maior que a gente – e não vale as gotas de sangue de nenhum de nós.

Programação dos atos do Janeiro Vermelho

 

[1] “A queda do céu: palavras de um xamã yanomami” Kopenawa, D & Albert, B. São Paulo, Cia das Letras, 2015.

[2]  Narrativa segundo a qual os indígenas devem ser “integrados à sociedade brasileira”, podendo se “desenvolver economicamente como os demais brasileiros” que fundamenta a entrada do grande capital em suas terras e serviu de motor para os massacres realizado contra os indígenas pelo Estado Brasileiro.

[3] Espíritos que dançam e orientam os xamãs Yanomami.

Visibilidade Trans 2019: resistências necessárias

Em 2019, o Dia da Visibilidade Trans parece ganhar mais importância do que nunca no Brasil. Se já éramos o país que mais mata pessoas trans e travestis do mundo, pelo menos contávamos com o reconhecimento pelo Estado da necessidade de atuar para reverter este quadro por meio de políticas públicas.

No dia 2 de janeiro, sem o menor pudor, o presidente Jair Bolsonaro assinou a Medida Provisória 870, que não menciona a população LGBTI das diretrizes do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. No dia 10 de janeiro, o Ministério da Saúde retirou de sua página oficial a cartilha de saúde dos homens trans, uma publicação voltada para um público com pouquíssimo acesso à saúde especializada – existem somente 11 ambulatórios voltados para a população trans no país.

Ainda que o novo governo tenha mantido estruturas já existentes, como a Diretoria de Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, vinculada à Secretaria Nacional de Cidadania e o Conselho Nacional de Combate à Discriminação, A MP torna invisíveis os LGBTI, já que outros públicos atendidos pelo Ministério estão citados, como as mulheres, idosos, crianças, adolescentes e jovens, pessoas com deficiência e indígenas. A MP 870/19 tem validade desde sua publicação, e deverá ser aprovada pelo Congresso Nacional ainda em fevereiro, sendo que o texto poderá sofrer mudanças por meio de emendas parlamentares.

De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais – ANTRA, no ano de 2018 foram 163 assassinatos. São mortes sempre cruéis, com presença de tortura, e até mesmo filmagens que são postadas nas redes sociais. Essas vidas brutalmente ceifadas carregam uma simbologia que reforça a exclusão e a discriminação – pois é ao mesmo tempo o extermínio de uma pessoa, de um corpo, mas também uma mensagem social de não aceitação da diferença.

Durante o período eleitoral, assistimos aos discursos de candidatos, políticos e religiosos de vertente conservadora exacerbando a masculinidade violenta, e, ao mesmo tempo, foram registradas diversas denúncias de ataques a pessoas trans e travestis. O que se anunciava com o retrógrado projeto “Escola sem partido”, baseado no fim de algo que nunca existiu, a saber, a “ideologia de gênero”, culminou em um enorme esquema de divulgação de fake news (notícias falsas) ainda sem uma resposta dos Tribunais Eleitorais sobre quem produziu e disseminou esses conteúdos.

A autorização social para a violência, apoiada no machismo e no racismo estruturais de nossa sociedade, ganha legitimidade como política de Estado na medida em que vão sendo publicados atos pelo poder Executivo – sem diálogo com a sociedade – que suprimem direitos ou impõem novas políticas que podem resultar em mais violência com base nas discriminações de gênero.

Da “bela, recatada e do lar”, evoluímos em apenas 2 anos para o modelo de família onde o homem é o centro da sociedade, tendo o direito ampliado à posse de armas com objetivo de proteger seu “patrimônio”, incluídos aí não só os bens materiais, mas também as mulheres e as crianças, vistas não como seres humanos autônomos, mas como suas propriedades. Aprovada por meio de decreto, a ampliação da posse de armas é mais um ato no “pacote de violência” do novo governo, em um país onde mais da metade dos feminicídios são cometidos por arma de fogo. Na primeira semana do ano, os “príncipes vestidos de azul” já tinham assassinado 21 mulheres, dado que pode ter chegado a mais de cem tentativas de feminicídio até o dia 29 de Janeiro. Neste mesmo país, o único parlamentar homossexual assumido, Jean Wyllys, reeleito com 24 mil votos pelo Rio de Janeiro, desistiu da legislatura por temer ser assassinado e decidiu deixar o Brasil. As mensagens recebidas por ele e publicadas na mídia demonstram a forte misoginia e homofobia social: são recorrentes as ameaças de estupro.

O Dia da Visibilidade Trans surgiu em 2004, quando travestis, mulheres e homens trans entraram no Congresso Nacional para lançar a campanha “Travesti e respeito”. Desde então, foram muitas conquistas dos movimentos sociais pela saúde e despatologização, por promoção de políticas voltadas para inserção no mercado do trabalho e por mais presença em espaços de poder. Em 2018, o Tribunal Superior Eleitoral reconheceu o direito ao nome social para as candidaturas, e foi eleita em São Paulo a deputada estadual Erika Malunguinho – mulher, negra e trans.

Se o governo tem como diretriz “Deus acima de todos” e uma ministra que se declara “terrivelmente cristã”, trata-se de uma teocracia, não de uma democracia. Estamos sob a mira de quem não respeita o Estado laico e a Constituição Federal. Estamos nos referindo, portanto, à cumplicidade do Estado na violação de direitos humanos. Mas o 29 de janeiro – Dia da Visibilidade Trans – está vivo e presente para reafirmar a existência de cidadãs e cidadãos trans e travestis, brasileiros e brasileiras, que continuarão a lutar por uma sociedade mais justa, inclusiva, diversa…e menos triste.

 

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Os “dejeitos” da mineração no Brasil

Foto: Maria Júlia Andrade/ Brasil de Fato

Impossível evitar o uso da palavra criada pelo presidente Bolsonaro em seu primeiro pronunciamento sobre o rompimento da barragem da Vale S.A, em Brumadinho (MG), que tragicamente leva centenas de vidas.

A nova palavra funde dejetos com rejeitos, esta última, vale lembrar, assimilada ao vocabulário da grande maioria dos brasileiros há pouco mais de três anos, quando do rompimento da barragem do Fundão, em Mariana. “Dejeitos” descreve bem a grande mineração no Brasil e sua relação com o Estado brasileiro, com as vidas humanas, com os trabalhadores e com o meio ambiente.

O que aconteceu? Como vão responder por esse crime a empresa, cujo lema é “Mariana nunca mais”; o governo federal, que tem uma supostamente boa Política Nacional de Segurança de Barragens e o governo estadual, que licencia a maioria dos projetos e suas barragens.

Não há resposta fácil, ou possível de ser aceita. Nesse momento, cabe uma reflexão febril sobre como excrementos da mineração se multiplicaram tão rapidamente no Brasil nos últimos 15 anos, sob influência do chamado ciclo de commodities minerais.

A Vale S.A manteve firme sua liderança na produção mundial de minério de ferro por mais de década. A produção, que em 2000 era de 123,5 milhões de toneladas, saltou para 366,5 milhões de toneladas em 2017, sendo esperado novo recorde para 2018.

A extração recorde, ano após ano, foi combinada com a redução sistemática dos seus custos de produção graças à sua agressiva terceirização em tempos de flexibilização da legislação trabalhista, entre muitas outras coisas. Aliás, todas as vidas humanas são igualmente valiosas, mas precisamos nos perguntar: quantos trabalhadores terceirizados foram soterrados pela lama grossa? A combinação de produção recorde e custos reduzidos garantiu à Vale a sua classificação em 2019 como a mais valiosa empresa de minério de ferro do mundo.

O Estado brasileiro, por sua vez, apoiou fortemente a redução de custos, estimulando o crescimento acelerado da produção e, logo, a geração de excrementos minerais. Nos últimos 15 anos, a Vale S.A figurou com a quarta empresa que mais recebeu empréstimos do BNDES. Além dos empréstimos subsidiados, a Vale conta, neste caso há mais de 50 anos, com isenção do pagamento do Imposto de Renda de Pessoa Jurídica (IRPJ) para suas operações na Amazônia. Isto, graças aos incentivos fiscais concedidos pela SUDAM, renovados pelo Congresso Nacional no final de 2018 e sancionados pelo Presidente Bolsonaro, descumprindo a Lei de Responsabilidade Fiscal.

Os instrumentos de licenciamento, fiscalização e regulação, sob responsabilidade do Estado brasileiro, deram seguramente sua contribuição à tragédia que estamos vivendo. Quem ainda pode duvidar da relação entre as fragilidades dos licenciamentos conduzidos pelos estados e as deficiências de fiscalização, acentuadas em tempos de penúria fiscal, e o rompimento da barragem? Que governo pode, depois disto, defender veementemente uma ainda maior flexibilização do licenciamento ambiental no país?

A Lei de Segurança de Barragens ou não foi suficiente ou não foi cumprida, possivelmente os dois. Sobre este ponto, cabe lembrar que, segundo a empresa, a barragem que se rompeu estava inativa há três anos, “em processo de descomissionamento”, ou seja, em processo de desativação.

Fica a pergunta: nestes casos, os procedimentos de segurança e fiscalização são os mesmos? Se olharmos os objetivos da Política Nacional de Segurança de Barragens (Lei 12.334 de 2010) vemos que entre eles está o de “regulamentar as ações de segurança a serem adotadas nas fases de planejamento, projeto, construção, primeiro enchimento e primeiro vertimento, operação, desativação e de usos futuros de barragens em todo o território nacional”. O que diz o regulamento no caso de desativação? Ele foi cumprido?

Respostas não repõem vidas, mas elas precisam ser dadas, pela empresa e pelo Estado brasileiro. O que temos é uma tragédia humana criminosa, recorrente e sem precedentes na história da mineração no Brasil, que aparece surrealmente como produto do crescimento assustador do volume de “dejeitos” produzidos pela mineração.

Talvez, tais excrementos minerais, aprisionados por centenas de barragens, espalhadas em sua maioria por Minas e Pará, estejam se rebelando: os do Fundão estimularam os do Feijão. Estes últimos, por sua vez, talvez tenham também sido estimulados pelo desgosto do esquecimento, provocado pelo processo de desativação.

Assim, ressentidos e revoltados, romperam ferozmente estruturas de contenção, avançaram violentamente e em bloco rumo à liberdade e ao reconhecimento, passando por cima de vilas, povoados e alojamentos de trabalhadores que, tragicamente, reuniam humanos responsáveis pela sua criação.

No Brasil de hoje, dia 25 de janeiro de 2019, tudo soa tão surreal e trágico que o limite entre a realidade e a fantasia perde sentido.

Como chegamos à era Trump – nos EUA e no Brasil

É impossível não traçar paralelos diante da surpreendente eleição de Jair Bolsonaro para a presidência do Brasil em novembro de 2018 e a eleição de Donald Trump no final de 2016 nos Estados Unidos. Tanto que a imprensa internacional passou a chamar o então candidato Bolsonaro de Brazilian Trump para facilmente traduzir a seus leitores e audiência o que ele significava. Afinal, eram os dois participantes de processos eleitorais democráticos e que se apresentavam orgulhosamente antidemocráticos com discursos populistas antidireitos.

Ambos foram eleitos ancorados em uma agenda de retrocessos em direitos, agudização das medidas de austeridade e promessas de avanço na agenda neoliberal, assessorados fortemente por familiares. Além disso, também se identificam e se unem pela própria aliança entre os dois países, buscada em nome dos interesses dos grupos que circundam os dois presidentes.

Em um momento de convergência das crises econômica e climática, de dificuldade dos sistemas internacionais de proteção de direitos em fazer com que seu papel seja reconhecido e garantido, ambos utilizaram a insatisfação para vender uma agenda de mais austeridade e mais conservadorismo como resposta à população. Sem muitas propostas concretas, mas com um discurso destrutivo cuidadosamente construído, ambos venderam soluções simples para um momento de enorme complexidade. Deixaram analistas e ativistas surpreendidos.

Acreditava-se, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, que haveria um despertar e que algo aconteceria para impedir a eleição de lideranças professando discursos de ódio, incitando animosidade e violência e ameaçando a institucionalidade. Os índices de rejeição eram altíssimos e, mesmo assim, não o suficiente para impedir que chegassem ao cargo.

Contudo, o choque de suas eleições não são casos isolados. Vemos processos semelhantes sendo postos em marcha na Hungria e nas Filipinas, em eleições locais pela Europa, em que a agenda de desmanche de direitos e defesa de valores conservadores estão surpreendendo ativistas e analistas que confiavam que o patamar de institucionalidade que alcançamos não seria desafiado a esse ponto. Nunca antes tivemos lideranças orgulhosas de não quererem fazer parte do jogo democrático, de quebrarem regras mínimas de respeito (e demonstrarem desprezo) às instituições e nos falta preparo para responder à altura.

Começamos por ter dois presidentes eleitos que não conquistaram a maioria dos votos. O sistema estadunidense de votos facultativos e de colégio eleitoral não premia a maioria numérica de votos, mas a maioria de colégios eleitorais. Trump recebeu 46.4% dos votos vaĺidos (62.984.825) contra 48.5% (65.853.516) de sua oponente Hillary Clinton, mas eles significaram 306 colégios eleitorais contra apenas 232 para Clinton. O mesmo aconteceu no Brasil, onde o voto é obrigatório: no segundo turno, 57.797.073 pessoas votaram por Bolsonaro enquanto 89.504.543 não votaram por ele.[1]

E o mesmo também ocorreu na Hungria, nas Filipinas e com o Brexit no Reino Unido. Não foi a maioria que votou pelos retrocessos, embora não tenha conseguido transformar essa oposição em ação concreta para barrar os projetos reacionários em curso em prol de proteção a direitos garantidos. Nas Filipinas, vemos que o apoio a esse novo discurso de recuperação de valores conservadores ligados à igreja e à família, de combate ao crime com mão firme, de combate à corrupção apesar de ser bastante corrompido, tem tração suficiente para durar para além do mandato de uma liderança eleita com essa plataforma e deve se estender para eleições futuras. Na Hungria já dura oito anos o governo autoritário de Viktor Orban e novamente a maioria não foi capaz de conter o avanço de sua agenda.

Cobertura da mídia tradicional

No Brasil, com a intensa atuação dos familiares de Bolsonaro nas eleições presidenciais, além dos cargos no legislativo que seus filhos lograram garantir – um filho senador, um filho deputado federal e um filho vereador no Rio de Janeiro que não foi eleito deputado federal porque desistiu da candidatura – cria-se uma dinastia e seus filhos tem se portado publicamente como representantes do presidente, inclusive em declarações sobre decisões em temas de política externa. A falta de preparo de sua família para tratar de temas delicados e com enormes consequências, como a mudança da embaixada brasileira em Israel para Jerusalém, causa espanto.

Uma das explicações para o sucesso da família Bolsonaro em sua campanha foi o uso da internet. O presidente eleito se ausentou de quase todos os debates eleitorais, participando de apenas dois antes mesmo da candidatura de Fernando Haddad ser definida[2]. Após a definição de Haddad como candidato do PT em substituição ao ex-presidente Lula, impedido de concorrer, e o atentado sofrido por Bolsonaro no dia 6 de setembro, ele não participou de debates, apenas entrevistas e teve bastante tempo dedicado a si pelos jornais, revistas e canais de televisão no Brasil durante todo o período entre sua alta hospitalar e o restante da campanha eleitoral. Ficou clara a falta de equilíbrio no tempo fornecido a cada um dos dois candidatos do segundo turno e de forma gritante, os jornais evitavam chamá-lo pelo que é: um populista de extrema direita[3] e forneceram plataforma para que o candidato pudesse expor suas ideias calamitosas com roupagem de “controversas” e “polêmicas”.

Nos Estados Unidos, a cobertura da mídia também impactou positivamente a campanha de Donald Trump. Em pesquisa realizada pelo Kennedy School’s Shorenstein Center da Universidade de Harvard, logo após o pleito, a cobertura realizada pela grande mídia no país foi considerada corrosiva, por ter trazido majoritariamente notícias negativas. De acordo com o autor do estudo, Thomas Patterson, a cobertura negativa tem e teve consequências partidárias.

“A mídia tradicional destaca o que há de errado com a política sem nos mostrar o que estaria correto. É uma versão da política que premia um certo jeito de fazer política. Quando tudo e todos são relatados como profundamente errados e cheios de falhas, não faz sentido fazer distinções, o que acaba premiando quem possui mais falhas. Civilidade e propostas sensatas não fazem mais parte das manchetes, o que dá voz àqueles que têm talento para a arte da destruição.”[4]

E completa ainda lembrando que apesar da direita dizer que a mídia é majoritariamente liberal, os ataques aos governos fazem com que a mídia reforce o discurso antigoverno e anti-política da direita.

Trump recebeu cerca de 15% mais cobertura que Clinton na campanha eleitoral de 2016, de acordo com o mesmo estudo. Não há números para quantificar a atenção extra recebida por Bolsonaro na campanha eleitoral no Brasil, mas seguramente é algo ao redor do mesmo patamar ou acima dele. Duas redes de televisão de alcance massivo cortejaram o candidato com o intento de tornarem-se a “Fox News do Brasil”. Uma delas – concessão a uma grande liderança evangélica e também dona de um portal de notícias – criou regras internas que impediam críticas a Bolsonaro e fomentavam notícias negativas contra Haddad, levando uma editora de notícias sênior a se demitir. Ficou claro durante a campanha que a mídia tradicional brasileira não só estava participando das eleições, como estava apostando em um candidato ser eleito e decidiram por cortejá-lo, esperando estar em suas graças em um eventual governo.

Importação da tática das fake news

A imprensa brasileira tem um terrível histórico de intervenção em processos eleitorais e dessa vez, não foi diferente. Mas ela não foi o único canal que desequilibrou a disputa eleitoral. Assim como nos EUA, a capilaridade das redes sociais foi essencial para reduzir a altíssima rejeição dos eleitores ao candidato e transmitir notícias falsas – as famosas fake news. O uso dessa tática de desinformação foi tão bem sucedido nos EUA que foi importado para outros processos eleitorais e sempre com as digitais de Steve Bannon, o estrategista das direitas e ex-coordenador de campanha de Trump.

Bannon soube se aproveitar do fato de que à época 65% dos adultos[5] nos Estados Unidos utilizava redes sociais (hoje esse número é estimado em 71%[6]) e aliou-se à infame empresa Cambridge Analytica para criar uma estratégia que logrou garantir a Casa Branca à Donald Trump e seu grupo a partir do uso de Google, Snapchat, Twitter, Facebook e Youtube. A principal ferramenta no entanto foi a utilização do Facebook, que forneceu (de forma irregular) dados de milhares de usuários que permitiram direcionar mensagens de campanha. A falta de controle do Facebook, aliada à estratégia da Cambridge Analytica, foi extensamente documentada em reportagens que revelaram a relação entre a manipulação das redes sociais e a eleição de Trump.

A empresa foi criada a partir de experimentos de um professor de psicologia na Universidade de Cambridge, quando a universidade se recusou a permitir que seus experimentos fossem utilizados para fins comerciais. Primeiro surge a Global Science Research em 2014; mas a coleta de dados feita por Aleksandr Kogan é feita através de uma empresa chamada Strategic Communication Laboratories (SCL) que possui uma divisão eleitoral que promete utilizar mensagens direcionadas a partir de dados para entregar sucesso eleitoral. Seu braço nos EUA é a Cambridge Analytica que recebeu enormes investimentos de investidor bilionário Robert Mercer, apoiador de Trump e aconselhado por Steve Bannon. Além dos investimentos no desenvolvimento da empresa, Mercer também colocou à disposição da campanha de Trump enormes somas para que a empresa fosse contratada. Steve Bannon era também funcionário da CA e meses após garantir que seus laços com a empresa tinham sido cortados, cheque da campanha de Trump por serviços da CA foram entregues em um endereço de Bannon em Los Angeles.

O fato é que estima-se que cerca de 100 a 185 mil pessoas tenham preenchidos questionários e disponibilizado seus perfis para coleta de dados sem saber que isso levaria a uma rede que alcançou cerca de 30 milhões de perfis do Facebook e possibilitou que usuários fossem mapeados sem seu consentimento. Cada like e cada post foi analisado por operadores buscando meios de influenciar as eleições nos EUA. No Reino Unido, a CA está sendo investigada pelo Parlamento pela sua atuação possivelmente ilegal na campanha pelo Brexit; de acordo com declarações do ex-diretor da empresa ao parlamento britânico em março desse ano, “pode-se dizer razoavelmente que o resultado do referendo teria sido diferente.”

E enquanto o impacto da CA em si nas eleições estadunidenses é difícil de medir, o uso do próprio Facebook pela campanha, não. A campanha de Trump nunca escondeu o seu uso estratégico, utilizando 80 % do seu orçamento de campanha para mídias digitais no Facebook:

“Joel Pollak, editor do Breitbart, escreveu em suas memórias da campanha sobre os ‘Exércitos de Amigos de Trump no Facebook’ ultrapassando os portões da mídia tradicional. Roger Stone, um colaborador antigo de Trump, escreveu em suas memórias da campanha sobre o foco geográfico em cidades para espalhar a falsa notícia de que Bill Clinton havia tido um filho fora do casamento, e selecionando quem receberia baseado em preferências em música, grupo etário, cultura negra e outros interesses urbanos”.

Além disso, há toda a questão levantada pela investigação do promotor especial Robert Muller sobre a possível interferência russa no processo eleitoral, pela compra de anúncios no Facebook e por possivelmente terem hackeado o Partido Democrata. Mas no fim do dia, Facebook auxiliou a campanha pela ferramenta que é. No Brasil,

As eleições de 2018 representaram uma mudança de paradigma sobre campanha política vigente no país desde 1989, provocada pelo efeito da Operação Lava-Jato no sistema político. Aceitando o forte processo de deslegitimação que a Lava Jato lhe impôs, o sistema político realizou fortes modificações na estrutura das campanhas políticas. Entre estas, vale a pena destacar a redução do período de campanha, do tempo gratuito na TV e do bloco de propaganda gratuita no horário nobre. Todas estas alterações podem ser entendidas dentro de uma lógica de redução dos elementos de debate públicos nas campanhas políticas. Acrescente-se a estes elementos a diminuição da campanha de rua e dos comícios. Com menos atividades públicas, abriu-se, pela primeira vez desde 1989, campo para a campanha exclusivamente privada, como a de Bolsonaro, centrada quase exclusivamente nas redes sociais – ele tinha muito pouco espaço no horário eleitoral gratuito – e no interior das redes, naqueles circuitos mais privados possíveis como é o caso das listas de WhatsApp.” 

Como nos EUA, a estratégia de comunicação da campanha da direita investiu pesadamente no uso das redes sociais. Segundo dados, o Brasil tem 62% da população utilizando redes sociais – Youtube, Facebook e Whatsapp em ordem de usuários (60, 59 e 56% da população utiliza essas redes) e possui o segundo maior tempo diário dedicado a redes sociais no mundo – 3h e 39 minutos, apenas atrás da Filipinas.

Além disso, os brasileiros e brasileiras têm um grau muito baixo de confiança nas instituições[7]. A pesquisa realizada pelo Instituto da Democracia em março de 2018 revela que a confiança nos partidos políticos está em seu nível mais baixo desde 2006, e que apenas 19% dos entrevistados estão satisfeitos com a democracia no Brasil e mais de 80% estão insatisfeitos ou muito insatisfeitos. Isso já era algo apontado há muitos anos pela Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político, que criou propostas para democratizar o sistema político, para além do eleitoral e ampliar a qualidade da democracia no país. Com o envolvimento de partidos políticos em escândalos de corrupção e com a política aberta de barganhas no Congresso e nos corredores do palácio presidencial, tem sido difícil para a população crer que essas agremiações vão proteger o interesse público. Sem mencionar o papel que tiveram em extensivas negociações para a candidatura de Bolsonaro e apoio à sua agenda no primeiro e/ou segundo turno, negociando princípios para se tornarem parte da base do próximo governo.

Mas esse cenário de uso intenso de redes sociais e pouca confiança em instituições, torna-se solo propício para que discursos cuidadosamente construídos como antiestablishment e sinceros, e notícias falsas, sejam espalhadas de forma capilar. As mensagens são criadas sob medida para os perfis, definidos pelas redes sociais a partir de likes e compartilhamentos, sem contar o reforço que essas mensagens recebem de bots e de perfis falsos. Vimos isso claramente durante a campanha de Bolsonaro quando menções a apelidos dados ao candidato nas redes sociais geraram reações desmedidas em notícias sem nenhum conteúdo eleitoral. O melhor exemplo é um tuíte de uma notícia da Folha de São Paulo sobre um clássico dos botecos, o bolovo, que foi bombardeado por comentários em apoio ao candidato.

O que estudiosos têm dito com cada vez mais veemência é que a influência das redes sociais está desequilibrando processos democráticos e comportamentos através da manipulação. Recentemente, o autor de “Likewar: the Weaponization of Social Media”, P.W. Singer, afirmou categoricamente que “a maioria das pessoas não têm a consciência de que é constantemente manipulada por campanhas políticas e de marketing na internet —muito pouco do que ocorre hoje nas redes, seja um vídeo viral, uma hashtag ou foto, é espontâneo.”

Voltando ao fato de que no Brasil a confiança nas instituições é extremamente baixo e que temos um uso intenso de redes sociais, a campanha eleitoral de desenrolou muito mais em canais privados do que em debates públicos. E uma particularidade do Brasil são a prevalência de grupos de familiares e amigos no Whatsapp, que se entende se olhamos para o fato de que nas pesquisas sobre confiança nas instituições: família, amigos e igreja contam com alto grau. Vimos essa ferramenta ser utilizada de forma massiva para espalhar conteúdos falsos, principalmente a partir de setembro, e como essas mensagens provém de amigos e familiares, o nível de confiança nelas é maior do que se chegassem por outras vias.

Mesmo com os desmentidos sobre as notícias falsas relacionadas a Haddad, elas continuaram circulando. Parte disso foi a confiança das pessoas nas mensagens recebidas e repassadas e parte foi a manipulação ilegal da ferramenta em um esquema desvelado por jornalistas[8].

Como paralelo entre os dois processos eleitorais, podemos afirmar que foram candidatos eleitos sem a maioria dos votos, com campanhas que colocam o foco nas redes sociais, que tiveram apoio da mídia tradicional – explícito como no Brasil ou colateral como nos Estados Unidos. Também foram processos que se aproveitaram da liberdade de expressão para manipular informações, criaram mensagens emotivas e alimentaram o medo de seus eleitores através de canais privados, se aliando a agendas socialmente conservadoras para arregimentar apoio. Em ambos os casos, as igrejas neopentecostais tiveram um papel fundamental em apoiar e direcionar as mensagens das campanhas e dos governos. Isso fez com que ambos saíssem de seus nichos, de eleitorados específicos, e virassem figuras apoiadas por uma parcela expressiva, mesmo com suas falas machistas, racistas e retrógradas.

No Brasil, o processo eleitoral ainda teve como componentes importantes: a ingerência da mão pesada do poder judiciário com as ações politicamente motivadas da Operação Lava-Jato e com as decisões acovardadas do Supremo; e dos interesses econômicos das empresas privadas (desde Facebook ao grande agronegócio), das igrejas e de seus aliados, como a bancada BBB e outros que desconhecemos. Sabemos de seu diálogo com Steve Bannon e de sua desmedida admiração pelos Estados Unidos, mas não temos elementos suficientes para analisar que interesses estão por trás da candidatura de uma figura política que tem 30 anos de carreira sem destaque algum.

Na esquerda faltou emoção

Mas e a esquerda nos processos eleitorais desse tipo, como se comportou? Uma reflexão de uma ativista dos EUA reforça a importância de compreender as narrativas em jogo:

“Quando a esquerda finalmente se deu conta de quão ressonante e popular Trump era, respondeu da única forma que uma instituição que se orgulha de ser correta e superior poderia fazer: fazendo checagem de dados das afirmações e ações dele. Ao invés de se engajar com as emoções reais que atraíram as pessoas a ele, ridicularizaram seus apoiadores e ignoraram suas realidades emocionais. Enquanto Trump falou de sentimentos e valores e pintou o quadro de um mundo que genuinamente ressoava com as pessoas e apaziguava seus medos. Não se pode checar dados de um sentimento. Esperamos que isso sirva de lição”. E complementa: “a esquerda gastou muito pouco tempo no que realmente motiva politicamente as pessoas: valores, sentimentos e comunidade”.

A campanha da direita, nos dois países, foi muito mais emotiva do as campanhas de seus adversários. Trump e Bolsonaro certamente encamparam a imagem de homens comuns, indignados com as crises em seus países – econômica e social nos EUA, também política no Brasil e de valores comportamentais. Suas respostas para problemas complexos foram simplistas e no caso de Bolsonaro, estreitamente ligadas a valores conservadores; suas explicações passam por falta de Deus, falta de autoridade na família, e falta de patriotismo como causa das mazelas da vida cotidiana dos brasileiros e brasileiras. Mas ele não oferece solução, apenas aponta o problema, como Trump.

À oposição a eles e demais representantes da política tradicional faltou oferecer explicações que tivessem ressonância com as classes médias e classes populares. O problema é que discutir isso, pressuporia também desvelar a relação nada republicana entre partidos políticos e representantes de grandes lobbies e interesses econômicos. As portas giratórias entre os que ocupam altos postos governamentais de alto interesse público e altos cargos corporativos, as campanhas eleitorais financiadas com recursos privados, a captura corporativa de espaços de debate e decisão de interesse público em prol de lucro de poucos grupos econômicos, o papel dos bancos, da mídia e a relação deles com a vida pública. Mostrar que a corrupção é certamente um problema grave, mas não é ela que priva a maioria da população de viver em condições melhores com seus direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais atendidos.

“Nos Estados Unidos de Donald Trump e no Brasil de Bolsonaro, o capitalismo financeiro quebra e destrói relações sociais e vida associativa, provocando desorientação e isolamento do indivíduo. E, novamente, é dito a ele que o fracasso é culpa dele – e não de um sistema injusto. É uma estrutura fascista, sim, de novo tipo. Que está se internacionalizando e que vive do mesmo tipo de desrespeito e desumanização que fazia o fascismo anterior. Que quer dizer que o outro, por pensar diferente, merece morrer. E a classe média, que sempre odiou o pobre, agora está se sentindo mais à vontade para expressar, explicitar esse ódio. No fim, o ódio é exatamente o que o fascismo produz.”[9]

Ideologia de gênero e globalismo

Para a direita criar respostas às crises que vivemos, nos EUA, no Brasil e no restante do mundo também, cada vez mais comum é levantarem dois temas: ideologia de gênero e globalismo como as origens dos males que sofrem nossas sociedades. A ideologia de gênero não é nova e é um conceito vazio e maleável às necessidades do discurso conjugando de forma esdrúxula feminismo, teorias LGBTI e comunismo; Sonia Correa faz um histórico importante da construção de suas origens desde meados da década de 90 e seu uso nas esferas internacionais e na política internacional sobre questões de gênero. Ela recupera em seus escritos como a ideia foi formatada em negociações internacionais e nas altas esferas teológicas, em princípio na Igreja Católica, mas que hoje conta com a adesão de outras forças religiosas e também com apoio de um amplo espectro da sociedade: de biomédicos, psicanalistas, extremistas de direita, e até políticos da esquerda.

“Acima de tudo, os proponentes da agenda anti-gênero mobilizam lógicas e imaginários simplistas e constituem inimigos voláteis – aqui as feministas, lá os gays, acolá os artistas, por lá os acadêmicos, em algum outro lugar os corpos trans – alimentando pânico moral que distrai as sociedades de temas estruturais que deveriam estar sendo debatidos, como as crescentes desigualdades de gênero, classe, raça e étnicas.”

O mesmo acontece com o globalismo, sendo utilizado como conceito para defender valores cristãos, apresentado como a globalização econômica capitaneada pelo marxismo cultural, segundo definição do próximo Ministro de Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo[10]. O termo antigo, datado da década de 40 foi recuperado por Steve Bannon e seus discípulos, mas foi inicialmente identificado com o projeto expansionista nazista, depois utilizado para nomear atores internos nos EUA que poderiam colocar em risco a soberania nacional dos EUA ao apoiarem políticas internacionais, como em temas migratórios no pós-guerra. A semente do termo vem carregada de preconceito e se coloca como oposição aos projetos de interesse nacional – nos EUA, o “America First” e no Brasil, “Brasil acima de todos, Deus acima de tudo”.

O fato dos EUA capitanearem uma política como America First, muitas vezes imoral e egocêntrica, como no caso da separação de famílias, abre caminho para que outras lideranças deem passos antes inimagináveis diante do sistema internacional e diante dos próprios Estados Unidos. America First nao significa necessariamente apoio a outras lideranças, significa que o país não expressará sua desaprovação diante de políticas autoritárias. Enquanto não houver oposição direta à Trump, o que acontece em cada país, não o interessa – exceto nos países alvo dos discursos (de ataque ou defesa) da direita: Irã, Israel e Venezuela.

Para as sociedades civis dos EUA e do Brasil, e de outros países governados por líderes autoritários ou se encaminhando para que sejam, essas são más notícias. A militância desenvolvida há décadas, mas com maior profissionalização desde a década de 90 já está sofrendo ataques no que chamamos de redução ou encolhimento dos espaços democráticos e que tendem a ser intensificados. As organizações e movimentos sociais que lutam por direitos estão sendo nomeados os inimigos do progresso e o discurso de ódio contra ativistas têm crescido de forma perigosa. Vimos durante a campanha eleitoral no Brasil os ataques a jornalistas e ativistas crescerem de forma assustadora; vimos também que antes mesmo que o novo presidente assuma, há movimentação intensa no congresso para aprovar legislações como o ajuste da lei antiterrorismo para criar mecanismos de reprimir e encarcerar o dissenso.

Nos EUA, resistência no Congresso e legislaturas locais

Nos Estados Unidos, a eleição de Donald Trump gerou um movimento extremamente interessante de mulheres que organizou células locais e catalisou inúmeras candidaturas ao Congresso e legislaturas locais, alcançando um recorde de mulheres eleitas – 107 das 435 cadeiras, além do importantíssimo e oportuno controle do Congresso pelos democratas. O importante disso é que a partir de 2020 o congresso passará por um processo de redefinição dos distritos eleitorais[11].  Atualmente, uma estratégia posta em prática pelo conselheiro do ex-presidente George W. Bush, Karl Rove, chamada RedMap – Redistricting Majority Project – continua rendendo frutos para os republicanos nas eleições, mesmo recebendo menos votos, conseguem garantir o controle de distritos disputados.

A definição do distrito pode ser um atributo dos legisladores estaduais que recorrem a softwares e dados dos eleitores para definir quais são os limites dos 435 distritos congressionais do país, cada um representando aproximadamente 711.000 pessoas. Gerrymandering é o nome da prática de desenhar o distrito de acordo com interesses partidários para garantir o controle de um assento. Os republicanos, liderados por Rove, colocaram essa estratégia em prática depois de terem adquirido o controle do Congresso em 2010 e pressionado estados nos quais a legislatura estava encarregada do processo de redistritamento, para assumir o controle do processo e redesenhar as linhas distritais. Os democratas não esperavam por isso e nada como isso havia sido tentado antes, não nesta escala.

Normalmente, o gerrymandering usa duas técnicas: packing e cracking no inglês, algo como concentrar e pulverizar. No chamado packing, o partido encarregado do redistritamento tenta concentrar os eleitores do partido rival em poucos distritos para minimizar suas oportunidades de garantir assentos. No cracking, blocos de eleitores da oposição são distribuídos em muitos distritos variados para alcançar o mesmo objetivo, reduzir as chances do partido opositor. “Em preparo para o próximo censo, os democratas criaram um plano semelhante ao do RedMap. Eles o chamam de Advantage 2020, e dizem que esperam financiá-lo no valor de setenta milhões de dólares. Os republicanos, por sua vez, anunciaram o RedMap 2020. Seu objetivo de gastos? Cento e vinte e cinco milhões de dólares”.

Mas, além dos enormes investimentos que estão sendo feitos no futuro desenho dos distritos, pela primeira vez desde 1950, o Censo dos EUA planeja perguntar a todos que moram nos Estados Unidos se são cidadãos quando realizarem seu próximo censo decenal em 2020. Já imaginando que alguns imigrantes podem evitar responder à pergunta, o governo Trump quer tentar usar outros registros do governo para preencher as informações necessárias. E esse processo afetará fortemente o processo de redistritamento, os próximos 10 anos de política americana e como o orçamento é alocado aos estados – estimados US $ 800 bilhões por ano em fundos federais.

No Brasil, debate sobre reforma eleitoral e representação

No Brasil, o debate sobre reforma eleitoral e mudanças no modelo de representação deve crescer em 2019. Isso porque em outubro de 2017, o Congresso aprovou novas regras colaterais, mas não conseguiu apoio suficiente para avançar na discussão para adotar um novo modelo de votação. Houve bastante pressão de figuras conhecidas e de partidos de situação para que o voto distrital misto fosse adotado. Nele, diferente do que acontece hoje, com voto proporcional em lista aberta, os eleitores/as teriam candidatos/as apoiados pelos partidos em cada um dos distritos e o restante deles em listas pré-ordenadas.

Os defensores desse modelo alegam que ele pode facilitar maior controle social sobre a atuação dos parlamentares e aproximar eleitores de seus representantes. Entretanto, ele beneficiaria as figuras conhecidas e grandes partidos em detrimento da oportunidade de novos candidatos/as e partidos menores concorrerem de forma equilibrada. O MDB, partido que esteve na base de apoio de todos os governos desde 1989, não importando o espectro político de cada um deles, seria o maior beneficiado por esse modelo, o que mostra que seriam necessários muitos ajustes para que pudesse de fato aproximar a sistema político da população. Além do que, causa preocupação pensar que as atuais lideranças desse partido estariam a cargo de definir os distritos eleitores no Brasil, abusando do gerrymandering.

A reação das resistências

Há muito com o que se preocupar, mas também há muitos passos sendo tomados na direção correta. Temos visto que os movimentos sociais e ativistas têm conseguido cada vez mais fazer com que suas mensagens de solidariedade e justiça cheguem a públicos que não necessariamente os escutaria. Iara Pietricovsky disse em uma troca de mensagens, “eles trarão de volta a ideia do humanismo e da solidariedade, ou seja, são re-humanizantes (para nossas sociedades).”[12]

A reação da resistência tem conseguido conjugar de forma muito mais eficaz o que ocorre nas redes sociais e nas ruas e ocupar espaços como a direita fez com as campanhas eleitorais. A movimentação em torno da campanha de Haddad no Brasil, nas últimas semanas de outubro, deu uma amostra do que será possível fazer – tanto nas ruas, como nas redes através dos enormes grupos de mulheres formados e que estão criando núcleos locais de debate e apoio a ações, no Brasil e fora.

Há muito sendo feito. O fim de períodos igualmente sombrios sempre se deu por ação popular, por grupos e movimentos que não se intimidaram e criaram estratégias criativas e poderosas para quebrar regimes que não tinham o interesse público como princípio norteador. Não será diferente agora; há muito sendo feito nos Estados Unidos, no Brasil e em outras partes, para que grupos se articulem, ajustem mensagens e possam proteger nossas sociedades de maiores estragos e nos devolver a uma lógica de defender e garantir direitos conquistados para ampliá-los e universalizá-los e não mantê-los reféns de outros interesses.

 

*Ana Cernov é ativista de direitos humanos engajada na proteção dos espaços democráticos e em iniciativas para a construção de movimentos e defesa de justiça e igualdade. Atualmente milita no Coletivo por um Brasil Democrático em Los Angeles. Foi assessora da Coalizão para Ação Cívica Vuka! e antes disso, liderou o programa Sul-Sul da Conectas Direitos Humanos de 2014 a 2016. Trabalhou por 15 anos com sindicatos, movimentos sociais, organizações religiosas e ecumênicas e agências de desenvolvimento no Brasil e na América Latina. Possui bacharelado em Relações Internacionais e Mestrado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Esse artigo não reflete necessariamente uma opinião institucional e traz apenas a perspectiva pessoal da autora.

 

Bibliografia:

Avritzer, Leonardo. “Fake News legitimadas por grupos de família e igreja explicam eleição de 2018”. O Globo, 7 de dezembro de 2018, disponível em: https://blogs.oglobo.globo.com/ciencia-matematica/post/fake-news-legitimadas-por-grupos-de-familia-e-igreja-explicam-eleicao-de-2018.html, acesso em dezembro de 2018.

Bump, Phillip. “All the ways Trump’s campaign was aided by Facebook, ranked by importance”, The Washington Post, 22 de marco 2018, disponivel em: https://www.washingtonpost.com/news/politics/wp/2018/03/22/all-the-ways-trumps-campaign-was-aided-by-facebook-ranked-by-importance/?utm_term=.2a293558315a, acesso em dezembro de 2018.

Carty, Nicole. “Our movements are powerful. The institutional left is not the solution. Here is what we should do next.”, novembro 2016, disponível em:

https://medium.com/@nicolecarty/our-movements-are-powerful-92d6788bbbd5, acesso em dezembro de 2018.

Cernov, Ana & Pousadela, Inés.”¿Son las mujeres la última línea de defensa contra la deriva autoritaria brasileña?” Democracia Abierta, 6 de outubro de 2018, disponível em: https://www.opendemocracy.net/democraciaabierta/ana-cernov-in-s-pousadela/son-las-mujeres-la-ltima-l-nea-de-defensa-contra-la-deri acesso em dezembro de 2018.

Conectas. “SUR – Revista Internacional de Direitos Humanos, edição no 26o, dezembro de 2017. Disponível em: http://sur.conectas.org/revista-impressa-edicao-26/, acesso em dezembro de 2018.

Correa, Sonia. “Gender Ideology: tracking its origins and meanings in current gender politics”, The London School of Economics and Political Science – Engenderings Blog, dezembro de 2017, disponível em: http://blogs.lse.ac.uk/gender/2017/12/11/gender-ideology-tracking-its-origins-and-meanings-in-current-gender-politics/, acesso em dezembro de 2018.

Illing, Sean. “Author explains why Democrats will struggle to win the House until 2030”. Vox, 3 de junho de 2017, disponível em:

https://www.vox.com/conversations/2016/10/5/13097066/gerrymandering-redistricting-republican-party-david-daley-karl-rove-barack-obama, acesso em dezembro de 2018.

Ingraham, Christopher. “This is actually what America would look like without gerrymandering”. The Washington Post, 13 de janeiro de 2016, disponível em: https://www.washingtonpost.com/news/wonk/wp/2016/01/13/this-is-actually-what-america-would-look-like-without-gerrymandering/?utm_term=.450058bb5ce8, acesso em dezembro de 2018.

Instituto da Democracia. “A Cara da Democracia”. Marco de 2018, disponivel em: https://www.institutodademocracia.org/a-cara-da-democracia acesso em dezembro de 2018.

Kolbert, Elizabeth. “Drawing the Line – How redistricting turned America from blue to red”. The New Yorker, 27 de junho de 2016, disponível em: https://www.newyorker.com/magazine/2016/06/27/ratfcked-the-influence-of-redistricting, acesso em dezembro de 2018.

Sayuri, Juliana. “Entrevista: “A esquerda foi singularmente incapaz e burra nessas eleicoes”, diz Jessé Souza, The Intercept Brasil, 18 de novembro de 2018, disponivel em: https://theintercept.com/2018/11/18/jesse-souza-entrevista/, acesso em dezembro de 2018.

Schwartz, Mattathias. “Facebook failed to protect 30 million users from having their data harvested by Trump Campaign affiliate”, The Intercept, 30 de marco de 2017, disponível em: https://theintercept.com/2017/03/30/facebook-failed-to-protect-30-million-users-from-having-their-data-harvested-by-trump-campaign-affiliate/, acesso em dezembro de 2018. Em português em: https://theintercept.com/2017/03/31/o-facebook-nao-protegeu-30-milhoes-de-usuarios-de-terem-dados-acessados-por-uma-das-empresas-da-campanha-de-trump/

Youngs, Richard (editor). “The mobilization of conservative civil society”, Carnegie Endowment for International Peace, 2018.

https://carnegieeurope.eu/2018/10/04/mobilization-of-conservative-civil-society-pub-77366, acesso em dezembro de 2018.

We are Social & Hootsuite. “Global Digital Report 2018”, 9 de janeiro de 2018, disponível em: https://digitalreport.wearesocial.com, acesso em dezembro de 2018.

 

 

[1]  Os dados do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) apontam que 47.039.291 votaram por Haddad e um número muito expressivo de pessoas escolheu não votar em nenhum dos dois candidatos: 42.465.252 abstenções, ou votos brancos/nulos, somando assim os 89.504.543 eleitores que não votaram por Bolsonaro nessas eleições.

[2] Durante vários meses as pesquisas de opinião foram sistematicamente lideradas pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, candidato do PT, mesmo se encontrando ele preso após um julgamento politicamente motivado, encabeçado por um juiz que passa a ser ministro da Justiça de Bolsonaro. Como a condenação de Lula ainda poderia ser revogada em segunda instância, o Comitê de Direitos Humanos da ONU instou o governo a garantir seu direito de se candidatar à presidência, chamamento também feito pela Mesa de Articulação de Associações Nacionais e Redes de ONGs da América Latina, entre muitos outros. Entretanto, em tempo recorde, o STF decidiu que o pedido da ONU estaria em conflito com a lei da Ficha Limpa e no dia 11 de setembro passado decidiu impedir a candidatura de Lula e aceitar sua substituição pela do seu candidato à vice, Fernando Haddad, ex-prefeito de São Paulo e em grande medida desconhecido do eleitorado nacional.

[3] O Jornal Nexo ouviu pesquisadores e escritores internacionais para explicar o lugar que o deputado e capitão reformado ocupa no espectro ideológico mundial e o posicionar na extrema direita. Veja em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2018/10/17/O-que-%C3%A9-extrema-direita.-E-por-que-ela-se-aplica-a-Bolsonaro

[4]Tradução da autora de trecho de entrevista ao autor do estudo, trazida neste artigo: https://www.politico.com/blogs/on-media/2016/12/report-general-election-coverage-overwhelmingly-negative-in-tone-232307

[5]  Dados de 2015 de pesquisa realizada pela Pew Research Center http://www.pewinternet.org/2015/10/08/social-networking-usage-2005-2015/

[6] Dados da pesquisa Global Digital Report 2018, realizada pelas agências We Are Social e Hootsuite e divulgada em janeiro de 2018. https://digitalreport.wearesocial.com

[7] Dados da pesquisa “A Cara da Democracia no Brasil”, realizada em março de 2018, que tem como objetivo produzir um retrato atualizado de como o brasileiro enxerga a democracia no país e como se apropria de informação política. Veja em: https://www.institutodademocracia.org/a-cara-da-democracia

[8]https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/entenda-as-irregularidades-envolvendo-uso-do-whatsapp-na-eleicao.shtml

[9] https://theintercept.com/2018/11/18/jesse-souza-entrevista/

[10]https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/11/contra-o-globalismo-e-o-pt-conheca-frases-do-novo-chanceler-brasileiro.shtml

[11]https://www1.folha.uol.com.br/colunas/patriciacamposmello/2018/11/precisamos-falar-de-gerrymandering-e-hegemonia-republicana-no-legislativo.shtml

[12]  Troca de emails entre a autora e a ativista Iara Pietricovsky do INESC em 8 de dezembro de 2018.

>>> Leia a versão em inglês do artigo:

Forus: uma agenda positiva para 2019

Iara Pietricovisky também integra a direção executiva da Abong e o colegiado de gestão do Inesc.  O Forus é uma rede global inovadora que capacita a sociedade civil para uma mudança social efetiva. É uma organização que reúne 69 Plataformas de ONGs Nacionais (PON) e 7 Coalizões Regionais (CR) da África, América, Ásia, Europa e Pacifico – juntas representando mais de 22.000 organizações.

Assista ao vídeo e confira o artigo:

Vivemos tempos difíceis. De um lado um mundo, no limiar de uma explosão de um sistema político predominantemente autoritário e fascista (a não política) e do outro, de uma economia cada vez mais neoliberal, totalitária, que concentra riqueza e homogeniza. Sem falar do risco iminente das consequências do aquecimento do Planeta.

Diante desse cenário preocupante, o papel do Forus é, antes de tudo, ressaltar os princípios inspirados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, do Pacto Internacional relativo aos direitos econômicos, sociais e culturais; dos Acordos da Agenda 2030 e o da Biodiversidade e Clima. Trata-se também de agir numa agenda internacional positiva para além das que estão configuradas pelas Organizações das Nações Unidas (ONU) e tentar montar o quebra-cabeça do poder no mundo contemporâneo.

O Forus, então, pretende contribuir para outra abordagem da política de modo a transformá-la num espaço real de construção de valores, da ética, do direito de oposição e no qual o conflito contribui para a democracia. A democracia que queremos deve abarcar e valorizar a diversidade, a participação, a igualdade, a liberdade de ser e estar, a livre circulação. Não nos dobramos à servidão voluntária estimulada pelo medo histérico de um mundo real que se desenha na violência, na exclusão e nos imobiliza.

O papel do Forus também é o de buscar uma linguagem comunicacional inclusiva e global, onde todas e todos se sintam reconhecidos nas suas singularidades. O Forus pretende lutar contra as novas formas de dominação que emergem das mídias sociais e das novas tecnologias de comunicação, por exemplo, contra aquilo que atualmente se denomina como fenômeno do “firehosing” com o uso massivo de “fake news”, o que representa um risco real às democracias.

Manter o contato com as nossas bases (organizações e representantes da sociedade civil) é um outro desafio para Forus.  Isso implica que nos encontremos, cara a cara, graças às nossas formações e trocas diretas com nossos agentes; implica continuarmos conectados para criar fortes laços e cuidar uns dos outros.

É igualmente importante aprofundar a Iniciativa Global do Forus, que pretende ser uma das contribuições para contrapor a tendência mundial, promovendo um ambiente internacional favorável para o campo da cidadania mundial, tanto no aspecto político como do financiamento.

Como o Banco dos Brics irá atuar?

*Publicado originalmente no site da Carta Capital

Muitas pessoas indagam por que o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD ou Banco dos BRICS) é importante. As razões são diversas e, por vezes, contraditórias.

São vários os argumentos positivos, especialmente ancorados numa proposta bastante inédita: trata-se de instituição multilateral de desenvolvimento do Sul e para o Sul. Integrado pelos países dos BRICS – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul –, até agora o NBD tem emprestado somente para si. Existem movimentos para ampliar os sócios do Banco, que pode ser qualquer país integrante das Nações Unidas, mas a liderança continuaria sendo do Bloco.

A governança da instituição é inclusiva e democrática na medida em que os sócios têm igual peso, não importando o tamanho de sua economia. Os aportes de recursos são em montantes iguais e as decisões ocorrem por consenso ou maioria simples, um país um voto.

A centralidade de sua atuação está voltada para a promoção do desenvolvimento sustentável com ênfase na infraestrutura, um dos principais gargalos dos emergentes e dos países mais pobres. Neste sentido, se propõe a atender as reais necessidades de seus clientes, alinhado com os acordos de clima e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), entre outros.

Seguindo a narrativa do respeito mútuo e da observância da soberania nacional, os projetos são analisados e aprovados pelo Banco a partir dos padrões e leis locais, chamados de sistemas países. Com isso, diminuem as condicionalidades, medidas fortemente criticadas pelos países do Sul em relação aos empréstimos de instituições multilaterais tradicionais, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI).

Observa-se, ainda, preocupação em utilizar mecanismos financeiros adequados às realidades dos seus sócios. O NBD também busca ser “verde” do lado do funding. A primeira captação no mercado foi por meio de um bônus verde em renminbis, o que significa que os recursos dele derivados devem ser aplicados, obrigatoriamente, em projetos considerados verdes por padrões internacionais.

Há o compromisso de manter uma estrutura enxuta, eficiente e conectada com os países. O ciclo dos projetos pretende ser célere. Em apenas três anos de atuação efetiva, foram aprovados 26 projetos no valor total de U$ 6,5 bilhões. O NBD recebeu rating AA+ da S&P e da Fitch, consolidando progressivamente sua inserção nos mercados financeiros globais. Além disso, foi aberto o primeiro centro regional do Banco na África do Sul e o segundo, no Brasil, deverá entrar em operação em 2019.

Por fim, mencione-se uma abertura à interação com organizações da sociedade civil. Até o momento ocorreram diversos diálogos com Vice-Presidentes do Banco, em reuniões bilaterais ou às margens dos encontros anuais do Banco. Além disso, foram realizadas duas reuniões na sede do Banco com organizações da sociedade civil e a direção do NBD.

Mas, nem tudo que brilha é ouro! Os desafios que o NBD enfrenta não são de pequena monta. Existem muitas dúvidas sobre tratar-se de uma institucionalidade de nova geração, capaz de contribuir para um desenvolvimento efetivamente inclusivo e sustentável.

O que garante que os projetos colaboram para a consolidação de uma infraestrutura sustentável?

Aqui tem-se pelo menos dois problemas que dificultam uma resposta clara à pergunta. Em primeiro lugar até hoje não são de domínio público os critérios utilizados pelo Banco para conceituar “infraestrutura sustentável”. Assim, por exemplo, no Brasil apoiam-se projetos de energia eólica que mesmo sendo considerada renovável, a depender de como é produzida, pode gerar impactos sociais e ambientais expressivos. Na Índia, o NBD financia projetos de construção de estradas que reproduzem as mazelas do setor da construção civil local. São exemplos concretos de iniciativas que pouco resultam em sustentabilidade social e ambiental dos povos e comunidades daqueles países.

O segundo problema diz respeito à falta de transparência do Banco. Não somente não existem informações sobre o ciclo dos projetos aprovados, como o NBD não responde às demandas de informação apresentadas por estudiosos ou organizações da sociedade civil. Diante da fragilidade dos critérios e da ausência de informações, é impossível saber se, de fato, os projetos contribuem para a promoção de uma infraestrutura sustentável.

O que garante que os projetos são de qualidade?

Neste caso as incertezas também avolumam-se. A argumentação de que os mecanismos legais dos países protegem os projetos não se sustenta, especialmente considerando as notícias sobre empréstimos duvidosos. Menciona-se o caso de financiamento de U$ 300 milhões à empresa russa Sibur para melhorar a segurança ambiental de um complexo petroquímico na Sibéria. Essa companhia é controlada por três oligarcas do círculo íntimo do presidente Putin. Contando com muita influência política e econômica, estão acima da lei, e a prestação de contas se limita ao chefe do Executivo russo. Destaque-se, ainda, o apoio à empresa estatal sul-africana Transnet para expansão do porto de Durban, envolta em denúncias de corrupção.

Esses exemplos revelam não somente as limitações dos sistemas país, bem como a fragilidade das salvaguardas por parte do NBD. Põem em risco a reputação do Banco como reprodutor das velhas práticas dos bancos multilaterais de desenvolvimento tradicionais.

Qual a inovação do NBD em relação à inclusão e ao combate às desigualdades?

No que se refere à desigualdade de gênero, a atuação do Banco é praticamente inexistente. Organizações articuladas na rede BRICS Feminist Watch têm apresentado diversas propostas, como a de criação e implementação de uma Política de Gênero. O NBD alega não ter recursos para tal, revelando a falta de prioridade e o claro descumprimento dos ODS, especialmente o ODS 5, de “Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas”.

Quanto ao enfrentamento das desigualdades nos países, tampouco existem evidências de que seja de fato uma preocupação do Banco, uma vez que não há qualquer mecanismo de escuta das comunidades, especialmente as afetadas pelos projetos.

É importante destacar que a ausência de políticas de gênero e de mecanismos de participação social acaba reforçando práticas discriminatórias existentes, impossibilitando a progressiva realização de direitos humanos e a conquista da sustentabilidade.

O enfrentamento desse conjunto de desafios urge – falta de transparência, fragilidade dos critérios de sustentabilidade, insuficiência dos sistemas país, pouca inovação social, ausência de políticas de gênero e de participação social. Do contrário, mantendo somente a prioridade de aprovação quantitativa de projetos em tempos recordes, pode comprometer seriamente a qualidade e a credibilidade de uma instituição que (ainda) tem tudo para dar certo.

A essas ambivalências e ambiguidades que rondam o NBD soma-se um novo e temeroso desafio, que é o papel que o governo do presidente Bolsonaro irá desempenhar. Corre-se o sério risco de o Banco ser considerado produto do “marxismo cultural” e, portanto, resultar no seu esvaziamento ou, mesmo na retirada do Brasil da iniciativa. Alea jacta est!

 

Nathalie Beghin é integrante do Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), da Rede Brasileira de Integração dos Povos (REBRIP) e do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI).

Nada a celebrar em Katowice

Após um esforço gigantesco por parte dos negociadores, foi anunciada, na noite de sábado, a aprovação do  “Livro de Regras” do Acordo de Paris. São 156 páginas que expressam um acordo fraco, apesar do esforço para acomodar os mais diferentes interesses dos países membros. Esse foi um dos eixos principais que marcou a COP24, em Katowice, Polônia.

Uma vez mais, a aparente alegria apresentada ao final dos trabalhos, na verdade, não conseguiu esconder a profunda frustração e a angústia generalizada.  Estarmos perdendo a batalha e sabemos disso. O relatório dos cientistas não deixa dúvida: os cenários mais graves desenhados por eles são os que estão se confirmando. Então, me pergunto, celebramos o quê?

No âmbito político, governos se mostram incapazes de agir com rapidez e independência dos interesses corporativos. Tensões entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento permanecem e dificultam resoluções sobre financiamento, que continua sendo um debate interrompido.  Por exemplo, durante o Diálogo de Alto Nível – realizado em paralelo ao debate do financiamento, numa tentativa de encontrar novos caminhos –  os representantes do sistema financeiro foram claros em seu recado: o dinheiro só virá quando destravarem as condicionalidades que dificultam seu investimento.

O Diálogo de Talanoa, que pretendia ser um intercâmbio de experiências de forma a disseminar as boas práticas e, assim,  aumentar a ambição dos países, tampouco funcionou conforme o esperado. A ambição ficou guardada em alguma gaveta para, quem sabe, reaparecer no próximo ano no Chile, durante a COP25.

Acrescente-se a esse desatino geral o papel vergonhoso do Brasil, que sai de uma posição de liderança progressista neste debate para se submeter aos governos que estão identificados com a ultradireita mundial – e que vem questionando as evidências científicas. Esse retrocesso, sem dúvidas, influenciaram as (in)decisões finais da COP24.

Por fim, cabe ressaltar um aspecto positivo, que foi a aprovação do documento final da “Plataforma dos Povos Indígenas e Comunidades Locais”.  Existe uma resistência, em especial de grupos indígenas da África e Ásia, de integrar ao texto o conceito de “comunidades locais”. O argumento é que isso poderia prejudicar o reconhecimento da  especificidade do conhecimento dos povos indígenas.  Desta forma, o debate ainda continuará até 2020.

No European-American Blog, o sociólogo húngaro Tom Kando apresenta 13 pensamentos ou crenças no post intitulado “O Dogma de Kando – Segunda Parte”. Ressalto aqui duas de suas idéias que me parecem expressar o nosso dilema contemporâneo:

“ A ciência distingue entre a verdade e o erro, e por esse meio, aumenta-se o conhecimento. O ser humano avança por meio do conhecimento. E o montante total do conhecimento é infinito.”

“Ao mesmo tempo, as religiões organizadas tem sido a causa principal das mortes em massa ao longo da história. Os outros motivos principais para a guerra e o assassinato massivo tem sido a exploração econômica e o tribalismo/nacionalismo, que são a hostilidade intra e extra grupos, o ‘ódio’ aos outros.”

Ao que parece, nesse fluxo e refluxo da história da humanidade, antevemos uma era de negação do conhecimento cientifico e a adoção de uma crença religiosa por meio do acirramento do ódio ao diferente, como forma de mascarar os verdadeiros interesses do capital. O poder econômico é invisível, porém dirige atentamente todos esses processos.

A Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC sigla em inglês) não está imune a este fenômeno. Ainda que o painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC na sigla em inglês) mostre a urgência em agir contra o aquecimento, o mundo da política resiste numa narrativa parcial, pobre e religiosa, que já está promovendo o caos.

 

COP24: alerta vermelho foi dado!

Iara Pietricovsky
Colegiado de gestão do Inesc
Grupo Carta de Belém[1]

O chamamento do último relatório do grupo de cientistas ligados ao Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC na sigla em inglês) foi claro e dramático. Precisamos mudar já. Não há mais nenhuma gordurinha para queimar no que se refere ao tema climático e os passos dados até o momento estão longe de equacionar a urgência da redução de emissão de gases de efeito estufa.

Os cientistas alertam que será preciso um nível de transformação sem precedentes na área produtiva caso a humanidade queira, de fato, enfrentar a radicalidade dos impactos climáticos sobre suas vidas e sobre o Planeta.

No meio dessa realidade difícil e dessa convocação para que os países assumam a responsabilidade histórica de reverter o aquecimento global, nos deparamos com as posições retrógradas do governo eleito no Brasil, já mostrando um tortuoso rumo para essa prosa. Ao desistir de sediar a próxima Conferência do Clima, a COP 25, e pelos inúmeros depoimentos de negação do fenômeno de aquecimento climático, concluímos que navegaremos por tempos de obscurantismo e retrocesso.

O novo governo vem demonstrando que vai se alinhar, de forma subserviente, aos EUA e, mais do que isso, que concorda com o negacionismo de Trump sobre as questões climáticas e rejeita as instâncias multilaterais de negociação.

A indicação do embaixador Ernesto Araújo, para o Ministério das Relações Exteriores (MRE), no último dia 15 de novembro, pelo presidente eleito Jair Bolsonaro, produziu enorme impacto. O futuro ministro acredita que a mudança climática é uma “trama marxista” e que a ciência do clima é apenas um “dogma”. Existe a possibilidade de que, em futuro breve, o novo governo anuncie a saída das negociações de clima. A desistência de realização da COP25 no Brasil seria o primeiro passo nesse caminho.

Viveremos, portanto, uma quebra de um ciclo virtuoso da política externa que se impunha por sua credibilidade e protagonismo. Essa miopia trará consequências bastante nefastas de quebra de confiança e de perda de liderança do Brasil nos espaços internacionais. Essas decisões afetarão concretamente a vida das comunidades locais, ribeirinhas, da floresta, povos indígenas, populações pobres das periferias das cidades para além das fronteiras brasileiras.

Promoverá, ainda, prejuízos incalculáveis advindos da mudança climática, tais como a intensificação de processos migratórios descontrolados, com refugiados atravessando fronteiras; impacto sobre a soberania alimentar, produzindo uma escassez global de alimentos, entre outras situações assustadoras. Sem falar do que já vem ocorrendo na floresta amazônica, com o processo acelerado de desmatamento.

Apesar de todos esses obstáculos, continuaremos nossa defesa de uma visão calcada no conhecimento cientifico e dos que, conscientes e de boa fé, se mantiverem na luta por um mudo que reafirme a democracia, a diversidade, o marco dos direitos humanos e a mudança de nosso modelo produtivo para enfrentar as consequências de uma destruição que se avizinha.

Esta semana começa a Conferência das Partes sobre Mudança Climática (COP24), em Katowice, Polônia. O objetivo primeiro desta nova rodada será a conclusão do livro de regras do Acordo de Paris, o chamado “Plano de Trabalho do Acordo de Paris” (PAWP na sigla em inglês). São as diretrizes que deverão guiar a implementação das “Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDC na sua sigla em inglês), nas áreas de mitigação, adaptação, transferência tecnológica, transparência e financiamento. Temas ainda passíveis de muita polêmica e debate.

As diferenças entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento sobre os princípios de equidade e de “responsabilidades comuns, porém diferenciadas” (CBDR na sigla em inglês) da Convenção são responsáveis por grande parte das tensões. Os EUA e seus aliados querem reduzir o escopo ou mesmo ignorá-los enquanto os países em desenvolvimento querem que as responsabilidades históricas sejam reconhecidas.

O Grupo Carta de Belém (GCB) vem alertando que o debate de clima está, cada vez mais, se transformando num balcão de negócios entre o setor privado e Estados nacionais, onde se valoriza mais e mais as parcerias público-privados (PPP) como meio para implementação e financiamento das NDCs.

O GCB também expressa sua preocupação com os debates sobre o uso da terra. É uma questão importante e com dinâmicas de enorme impacto sobre clima, em especial, o tema da agricultura.

Defende, também, que questão das florestas devam se manter fora dos mecanismos de offset, ou seja, não podem ser mercantilizadas. Registra sua preocupação com a proposta apresentada pelo governo polonês, chamada “Forest Coal Farms” por conter exatamente esta lógica de mercado.

Como parte das negociações, o GCB reconhece a importância da implementação de mecanismos de transição justas para os trabalhadores e trabalhadoras em todos os países, preocupação essa liderada pelos sindicatos.

Além disso, apoia e vem acompanhando com atenção, a aprovação do plano de trabalho da “Plataforma de Comunidades Locais e Povos indígenas”, que foi aprovada no Acordo de Paris, durante a COP21. Essa Plataforma tem como objetivo principal fortalecer o conhecimento, as tecnologias, as práticas e os esforços das comunidades locais e indígenas para o enfrentamento da questão climática. Esse tema é uma das novidades mais criativas e de valor agregado desde o começo da COP de Mudança Climática. Reconhecem que povos indígenas e comunidades locais são detentores de saberes que podem ajudar o equacionamento do aquecimento global.

Por fim, ressalta-se o tema do financiamento, que nunca saiu da mesa de negociação e está longe de ser equacionado, ainda que as decisões para o enfrentamento da questão climática não dependam do financiamento para sua efetivação, e sim de vontade política da comunidade internacional, dos governos e dos donos do capital.


[1] O Grupo Carta de Belém (GCB) é constituído por organizações e movimentos socioambientais, trabalhadores e trabalhadoras da agricultura familiar e camponesa, agroextrativistas, quilombolas, organizações de mulheres, organizações populares urbanas, pescadores, estudantes, povos e comunidades tradicionais e povos originários que compartilham a luta contra o desmatamento e por justiça ambiental na Amazônia e no Brasil.

Reforma tributária ou mera simplificação: O que os programas de governo dos presidenciáveis defendem

Por Graziele David, assessora politica do Inesc

Reformar ou simplificar o sistema tributário. O que parece ser um mero jogo de palavras revela muito mais do que o entendimento da tributação no país, descortina o modelo de Estado que cada presidenciável pretende fortalecer caso seja eleito.

A simplificação tributária, apesar de necessária, é insuficiente para resolver os graves problemas que o Brasil tem na arrecadação de tributos (impostos, contribuições, taxas). Ela é necessária para lidar tanto com o excesso de tributos que dificultam a arrecadação para o contribuinte e para a administração pública, quanto para reduzir a ‘guerra fiscal’ entre entes federados, ao realizarem desonerações tributárias para atrair empresas. Ocorreria assim ganho de eficiência na arrecadação e de competitividade na produção e exportação.

A principal proposta nesse sentido hoje é a defendida pelo Centro de Cidadania Fiscal – CCIF de criação de um Imposto sobre valor agregado – IVA (batizado de Imposto sobre Bens e Serviços – IBS) unificando cinco tributos: IPI, PIS, COFINS, ICMS e ISS. O prazo de transição seria de 10 anos para os contribuintes e de 50 anos para a partilha entre os entes federativos. Com relação à alíquota, existiria uma nacional idêntica para todos os bens e serviços, mas estados e municípios poderiam alterar para determinados produtos. Também haveria um imposto seletivo, adicional à cobrança do IBS, sobre dois produtos, com a meta de reduzir o consumo: bebidas alcoólicas e cigarros.

Já a atual proposta do relator da Comissão Especial de Reforma Tributária da Câmara dos Deputados também segue no sentido de simplificação, apesar de ter algumas diferenças. Ela propõe unificar nove tributos: ISS, ICMS, IPI, PIS, Cofins, Cide, Salário-Educação, IOF e Pasep. O período de transição seria de seis anos para as empresas e de 15 anos para a nova divisão com Estados e municípios. As alíquotas seriam estabelecidas todas em lei complementar federal e a arrecadação, dividida num percentual com Estados e Municípios. Também existiria um imposto seletivo sobre seis produtos: energia, combustíveis, telecomunicações, cigarros, bebidas e veículos.

Entretanto, somente simplificar não reduz um grande problema existente: a composição da carga tributária brasileira amplia desigualdades ao invés de reduzir, como ocorre nos países mais desenvolvidos. Isso acontece porque mais de 50% dos tributos arrecadados incidem sobre o consumo, ao invés de serem sobre a renda e a propriedade. Como os tributos sobre o consumo pesam proporcionalmente mais sobre os mais pobres e a classe média, o resultado é que a atual composição da carga tributária faz com o grupo mais vulnerável da população – mulheres negras pobres – pague mais tributos proporcionalmente à sua renda do que os mais ricos.

É por essa razão que a defesa de uma reforma tributária não pode se ater somente à simplificação e à eficiência do sistema tributário. Ela deve necessariamente se ater à promoção da equidade e da redução das desigualdades, para a promoção de justiça fiscal e social.

A atual proposta que caminha nessa direção mais formulada nesse sentido é a da ‘Reforma Tributária Solidária’, organizada pela Anfip e Fenafisco, com a participação de várias outras organizações da sociedade civil, movimentos sociais, sindicatos, acadêmicos e especialistas. Ela apresenta algumas premissas essenciais para a reforma do sistema tributário nacional, devendo ser esse: pensado na perspectiva do desenvolvimento socioeconômico; adequado ao propósito de fortalecer o Estado de Bem-estar Social e reduzir desigualdades; progressivo com redistribuição da composição da carga tributária ao ampliar a tributação direta e reduzir a indireta; instrumento para reestabelecer as bases do equilíbrio federativo; desenvolvidas as tributações ambientais e sobre o comércio internacional.

planos de governo reforma tributaria

Observação: a candidata Vera Lúcia do PSTU não trata do tema da reforma tributária no seu programa de governo.

A escolha entre reformar por completo o sistema tributário ou somente simplificá-lo mostrará o compromisso dos candidatos à presidência com um Estado que irá fortalecer as despesas com investimentos e serviços públicos, voltado para o mercado interno, promotor da redução de desigualdades, garantidor de direitos; ou um Estado voltado para o investimento privado, para o mercado externo, despreocupado com as desigualdades e comprometido com a austeridade.

Isso porque existe uma relação direta entre mera simplificação tributária e políticas de austeridade pelo lado dos gastos do orçamento público. Para conseguir simplificar e reduzir a carga tributária, não é suficiente promover melhor gestão e eficiência das políticas públicas, uma vez que no Brasil elas já têm um financiamento per capita muito abaixo da média dos países da OCDE. Necessariamente ocorrerão cortes orçamentários nessas políticas promotoras de direitos e que a população tanto demanda, como saúde, educação, segurança, alimentação, transporte, entre outras.

Candidatura Fernando Haddad

Segundo consta do plano de governo, a estrutura tributária não pode continuar sendo predominantemente de impostos indiretos, que oneram em especial os assalariados e os mais pobres. Por isto, a reforma tributária será orientada pelos princípios da progressividade, simplicidade, eficiência e da promoção da transição ecológica, com as seguintes diretrizes:

•Isentar o Imposto de Renda das Pessoas Físicas (IRPF) de todos aqueles que ganham até cinco salários mínimos, condicionado à majoração para rendas mais elevadas por meio de faixas adicionais de alíquotas do IRPF para os super ricos;

•Tributação direta sobre a distribuição de lucros e dividendos seguindo tabela progressiva do IRPF. O aumento do IRPF pode ser combinado com redução da alíquota do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) para elevar a competitividade do setor privado compatível internacionalmente;

•Criação de Imposto sobre Valor Agregado (IVA) moderno, com cobrança no destino, que substitua a atual estrutura de impostos indiretos (ICMS, IOF, IPI, ISS, etc.), respeitando o equilíbrio federativo, o financiamento da seguridade e viabilizando a transição de regimes. É fundamental que a mudança seja gradual e não represente perdas para os entes federados, mas, ao mesmo tempo, contribua para superar a desigualdade regional;

•Instituição de tributação sobre grandes movimentações financeiras, de caráter regulatório;

•Introdução do imposto sobre grandes patrimônios, bem como a reformulação do Imposto sobre heranças, especialmente grandes heranças e a extensão da cobrança do IPVA para jatos, lanchas e outros veículos;

•Alteração do Imposto sobre a propriedade Territorial Rural (ITR) para que possa atender aos requisitos de incentivo tanto da elevação produtiva do solo, quanto da preservação ambiental. Também virá acompanhado de novos mecanismos voltados para os usos da terra para desestimular o processo especulativo, as práticas predatórias ao meio ambiente e a aquisição de terras por estrangeiros;

•Rebalancear impostos incidentes sobre a folha de pagamento, equalizando o tratamento tributário entre pessoa física e jurídica e incentivando a formalização de todas as ocupações;

•Criação de “tributos verdes” que permitam ao Estado atuar sobre a emissão de gases de efeito estufa e estimular pesquisas e investimentos na adoção de tecnologias voltadas para a sustentabilidade ambiental – inserido dentro de uma proposta de reforma fiscal verde;

•Ampla revisão dos chamados “gastos tributários” regressivos, assim como os benefícios fiscais voltados à economia de alto carbono.

Candidatura Ciro Gomes

Para a candidatura Ciro, crescer distribuindo renda é fundamental. Reduzir as gritantes desigualdades econômicas e sociais do país requer um conjunto amplo e simultâneo de medidas, como promover uma reforma tributária com simplificação do sistema tributário e tributação proporcional dos mais ricos. Também serão adotadas as seguintes medidas:

•Redução, inicial, de 15% das desonerações tributárias;

•Revisão de todas as despesas do governo, de modo a eliminar desperdícios, sobreposições e privilégios; os gastos com investimentos, Saúde e Educação deverão ser preservados;

•Isenção de tributos na aquisição de bens de capital;

•Redução do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica;

•Redução de impostos sobre consumo (PIS/COFINS e ICMS);

•Criação de um Imposto Sobre Valor Agregado (IVA), unificando vários tributos atualmente existentes;

•Eliminação gradual da chamada “pejotização”;

•Recriação do Imposto de Renda sobre lucros e dividendos;

•Alteração das alíquotas do ITCD (imposto sobre heranças e doações);

•Simplificação da estrutura tarifária de importações;

•Elevação da alíquota do ITCD (imposto sobre heranças e doações).

Candidatura Marina Silva

No entendimento da candidatura da Marina, é imperativo promover a reforma tributária para reduzir a complexidade e a insegurança jurídica, que dificultam o estabelecimento de um ambiente favorável aos negócios e ao empreendedorismo. Neste sentido, propõe:

•implantação do IBS (Imposto sobre Bens e Serviços), reunindo cinco tributos PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS.Os princípios que nortearão essas mudanças são: simplicidade, para que as regras sejam claras e de fácil aplicação, com o mínimo de exceções e regimes especiais; transparência, para que o cidadão tenha clareza de quanto paga e possa cobrar a melhoria dos serviços públicos, exercendo a sua cidadania tributária; neutralidade, para desestimular as distorções na forma de organização, instalação e operação das empresas, eliminando a deletéria guerra fiscal entre estados e municípios; e equidade, para dosar de forma adequada o tratamento dos cidadãos e das empresas, eliminando privilégios e a atual regressividade, que condena os mais pobres a pagarem, proporcionalmente, mais impostos.

Para corrigir a regressividade elevada do sistema tributário em nosso país e estimular o reinvestimento dos lucros na produção sugere-se:

•tributação sobre dividendos, com redução simultânea do IRPJ (Imposto de Renda sobre Pessoas Jurídicas);

•elevação da alíquota do imposto sobre herança, com isenções progressivas;

•aumento da base de tributação sobre a propriedade;

•descentralização da autoridade para tributar;

•revisão do atual sistema brasileiro de tributação da pessoa jurídica, informando antecipadamente os critérios de interpretação da legislação. Novas tecnologias para que todas as informações sobre o fato gerador sejam transparentes e disponíveis em um guia nacional para o pagamento de todos os tributos incidentes de forma integrada.

Candidatura Jair Bolsonaro

O programa de governo do candidato Bolsonaro visa a unificação de tributos e a radical simplificação do sistema tributário nacional, com:

•gradativa redução da carga tributária bruta brasileira paralelamente ao espaço criado por controle de gastos e programas de desburocratização e de privatização;

•simplificação e unificação de tributos federais eliminando distorções e aumentando a eficiência da arrecadação;

•descentralização e municipalização para aumentar recursos tributários na base da sociedade;

•discriminação de receitas tributárias específicas para a previdência na direção de migração para um sistema de capitalização com redução de tributação sobre salários;

•introdução de mecanismos capazes de criar um sistema de imposto de renda negativo na direção de uma renda mínima universal; e

•aprimoramento da carga tributária brasileira fazendo com que os que pagam muito paguem menos e os que sonegam e burlam, paguem mais.

Candidatura Geraldo Alckmin

O programa de governo do Alckimin aborda muito superficialmente o tema. Diz apenas que buscará simplificar o sistema tributário por meio da substituição de cinco impostos e contribuições por um único tributo: o Imposto sobre Valor Agregado (IVA).

Candidatura Guilherme Boulos

No entendimento da candidatura Boulos, é preciso reformar o sistema tributário brasileiro, com simplificação e ampliação significativa da progressividade, para aumentar a equidade e a eficiência na arrecadação e seu caráter regulatório, com as seguintes medidas:

•redução das alíquotas com base mais ampla ao nível da empresa e tributar mais progressivamente a renda da pessoa física, resultando em ganho líquido de 1,3% do PIB na arrecadação de imposto de renda (de 7% para 8,3% do PIB, nível inferior ao dos países na OCDE, que é de 11,1%);

•aumento da alíquota de isenção do IRPF, com correção da tabela do IPRF;

•aumento da alíquota para 35% do IRPF para rendimentos acima de R$ 325 mil por ano;

•tributação linear sobre dividendos com base em uma alíquota de 20%;

•redução da alíquota de IRPJ/CSLL para 25%, mas ampliando a base de incidência pela revisão de benefícios tributários, como juros sobre capital próprio, que hoje favorecem os que podem contratar planejamento tributário e aproveitar as brechas (eg. Bancos);

•aumento da arrecadação de impostos sobre propriedade urbana e rural de 0,6% para 1% do PIB: legislação para facilitar cobrança de dívidas; reajuste da planta de valores dos imóveis; aumento da alíquota e da progressividade;

•aumento da arrecadação com tributação sobre herança e doações inter vivos (ITCMD) de 1,7% para 1,9% do PIB tributando as grandes fortunas na herança: federalizar o imposto sobre herança e aumento da arrecadação com tributação baseada em alíquotas progressivas de 2% a 40%; legislação para tornar nacional a administração do imposto, integrando-o com a base de dados do imposto de renda, de modo a reduzir a evasão pela mobilidade do patrimônio;

•aumento do imposto sobre grandes fortunas com arrecadação adicional de 0,1% do PIB;

•implementação de tributação ambiental;

•revisão das desonerações e outros gastos tributários;

•aumento da arrecadação de impostos sobre propriedade rural: legislação para fortalecer a cobrança de dívidas e a fiscalização; legislação para livrar a definição do valor administrativo dos imóveis da influência de grupos de interesse políticos (eg. lobby ruralista); regulamentação de maior progressividade de alíquotas para fins de justiça fiscal e instrumento extrafiscal para a política fundiária e fiscalização similar à do imposto de renda para as declarações do imposto territorial rural – ITR;

•modernização e redução gradual das alíquotas dos tributos que incidem sobre bens e serviços, como a cesta básica (Pis/Cofins, IPI, ICMS etc.): eliminação de cumulatividades via migração das bases de incidência para o valor agregado, com amplo aproveitamento de créditos, tributação e repartição no destino; manutenção das contribuições para a seguridade social em um modelo baseado na tributação sobre o valor agregado;

Candidatura Cabo Daciolo

O programa de governo do Cabo Daciolo menciona o tema superficialmente: segundo consta do plano de governo, “Governar é baixar juros e impostos. Uma questão imprescindível ao desenvolvimento se refere à redução da carga tributária”.

Candidatura João Amoêdo

A candidatura de Amoêdo entende que a carga tributária brasileira é elevada e complexa; gera insegurança jurídica além de enorme volume de burocracia; apresente visão ideológica contrária ao empreendedor e ao lucro. Por isso, propõe uma simplificação e redução dos impostos e burocracias para dinamizar a economia, facilitar o empreendedorismo e propiciar a criação de empregos. Para tal apresenta as seguintes propostas:

•adoção do IVA (Imposto de Valor Agregado);

•implementação de carga tributária inferior a 30% do PIB;

No entendimento do candidato, o brasileiro não precisa de um Estado grande porque é pobre, ele é pobre justamente por ter um Estado grande; não é necessário ter Estado para ajudar o próximo. Defende, ainda, que vai combater a pobreza e não a desigualdade por meio da geração de renda e não pela distribuição. As prioridades serão: redução do Estado, aumento da responsabilidade fiscal, garantia da propriedade privada, com destaque para o campo, para que o agronegócio tenha condições jurídicas e estruturais.

Candidatura João Goulart Filho

As propostas apresentadas são as seguintes:

•Promover uma Reforma Tributária Direta e Progressiva que elimine impostos indiretos, taxando a renda e a propriedade dos grandes e não o salário dos pequenos;

•Suprimir as renúncias fiscais;

•Revogar a Lei Kandir que isenta de ICMS produtos e serviços destinados à exportação;

•Revogar a isenção da contribuição previdenciária para o agronegócio;

•Estabelecer um imposto progressivo sobre as remessas de lucros das multinacionais para suas matrizes no exterior;

•Revogar a lei que isenta de impostos as importações das petroleiras estrangeiras instaladas no Brasil;

•Combater de forma rigorosa a sonegação fiscal.

Candidatura Álvaro Dias

O tema é mencionado em uma frase, a saber: “Promover reforma tributária que estabeleça como prioridade a mais justa distribuição dos recursos entre os entes federados, no contexto do novo pacto federativo”.

Candidatura Eymael

No seu programa de governo, o candidato Eymael recomenda promover a reforma tributária visando à simplificação do Sistema, a redução da carga tributária e o respeito à capacidade contributiva. Destaca ainda que é preciso repensar o Pacto Federativo, distribuindo de forma equitativa atribuições de recursos entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.

Candidatura Henrique Meirelles

A candidatura Meirelles propõe a simplificação do sistema tributário brasileiro com estudos que visem à criação de um imposto de valor agregado, o IVA. Defende-se que a reforma tributária precisará respeitar o tempo de adequação ao novo modelo, sem comprometer incentivos legalmente estabelecidos, mais eficiente, sem aumentar a carga tributária.

 

 

Análise de programas econômicos das candidaturas à Presidência da República 2018

Por Adhemar S. Mineiro, economista e assessor da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (REBRIP), para o INESC

As propostas disponibilizadas pelas treze candidaturas que disputam essas eleições presidenciais de 2018 apresentam soluções bastante diferenciadas para a crise econômica que vivemos no país desde 2015, além da amplitude dos aspectos abordados e da orientação e dinamismo dos novos horizontes que propõem para o país. Os programas acabam, no geral, refletindo uma grande divisão quanto à análise e perspectivas em dois grandes campos de visão.

O primeiro campo identificado é o de uma perspectiva econômica liberal, fundada na chamada ortodoxia econômica. Esse ponto identifica não só um grande conjunto de candidatos, como Álvaro Dias, Geraldo Alckmin, Henrique Meirelles, Jair Bolsonaro, João Amoedo e Marina Silva, como o próprio atual Governo Temer e sua política econômica. Nesta visão, o centro da política econômica é um forte ajuste do setor público, envolvendo um conjunto de medidas. A contração fiscal, com eventual geração de superávit, a retomada do chamado “tripé macroeconômico” (metas de inflação, câmbio flutuante e equilíbrio fiscal), a venda do patrimônio público (seja a venda de participações societárias do Estado, seja a venda de imóveis, seja a privatização de empresas), os limites ao gasto público, todos esses elementos aparecem em vários dos programas apresentados por esse conjunto de candidatos. Aparece ainda a criação inovadora de mecanismos financeiros buscando alavancar através de fundos e outros mecanismos a viabilidade de concessões e parcerias público-privadas para alavancar investimentos, em especial na área de infraestrutura. A redução dos recursos à disposição do Estado e a redução das taxas de juros (por mecanismos de gestão fiscal e redução da dívida pública), dentro desta concepção (que podem ser somados a mecanismos participativos para investidores, ou a ampliação da segurança jurídica para os investidores), abre espaço para o crescimento do investimento privado, que é o principal motor para essa visão da dinamização da economia brasileira. Um tema importante que aparece em alguns desses programas, com também diferentes redações e expressando diferentes perspectivas e formas de condução da questão, é o tema da independência/autonomia do Banco Central para a operacionalização de suas políticas (monetária e cambial).

O outro ponto importante para esse conjunto de candidatos que se organiza em torno a essa visão central liberal-ortodoxa é um abertura econômica, com ligação aos mercados externos, buscando neles também os elementos de dinamismo que não estão presentes no mercado doméstico, mas também o que chamam de conexão com as “cadeias globais de valor”. A velocidade e as formas dessa integração com o sistema internacional e da abertura comercial variam, mas aparecem como fundamental para essa perspectiva. Varia também a ênfase dos setores a se conectarem mais fortemente com o exterior (seja o agronegócio, setores com um pouco mais de agregação de valor à produção, como semimanufaturados, ou setores de maior conteúdo tecnológico, e alguns ainda incluem os setores de serviços). Dentro dessa perspectiva de abertura ao exterior, vale também a defesa de acordos de comércio, de novo variando aqui o formato (bilateral, multilateral, ou ambos) e a velocidade e as formas da abertura (rebaixamento ou eliminação de tarifas, eliminação de barreiras não tarifárias, etc.). A busca do caminho da vinculação aos fluxos do comércio internacional aparece nesses programas tanto como um elemento de demanda para a retomada do crescimento em um quadro de limitação ao investimento/gasto público, de forte redução no consumo nacional e de incertezas quanto ao investimento privado, que seriam os demais elementos dinamizadores da atividade econômica, quanto como uma visão estratégica de integração aos sistemas globais de produção e geração de valor. Curiosamente, ao apresentarem uma visão bastante positiva quanto a essa integração ao exterior, esse conjunto de candidatos passa ao largo dos debates dos últimos anos sobre as limitações ao comércio internacional, a guerra comercial internacional (da qual talvez a tensão entre China e EUA ou o esvaziamento da Organização Mundial do Comércio sejam apenas dois exemplos mais evidentes) e as possíveis alterações das cadeias produtivas globais com a introdução das inovações recentes, denominadas “Indústria 4.0”, que alteram substancialmente os esquemas de vantagens de localização de partes da produção no nível internacional que seguiam vigentes até aqui.

Um tema importante que parece representar uma aproximação entre um conjunto grande de candidaturas progressistas e conservadoras, heterodoxas e ortodoxas, liberais ou desenvolvimentistas, segundo a polarização ao gosto do freguês, diz respeito ao tema de uma reforma tributária. Quase todos os/as candidatos/as visitam esse tema tocando no eixo da modernização e simplificação tributária, na redução do número de impostos, na redução da oneração da produção e do consumo. Existem, entretanto, dúvidas quanto ao ritmo de condução da reforma, e a chamada “questão da divisão do bolo tributário” entre a União e os níveis subnacionais (Estados e Municípios). Os debates esquentam aqui, e as diferenças aparecem, quando se entra na discussão do volume tributário (enquanto normalmente as visões mais liberais falam em reduzir a tributação, as visões mais progressistas falam em manter ou aumentar) e a questão do pagamento da conta (normalmente aqui entram em debates níveis de isenção e a questão da progressividade, ou seja, os mais ricos serem mais tributados do que os mais pobres). Outros debates técnicos aparecem, mas tomando por base o consenso dos programas dos candidatos é provável que esse tema avance de alguma forma no próximo período.

Para o conjunto de candidatos mais identificado com uma perspectiva heterodoxa de condução da política econômica (Ciro Gomes, Fernando Haddad, Guilherme Boulos e João Goulart Filho) os temas centrais passam pela retomada do crescimento econômico, a dinamização do gasto público e dos investimentos públicos, a distribuição da renda e a redução das desigualdades (em diversas perspectivas, como a distribuição funcional da renda, mas também sob a perspectiva regional, de gênero, de raça/etnia, urbano/rural e outras), a recomposição e o aumento real do salário mínimo. Políticas industriais são também listadas de diferentes formas, não apenas como importantes para a retomada do crescimento e do desenvolvimento econômico mas também porque podem, dentro dessas perspectivas desenvolvimentistas, contribuir fundamentalmente para o próprio desenho do desenvolvimento futuro, não podendo ser de forma alguma neutras neste sentido.

Outro tema fundamental para esse conjunto de candidatos é como desfazer algumas das contrarreformas levadas adiante durante o curto Governo Temer. Aqui são listadas em especial a Emenda Constitucional 95 (Teto dos Gastos) e a reforma trabalhista/reforma da CLT, e tratar com muito cuidado o tema previdenciário (onde diferenças aparecem mesmo entre esse “bloco” de candidatos).

Dentro desta perspectiva de rediscussão de determinadas questões está ainda o tema das privatizações. Trata-se para estes candidatos não apenas de estancar o processo, como em vários momentos defendem retroceder medidas que foram levadas adiante, reafirmando a necessidade de um papel ativo do setor produtivo estatal na viabilização de uma estratégia de desenvolvimento futuro. Em particular, são mencionados setores da área de energia, como elétrica, incluindo suas formas alternativas em expansão (eólica, solar) e a indústria de petróleo, apontada como importante não apenas pela capacidade de geração de renda no chamado Pré-sal, como pela capacidade de articulação industrial ao longo da cadeia de produção de máquinas e equipamentos (variam aqui entre os candidatos a ponderação destas possibilidades com as perspectivas de um desenvolvimento ambientalmente sustentável agora e no futuro).

O ponto da recuperação dos empregos e da renda dos mais pobres tem, nas propostas deste conjunto de candidatos, um papel emergencial, não apenas pelo forte impacto social (o desemprego é devastador), como pelo impacto econômico e sua capacidade de ativar a economia em um prazo muito curto (aqui presente a visão de que os mais pobres sempre transformam toda a sua renda rapidamente em consumo, dinamizando a economia de uma forma imediata).

Os investimentos públicos e privados, dentro desta perspectiva desenvolvimentista, não são vistos como antagônicos (para abrir espaço para o investimento privado é necessário reduzir o investimento e o gasto públicos, que é a perspectiva ortodoxa), mas de certa forma articulados, de maneira que a expansão do gasto e do investimento públicos dinamiza o investimento privado, e na maior parte das vezes vai à frente deste, se antecipando e indicando caminho e volumes demandados.

Outra questão importante que distingue as perspectivas ortodoxa e heterodoxa diz respeito ao tema da taxa de câmbio. Enquanto os candidatos com uma orientação ortodoxa apontam pura e simplesmente para o tripé macroeconômico (e o ponto relativo ao câmbio flutuante) como solução para o nível e a flutuação da taxa de câmbio, os candidatos com programas dentro de uma perspectiva mais heterodoxa apontam a necessidade de gerenciar de alguma forma a taxa de câmbio, colocando-a em um patamar que garanta a competitividade da indústria nacional (preocupação mais forte no programa de Ciro Gomes) e evitando flutuações bruscas com alguns mecanismos de controle de fluxos de capital (que aparecem de distintas formas, em especial nos programas Boulos e Haddad). Assim, esse ponto é fundamental na diferenciação dos dois “blocos” de candidatos.

A perspectiva de ajuste das contas públicas é vista como uma consequência importante da retomada do crescimento econômico, que permite de certa forma a recomposição da arrecadação fiscal sem maiores problemas, além de medidas de reconfiguração dos pagamentos da dívida pública e de redução das taxas de juros (vistas como uma expressão do poder oligopólico e político dos “rentistas” financeiros). Reduzindo os gastos financeiros e crescendo, além de outras medidas de ampliação da arrecadação, a questão do equilíbrio fiscal passa longe da centralidade que possui no discurso econômico conservador.

Assim, se percebem as principais diferenças, especialmente entre esses dois “blocos” de programas, que reúnem alguns dos principais candidatos que concorrem nesse processo eleitoral. A decisão a ser tomada é uma decisão que pode definir não um estilo ou uma discussão de curto prazo, mas o rumo de um processo de desenvolvimento de longo prazo no país, e por isso mesmo não é uma decisão simples.

A seguir apresenta-se uma breve sistematização dos programas dos(as) candidatos(as), na ordem alfabética de seus nomes.

Candidatura Álvaro Dias

 

No caso de Álvaro Dias, menos do que um detalhamento, em seu programa de governo é feita uma importante afirmação de princípios e estratégia. O centro da proposta é uma retomada vigorosa do crescimento (para uma média de 5% ao ano), capitaneada por investimentos que viriam a partir de uma reforma que reestruture o gasto público (com a revisão do custo de rolagem da dívida pública) e reduza os tributos, uma reforma financeira que diminua os juros para o setor privado, uma reforma previdenciária instalando o sistema de capitalização, e um forte incentivo ao investimento, em especial de pequenas e médias empresas e da agricultura. Para puxar o investimento, a única fonte de demanda apontada é o investimento em infraestrutura, todo o investimento previsto restante devendo ser alavancado pelas expectativas positivas por parte do empresariado a respeito das reformas pró-mercado definidas inicialmente. Empregos também seriam gerados, pelo proposto, por meio dessa retomada vigorosa dos investimentos privados (se prevê uma taxa de investimento, atualmente em torno de 15%, de 22% do PIB em 2022, último ano de governo). A respeito do déficit público, o programa aponta o objetivo de um déficit primário nulo já no primeiro ano de governo (2019) e um déficit nominal (ou seja, incluídos os gastos financeiros) zerado em 2023, primeiro ano do governo seguinte. O programa propõe ainda redução e simplificação tributária, com a eliminação de sete grandes impostos (PIS, Cofins, IPI, CIDE, IOF, CPP, CSLL). Chama a atenção, finalmente, algumas propostas na área do setor externo, como a proposta da constituição de 10 ZPEs (Zonas de Processamento de Exportações) e a formalização de 10 acordos comerciais bilaterais e 4 multilaterais até 2022, além de uma redução tarifária de 50% das atuais tarifas até esse mesmo ano.

Candidatura Cabo Daciolo

Apesar de não mencionar valores para o crescimento, o programa é ambicioso, pois o objetivo é figurar entre os países mais desenvolvidos do planeta. O programa também faz algumas reafirmações de princípio, como “Governar é baixar juros e impostos”, e “Empresas estatais estratégicas jamais serão privatizadas em nosso governo.” Para dinamizar o crescimento econômico, os principais pontos levantados são a ampliação das malhas rodoviária, ferroviária e hidroviária, e a expansão no mercado externo, pela ampliação do valor agregado dos bens exportados (deixar progressivamente de exportar primários e melhorar o conteúdo tecnológico dos bens exportados). Menciona ainda atrair investimentos internacionais em decorrência da baixa das taxas internas de juros,

Candidatura Ciro Gomes

A proposta estratégica da candidatura é caminhar simultaneamente com o chamado ajuste macroeconômico (“colocar a casa em ordem”) e a recuperação do setor produtivo para gerar empregos. Na perna do ajuste, o foco é no equilíbrio das contas públicas (alcançar o equilíbrio do gasto primário em dois anos de governo), na redução progressiva da relação dívida/PIB, diminuindo as taxas de juros e abrindo espaço para o investimento público e políticas sociais. A retomada da renda da população é baseada em um programa emergencial de empregos, e em investimentos em infraestrutura. Na área de investimentos, é fundamental no programa de governo do Ciro a ideia de uma taxa de câmbio competitiva internacionalmente (significando de fato uma desvalorização da real) de modo a alavancar, de forma sustentável e no longo prazo, a competitividade do setor externo brasileiro – a ideia aqui é que a competitividade a que o programa se refere é a dos bens manufaturados, e também o que chamam de serviços sofisticados (de maior agregação de valor). Para isso também é fundamental a implementação de políticas industriais ativas, defendidas no programa, e de forte financiamento, grande parte oriundo do sistema financeiro público, para levar adiante um programa de investimentos articulado por essas políticas industriais. O Banco Central, na proposta apresentada, orienta a sua atuação não apenas por metas de inflação, mas também por metas de emprego, como ocorre em outras partes (EUA, por exemplo). Além de uma forte ênfase no emprego no primeiro momento, é também fundamental na alavancagem da demanda doméstica dentro da proposta a ideia de crescimento econômico com distribuição de renda.

Candidatura Fernando Haddad

O programa do candidato parte em vários momentos da ideia de rever várias das contrarreformas implementadas nos últimos dois anos e meio, e na área econômica aparecem explicitadas a Emenda Constitucional 95 (de teto dos gastos públicos) e a reforma trabalhista. Existe também a ideia de uma retomada econômica de curto-prazo ativada por programas de geração de empregos (investimentos em infraestrutura e moradia, com a conclusão de obras inacabadas, retomada dos investimentos da Petrobrás e do programa “Minha Casa, Minha Vida”), reforço ao Programa Bolsa Família e retomada do crédito com juros e prazos acessíveis para famílias de baixa renda. Um ponto importante para a ampliação do consumo é a manutenção da política de valorização do salário mínimo. Para ampliar os investimentos, o financiamento virá fundamentalmente do sistema financeiro público, e aqui são pensados setores industriais estratégicos a serem estimulados (insumos básicos, fármacos, bens de capitais, defesa e aeroespacial, microeletrônica e outras), e a preocupação é apontar para a transição para a Indústria 4.0 (maior conteúdo de inovação, robótica, inteligência artificial, etc.). São pensados também mecanismos de controle sobre fluxos de capitais que permitam a redução da volatilidade da taxa de câmbio e a manutenção da competitividade externa de setores produtivos internos (bens manufaturados). Uma reforma tributária que crie o IVA (Imposto sobre o Valor Agregado) e elimine vários impostos, operando pela simplificação e modernização tributária, também é listada como fundamental. Um ponto importante no programa são os mecanismos de incentivo (tributários, financeiros e outros) para se transitar progressivamente para uma economia de “baixo carbono”, mais ambientalmente sustentável. A suspensão da política de privatização de empresas estratégicas e a recuperação do Pré-Sal também são vistos como importantes para a retomada do investimento, do crescimento e de uma estratégia sustentada de desenvolvimento. Vale apontar ainda aqui a ênfase nos instrumentos de incentivo à economia social e solidária. Finalmente, destacam-se incentivos à produção agrícola, incluindo a expansão da agricultura familiar e a reforma agrária.

Candidatura Geraldo Alckmin

O centro das propostas também diz respeito a um forte ajuste do setor público, por meio do corte de despesas do Estado (eliminação do déficit primário em dois anos, chegando a um superávit entre 2% e 2,5% no fim do governo), privatização de empresas estatais e venda de patrimônio imobiliário e acionário por parte do Estado (com recursos utilizados para a redução da dívida pública), redução dos subsídios e desonerações fiscais e uma reforma da Previdência. A manutenção da Lei de Teto dos Gastos também está apontada no programa. Fazem parte das propostas, ainda, a modernização e a simplificação tributária, com um novo sistema baseado no IVA; a restauração do tripé macroeconômico (câmbio flutuante, superávit primário e metas de inflação); e, um Banco Central com mandatos em sua diretoria. Na área de comércio exterior, defende-se a abertura da economia, a ampliação do comércio exterior para 50% do PIB (dobrar os fluxos, aproximadamente) e a assinatura de acordos comerciais bilaterais e multilaterais. Nessa área ainda, propõe-se a redução de barreiras tarifárias e não-tarifárias, tendo como objetivo um teto tarifário de 15%. Políticas sociais e distributivas focadas em grupos mais frágeis, inclusive a chamada “Bolsa Família 2.0”. A retomada dos investimentos é pensada através de investimentos em infraestrutura, especialmente com a implementação de parcerias público-privadas, e incentivos à agricultura e a modernização industrial (Indústria 4.0). O financiamento para tal é visualizado pelo funcionamento mais livre do mercado de crédito, segurança jurídica para os investimentos e entrada facilitada de bancos internacionais, o que ampliaria a competição por crédito de longo prazo dentro do país. A atuação competitiva desses agentes financeiros e de outros instrumentos de financiamento (fundos) levaria a uma redução das taxas internas de juros (especialmente associadas à redução do endividamento público e ao superávit das contas públicas).

Candidatura Guilherme Boulos

A proposta do candidato prevê em um primeiro momento um programa emergencial para recuperação do emprego e da renda, e do investimento público. Proteção ao emprego e política de valorização do salário mínimo, assim como uma Previdência com nenhum direito a menos e a reforma agrária popular e agroecológica. Prevê ainda uma renda básica universal. Na área industrial defende-se o fortalecimento do setor, sua desconcentração bem como evitar a captura dos setores por conglomerados. O sistema de financiamento público deve levar em conta esse objetivo, assim como as necessidades de modernização tecnológica, estruturação de uma matriz de menor consumo de carbono/ecologicamente sustentável, e com a ampliação de pequenas e médias empresas. Essas mudanças da estrutura industrial são também acompanhadas de um processo de integração regional, com o objetivo de superar a inserção internacional subordinada do Brasil, e com a inserção da perspectiva de desenvolvimento urbano e regional em sua formulação. Prevê aprofundar o controle público sobre setores estratégicos e reverter processos de privatização que foram levados adiante, assim como o desmonte do setor financeiro público. Para a alavancagem do investimento público, o programa prevê a recuperação da capacidade de gasto do Estado, através de mudança na estrutura tributária. Tal mudança dever tornar o sistema mais progressivo, amplo e simples. A regulamentação do setor financeiro (e uma auditoria da dívida pública), na perspectiva do programa, permitirá a redução dos custos da dívida pública e a utilização da taxa de câmbio “de forma mais estratégica”. São igualmente defendidas as revisões da Lei de Teto de Gastos e da Lei de Responsabilidade Fiscal. Vale ressaltar ainda o combate a todas as formas de desigualdade e discriminação no mercado de trabalho. Um ponto bastante interessante diz respeito à formulação do tema da independência do Banco Central na proposta do candidato: “aumentar a independência do Banco Central em relação ao mercado financeiro”, na exata contramão dos que defendem independência do Banco Central em relação à sociedade e ao Estado.

Candidatura Henrique Meirelles

O programa do candidato Meirelles aponta como estratégia que o país volte a crescer 4% ao ano. Para isso, coloca como condições a reforma tributária ampla e a reforma da Previdência Social, além de fortes investimentos em ampliação da infraestrutura, que permitam retomar um crescimento vigoroso nesta concepção. O investimento em infraestrutura é visto como um instrumento de geração de empregos no curto-prazo, e de melhoria geral de produtividade e de competitividade para o setor privado, aumentando eficiência e reduzindo custos. Esse investimento em infraestrutura será uma parceria entre o setor público e o setor privado, os investidores devem ser atraídos para esse processo por meio, por exemplo, de criação de “mesas de diálogo público-privado”. Novas concessões e privatizações também são defendidas. Finalmente, o programa defende uma maior abertura ao exterior, com a integração dos setores produtivos operando aqui às cadeias globais de valor.

Candidatura Jair Bolsonaro

Aponta para um superávit primário já em 2020, tendo o tema fiscal como central. O superávit fiscal é fundamental para a redução progressiva da relação dívida/PIB, e para isso aponta corte de despesas (e preocupação grande com a folha de pagamento do Governo Federal e as isenções fiscais). Segundo essa candidatura, essa redução teria um impacto no sentido da diminuição dos juros, estimulando investimentos, crescimento e geração de empregos pelo setor privado. Estima ainda reduzir em 20% o volume da dívida por meio de privatizações, concessões, venda de propriedades imobiliárias da União e devolução de recursos em instituições financeiras oficiais. Isso contribuiria para reduzir o peso da administração da dívida nos gastos públicos e para a diminuição das taxas de juros. Apenas estatais estratégicas não seriam privatizadas ou extintas. Propõe ainda a redução da carga tributária e o estabelecimento de uma renda mínima universal igual ou superior ao que hoje é pago no Programa Bolsa Família. O Banco Central será politicamente independente do governo e será mantido o chamado “tripé macroeconômico”. Investimentos privados, alavancados pelo desenvolvimento do mercado de capitais, deverão garantir a migração da indústria nacional atual para a indústria 4.0 (o Estado contribui com o treinamento de mão de obra), os investimentos em infraestrutura de transporte e energia (inclusive a do petróleo, com a privatização do refino, vendas de varejo e transporte, pelo menos), tomando em consideração inclusive fontes alternativas de energia, como eólica e solar. Na área externa, propõe a redução de alíquotas e barreiras não-tarifárias para uma abertura comercial, a formulação de acordos bilaterais internacionais e a abertura de novos mercados externos para o agronegócio.

Candidatura João Amoedo

O estabelecimento de um Banco Central independente e a privatização de todas as empresas estatais são pontos de destaque do programa. A ideia também é uma política de corte dos gastos públicos e simplificação e modernização tributária, com a adoção do IVA. Aparece ainda como importante o fim dos subsídios à energia não renovável, como gasolina e diesel. A abertura comercial, com redução tarifária e novos acordos de comércio, também é mencionada. É apontada ainda a manutenção e melhoramento do Programa Bolsa Família, assim como a desindexação das aposentadorias e pensões do salário-mínimo. O programa defende o fim das políticas de campeões nacionais (adotada anteriormente pelo BNDES) e de conteúdo local. Aponta necessidade de parcerias, concessões e privatizações para melhorar toda a infraestrutura – portos, aeroportos, ferrovias, rodovias, dutovias, hidrovias, infovias e mobilidade, também como forma de alavancar investimentos.

Candidatura João Goulart Filho

 

Na área do consumo, a principal proposta é dobrar o salário mínimo real em 4 anos, ou seja, no período do mandato, assim como acabar com o desemprego e promover uma melhoria geral dos salários e aposentadorias. No caso destas últimas, também é proposta a revogação de todas as medidas pós-Constituição de 1988, voltando ao texto da Constituição, e o fim do teto de pagamento do INSS para os setores público e privado. Propõe ainda retroceder nas mudanças da CLT aprovadas no ano passado e dobrar a multa no caso de demissão imotivada. Erradicação do trabalho escravo e adoção do princípio “salário igual para trabalho igual” também são propostas. A ênfase é um crescimento puxado pela ampliação do mercado interno. A retomada da econômica é pensada como um processo em que o retorno do investimento público em patamares maiores pode puxar o investimento privado, objetivando dobrar a taxa de investimento no país em 4 anos (para algo como 30%). Completar o processo de substituição de importações como estratégia de industrialização, defendida também com medidas de defesa da produção interna (tarifas, subsídios, câmbio competitivo), investimentos em infraestrutura e incentivo à produção da pequena e média propriedade rural voltada para o mercado interno completam o quadro. Para garantir o investimento, defende-se a redução das taxas básicas de juros e a utilização do sistema financeiro público (no caso do BNDES, com o retorno da TJLP como referência aos financiamentos). Fim da Lei de Teto de Gastos e canalização da renda de energia (petróleo e outras) para os investimentos públicos. Reestatização da Vale, recriação da Rede Ferroviária Federal e criação da Empresa Brasileira de Comércio Exterior também aparecem em um programa que joga grande peso no papel das empresas públicas. Finalmente, propõe-se uma reforma tributária direta e progressiva que elimine impostos indiretos, taxando a renda e a propriedade dos grandes e não o salário dos pequenos.

Candidatura José Maria Eymael

O gerenciamento do gasto público de modo a abrir espaço para investimentos, e uma reforma tributária simplificadora (e que reduza a carga tributária) são alguns dos eixos do programa econômico do candidato. Um programa de moradias, a prestação efetiva de serviços públicos em todas as regiões do país, e o adensamento da infraestrutura nacional (especialmente energia, estradas, ferrovias e portos) são outros objetivos apresentados. Um objetivo importante é trabalhar no sentido da redução do custo do crédito. Políticas de incentivo ao desenvolvimento urbano, saneamento básico e construção civil, vistos como setores a serem expandidos, o apoio ao empreendedorismo e a pequenas e médias empresas, e incentivos ao turismo e ao agronegócio também são citados nas propostas.

Candidatura Marina Silva

A construção de um país menos desigual passa pelo crescimento econômico. Retomar o crescimento de longo prazo no país depende fundamentalmente do aumento da produtividade e da capacidade de inovação. O programa se funda na estabilidade econômica, com base no tripé macroeconômico e na autonomia operacional do Banco Central. Para atender a situação emergencial de pobreza em que vive uma parte da população, é essencial o Programa Bolsa Família, e será estudado um programa de renda mínima universal. Programas de habitação popular e ampliação da infraestrutura são fundamentais, e mecanismos de financiamento para estes devem ser acionados (como concessões, PPPs e outros que envolvam nos projetos o setor privado, assim como investidores internacionais que possam ser atraídos), dada a reduzida capacidade de investimento do Estado. A carga tributária atingiu seu limite e não pode ser elevada, na avaliação do programa e, portanto a administração rígida do gasto público é fundamental, e sua manutenção dentro de um limite de crescimento que corresponda a 50% do crescimento do PIB. Em função da mudança da estrutura etária do país, que faz com que os gastos previdenciários cresçam muito rápido, é fundamental a reforma previdenciária, na avaliação da candidatura Marina. O programa também aponta no sentido da modernização e simplificação tributária, com a criação do IBS (Imposto sobre Bens e Serviços), que reuniria cinco impostos hoje existentes (PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS). Estímulo ao empreendedorismo, ao microcrédito e ao turismo também aparecem no programa. Defende-se incentivos à abertura comercial e à integração às cadeias produtivas internacionais, como forma de ampliar a eficiência e a produtividade. A conclusão das negociações comerciais em curso (Mercosul-União Europeia) e a procura por novos acordos (como com a Aliança do Pacífico – composta de Chile, Peru, Colômbia e México) devem ser perseguidos no plano internacional, assim como outros que não firam o aprofundamento do Mercosul como União Aduaneira. Também deve ser buscada a implementação de mecanismos de facilitação de comércio e investimentos.

Candidatura Vera Lúcia Salgado

O programa apresentado pela candidata aponta “a ruptura com o capitalismo, os grandes bancos e empresas, chamando a que a classe operária e a população pobre se rebelem, façam uma revolução que destrua o capitalismo e que construa, na luta, um governo socialista dos trabalhadores, baseado em conselhos populares”. Não se propõe, portanto, a qualquer mecanismo de gestão da crise conjuntural atual e nem a melhorias incrementais na situação de vida dos trabalhadores nesse momento. Assim, a ruptura com o megacomplexo empresarial atualmente existente, com a estatização das maiores empresas, e com os conglomerados transnacionais, incluídos os conglomerados financeiros, são colocados como pontos importantes, assim como do latifúndio e do agronegócio. Também são vistos como fundamentais a revogação de medidas adotadas no último período, como a Lei de Teto de Gastos e a das Terceirizações. Também não é aceita qualquer reforma da Previdência Social. A geração imediata de empregos e a necessidade de expansão da infraestrutura social (saúde, educação, saneamento) têm como proposta um plano de obras públicas sob controle dos trabalhadores. Finalmente, vale observar as propostas de um aumento geral de salários e aposentadorias tomando como mínimo o salário mínimo do DIEESE, cerca de quatro vezes o valor do salário.

Por que queremos o fim do sigilo fiscal dos gastos tributários: o caso empresa Hydro Alunorte.

Alessandra Cardoso, assessora política do Inesc.

O Inesc, com apoio de outras organizações, lançou a campanha #SóAcreditoVendo que pede o fim sigilo fiscal das empresas beneficiárias dos gastos tributários. São R$ 250 bilhões que o Estado deixa de arrecadar a cada ano para supostamente estimular investimentos que, em tese, trariam o desenvolvimento econômico. Quais são estas empresas é uma informação pública, mas bem escondida. Quanto elas deixam de pagar é segredo protegido por sigilo fiscal e quanto de benefício isto traz para a economia do país e para a sociedade é uma grande incógnita.

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O caso Hydro Alunorte é um bom exemplo para mostrar a importância da campanha. Em fevereiro de 2018 ocorreu um vazamento de rejeitos de bauxita da refinaria de alumina da Hydro Alunorte, pertencente ao conglomerado norueguês Norsk Hydro. O material com elevados níveis de chumbo, alumínio, sódio e outras substâncias contaminou o solo e água, que se tornou imprópria para consumo humano e animal. O desastre não é o primeiro em Barcarena, Pará, cidade que desde os anos 80 recebeu uma grande quantidade de empresas depois da implantação do complexo Alunorte-Albrás, de produção de alumina e alumínio. Desde 2000, Barcarena registrou 17 acidentes ambientais graves, segundo o Ministério Público Estadual. A Alunorte, que até 2010 era de propriedade da Vale S.A, foi responsável por dois acidentes, em 2003 e em 2009, também de vazamento de rejeitos contaminantes.

Esta empresa é, desde sua implantação na década de 80 até os dias de hoje, beneficiária de incentivos fiscais administrados pela Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM). Em termos de investimento, o que ela faz é utilizar a bauxita extraída de Oriximiná e Paragominas, ambas no Pará, consumir bastante energia subsidiada e transformar em alumina. Para garantir uma maior rentabilidade para suas operações ela conta com desconto de 75% do Imposto de Renda de Pessoa Jurídica (IRPJ). Em cima dos 25% que lhe sobra para pagar, ela ainda tem um desconto de 30% se comprovar que utilizou os recursos para investimentos.

Mas, afinal, quanto ela deixa de pagar por ano de imposto? Esta quantia está escondida nestes R$250 bilhões citados no início do texto. Não conseguimos saber o valor exato porque esta informação é protegida por um entendimento equivocado da Lei de Sigilo Fiscal. O que sabemos é que os sucessivos desastres e o baixo retorno  que esta empresa propicia para a Amazônia e para a população de Barcarena dificilmente poderiam ser compreendidos como desenvolvimento, ou seja, não se justifica essa quantidade de benefícios fiscais concedidos.

Também sabemos que este desastre ambiental e humano foi produzido por falta de responsabilidade com a segurança das operações da Alunorte que incluía, inclusive, o lançamento irregular de águas pluviais oriundas da usina, sem passar pelo sistema de tratamento e sem autorização do órgão ambiental competente.

Empresas como esta recebem incentivos fiscais há décadas na Amazônia, sem que se saiba quanto elas deixam de pagar e, ainda pior, sem que haja um controle mínimo dos benefícios que deveriam trazer à sociedade. Casos de irresponsabilidade como este precisam ser punidos, entre outras formas, com o imediato cancelamento desses incentivos fiscais, que caracterizam gastos tributários.

Enquanto queremos saber o mínimo – quanto cada empresa deixa de pagar –, no Congresso Nacional senadores e deputados trabalham para renovar por mais dez anos os incentivos fiscais na Amazônia, no Nordeste e ainda expandir para Centro Oeste. Trata-se do Projeto de Lei do Senador Eunício Oliveria (PMDB/CE) que já passou pelo Senado e agora tramita com urgência na Câmara dos Deputados.

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Como as candidaturas propõem enfrentar os desafios socioambientais

Por Alessandra Cardoso e Leila Saraiva, assessoras políticas do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc)

O Brasil tem desafios do tamanho do seu vasto e complexo território, um deles é o de equacionar o que chamamos de questão socioambiental. Em linhas gerais, a temática socioambiental evidencia como os sucessivos governos enfrentam ou não o desafio de garantir um meio ambiente saudável, juntamente com o reconhecimento e garantia dos direitos das populações que vivem e sobrevivem com base em uma relação com a terra, o território, a floresta e a biodiversidade que não se resume à dimensão do mercado ou da sobrevivência material.

Alguns dos temas socioambientais ganham mais destaque na agenda pública, como o do desmatamento, por sua premência e peso na política global do clima. Outros, são objeto de intensa disputa de forças e poder, como é o caso da demarcação das terras indígenas e o reconhecimento dos territórios quilombolas. Mas todos eles não podem ser resolvidos de forma isolada de um projeto de país, de sociedade, de economia e de Estado.

Estabelecer limites e condições para a expansão do agronegócio, por exemplo, é imprescindível para garantir o direito dos povos indígenas aos seus territórios. Estes direitos estão sendo negados hoje porque há um interesse econômico forte, poderoso e representado no Estado para impedir que as terras indígenas sejam demarcadas, assim como para impedir que territórios de quilombolas e outras comunidades tradicionais sejam reconhecidos.

Por isto, é preciso olhar não apenas para os temas que aparecem nas “cartas de intenções” dos candidatos à presidência da República, mas também observar como as estratégias de crescimento econômico e de saída da crise, inclusive fiscal, dialogam com os desafios socioambientais. Dois anos de Teto dos Gastos já mostraram que não é possível ter políticas públicas funcionando com o orçamento congelado. O sucateamento da Fundação Nacional do Índio (Funai), do Instituo Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), a extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), os orçamentos pífios do Ministério do Meio Ambiente (MMA), o desmonte das políticas públicas e tutti quanti são prova disto.

O que fazer com a EC 95 já é, portanto, um primeiro divisor de águas. Os candidatos que se comprometem com sua revogação são Ciro (PDT), Haddad (PT), Boulos (Psol), Vera (PSTU) e Goulart (PPL). Do outro lado, Marina (Rede), Bolsonaro (PSL), Cabo Daciolo (Patriota), Alckimin (PSDB), Álvaro Dias (PODE), Eymael (DC), Meirelles (MDB) e Amoedo (Novo) repetem o discurso da austeridade, que na prática já mostrou suas consequências.

Entre os candidatos que propõem manter a política de austeridade fiscal, Marina merece destaque por ser uma candidata identificada com a pauta socioambiental. Na sua proposta, o teto para os gastos seria baseado na metade da variação do PIB. Quer dizer, se o país voltar a crescer 3% ao ano, por exemplo, os gastos poderiam crescer somente em 1,5% ao ano em termos reais. Na prática, esta proposta é tão nefasta quanto o teto hoje vigente, ao não reconhecer que o estágio de sucateamento do Estado e das políticas públicas exige um gasto crescente em termos reais que não poderá ser viabilizado com tal limite.

Outro ponto caro à pauta socioambiental é o desmatamento. Desde 2012, há uma demanda vocalizada por várias organizações socioambientais para que o governo se comprometa com o desmatamento zero. Na proposta já formulada, algumas exceções seriam garantidas para a agricultura familiar (por um período de transição), para terras indígenas que são protegidas por legislação própria, e onde o desafio é proteção e fiscalização, assim como territórios de povos e comunidades tradicionais onde o uso coletivo dos territórios caminha ao lado da proteção. São ainda consideradas exceções para ações e projetos de segurança nacional, defesa civil, pesquisa, planos de manejo florestal, atividades de interesse social e utilidade pública, que são regulamentadas pelos órgãos competentes, a exemplo do licenciamento conduzido pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

O grande desafio que está por traz do desmatamento zero é impedir novos desmatamentos, mesmo os legalmente autorizados. A questão central daí resultante é como estancar o avanço do agronegócio sobre áreas de floresta sendo que hoje seus atores podem desmatar áreas extensas de floresta sob a proteção legal do Código Florestal.

Os candidatos que abordam a questão do desmatamento zero são: Marina, Boulos e Lula/Haddad.

A abordagem que dão ao tema, no entanto, é distinta. Marina Silva indica que o compromisso com o desmatamento zero será alcançado por meio de mecanismos de mercado, entre eles o mercado de carbono, que estimularia “iniciativas para conferir valor às florestas, com vistas a atingirmos o desmatamento zero no Brasil, no menor prazo possível, com data limite em 2030”. Vale dizer que a crença no mercado como aquele que resolverá nossos males, e não só o do desmatamento, é uma tónica na sua proposta e está alinhada ao compromisso de continuar com a austeridade fiscal: “Considerando a severa restrição fiscal que limita fortemente o aumento de gastos discricionários, incluindo investimentos públicos, a forma mais racional de viabilizar projetos estruturantes no Brasil é pelo investimento privado”.

Haddad assumem o compromisso com a taxa de desmatamento líquido zero até 2022. Indicam claramente que isto implicaria em colocar um fim à expansão da fronteira agropecuária, o que passa pela “regulação do grande agronegócio para mitigar os danos socioambientais, impedir o avanço do desmatamento, assegurar o ordenamento da expansão territorial da agricultura de escala, corrigir as permissividades normativas, impedir excessos das subvenções públicas e subordinar sua dinâmica aos interesses da soberania alimentar do país”.

É importante notar que a palavra “líquido” não é mero detalhe, expressa a possibilidade de que áreas desmatadas possam ser compensadas com outras áreas, inclusive reflorestadas, o que reduz o escopo do desmatamento zero.

É para ressaltar esta diferença que o programa de Boulos reforça o compromisso com o desmatamento zero afirmando que “É possível, necessário e vantajoso ao Brasil zerar o desmatamento em uma década em todos os biomas. Para que isso seja efetivo, a meta deve ser do “desmatamento zero” e não “desmatamento ilegal zero” ou mesmo “desmatamento líquido zero”.

Ciro menciona vagamente a necessidade de se desenhar uma estratégia para redução do desmatamento. Meireles diz que é preciso acelerar programas de redução do desmatamento, detalhe, somente na Amazônia. Na mesma linha, João Amoedo propõe resolver o problema do desmatamento no longo prazo e somente na Amazônia. Bolsonaro, Alckmin, Álvaro Dias, Cabo Daciolo, Eymael e Vera Lúcia nem sequer citam o problema do desmatamento.

Já no que tange à demarcação e regularização fundiária de terras indígenas e quilombolas, os candidatos que se comprometem com a pauta são: Boulos (PSOL), Ciro (PDT), Haddad (PT), Marina (REDE), Vera Lúcia (PSTU). Os demais candidatos ou se calam sobre o assunto, havendo programas que nem sequer mencionam o tema, ou propõe diretamente políticas anti-indígena e anti-quilombola, como é o caso do candidato Bolsonaro, que propõe que O Estado deve facilitar que o agricultor e suas famílias sejam os gestores do espaço rural”, ignorando os crescentes índices de violações aos direitos humanos no campo que acometem o país.

Por fim, outro ponto que chama atenção em uma análise mais geral dos programas das candidaturas é como a problemática socioambiental dialoga ou se confronta com o chamado “modelo de desenvolvimento” que as candidaturas defendem para o país. Embora seja arriscado ler as propostas sob esta ótica, dado que os documentos são cartas de intenção e em sua grande maioria muito vagos, eles apontam caminhos e devemos ficar atentos a eles e suas consequências.

A questão socioambiental, suas possibilidades, tensões e limites, está diretamente associada ao modelo de desenvolvimento. Não será possível, por exemplo, enfrentar o problema da demarcação das terras indígenas, da garantia ao território para quilombolas e dezenas de comunidades tradicionais, sem enfrentar o modelo de crescimento fortemente baseado na produção, extração e circulação de commodities. Faz parte da natureza deste modelo buscar a expansão e, dado seu poder dentro do Estado brasileiro, obstruir as possibilidades de equacionar o direito à terra e território. Esta é, como apontado anteriormente, uma questão também ligada ao desmatamento zero.

Um outro modelo de desenvolvimento, de base industrial moderna (a exemplo da indústria 4.0 tão mencionada nas propostas dos presidenciáveis), mas também de base florestal, regional, de transição ecológica entre outros adjetivos e substantivos, só tem chance de prosperar com muito planejamento, políticas públicas e orçamento público. Tal modelo está, entre outras coisas, na contramão da inserção subordinada do Brasil nas redes globais de produção e não será o mercado por sua obra e graça a prossegui-lo.

Logo, é fundamental entender qual planejamento e qual Estado estão sendo propostos pelas diferentes candidaturas. Neste ponto, existe um segundo divisor de águas.

Existem as candidaturas que partem do pressuposto de que o Estado, o planejamento, o investimento, o orçamento público e as políticas públicas são centrais para a saída da crise e para a construção de um novo modelo de desenvolvimento, onde os desafios socioambientais estão, mais ou menos, postos: Boulos, Ciro, Haddad, Vera e João Goulart.

Existem as candidaturas que partem do pressuposto de que o Estado ou não é capaz ou não é necessário para induzir de forma mais direta o desenvolvimento, cabendo à iniciativa privada o papel de “salvadora da pátria”: Marina (Rede), Bolsonaro (PSL), Cabo Daciolo (Patriota), Alckimin (PSDB), Alvaro (PODE), Eymael (DC), Meirelles (MDB) e Amoedo (Novo).

Não por acaso esta divisão é a mesma em relação à Emenda Constitucional 95.

Da mesma forma, dois assuntos polêmicos e decisivos para o equacionamento da questão socioambiental  são infraestrutura econômica e energia. Sobre o último, embora sejam muitas as candidaturas que insinuam o compromisso de investir mais em energias renováveis, nenhuma delas se compromete a não investir em grandes hidrelétricas na Amazônia. Com o adendo de que no programa do candidato Boulos está registrado que “não entendemos serem necessárias construções de novas usinas neste momento”.

No tema da infraestrutura econômica, em especial na Amazônia onde ela serve a uma estratégia de escoamento da produção de commodities com impactos cumulativos severos, as propostas também são vagas, a exemplo do programa de Haddad onde afirma-se que “para o Brasil crescer e se desenvolver, é preciso priorizar os investimentos em infraestrutura – que geram empregos e dinamizam a economia – orientados pela busca da sustentabilidade”.

Gracias a la vida – de quem?

A conquista histórica das nossas hermanas argentinas, que com muita luta e resistência conseguiram aprovar o direito ao aborto na Câmara dos Deputados daquele país, também pode ser lida como uma lição sobre a importância da representação feminina em instâncias de poder – aliada à batalha travada nas ruas contra o conservadorismo na sociedade.

Ainda não é definitivo, pois a votação precisa ir ao Senado, mas a conquista é um passo importante rumo a esta vitória histórica, visto que em toda América Latina, apenas Uruguai, Cuba e Guiana legalizaram o aborto. Considerando que Guiana Francesa e Porto Rico seguem a legislação francesa e estadunidense, respectivamente, significa que apenas 6% da população dessa região tem o direito ao aborto legal e seguro. Se confirmada a aprovação na Argentina, esse número sobe para 10% – o que ainda é muito pouco, mas pode influenciar e contribuir para a mobilização em outros países, a despeito da onda conservadora que tomou conta de várias partes do mundo.

O que aconteceu a partir das ruas e, posteriormente, foi referendado no Congresso argentino é uma luz em meio a tantos retrocessos de direitos que temos sofrido como país e como região, com o avanço das políticas neoliberais e da cultura ultraconservadora. Aqui, o patriarcalismo e o machismo seguem dando as ordens: os parlamentos, em geral, são formados por maioria de homens brancos, que se acham no direito de decidir pelas mulheres, com discursos repletos de fundamentalismos, misoginia, reafirmação do patriarcado.

Quanto a isso, a Argentina tem avançado e alcançou uma das maiores representações de mulheres no Legislativo da América Latina.  Elas são 38,9% na Câmara dos Deputados e 41,7 % no Senado, segundo o ranking da ONU. É evidente que a representação por si só não é garantia da efetivação imediata dos direitos das mulheres, mas certamente contribui para o avanço da discussão.

No caso do Brasil, onde essa representação é de apenas 9% na Câmara e 13% no Senado, há vários riscos de retrocessos dentro desse Parlamento masculino e branco. Por exemplo, em novembro de 2017, foi aprovada na Comissão Especial da Câmara uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), que previa inicialmente a ampliação da licença maternidade em caso de bebês prematuros, à qual foi anexada outra proposta que diz ser “inviolável a vida desde a concepção”. Caso esta PEC seja aprovada em Plenário, retroagiremos 30 anos, visto que nem mesmo os casos de aborto previstos no Código Penal, como risco de morte da mulher ou gravidez em decorrência de estupro, serão possíveis.

Não é possível que se ignore o número de morte de mulheres que se submetem ao aborto clandestino. No Brasil, estimativa do Ministério da Saúde aponta a média de quatro mortes por dia de mulheres que buscam socorro nos hospitais por complicações do aborto. E as principais vítimas são as mulheres de baixa renda, que recorrem a métodos muito precários e perigosos para interrupção da gravidez, e ainda podem ser criminalizadas quando buscam a rede pública em casos de emergências decorrentes da prática.

Então, que as mulheres argentinas e a intensa mobilização que produziram nos inspirem e nos joguem às ruas pelo poder de decisão sobre nossos corpos. Que nos impulsionem a gritar pelo direito e poder de decisão sobre a maternidade. E gritemos mais para estarmos nos espaços de poder, para não termos de seguir regras ditadas por homens brancos, quando somos muitas e subrepresentadas.

E para ficar bem nítido o racismo institucional e a seletividade dos que se dizem “a favor da vida”, precisamos discutir o caso Janaina, de Mococa, São Paulo: pessoa em situação de rua, com filhos e, por isso, um promotor do Ministério Público, utilizando-se de uma ação civil pública, encaminhou recurso contra Janaina e o município de Mococa, exigindo que ela fosse esterilizada. Solicitação acatada pelo Juiz, que não considerou, ou ouviu, ou deu direito de defesa à Janaina, que coercitivamente foi submetida à cirurgia. Certamente, juiz e promotor são “pró-vida”, mas escolhem quem pode ter dignidade e integridade respeitadas.

Viva as Argentinas, gracias a la vida y a la lucha!!!!

 

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