Novo Banco de Desenvolvimento: uma aposta para o futuro?

Por Nathalie Beghin*, para o Outras Palavras

Organizações da sociedade civil dos países que integram os Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e também de outros países, vêm apostando no Novo Banco de Desenvolvimento (NBD). Há razões para essa aposta, como também existem motivos para preocupação.

O NBD, com três anos de idade, mas apenas um de efetiva operação, foi criado na esteira da insatisfação dos países emergentes com as instituições financeiras internacionais (IFI´s) existentes. Tais instituições dão pouco espaço de comando e, por vezes, negam-se a respeitar a soberania desses países. Mais: não dispõem de recursos suficientes para assegurar a expansão de infraestruturas, imprescindível para o crescimento das economias em desenvolvimento.

Com efeito, estimativas de diversas organizações (como a da Unep e a OCDE) apontam que os recursos necessários até 2030 para a infraestrutura global (transporte, energia, comunicação, saneamento, entre outros) variam de 57 a 89 trilhões de dólares, a depender da metodologia adotada, sendo que grande parte dessas necessidades vem dos países emergentes. Diante da incapacidade de as instituições financeiras internacionais tradicionais alavancarem tais montantes, o chamado Sul Global optou pela criação de novas organizações, como o Banco Asiático de Investimentos em Infraestrutura e o Novo Banco de Desenvolvimento, o chamado Banco dos Brics.

Na tentativa de pressionar o Novo Banco a seguir o caminho do desenvolvimento sustentável, organizações da sociedade civil estão apostando em um diálogo institucionalizado com o NBD, que tem se colocado como uma alternativa às velhas práticas multilaterais, lançando mão de uma narrativa atrativa que anuncia uma institucionalidade voltada para as demandas de desenvolvimento das economias do Sul.

O banco opera, por exemplo, sob o princípio da paridade das decisões dos países membros – o que é bastante inovador, considerando o excessivo peso dos países do Norte nas instituições financeiras multilaterais tradicionais. Essa lógica mais democrática e inclusiva do NBD adota o sistema de “cada país um voto” e não o de “cada dólar um voto”, daí que a África do Sul, com um PIB de 300 bilhões de dólares, tem o mesmo peso da China, que apresenta um produto interno bruto de 11,2 trilhões de dólares, 37 vezes maior, de acordo com a classificação do Banco Mundial.

Outra característica atraente é que o NBD propõe-se a trabalhar na promoção da sustentabilidade, o que amplia a visão em relação às velhas estratégias de combate à pobreza adotadas até agora. O Banco busca ainda executar seus projetos respeitando a soberania dos países, de modo a se contrapor às chamadas ingerências promovidas pelas IFI’s tradicionais por meio das condicionalidades.

O NBD tem a intenção de ser leve, inovador e efetivo. Para tal, diz que terá estrutura enxuta – não mais do que 400 pessoas quando em plena operação, número que dista dos mais de 10 mil empregados do Grupo Banco Mundial, por exemplo. Propõe-se a aprovar projetos em apenas seis meses e a utilizar produtos financeiros adequados às realidades dos seus sócios (empréstimos em moedas locais, bônus verdes etc.). Por fim, diz-se disposto, desde o início, a dialogar com os diversos atores econômicos e sociais interessados na sua atuação.

É no marco dessa disposição ao diálogo, que organizações da sociedade civil reuniram-se com a cúpula da instituição na sede do Banco em Xangai, no final do mês de outubro. Foram discutidos temas como as políticas e estratégias, as operações, as modalidades de financiamento, a dimensão de gênero e a participação social. Se é verdade que existem entendimentos comuns sobre o ineditismo do NBD, é também verdade que enormes preocupações perpassam muitas de nossas organizações da sociedade civil e suas redes.

Dentre estas inquietações pode-se destacar a pouca clareza sobre o conceito de desenvolvimento sustentável, abrindo brechas para o financiamento de projetos que violam direitos. Por exemplo, o banco considera que a energia renovável, como a eólica e a solar, contribui para o desenvolvimento sustentável. Tanto é assim, que o primeiro empréstimo para o Brasil, tomado pelo BNDES, foi nessa área. Entretanto, é sabido que a energia eólica, a depender de como é gerada, pode apresentar severos danos ambientais (como degradação de solo, desmatamento, destruição da biodiversidade) e sociais (deslocamentos de produtores familiares e populações tradicionais de suas terras e territórios, grilagem de terras, doenças provocadas pelos ruídos e contaminação de solos, especulação mobiliária). Como não existem informações detalhadas sobre os projetos aprovados, é impossível avaliar os impactos.

A falta de transparência é outro problema ainda não solucionado pelo banco. Não se sabe quais os critérios e procedimentos adotados pela instituição para aprovar projetos. Até agora, foram aprovados 11 projetos nos cinco países Brics, num valor total de 3 bilhões de dólares, e não existem maiores detalhes sobre o teor desses empréstimos. Associada a esta limitação, encontra-se a ausência de envolvimento da sociedade e, em especial, das comunidades afetadas pelos projetos, no seu desenho, implementação e monitoramento.

Outra questão que preocupa bastante nossas organizações é o fato de que a estratégia do banco e suas políticas (Informação, Ambiental e Social) foram elaboradas sem qualquer consulta pública, sem referências aos direitos humanos e com lacunas, como a ausência da dimensão de gênero – que é central para assegurar o desenvolvimento sustentável. A imprecisão quanto às diretrizes operacionais para avaliação de riscos e externalidades socioambientais e para a prestação de contas, além da inexistência de mecanismos de participação social nos níveis internacional, nacional e local são outras preocupações igualmente relevantes.

Estamos em um momento extremamente interessante, no nascedouro de uma organização que reúne as condições para se diferenciar. Resta saber se o NBD se dispõe a aceitar o desafio proposto pelas organizações da sociedade civil de ser efetivamente socioambientalmente inclusivo e participativo. Por ora, vamos apostando nessa trajetória, sem deixar de ser vigilantes.

*Nathalie Beghin é coordenadora da assessoria política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e esteve na reunião em Xangai representando o Inesc e a Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip).

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Desmonte da legislação ambiental e do Estado: dois lados de uma mesma moeda

É notório o acelerado processo de desconstrução dos direitos socioambientais erigidos em grande parte na Constituição Federal de 88, mas também em legislações infraconstitucionais, em atos administrativos e na estruturação de instituições com missão de fazê-los cumprir. São muitas as mudanças e evidências nessa direção, mas vale chamar atenção para três marcos desse processo e sua cronologia a qual também tem um papel revelador:

  • A aprovação de um Novo Código Florestal em 2012 que trouxe transformações paradigmáticas na forma como o proprietário privado deveria lidar com seu passivo ambiental e com a proteção ambiental, entre elas destacamos: i) redução do patamar de proteção ambiental com diminuição das Áreas de Reserva Legal e de Preservação Permanente; ii) anistia do desmatamento ilegal em terras privadas; iii) criação de um mercado de compensações ambientais como forma de resolver o restante do passivo ambiental que não foi anulado. A construção e aprovação deste Código foi também um marco político para o avanço da pauta do agronegócio no Congresso Nacional. Nada mais ilustrativo do que a fala pública da bancada ruralista em março de 2011 no relançamento da Frente Parlamentar da Agropecuária anunciando que tinham “força e objetivos” e que depois do Código Florestal estariam unidos para combater o que consideravam a “farra de criação de unidades de conservação e áreas indígenas”.
  • A ofensiva sistêmica para reduzir ou desafetar Unidades de Conservação, por meio de sucessivas Medidas Provisórias e Projetos de Lei. O processo iniciado em 2012 por Medida Provisória com o objetivo de viabilizar a instalação de grandes projetos hidrelétricos na Amazônia foi amplamente potencializado pela força e pressão da bancada ruralista. Estudos apontam que as medidas legislativas em curso para reduzir área ou grau de proteção ambiental alcançam 80 mil quilômetros quadrados.
  • Iniciativas no Legislativo, e agora também no Executivo e Judiciário,de barrar a demarcação de Terras Indígenas. A despeito da força da bancada ruralista no Congresso Nacional, a forte capacidade de resistência do movimento indígena e aliados tem conseguido barrar há mais de 10 anos as tentativas de aprovação da PEC 215. No contexto mais recente – de pesadas negociações entre governo e sua base de apoio no Congresso Nacional para garantir a condução de reformas ultra neoliberais e impedir abertura de processos investigativos contra Temer – ampliou-se sobremaneira a articulação de interesses entre governo e bancada ruralista tendo como uma das moedas de troca o fim das demarcações. Expressão deste movimento é o Parecer da AGU – Advocacia Geral da União, o qual estabelece que a decisão do Supremo Tribunal Federal(STF) sobre a Raposa Serra do Sol vale para toda a administração; em outras palavras, trata-se da interpretação do marco temporal segundo o qual só são terras indígenas as ocupadas por índios na data da promulgação da Constituição. Também no STF segue em frente a estratégia de pautar ações sobre a constitucionalidade de demarcações com base no argumento do marco temporal.
  • A Medida Provisória 759 transformada na Lei13.465/2017 que, entre outras medidas, atribui um prazo mais restrito para que o Incra emancipe os assentados do Programa Nacional de Reforma Agrária sem que a eles tenham sido garantidas as condições de produzir e sobreviver na terra. Na prática, e no contexto de desmonte das políticas de reforma agrária e agricultura familiar, a medida visa garantir que terras “retiradas do mercado” pela Reforma Agrária sejam a ele devolvidas. A nova Lei também abre a possibilidade ampla e irrestrita de regularização fundiária de latifúndios, expandido a política já crítica de regularização fundiária na Amazônia denominada “Terra Legal”.

Estes exemplos expressam um desmonte de direitos socioambientais que é parte de um fenômeno de mais de uma década de renovação do pacto de poder conservador que interpenetra os campos econômico e político vinculados à expansão do domínio do agronegócio – ou o que Alfredo Wagner denominou agroestratégias – sobre terras e recursos. Expansão, por sua vez, também alimentada pelo recente ciclo de commodities, puxado pela China, e pela atitude pragmática do Estado brasileiro, assim como dos países da região, de aprofundamento do papel primário exportador do país na divisão internacional do trabalho historicamente estabelecida. Os dados são ilustrativos deste movimento. Em 2000 os produtos primários respondiam por 41,6% das exportações totais do país, em 2015 esta participação subiu para  61,9%, uma taxa de crescimento de 49% para o período – o crescimento mais expressivo entre todos os países da região.

Mas, se o desmonte da legislação e dos direitos socioambientais não é um fenômeno recente, é inegável que ele se aprofundou, acelerou e ganhou novos contornos a partir da reconfiguração de forças que levou ao impeachment da presidenta Dilma Rousseff.

É nesse novo contexto que (re)surge o discurso de que ao Estado cabe criar um “bom ambiente de negócios” para que novos investimentos prosperem e tirem o país da crise. É parte desse grande “acordo de cavalheiros” a tentativa de se aprovar no Congresso uma Lei Geral do Licenciamento que: agiliza e flexibiliza os processos de licenciamento para grandes obras; dispensa do licenciamento ambiental todas as atividades agrosilvopastoris – independente do porte, da localização, do uso de recursos hídricos etc.; prevê o licenciamento compulsório nos casos em que as autoridades envolvidas não se manifestem no prazo determinado, entre outras maneiras de tornar o processo mais célere e barato, a despeito das suas consequências.

Sob o argumento da crise fiscal, foi operado um rápido desmonte do Estado Brasileiro com a aprovação de mudanças estruturais que estão, entre outras coisas, fornecendo os ingredientes que faltavam para a estratégia de “liberação” de terras e outros recursos naturais. As legislações, instituições e políticas socioambientais vigentes atuam para garantir o domínio de povos indígenas, quilombolas e assentados, entre outros, sobre suas terras e territórios. Por isto e a despeito da sua fragilidade, elas representam um obstáculo à apropriação de terras e recursos por grupos econômicos privados ligados ao agronegócio, à mineração e à investimentos em infraestrutura funcionais ao escoamento da produção primário-exportadora.

Em outras palavras, um ponto a considerar é que o desmonte da Funai, do Incra, do extinto Ministério do Desenvolvimento Agrário, da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial, do ICMBio, serve apenas marginalmente ao propósito de reduzir gastos estrangulados pela Emenda Constitucional N° 95 (o teto dos gastos), visto que sempre foram instituições e políticas marginais na estrutura do Estado e do orçamento público. O desmonte das políticas públicas socioambientais, construídas em grande parte em função da luta dos movimentos e organizações sociais serve, mais que isso, ao propósito de desconstruir direitos, identidades e favorecer o discurso de que a saída não passa pelo Estado e pela garantia de direitos e sim pelo mercado. Sob esta lógica, a alternativa para os povos indígenas seria, por exemplo, arrendar suas terras para o agronegócio, aceitar a mineração ou transformar-se em agricultores integrados à agricultura de grande porte.

Tamanho desmonte não foi, portanto, construído da noite para o dia, e não será desconstruído facilmente pois expressa um conjunto de forças que ganha um terreno mais fértil para prosperar no ambiente de múltiplas crises em que o Brasil foi mergulhado. Mas a história recente tem nos mostrado que tais forças possuem raízes profundas. A criminalização dos movimentos sociais, seguida do crescimento das mortes e das chacinas no campo revelam o quanto esse processo é indissociável da violência que nos constitui enquanto nação.

O que ocorre na votação do Orçamento 2018

Por Grazielle David*, para o Portal Vermelho

Na tramitação do Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) para 2018, deputados federais e senadores estão propondo emendas em uma peça orçamentária fruto de manobra do Executivo, o que torna tanto a proposta de lei quanto o próprio trabalho dos parlamentares fictícios.

O PLOA prevê a estimativa de receitas e a fixação de todas as despesas do governo para o ano seguinte, devendo estar em concordância com o plano plurianual e a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). De acordo com a Constituição Federal, no caso da União, o Executivo deve enviar o PLOA ao Congresso Nacional até o dia 31 de agosto de cada ano e ele deve ser aprovado pelos parlamentares até 22 de dezembro; porém, esse prazo não chega a adiar o recesso parlamentar caso a aprovação não ocorra no prazo.

A LDO 2018 havia sido sancionada em 08 de agosto de 2017 e previa um resultado fiscal de déficit de R$ 129 bilhões. Foi com base nela que o PLOA 2018 foi elaborado e encaminhado no prazo estipulado de 31 de agosto. Porém, em 17 de agosto, depois da entrada em vigor da LDO e 14 dias antes do envio do PLOA 2018, o governo encaminhou ao Congresso uma proposta de alteração da meta de resultado fiscal para 2018, passando a previsão de déficit para R$ 159 bilhões. O texto principal dessa proposta de alteração foi aprovado em 30 de agosto. Com isso o PLOA teria que ser alterado para se adequar à nova meta fiscal.

Entretanto, o governo de Temer, com o propósito de manobrar o prazo legal, ignorou a própria proposta de mudança de meta fiscal e entregou o PLOA 2018 em discordância com a LDO. As provas para essa afirmação são diversas. Em debate no dia 25 de outubro, referente aos cortes orçamentários da Assistência Social no orçamento para 2018, o deputado federal Cacá Leão (PP-BA), responsável pela negociação do PLOA com o Poder Executivo, afirmou que “as informações do orçamento 2018 não condizem com a realidade”. Segundo ele, o PLOA 2018 só foi enviado para cumprir prazos e o governo federal irá mandar uma retificação da peça orçamentária com novos números.

O Relatório de Setembro de 2017 da IFI (Instituição Fiscal Independente) também confirma essa situação: “O executivo enviou em 31 de agosto o PLOA 2018 prevendo déficit de R$ 129 bilhões, número reconhecidamente carente de consistência macroeconômica e fiscal. Diante dessa situação singular, a IFI optou pela espera de nova proposta, com números atualizados e revisados, para que se possa realizar avaliação mais aprofundada”.

O próprio ministro do Planejamento, Dyogo Oliveira, afirmou no dia 16 de outubro que a equipe econômica pretende encaminhar até o fim de outubro uma mensagem modificativa do Orçamento de 2018, por entender que a mudança é necessária para ajustar as despesas do governo à nova meta fiscal, que permite déficit de até R$ 159 bilhões no ano que vem. Ele também disse que antes disso o governo ainda precisa encaminhar medidas de aumento de receitas e redução de despesas, como a mudança na tributação dos fundos exclusivos de investimento, o aumento na alíquota previdenciária de servidores e o adiamento de reajustes do funcionalismo.

Porém, o governo decidiu aguardar a votação da segunda denúncia de corrupção contra Temer antes de enviar essas medidas ao Congresso. Essa seria uma maneira de evitar desagradar os parlamentares em um momento político tão ‘sensível’ ou, em outras palavras, uma forma de comprar parlamentares.

O resultado disso tudo é que os parlamentares estão há dois meses debatendo e fazendo emendas ao Orçamento 2018 de forma fictícia, uma vez que ele ainda será bastante alterado pelo Executivo em breve. Manobra e fraude no Executivo resultando em ineficiência no Legislativo, com perda de tempo e dinheiro público em pleno tempo de austeridade fiscal.

Apesar de todo esse cenário bizarro da tramitação da lei orçamentária para 2018, ainda existe oportunidades para buscar um orçamento ao menos mais transparente, uma vez que com o teto dos gastos dificilmente irá ser adequado às necessidades da população brasileira.

Para isso, é essencial a sociedade demandar do governo um novo texto para o PLOA 2018 com o objetivo de: 1. Permitir uma avaliação detalhada da proposta orçamentária pela sociedade; 2. Abrir novo período de emendas parlamentares, para que elas sejam mais reais, o que é ao menos uma possibilidade de atender necessidades sociais não contempladas no projeto de lei original; 3. Com um PLOA real será possível também pensar em incidência da sociedade civil junto ao Legislativo por um orçamento mais justo, especialmente se considerarmos que a mudança da meta de resultado fiscal liberou mais R$ 30 bilhões para o orçamento.

Por fim, devemos questionar: onde o governo pretende aplicar esses R$ 30 bilhões advindos da mudança da meta fiscal? Será para reduzir desigualdades ou ampliar privilégios? Será para comprar parlamentares, como tem feito, em troca de não ser julgado por corrupção? Afinal, é isso que o orçamento público demonstra: como está a disputa pelos recursos públicos e quem está se apropriando deles.

* Grazielle David é assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc)

Veja também: Vamos falar sobre Orçamento Público?


Sete pontos para entender a MP dos royalties da mineração e o que está em jogo

Nesta terça-feira (17/10), foi divulgado o voto do relator, Deputado Marcos Pestana (PSDB/MG), sobre a Medida Provisória (MP N° 789 de 2017) que altera as regras e taxas de cobrança da Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM). Junto a um pacote de outras três MPs (Nº 789, Nº790 e Nº 791), a Medida propõe uma nova regulação para o setor mineral brasileiro, configurando um Novo Código Mineral.

Diferente da tramitação do Projeto de Lei do Novo Código Mineral que teve início em 2013 – ainda sob forte influência do boom de preços do minério – e se arrastou por anos sem ser votado, o contexto nacional e internacional hoje é bem diverso. Os preços do minério de ferro oscilam entre US$ 50 e US$ 65 por tonelada e as previsões menos otimistas indicam que o preço pode cair ao patamar de até US$ 40 a tonelada. Vivemos uma profunda crise fiscal com queda da arrecadação federal, estadual e municipal.

Esta situação tem produzido déficits fiscais generalizados, que não podem ser compreendidos separadamente do caos político e institucional em que fomos mergulhados, tampouco, do corte drástico de despesas públicas federais – que são vitais para dinamizar as economias dos Estados e municípios- como sempre, em detrimento de mudanças nas políticas monetária e tributária.

É nesse contexto nacional que o governo apresenta a MP N° 789 para alterar a cobrança da CFEM, alterando alíquotas e mudando a base de cálculo, com uma estimativa de que a arrecadação aumentará 80%. Apesar de tratar de todos os minérios que recolhem CFEM, a medida teve um alvo claro: aumentar a arrecadação sobre o minério de ferro, responsável hoje por quase 60% do valor arrecadado. Para isso, a MP definiu alíquotas com variação entre 2% (como é hoje) até 4%, a depender da cotação internacional do minério de ferro, devendo atingir 4% somente quando o preço do minério de ferro estiver acima de US$ 100 a tonelada. Adicionalmente, mudou a base de cálculo cobrando a alíquota sobre a receita bruta da venda e não mais sobre o faturamento líquido[1].

Em tempos de penúria social, e dado que a maior parte da arrecadação da CFEM fica com municípios (65%) e estados (23%) a MP ganhou especial interesse dos entes federados, que são os maiores produtores e, não por acaso, foi relatada por um deputado mineiro, do PSDB. O relatório apresentado tenta fechar a fatura em 4%, uma proposta já antiga defendida pelo PSDB de Minas Gerais, sem vinculação à cotação internacional do minério e mantendo a nova base de cálculo. Para ampliar a força política da proposta, o relator propõe uma nova divisão da arrecadação, tirando uma pequena parcela dos estados (-3%), dos municípios (-5%) e da União (-2%) para compor um fundo de 10%, cujo valor seria distribuído entre os municípios impactados pela mineração em função da presença de barragens, depósitos de estéreis, instalações, infraestruturas de escoamento como estradas de ferro, minerodutos, portos. A repartição destes 10% ficaria a cargo de um Decreto e se daria com base na definição do grau de impacto sofrido por cada município.

Já para o uso da parte do recurso que caberia aos estados (20%) e municípios (60%), o relatório estabelece que 20% deverá ser preferencialmente destinado à diversificação econômica, ao “desenvolvimento mineral sustentável” e ao desenvolvimento científico e tecnológico. Para a União, que fica com 10%, sintomaticamente, a nova redistribuição proposta pelo relatório acaba com os míseros 0,2% que eram destinados ao meio ambiente (Ibama), deixando 7% com a futura Agência Nacional da Mineração (ANM)  criada no lugar do DNPM, reduzindo de 2% para 1% o recurso a ser destinado ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) e destinando 2% para o Centro de Tecnologia Mineral (CETEM). Por fim, para dar “ampla transparência” aos usos dos recursos por todos os entes o relatório mantém a redação proposta pelo governo que prevê a publicação anual de informações relativas à aplicação da CFEM com base na Lei de Acesso à Informação.

Jogo de interesses

O relatório da MP tenta conciliar interesses, em especial: i) dos estados e municípios, onde se concentra a produção, na expectativa de que mesmo com perda de parcela da CFEM haja aumento da receita em função das mudanças de alíquota e base de cálculo; ii) dos municípios impactados, sob forte lobby dos 23 municípios do maranhão recortados pela estrada de ferro Carajás, mas também de municípios mineiros e do Espírito Santo recortados pelas estruturas de escoamento da Estrada de Ferro Vitória-Minas , que escoa grande parte da produção de minério de ferro de Minas Gerais rumo ao Porto de Tubarão em Vitória, além das ferrovias que escoam a produção para o estado do Rio de Janeiro, e para os municípios atravessados por minerodutos nos estados de MG, ES e RJ.

Da perspectiva da União, como antes, o principal interesse evidentemente não é sua parte irrisória da arrecadação da CFEM, a qual representou em 2016 míseros 0,04% do orçamento fiscal. Em tempos de crise, o cálculo em relação à nova CFEM é eminentemente político. Aos Estados e municípios interessa a possibilidade de maior arrecadação de recursos, ao atual governo interessa ter mais uma moeda de troca para se manter no poder. Já para a grande mineração de ferro, que tem 70% da produção dominada pela Vale S.A, interessa o menor dos danos possível. Nesse caso, o aumento da CFEM, como propõe o relatório, embora criticado pelo setor, representa uma fatura inadiável e baixa, se comparado aos seus concorrentes australianos, depois de ter passado mais de 10 anos de preços internacionais apetitosos sem que houvesse nenhuma mudança de alíquota.

Diante deste complexo jogo de interesses, a questão que precisa ser colocada é: por que esse assunto deveria interessar mais amplamente à sociedade? Como este debate nos diz respeito e por que devemos construir uma opinião sobre esse tema aparentemente tão distante da realidade? Ensaiamos algumas respostas:

Primeiro, porque o Brasil precisa se reconhecer como país minerado, com todas as consequências que esse lugar implica. No caso do minério de ferro, aqui em foco, o Brasil é o segundo maior produtor mundial e, ao longo do chamado boom de commodities a exploração do minério pela Vale cresceu 253% alcançando, em 2016, 348,9 milhões de toneladas extraídas.  Isto significa que o Brasil é, junto com a Austrália, o maior player global do principal recurso mineral que está na base de economias industriais, em especial a da China, que demanda hoje mais de 70% de todo o minério de ferro importado pelo mundo. Entre as consequências desta gigantesca escala de exploração devemos sempre nos lembrar da Bacia do Rio Doce, que nos mostrou que a mineração não somente é uma atividade com alto potencial de dano, como também é uma atividade dominada por empresas transnacionais que não medem esforços para ampliar a escala da extração e reduzir custos, inclusive com segurança de barragens e pagamento de tributos e CFEM.

Segundo ponto a considerar é que a CFEM não é uma compensação por dano ambiental. Este dano deve ser cuidadosamente avaliado, mitigado e, em último caso, compensado no âmbito do Licenciamento Ambiental – que já é frágil e está sob intenso ataque de um governo ilegítimo e um Congresso Nacional que possui 238 parlamentares investigados em casos de corrupção. A CFEM é uma receita de natureza patrimonial, decorrente da exploração de bens que são da União, como os royalties do petróleo. Trata-se da forma mais específica pela qual o Estado se apropria de parte da renda mineral. Outra forma específica que o atual governo abriu mão de propor e que deveria ser parte da MP N° 790, que regula o acesso ao bem mineral, seria a participação especial em casos de lavras de alto potencial econômico.

Terceiro: vários estudos internacionais (CEPAL, Banco Mundial, estudos realizados pelo governo australiano, entre outros) são unânimes na avaliação de que a tributação sobre a mineração no Brasil é muito baixa se comparada aos demais países produtores. Em parte, este problema é explicado pela CFEM ser muito baixa. Mas, no geral, a carga tributária efetiva que recai sobre a mineração é também baixa, o que se explica pelas elevadas isenções fiscais que a grande mineração continua a usufruir para explorar minérios na Amazônia, seja pela Lei Kandir que isenta o ICMS das exportações que representam 80% da produção nacional ou, também, pelas manobras contábeis que as transnacionais utilizam para pagar menos impostos.

Quarto: Sobre as manobras no comércio exterior que resultam em grande perda de receita, nada mais ilustrativo do que os achados da pesquisa do Instituto de Justiça Fiscal: 80% do minério que a Vale S.A exporta tem como primeiro destino a Suíça, sendo esta exportação registrada a preços muito mais baixos do que os preços do minério no mercado internacional. De lá, e sem tributação, o minério é enviado à China para abastecer sua indústria siderúrgica. Estas manobras contábeis, conhecidas como “preços de transferência”[2], ocasionam, segundo o estudo, uma perda de receita fiscal estimada em mais de US$ 5,6 bilhões de dólares ao ano, que significa algo em torno de R$ 19,6 bilhões em reais. Tal perda representa mais de 19 vezes o que foi arrecado com a CFEM sobre o minério de ferro em 2016.

Quinto: o voto do relator tem um mérito que é o de reconhecer que os municípios impactados pela mineração devem receber recursos da CFEM, como uma forma de se fazer justiça fiscal e social. Ocorre que os 10% da CFEM que serão distribuídos aos municípios impactados trarão um ganho ínfimo de arrecadação. Façamos a conta hipotética no caso do Maranhão: em 2016, a arrecadação da CFEM para o minério de ferro do Pará foi de R$ 258 milhões. Se essa arrecadação dobrasse – em função das mudanças propostas e do aumento da extração proporcionado pelo projeto S11D, que amplia a extração potencial em mais 90 milhões de toneladas – teríamos R$ 51,6 milhões (10%) distribuídos entre 23 municípios do corredor Carajás, o que daria pouco mais de R$ 2 milhões para cada município. Para ficar mais claro, Açailândia no Maranhão, por exemplo, teria um ganho de arrecadação equivalente a 7% do que foi transferido pela União a título de Fundo de Participação dos Municípios (FPM) em 2016. Ou seja, 10% de uma arrecadação que crescerá muito pouco e será dividia em muitas partes não trará alívio para os cofres destes municípios, nem melhorará efetivamente a vida das pessoas impactadas pela mineração.

Sexto: os poucos recursos da CFEM têm sido historicamente gastos pelos estados e municípios sem diálogo com a população e sem definição de prioridade que busque superar a excessiva dependência da mineração (que um dia acaba) e que vincule, de alguma forma, seu uso a investimentos públicos que ampliem os direitos dos cidadãos e que protejam o meio ambiente. Ao contrário, muitas vezes os recursos são gastos para melhorar a infraestrutura necessária à operação das grandes mineradoras.

Os problemas associados ao gasto da CFEM só não são mais evidentes porque os municípios e estados não dão transparência ao que é gasto. Sobre essas questões, o relatório apresenta um texto retórico que não muda esse estado de coisas. O documento diz que 20% do que cabe aos estados e municípios deverá ser “preferencialmente destinado a diversificação econômica, ao desenvolvimento mineral sustentável e ao desenvolvimento científico e tecnológico”. “Preferencialmente” não tem força alguma na lei, a lista de sugestões é vaga e não faz nenhuma referência a gastos vinculados ao bem estar das pessoas e ao meio ambiente. Para piorar, em relação à transparência, o texto estabelece a obrigação da “publicação anual de informações relativas à aplicação da CFEM” com base na Lei de Acesso à Informação (LAI). Isto não ajuda em praticamente nada o aumento da transparência. CFEM é recurso público e, como tal, seu uso já deveria estar disponível online e de forma atualizada ao longo do ano fiscal, com base na Lei Complementar 131 de 2009; o que não ocorre nestes municípios, como em grande parte dos demais. Logo, mandar publicar uma vez por ano a informação sobre o uso do recurso, sem mais explicações, e com base em uma lei que não obriga à transparência ativa, ou seja, demanda um pedido de acesso à informação, é prova de que não se quer dar transparência de fato.

Sétimo e último e ponto: é certo que o ferro é o minério que tem maior peso na balança comercial mineral, mas no Brasil se extraí cerca de 70 bens minerais de diversos tipos e qualidades. Para dar dois exemplos, destacaremos o nióbio e o ouro, que são minerais extraídos no território brasileiro, mas que foram secundarizados no debate da MP 789. No caso do nióbio, o país possui cerca de 98,2% de toda reserva mundial, é altamente estratégico para as novas tecnologias e a MP estabelece um percentual de apenas 3% para recolhimento da CFEM[3], sem novamente abrir qualquer debate com a sociedade sobre este minério tão estratégico. Segundo o anuário mineral do DNPM, ano base 2015, o ouro foi o segundo minério que teve a maior comercialização, ficando atrás somente do ferro, com cerca de R$ 9,5 bilhões e também foi secundarizado no texto da MP.

Uma agenda propositiva

Por tudo isso, entendemos que a MP N° 789 e o relatório apresentado expressam não um retrocesso, mas uma profunda incapacidade do Estado brasileiro de legislar em causa da população, de cuidar de forma estratégica e soberana dos bens minerais que são finitos, cuja exploração traz elevados impactos sociais e ambientais e uma dependência excessiva em relação à mineração, mas que, também, são essenciais à economia global, na qual o Brasil está hoje subalternamente inserido.

Para uma discussão aprofundada sobre arrecadação vinculada à mineração e sobre seu uso, alguns pontos deveriam ser considerados:

1)      Um aumento maior da CFEM: 6% sobre o faturamento bruto para o minério de ferro, devidamente amparado em estudos técnicos que mostrem quanto é hoje a carga efetiva sobre as grandes empresas mineradoras;

2)      Em relação aos outros minérios, cuja produção tem como destino prioritário o mercado externo: bauxita,cobre, níquel, nióbio, manganês e ouro, que não foram debatidos nas audiências da MP 789, deveria ser aberto espaço para debates sobre seu valor estratégico, com informações fundamentadas sobre sua carga tributária e sobre a CFEM;

3)      O fim dos incentivos fiscais para a mineração na Amazônia, que representam uma isenção de até 82,5% do principal imposto federal que recai sobre as empresas: o Imposto de Renda de Pessoa Jurídica;

4)      O fim da Lei Kandir, que isenta o ICMS das exportações de produtos primários.

5)      A criação de um Fundo Nacional Socioambiental na Mineração (FNSM). O objetivo do fundo de caráter nacional deveria ser o apoio às políticas e iniciativas de diversificação das atividades econômicas dos municípios impactados pela mineração, proteção ambiental e a projetos de base local de comunidades impactadas pela mineração, sendo acessível a todos os municípios: mineradores e impactados por sua infraestrutura. A governança do Fundo deve incluir participação social;

6)      Os recursos do FNSM deveriam vir dos 10% da CFEM (conforme proposta já apresentada pelo relator da MP 789) e, adicionalmente, de 10% da CFEM destinada aos estados e municípios. Desta forma, o Fundo seria composto por 18% do total arrecadado a título de CFEM (10% + 2% dos estados + 6% dos municípios) sendo, desta forma, capaz de suportar o financiamento das políticas e iniciativas a que se destina.

7)      Participação social na definição de prioridades anuais para o uso dos recursos da CFEM pelos estados e municípios, com transparência ativa por meio de publicação nos sites institucionais de cada ente dos gastos com identificação da fonte de recursos referente à CFEM.

Ao contrário do discurso do setor, segundo o qual não há espaço para aumentar a tributação na mineração, acreditamos que a conjuntura vivenciada no país exige a discussão sobre qual modelo de mineração  queremos e qual tributação é necessária e possível.

*O Inesc e o MAM integram o Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração

 


[1] Isto permitia deduzir despesas com transporte, seguro, mas também uma série de outras despesas operacionais que erodiam a base de cálculo e reduziam a cobrança da CFEM. O Brasil era conhecido como o único país do mundo a permitir tamanha erosão da base de cálculo da CFEM que equivale aos chamados Royalties Minerais.

[2] – Na proposta do governo e no relatório há uma tentativa de coibir essa prática pela definição de casos em que a empresa exporta para pessoas jurídicas a ela vinculadas, devendo neste caso ser usado como base para o cálculo da CFEM um preço parâmetro ou valor de referência que também leve em conta o teor da jazida. Este assunto dada sua complexidade e abrangência global necessita de um debate mais aprofundado, que esteve, também ausente das audiências públicas onde a matéria foi debatida.

[3] Em Catalão no Goiás, há 10 anos as mineradoras extraem nióbio e devem cerca de 200 milhões ao município.

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A “farinata” do Doria: armadilha de soluções fáceis, preconceituosas e ineficientes

Desde o final dos anos 1980, celebramos mundialmente o Dia da Alimentação em 16 de outubro – data que corresponde à criação da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), em 1945. De acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a nossa Constituição, todos os seres humanos têm direito à alimentação.

Aqui no Brasil, infelizmente, não temos muito que celebrar. A fome, que tínhamos eliminado, volta a nos rondar. Cresce o número de pessoas que não se alimentam adequadamente. O desemprego, os salários baixos, os cortes nas políticas sociais, a retração dos investimentos e os ataques às terras e territórios dos agricultores familiares, dos povos indígenas e dos povos e comunidades tradicionais fazem com que milhões de pessoas tenham suas condições de vida precarizadas. Ao invés de irmos para frente, estamos caminhando para trás.

Não é por outra razão que passamos vexame no cenário internacional: “levamos pito” de laureados de Prêmio Nobel e de Relatores Independentes de Direitos Humanos e de Erradicação da Extrema Pobreza, da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização dos Estados Americanos (OEA).

A esse cenário bastante assustador soma-se o pesadelo das falsas soluções, daquelas “para inglês ver”, ou seja, “para efeito de aparência, sem validez”, segundo definição do Houaiss. O exemplo emblemático é o da “farinata” do João Doria, prefeito de São Paulo. Trata-se de composto preparado a partir de alimentos próximos do vencimento para ser distribuído aos pobres. Proposta por instituição pouco transparente – pois pelo seu site não se consegue saber o que é e quem a sustenta – a Plataforma Sinergia, essa ração para os desvalidos, revela o caráter preconceituoso e fascizante daqueles que pregam sua distribuição. Vejamos por quê.

Dizem seus propagandistas que a “farinata” elimina o desperdício, pois recicla alimentos que seriam jogados fora; reduz custos, porque diminui as despesas do setor privado, bem como os gastos do setor público; combate à fome, uma vez que alimenta aqueles que nada ou pouco tem para comer. Contudo, esses argumentos não se sustentam. Nossa própria experiência em políticas públicas de alimentação e nutrição os desconstrói.

Já tivemos outras “farinatas”, variações sobre o mesmo tema. Este foi o caso, por exemplo, dos alimentos formulados distribuídos por intermédio do Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE, conhecido como “merenda escolar”. Célebre auditoria minuciosamente realizada pelo Tribunal de Contas da União nos anos de 1990 revelou a falácia dos formulados, pois eram rejeitados pelos alunos, seu custo para o erário público era exorbitante, resultado da cartelização das indústrias do setor e de práticas de corrupção. Em decorrência desses absurdos, deu-se a grande guinada no PNAE, que foi a valorização dos alimentos in natura, aqueles oriundos da agricultura familiar e que respeitam os hábitos alimentares dos estudantes. De lá para cá, estudos científicos, nacionais e internacionais, vêm comprovando a centralidade dos alimentos não processados ou pouco processados para a saúde da população.

A nossa experiência também tem demonstrado que a forma mais eficiente de eliminar a fome é por meio de uma atuação intersetorial do Estado: somente a articulação e a integração de políticas públicas de alimentação e nutrição, de saúde, de educação, de transferência de renda e de geração de emprego – associadas a ações de acesso à terra, territórios e crédito para os produtores familiares, indígenas e tradicionais – são capazes de debelar a insegurança alimentar. Foi isso que o Brasil fez nos últimos anos e como resultado saiu do Mapa da Fome das Nações Unidas em 2014. Não existem soluções milagrosas: a distribuição de uma ração elaborada a partir de restos de comida além de não resolver o problema é um desrespeito profundo à dignidade das pessoas mais pobres.

Pensávamos que a era das respostas fáceis, falaciosas e em geral lideradas por empresas do setor alimentício – não podemos esquecer que a dirigente da Plataforma Sinergia já foi da Monsanto, um gigante do setor – tivessem sido superadas. Vê-se que não. O projeto do prefeito Dória é mais uma ação midiática que revela, novamente, sua visão preconceituosa e discriminatória em relação aos vulneráveis – para eles, os “restos”.

Urge acabar com essas bravatas. Sabemos que a promoção da alimentação adequada e saudável para todos, pobres e ricos, mulheres e homens, negros e brancos, requer a produção de alimentos em base familiar e agroecológica, livre de transgênicos e de agrotóxicos, que respeite nossos saberes e práticas alimentares bem como a nossa sociobiodiversidade. Uma alimentação diversa, colorida e saborosa, degustada com aqueles e aquelas que amamos. Digamos não à farinata!

Vamos falar sobre Segurança e Soberania Alimentar e Nutricional?

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Pensar Brasília para pessoas, não para carros

No Dia Mundial Sem Carro, o jornal Correio Braziliense (edição impressa, de 22/09/2017) publicou artigo dos assessores políticos do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), Cleo Manhas e Yuriê Baptista, sobre a situação da mobilidade urbana no Distrito Federal.

Leia a íntegra do texto:

Pensar Brasília para pessoas, não para carros

Cleo Manhas e Yuriê Baptista, assessores do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e integrantes do Movimento Nossa Brasília.

O Distrito Federal, assim como milhares de outras regiões metropolitanas no planeta, sofre com os problemas gerados pelo excesso de automóveis nas ruas. São congestionamentos (com os espaços nas ruas mal divididos com o transporte coletivo), veículos estacionados em todos os lugares, mortes decorrentes de colisões,  poluição sonora e do ar, e tantos outros problemas.

Por ser uma cidade modernista, Brasília teve, desde o nascedouro, um planejamento voltado preferencialmente para carros, em detrimento de uma mobilidade ativa, que priorizasse pessoas. Infelizmente, o pensamento do urbanista que planejou a capital, Lúcio Costa, não vingou, quando disse que os veículos individuais seriam domesticados. Ocorreu o contrário: eles se expandiram e ocuparam todos os espaços, até mesmo dos pedestres, que ficaram sem calçadas, transformadas que foram em estacionamentos.

A opção rodoviarista tem gerado  incontáveis custos para a saúde pública. Em 2015, o Inesc fez um estudo do orçamento da mobilidade e um exercício para ver o quanto é gasto do orçamento da saúde com acidentes de trânsito. E quando comparamos os gastos dentro do orçamento temático da mobilidade, o dado é bastante relevante, pois se gasta muito mais com o atendimento aos acidentados do que com campanhas preventivas. Estimou-se que o gasto com a educação foi de cerca de 10% em relação ao gasto com acidentes, mesmo que não se tenha números precisos, visto que os acidentes são subnotificados.

Fica-se no eterno dilema de que, enquanto o transporte público não for adequado, não é possível adotar medidas de restrição ao uso do automóvel. O que não percebem é que esse mesmo sistema ‘inadequado’ funciona para cerca de 1 milhão de pessoas que se deslocam diariamente de transporte coletivo no DF, sem contar com as mais de 200 mil pessoas que moram no entorno e se deslocam para o Plano Piloto todos os dias.

Além disso, há uma ilusão vendida pela indústria do automóvel, de que o motorista sempre encontrará ruas vazias, passando assim sensação de uma falsa liberdade para quem usa o carro; ou mesmo de status por possuir um bem como um automóvel, que dialoga com a sociedade de consumo, “para se ter sucesso é preciso ter um carro potente”. No entanto, também já se sabe que a redução da velocidade nas cidades é uma necessidade não só de humanização do espaço público, como também de fruição do trânsito.

Os sucessivos governantes do DF continuam achando que é mais fácil repetir os mesmos erros do que inovar para tornar Brasília uma cidade mais humana. Por terem mandatos de quatro anos, os governantes preferem não enfrentar a cultura arraigada de que todas as pessoas devem ter carros particulares e infraestrutura adequada para a sua circulação. E, em vez de criarem campanhas educativas e políticas de restrição do uso dos automóveis, para a implantação de uma nova cultura mais humanizada, preferem continuar apostando no que a maior parte da população acredita ser o melhor caminho, até por não terem experimentado outras formas.

Com relação ao Plano Piloto, onde há durante o dia uma intensa circulação de pessoas de diversas partes do DF, é preciso superar a leitura de que o tombamento não permite alterar o seu traçado. Ora, uma das diretrizes do tombamento é a “circulação livre de pedestres garantida pela ausência de barreiras de qualquer natureza, até mesmo cercas-vivas, nos pilotis e espaços públicos”. No entanto, é necessário que a população e o governo se conscientizem que uma via, onde a velocidade permitida é de 80 km/h, como o Eixão, que corta todo Plano Piloto, é um muro que separa a cidade em duas. A ausência de iluminação pública e segurança também são barreiras, especialmente para as mulheres, para quem a cidade é mais perigosa.

A semana da mobilidade e o dia mundial sem carro é um momento de, coletivamente, a população e governo refletirem sobre outras possibilidades de cidades, mais inclusivas, mais democráticas, mais humanizadas. Para pessoas, não para carros.

Há esperança para o financiamento do SUS

Por Grazielle David*, para o site Outras Palavras

Depois de sucessivas desilusões, eis que surge uma esperança, jurídica, para o financiamento da Saúde Pública: a restituição dos royalties do petróleo como recurso financeiro adicional, por decisão liminar na Ação Direta de Inconstitucionalidade no 5.595. Processo foi liberado esta semana para entrar em pauta no plenário do STF.


Breve histórico do financiamento da saúde pública

Quando da promulgação da Constituição em 1988, no artigo que menciona que a saúde é direito de todos e dever do Estado, “esqueceram” de dizer de onde viria o dinheiro. Em uma busca constante e incansável por um financiamento adequado, apoiadores do SUS foram ao Legislativo e ao Judiciário em busca do que poderia vir a salvar não apenas a vida do SUS, mas de diversos brasileiros.

Somente após 12 anos, uma primeira vitória parecia surgir no horizonte. A Emenda Constitucional no 29/2000 iniciou o processo para garantir um valor mínimo a ser aplicado em ações e serviços públicos de saúde. Porém, ela descreveu apenas de onde o dinheiro deveria vir no caso dos estados e municípios, mas não o valor. No caso da União foi pior, uma nova Lei teria que ser editada. Assim, a busca do SUS por um financiamento adequado, progressivo e justo permaneceu. Foram mais 12 anos para que a Lei Complementar 141/2012 fosse aprovada. Ali, finalmente, as fontes e porcentagens de recursos foram estipuladas.

A luz da esperança para o financiamento mais progressivo para o SUS ganhou brilho no ano seguinte com a Lei no 12.858/2013, que tratou da vinculação de parcela da participação no resultado ou da compensação financeira pela exploração de petróleo e gás natural – dos contratos firmados a partir de 3/12/2012 sob os regimes de concessão, de cessão onerosa e de partilha de produção, exploradas em plataforma – no montante de 25% para a saúde e de 75% para a educação.

Porém, essa luz durou pouquíssimo tempo. Em 2015, primeiro ano de nova leva de medidas de austeridade fiscal no Brasil, pós crise econômica global de 2008, uma nova Emenda Constitucional no 86 foi aprovada e com ela as esperanças de um financiamento mais adequado para o SUS foram pelo ralo. Isso porque além de reduzir os recursos financeiros para o SUS com um escalonamento ao longo de 5 anos, para finalmente chegar em 15% da Receita Corrente Líquida – RCL, colocaram os royalties do petróleo como uma das fontes para o cumprimento do mínimo a ser aplicado em saúde. Assim, uma receita que deveria ser adicional tornou-se parte do mínimo. Uma receita ainda pequena, mas com grande potencial de crescimento.

O resultado foi uma aplicação baixa em saúde para o ano de 2016. Nesse momento, mais uma vez os defensores do SUS** foram buscar no Judiciário a defesa de recursos financeiros apropriados, o que resultou na Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI no 5.595. Um ano depois, em 31/08/2017, o Ministro do Supremo Tribunal Federal – STF, Ricardo Lewandowski, deferiu medida liminar suspendendo os efeitos de artigos da EC 86, que tratavam do escalonamento e inserção dos royalties no cálculo do mínimo a ser aplicado em saúde. A liminar foi emitida para evitar que o Orçamento de 2018 para a saúde seja elaborada com recursos inferiores e para que o valor devido seja restituído em 2017, de acordo com art. 25 da LC 141.

Os efeitos da liminar na ADI 5.595

Com a suspensão dos artigos 2º e 3º da EC 86 pela liminar e a manutenção do artigo 1º, a União passaria a ter que aplicar em saúde 15% da RCL mais os royalties do petróleo como recurso adicional. Ocorre que isso teria que valer desde quando a EC 86 passou a vigorar, tendo um efeito temporal no valor que foi aplicado em saúde em 2016. Assim, a União deveria corrigir o valor que havia aplicado, saindo de 13,2% da RCL com os royalties incluídos no mínimo a ser aplicado em saúde, para 15% da RCL mais os 25% dos royalties do petróleo dos contratos a partir de 3/12/2012. Isso quer dizer que há uma previsão de ter que ocorrer uma complementação de R$ 2,48 bilhões ao orçamento da Saúde referente a 2016.

Fonte: Siga Brasil; Tesouro Transparente

Elaboração: própria

*O valor da RCL considerada foi de R$ 722 bilhões, conforme consta no site da STN, referente ao RREO do 6º bimestre de 2016. Caso seja considerada a RCL de R$ 709 bilhões, conforme DOU de 07 de junho de 2017, o valor a ser restituído caí para R$ 600,3 milhões.

** O valor empenhado (LC 141/12) foi de R$ 106,7 bilhões, porém como ocorreu cancelamento de restos a pagar no montante de R$ 428,3 milhões e também o Acórdão TCU-Plenário 31/2017 ditou que R$ 559 milhões empenhados em despesas com a capitalização da Hemobras e com o Programa Nacional de Reestruturação dos Hospitais foram indevidos, o valor empenhado considerado é de R$ 105,9 bilhões.

Detalhando um pouco mais os cálculos sobre os royalties do petróleo para a saúde: eles haviam sido incorporados como fonte para o mínimo da saúde, e sequer foram utilizados em sua totalidade. De R$ 10,8 milhões, apenas aplicaram R$ 139,5 mil; como demonstrado abaixo. Agora, deveria ser um recurso adicional e aplicado em sua totalidade.

 

Em 2017, os 15% da RCL já foram a base de cálculo em decorrência da EC no 95 de 2016, conhecida como Teto dos Gastos, que também já havia suspendido o efeito do art. 2º da EC86. Porém, agora, com a liminar, o orçamento do SUS deverá também ser complementado, de forma adicional, com os 25% dos royalties do petróleo. Isso representa R$ 21 milhões a mais a ser investido em Saúde em 2017, conforme apurado em 09/09/17 no Portal Siga Brasil, o que ainda pode aumentar até o fim do ano.

Cabe destacar a potencialidade ao longo dos anos que os royalties do petróleo representam para a saúde como um recurso adicional: de R$ 10,8 milhões em 2016 já está em R$ 21 milhões em 2017, um crescimento de 94,4% em apenas um ano.

A perversidade do “Teto dos Gastos”, mais uma vez

Entretanto, assim como ocorreu em toda a história do financiamento do SUS e de todas as políticas públicas promotoras de direito, existe o risco de a liminar ter seu brilho ofuscado. E isso pode ocorrer por culpa da EC 95.

Como existe um limite para os gastos sociais, um aumento nos recursos para a saúde, com o adicional dos royalties, pode representar menos recursos ainda para outras políticas públicas essenciais. A questão é que a saúde das pessoas é extremamente influenciada por diversos outros setores, como saneamento básico, habitação, acesso à água potável, educação. O resultado é que o “teto dos gastos” pode inviabilizar a melhora da saúde da população por cortar recursos financeiros para outras políticas, mesmo com mais orçamento indo para o SUS. Essa questão foi inclusive defendida pelo Ministro na sua liminar: “alterações que impliquem retrocesso no estágio de proteção dos direitos e garantias fundamentais não são admissíveis, ainda que a pretexto de limites orçamentário-financeiros”, em consonância com o princípio de não retrocesso social. Isso quer dizer que, a cada avanço na proteção dos direitos, não é possível voltar atrás, inclusive no seu financiamento, mesmo com a justificativa de dificuldades financeiras.

Uma forma de garantir um adequado financiamento do SUS, sem afetar outras políticas públicas, seria a ministra do STF, Rosa Weber, declarar inconstitucional o teto para saúde e educação na ADI 5.658, na qual é relatora. Ainda mais adequada seria a revogação da EC 95, por sua inviabilidade técnica e humanitária. Por fim, considerando que hoje, 12/09/17, o processo da ADI 5595 foi liberado para entrar na pauta do plenário do STF***, é essencial a defesa da sociedade para que a decisão seja no mesmo sentido em que foi a liminar, defendendo o não retrocesso dos direitos sociais e visando garantir um financiamento mais adequado para a saúde.

Vamos falar sobre Orçamento e Direitos?

Ações

*Assessora política do Inesc – Instituto de Estudos Socioeconômicos; conselheira do Cebes – Centro Brasileiro de Estudos em Saúde; Mestre em Saúde Coletiva/Economia da Saúde; especialista em direito sanitário, orçamento público e bioética.

** Informação publicada no artigo de 12/09/17 da Dra. Élida Graziane Pinto, procuradora do Ministério Público de Contas de SP, que trata dos argumentos jurídicos em defesa da liminar cedida na ADI 5595. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2017-set-12/contas-vista-stf-reconhece-direito-custeio-adequado-direitos-adi-5595



*** Importante destacar entidades da reforma sanitária como CEBES, ABRASCO, ABRES, IDISA, outras; Conselho Nacional de Saúde, em nome do Francisco Funcia; acadêmicos; técnicos do Executivo, em nome da Fabíola Vieira e Rodrigo Benevides; membros do judiciário, MP, TC, em nome da Dra. Élida Graziane; indivíduos e membros de movimentos sociais e organizações da sociedade civil; e especialmente trabalhadores e usuários do SUS.

 

Dos muitos cenários previstos para o país após 2013, nenhum superou a realidade de hoje

Há poucos anos, exatamente em 2013, um grupo de organizações da sociedade civil brasileira se reuniu para pensar os cenários possíveis frente a novos fatos que ocorriam na nossa sociedade.

Uma série de expressivas manifestações de rua irromperam em todo o Brasil. Como a explosão de uma grande represa, mostravam em sua insatisfação, de forma contundente, uma agenda para o País. Ao mesmo tempo, expressavam uma repulsa aos partidos políticos e a forma como as instituições do Estado brasileiro estavam sendo conduzidas.

Era uma rejeição da política enquanto tal, ainda que, seu meio de expressão fosse profundamente político. Uma luz vermelha se acendia. No ano seguinte houve o processo eleitoral que reelegeu a candidata do Partido dos Trabalhadores, Dilma Rousseff. O resto da história, continuamos vivendo, como capítulos de um seriado de terror, onde a realidade consegue ser mais absurda que o script mais criativo da Netflix.

Nos perguntávamos se o Brasil teria condições de trilhar um caminho de desenvolvimento socialmente inclusivo e ambientalmente sustentável e ainda manter seu papel de protagonismo no cenário internacional?

Os anos de redemocratização tinham sido profícuos com avanços na conquista de direitos humanos, por meio de políticas sociais que, de fato, fizeram a diferença. O Brasil, melhorousua posição no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Os programas de transferência de renda beneficiaram mais de 50 milhões de pessoas, segundo dados oficiais, que conseguiram – ainda que de forma precária – maior inserção na sociedade de consumo.

A população, historicamente marginalizada, em especial a população negra, conseguiu ampliar seus direitos; os agricultores familiares passaram a contar com políticas públicas específicas, tão importantes para um setor que é responsável por mais de 70% de determinados alimentos que vão para a mesa dos brasileiros e brasileiras; o salário mínimo conheceu expressiva valorização em termos reais e a formalização do mercado de trabalhou aumentou. Enfim, dados e análises referentes aos últimos anos são fartos e unanimes na afirmação de que a vida da população mais pobre melhorou em todos os níveis, ainda que, os ricos, ficaram também mais ricos. Entretanto, esse modelo desenvolvido pelo PT, estava no fim, batia no teto.

A frágil social democracia à brasileira estava longe da perfeição. Questões estruturais responsáveis por abismos de desigualdades históricas persistiam: o racismo, o patriarcalismo e a lesbohomofobia, que são responsáveis não somente por apathaids sociais, mas também pela morte de milhares de mulheres, jovens negros e de integrantes da comunidade LGBTI. Entre as fragilidades, detectamos um sistema político viciado e esgotado, um modelo tributário regressivo que perpetuava as injustiças, um total descompromisso com as populações indígenas, que foram abandonadas por falta de recursos e de políticas públicas, um tipo de desenvolvimento que valorizava a extração dos recursos naturais em detrimento do meio ambiente e do clima.

Esse País contraditório, com manifestações de desagrado nas ruas, parecia mostrar, que queria mais democracia, mais políticas públicas para a sua população. Mais igualdade.

Exercitamos assim, naquela ocasião, três cenários para o Brasil até 2020.

Cenário I – pessimista

Neste cenário, o Brasil apenas se recupera de uma sucessão de crises internacionais, com uma economia semi-estagnada, retornando a inflação à casa dos dois dígitos, redução dos gastos com políticas públicas, continuidade da criminalização dos movimentos sociais e afastamento do governo dos movimentos que contribuíram para sua eleição. A inserção global do Brasil se dando, cada vez mais profundamente, por intermédio de produtos primários as custas do meio ambiente. Mercado interno em contração, concentração de renda e poder ampliando-se. A agricultura familiar é deslocada em favor do agronegócio. Espaços urbanos marcados pela guerra civil e pelo narcotráfico.

O Brasil segue uma trajetória errática, a guerra cambial prossegue no plano global, o país sofre ataques especulativos, desvaloriza a moeda e eleva os juros. A crise internacional se agrava, afetando o motor chinês, que até então impulsionava o preço das commodities na economia mundial.

O primeiro cenário concluía que o Brasil estaria bastante fragilizado e sem potencial de expansão interna e externa. A desigualdade é naturalizada sem qualquer esforço de superação devido à ausência de políticas sociais que ataquem as discriminações de raça, etnia, gênero e orientação sexual. A natureza pouco importa, assim como os povos e comunidades que nela habitam.

Cenário II – intermediário

A economia encontra um ritmo mais dinâmico em função do crescimento do mercado para as commodities e crescimento do mercado interno e regional. Com indicadores econômicos alvissareiros, a luta contra a pobreza extrema continua e segue a universalização do ensino básico. O Brasil se afirma como global player, com forte protagonismo internacional.

No plano interno seguem as desigualdades que caracterizam a sociedade brasileira. Desigualdade de renda, concentração fundiária e desrespeito ao meio ambiente e aos territórios indígenas; vida urbana marcada pela violência e precária condição de vida para os mais pobres. O sistema político não é revisto e continua expressando a concentração de renda e poder no Legislativo. Baixa escuta da sociedade civil. O descolamento entre o social e o político é agravado pela manutenção do monopólio dos meios de comunicação. Volta do desemprego e tentativa de desmontar o frágil Estado de Bem-Estar Social conquistado nos últimos trinta anos.

A conclusão deste cenário é que a economia consegue sustentar taxas razoáveis de crescimento econômico, acima dos países desenvolvidos e abaixo das economias dos países em desenvolvimento.Cenário global de estabilização de preços das commodities devido à continuidade do crescimento chinês.

Cenário III – otimista

O País do quase sonho. Uma economia dinâmica e um País menos desigual. Uma política econômica mais soberana e uma reconfiguração das instituições, tornando-as mais inclusivas e com melhor distribuição de poder. Um mercado interno crescente e dinâmico, altos níveis de emprego, mais crédito de longo prazo para a população. Economia regional dinamizada e mais integrada. O Brasil exportando produtos agrícolas, industriais e serviços e avançando nos segmentos intensivos de tecnologia.

No plano global, um papel proativo nos temas ambientais e de direitos humanos; internamente caminha-se rumo à preservação do meio ambiente, à diminuição dos gases de efeito estufa e a universalização das políticas sociais, como saúde, educação e habitação. Os movimentos sociais influenciando e monitorando as políticas públicas.

Este é o cenário quase ideal, de um País que combina uma economia dinâmica, sociedade vibrante, participativa e sustentável.

Nenhum dos 3 foi capaz de antecipar os dias de hoje: cenário IV – o apocalipse

Em 2017, vemos que nem o pior dos três cenários construídos há apenas quatro anos vigora. Temos a tristeza de conviver com um governo ilegítimo, corrupto, que governa para seu próprio interesse –  aliado aum parlamento majoritariamente envolto em processos judiciais e que legisla em causa própria, totalmente deslocado dos anseios da população brasileira. Tanto é assim, que a popularidade do governo Temer é da ordem de 5%! Congelamento e cortes de gastos e de investimentos, aumento de impostos, venda do território nacional aos estrangeiros, permissão para mineração na Amazônia, recrudescimento do desmatamento das florestas primárias e não demarcação e invasão das terras indígenas.

Essa ação perversa do governo em exercício acaba resultando em uma anomia social: aumento da pobreza e da fome; assassinatos de lideranças camponesas, indígenas e de defensores de direitos humanos; e crescimento da violência nos centros urbanos penalizando, principalmente, jovens negros das favelas e periferia. Além da criminalização de organizações e movimentos sociais e doaumento da concentração de renda.

Do País sonhado ficam o desejo e a expectativade que um dia a inteligência e a solidariedade sejam abundantes e consigam matar o individualismo, o egoísmo, o casuísmo e a mentalidade tacanha de uma elite que vai morrer, não há dúvida, porque está apodrecendo, mas até lá insiste em espalhar maldades.

(Publicado originalmente na Caros Amigos)

Fluxos Financeiros e Paraísos Fiscais: Uma Combinação para Limitar a Vida de Bilhões de Pessoas

Análise dos fluxos financeiros globais que impactam países em desenvolvimento pelo mundo, com ênfase nos efeitos prejudiciais dos paraísos fiscais elaborada pelo Centro de Pesquisa Aplicada, Escola de Economia da Noruega (SNF), Global Financial Integrity (GFI), Universidade Jawaharlal Nehru, Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e Instituto Nigeriano de Pesquisa Social e Econômica.

Clique aqui para baixar o arquivo PDF do estudo.

Governo temerário traz a fome de volta

Por Nathalie Beghin e Iara Pietricovsky, do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) para o site do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI)

As Nações Unidas abrigaram recentemente em Nova York uma reunião de alto nível para discutir o progresso dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Um dos temas em discussão foi o Objetivo 2, batizado de Fome Zero, inspirado na bem-sucedida experiência brasileira de eliminar a fome, atestada pela FAO em 2014.

Note-se a relevância que o Brasil já teve no cenário internacional, pois suas políticas públicas foram capazes de influenciar um dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030, assinada em 2015 por 193 países.

Em função desse debate global, começou a circular a informação de que o Brasil estava retrocedendo em um dos objetivos, o de erradicar a fome, pois a insegurança alimentar e nutricional voltou a assombrar o país.

Dados oficiais revelam que a pobreza vem recrudescendo. Segundo o IBGE, 9,2% de famílias tinham em 2015 rendimento per capita inferior a um quarto de salário-mínimo, um dos indicadores de medição da fome. Em 2014, essa proporção era de 7,9%, o que corresponde a um aumento de 16% em apenas um ano.

Como a redução da pobreza no Brasil nos últimos anos esteve fortemente atrelada à melhora real dos rendimentos das famílias, que vêm caindo desde 2014, a chaga da miséria se torna novamente uma questão em nosso país. O Banco Mundial diz a mesma coisa. Em estudo publicado recentemente, o Banco calcula que o número de pessoas vivendo na pobreza extrema no Brasil deverá aumentar entre 2,5 milhões e 3,6 milhões até o final de 2017.

Organizações da sociedade civil vêm produzindo dados na mesma direção. A Fundação Abrinq lançou relatório que evidencia que cerca de 6 milhões de crianças vivem atualmente na pobreza extrema, o que equivale a toda a população da cidade do Rio de Janeiro. Já a Oxfam Brasil nos informa que apenas 6 homens brancos detém renda equivalente à metade mais pobre da população brasileira, que equivale a 100 milhões de pessoas!

Apesar de evidências indiscutíveis, pois produzidas por entidades idôneas, o governo em exercício no Brasil tem a ousadia de afirmar que está tudo bem. Em relatório elaborado por conta da reunião de Nova York acima mencionada, o presidente da República chega a afirmar que tal relatório “constitui, também, exercício de prestação de contas, em primeiro lugar perante a sociedade brasileira, das medidas que nosso governo vem adotando em nome de um país mais próspero e justo, com oportunidades para todos – até mesmo para as gerações futuras”. A pergunta que não quer calar é: como o aumento da fome e da miséria pode ser resultado de medidas inclusivas e justas?

Leia também:

11 anos de Lei de Segurança Alimentar e Nutricional – um depoimento

20 anos sem Beetinho: um grande parceiro do Inesc na luta contra a fome e por direitos

A afirmação do Temer no relatório brasileiro revela que o atual governo se mostra insensível ao aumento da pobreza e da fome, bem como da destruição dos recursos naturais do país. O Inesc vem mostrando, por meio de uma série de notas e textos, que todas as medidas implementadas nos últimos meses com o pretexto de “combater a crise” afetam, única e exclusivamente, os que menos têm.

Estamos nos referindo à emenda constitucional que congela os gastos públicos por 20 anos e que irá diminuir em termos reais os recursos disponíveis para saúde, educação, assistência social e segurança alimentar e nutricional, entre outros; aos cortes orçamentários que afetam proporcionalmente mais as políticas voltadas para os mais vulneráveis; à reforma trabalhista que resulta na precarização das relações de trabalho e na diminuição da renda dos trabalhadores e das trabalhadoras; à implementação de parcerias público-privadas que contribuem para enfraquecer ainda mais o combalido Estado e sua capacidade de promover políticas de combate às desigualdades, fome e pobreza além de constituírem-se em mecanismos de corrupção; à reforma da Previdência que penaliza a base da pirâmide e, especialmente mulheres e negros.

Especialistas como Luciana Jaccoud do Ipea mostram que a reforma da Previdência Social irá excluir 44% das mulheres urbanas ocupadas da aposentadoria, além de aumentar as desigualdades entre homens e mulheres, e de elevar a desproteção no campo. Estima-se que essa exclusão afete entre 60% e 80% dos que se aposentariam.

Temos ainda as medidas de flexibilização das leis ambientais, que impactarão os povos indígenas e os povos e comunidades tradicionais; a reforma ministerial que ceifou a institucionalidade voltada para os excluídos (agricultores familiares com a extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário; mulheres com a extinção da Secretaria de Políticas para as Mulheres; negros com a extinção da Secretaria de Igualdade Racial; povos indígenas com o esvaziamento da FUNAI); e o aumento de impostos indiretos (PIS e Cofins nos combustíveis) que agrava a regressividade da carga tributária fazendo com que os mais pobres paguem proporcionalmente mais.

A extorsão dos mais vulneráveis somam-se às benesses concedidas aos mais ricos: o direito de invadir terras indígenas e florestas para expansão do agronegócio e das mineradoras; o perdão de dívidas de grandes empresas; a privatização de serviços públicos que abre novos mercados para o setor privado; e a implementação de parcerias público-privadas que transformam a infraestrutura, em todos os níveis federativos, na nova fronteira de acumulação e lucratividade para investidores nacionais e estrangeiros.

Enfim, eliminam-se os obstáculos (institucionais, sociais, ambientais, culturais e trabalhistas) que possam postergar ou afetar a rentabilidade esperada pelo setor empresarial.

Na lógica dos governantes de plantão, comprovadamente corruptos, pouco importa a volta da fome, já que conseguem, mesmo sem voto e sem popularidade, a façanha de assegurar o enriquecimento das elites. Não há qualquer interesse, nem vontade política, de caminhar na direção dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Por isso é preciso resistir mais que nunca, e lutar para impedir os retrocessos porque a grande maioria da população brasileira só tem a perder com esse arranjo político em exercício.

Nós – ONGs, movimentos sociais e ativistas do campo democrático e popular – temos a obrigação legal e moral de denunciar diuturnamente as violações de direitos humanos perpetuadas por esse governo temerário. Temos um longo caminho pela frente, mas a causa é justa e é isso que mantém nossa chama viva!

Vamos falar sobre Orçamento e Direitos?

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O Distritão impacta nossas vidas?

A recente decisão do Congresso Nacional de rejeitar a denúncia contra o presidente Michel Temer, além de não levar a sério as denúncias e as provas factíveis que apontam para práticas de corrupção, reforçam os caminhos para as várias reformas colocadas no horizonte político brasileiro.

Uma dessas reformas é a reforma política, amplamente debatida, a pelo menos dez anos, pela sociedade civil organizada. Igrejas, organizações não governamentais, movimentos sociais têm discutido e proposto mecanismos para a superação de velhas práticas patrimonialistas e clientelistas tão características da nossa política. Um dos resultados concretos desse trabalho foi o fim do financiamento empresarial para campanhas eleitorais.

Agora muitos parlamentares têm pressa em agilizar esta Reforma. Para eles, ela tem sido tão prioritária quanto a Reforma da Previdência. É claro que quando existe pressa há sempre uma intenção nem sempre transparente. No caso da Reforma Política são as eleições de 2018, caso ocorram.

Se poderia dizer que está tudo bem que o parlamento discuta a reforma política. No entanto, o problema é a quase ausente vontade de ouvir a sociedade civil sobre o tema e de desconsiderar o que tem sido elaborado pelo conjunto das organizações sociais sobre esta agenda.

Um dos pontos problemáticos da reforma política é um sistema eleitoral que tem sido chamado de “distritão”.

Nesse modelo, serão eleitas as pessoas mais votadas para os parlamentos, independente da votação que o partido teve. Este sistema reforça o personalismo na política e retira todo o caráter coletivo que a política deve ter. É fácil de entender que esta proposta não irá superar o clientelismo.

Aparentemente poderíamos pensar que isso não tem muita analisamos com atenção a proposta, é possível perceber que esse modelo irá garantir a continuidade da cultura baseada no abuso de poder político e econômico. Isso significa que esse modelo irá garantir que as velhas oligarquias políticas e econômicas reinem soberanas.

Há muito se critica no Brasil a compra de votos. No entanto, um modelo como o “distritão” garantirá que essa prática continue valendo. Este é um modelo, portanto, que fragiliza a cidadania e faz da política única e exclusivamente um caminho para manter as velhas elites no poder.

Novamente pode se fazer a pergunta, de como este sistema pode impactar diretamente nas nossas vidas, até porque, já nos acostumamos com as elites no poder.  Com isso, não nos apropriamos desse tema. Mas, estamos errados em pensar assim, porque a Reforma Política, impacta diretamente em nossas vidas.

Desde o impedimento da Presidenta Dilma Rousseff, uma das questões sobre as quais mais se tem debatido é a democracia. As manifestações contra o golpe, as vigílias inter-religiosas pela democracia tinham como elemento comum o reconhecimento da diversidade cultural, religiosa e de gênero.

E por que reivindicar o direito à diversidade? Por que nosso país é um país plural e a democracia brasileira precisa expressar essa pluralidade. Ora, se olharmos para o Congresso Nacional, veremos que ele não representa a pluralidade do nosso país.

A grande maioria dos parlamentares são homens, alinhados com os interesses de grandes corporações do agronegócio e do mercado financeiro. Eles também são brancos e a grande maioria é contrária às políticas públicas que poderiam responder à divida histórica que o país tem com os descendentes de escravos. Não temos parlamentares representando os povos indígenas, por isso, não surpreende os ataques sistemáticos do Congresso Nacional contra os direitos dessas populações. Temos somente uma pessoa que representa  a população LGBTT. E as mulheres são representadas por um número pequeno de deputadas e senadoras engajadas com as pautas dos movimentos de mulheres. O Congresso, portanto, não representa a população brasileira.

Além disso tudo, há outra questão muito séria, que diz respeito à religião. A constituição brasileira estabelece a separação entre religião e estado. Essa separação não inibe a cooperação entre estado e religião, sempre que a cooperação seja voltada para o interesse público. Porém, essa cláusula de nossa Constituição tem sido gradativamente desconsiderada. Cada vez mais temos representações religiosas cristãs no Congresso Nacional. Poderíamos perguntar: qual é o problema disso? Um parlamentar não pode ter religião? Sim, é claro que pode. No entanto, o que tem acontecido no Brasil é diferente. Aqui, os parlamentares religiosos atuam a partir das doutrinas, dogmas e valores da sua tradição de fé. Essa prática é incoerente com a Constituição.  Quando uma pessoa assume uma função pública ela precisa atuar em favor do conjunto da sociedade. O que rege os espaços de política representativa é a Constituição Federal e não preceitos dessa ou daquela religião.

A presença religiosa no Congresso Nacional tem reforçado agendas que são contrárias ao meio-ambiente, contrárias às demarcações de terras indígenas e quilombolas, desconsideram a melhoria das políticas públicas para as mulheres e têm se posicionado contrários à diversidade religiosa brasileira.

As posturas quase nada abertas para o diálogo do parlamento também tem se refletindo na sociedade. Basta ver a perseguição sofrida pelas pessoas de tradições africanas, indígenas, muçulmanas. Em muitos municípios tramitam, por exemplo, leis que querem proibir o abate de animais nas celebrações de matriz africana. Em outros, impedem que crianças indígenas frequentem as escolas com suas pinturas e tem surgido a intolerância e perseguição a muçulmanos com base na lei anti-terrorismo. Apesar disso, estas tantas tradições de fé não estão representadas no Congresso Nacional. Não há quem fale por elas.

Poder-se-ia dizer que elas também podem se candidatar e concorrer a cargos. Minha resposta seria não. No ambiente de representação política as pessoas precisam orientar-se com base em valores republicanos e democráticos, pois elas devem trabalhar e atuar olhando o conjunto da sociedade.

Por fim, essa simbiose entre religião e política, impacta diretamente na vida das mulheres. Não é raro ver parlamentares desrespeitando parlamentares mulheres. Mas, são estes parlamentares que decidem sobre leis relacionadas à vida das mulheres. Nosso país é patriarcal. Para o patriarcalismo não cabe à mulher a autonomia. Orientados por valores religiosos, parlamentares propõem projetos de lei que negam um conjunto de direitos para as mulheres.

O baixo percentual de representação de mulheres no Congresso faz com que a força das mulheres para lutar por leis que garantam a igualdade seja desproporcional em relação a dos homens. Um exemplo recente foi a aprovação da reforma trabalhista, que, entre outras coisas, possibilita que mulheres grávidas e lactantes trabalhem em locais insalubres de grau baixo e médio.

Todas essas questões e muitas outras têm relação direta com o sistema político. Por isso, o “ Distritão”  não é um sistema democrático, pois além de encarecer as eleições, ele não garante a igualdade de condições para as pessoas concorrerem. Grupos sociais economicamente mais fragilizados jamais terão chance de concorrer com pessoas das antigas elites ou representantes delas.

Creio que a resposta à pergunta se o “ distritão”  impacta nas nossas vidas está respondida. É justamente porque este sistema não favorece a democracia que ele está sendo articulado às escondidas.  Como sociedade é importante que nos apropriemos dessa discussão e não aceitemos que algo tão relevante seja definido sem nós. Não cabe ao Congresso decidir as coisas relacionadas às nossas vidas sem ouvir a nossa voz.

São Paulo é protótipo para legalizar ineficiência na gestão de medicamentos

Por Grazielle David, assessora política do Inesc.

Foi aprovado na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados proposta que autoriza empresas e comércios a doarem remédios com prazo próximo do fim de validade em troca de benefícios tributários, assim como vem ocorrendo em São Paulo. O texto aprovado é um substitutivo do relator deputado Dr. Sinval Malheiros (Pode-SP) ao Projeto de Lei 5691/16, do deputado Flavinho (PSB-SP).

No texto original do projeto de lei, o remédio só poderia ser doado se estivesse dentro de pelo menos 20% do prazo de validade. Na versão do texto substitutivo, bastará que os medicamentos a serem doados estejam dentro do tempo de validade na data da doação.

Com isso, os medicamentos poderão ser doados com prazo muito próximo ao fim de sua validade, o que poderá tornar inviável a efetividade da medida. Por dois motivos: ou porque não haverá tempo suficiente para a logística da distribuição e entrega à população, ou porque o paciente não conseguirá tomar o medicamento dentro do período de validade – se ele recebe uma caixa de remédio com 30 comprimidos que vencerão em dois dias, provavelmente não conseguirá se beneficiar da doação. E ainda ficará com a responsabilidade do descarte do material.

O relator do projeto de lei incluiu ainda no texto a permissão para doação diretamente a pessoas físicas. Pela proposta original, a doação seria só para pessoa jurídica sem fins lucrativos, com o repasse dos medicamentos aos seus pacientes que atendem, sob supervisão médica ou mediante receita médica. Essa nova autorização do texto substitutivo é preocupante, pois a doação direta à pessoa física pode facilitar a comercialização do medicamento doado ou o uso do produto sem prescrição médica.

Como contrapartida, os medicamentos doados gerarão créditos tributários aos doadores relativos a tributos federais. O deputado Malheiros retirou a limitação que obrigava o uso dos créditos somente no abatimento dos impostos na compra de novos medicamentos iguais aos doados. Outro benefício à empresa é que ela não terá que arcar com o custo do descarte de medicamentos vencidos.

O caso da Prefeitura de São Paulo é um exemplo emblemático do quão ineficiente e lesiva aos cofres públicos é essa proposta. A Secretaria Municipal de Saúde recebeu uma doação de medicamentos que, se fossem comprados diretamente, custariam R$ 35 milhões. No entanto, as empresas doadoras receberam isenção tributária no ICMS no valor de R$ 66 milhões – o saldo é um prejuízo de R$ 31 milhões para a Prefeitura – fora o custo pelo descarte de medicamentos, que foi transferido das empresas para a administração pública.

O que na teoria parece um ato bondoso, na prática é pernicioso, ao ampliar o gasto público ao mesmo tempo em que reduz o acesso a medicamentos da população. Uma renúncia tributária é um gasto público indireto. Assim, os gastos públicos federais, já bastante limitados pela lei do “teto dos gastos” são ainda mais pressionados com o governo fazendo uma transferência de recursos para o setor corporativo farmacêutico via créditos tributários. Isso em troca de uma medida extremamente ineficiente de “doação” de medicamentos com prazo de validade tão no limite que sequer dá tempo de serem dispensados e utilizados pela população brasileira que deles necessita.

projeto de lei federal segue para a Comissão de Finanças e Tributação, sob relatoria do deputado Paulo Henrique Lustosa (PP-CE) e deve passar ainda pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, antes de ser votado pelo Plenário da Câmara.

Leia também:

Direito a medicamentos: avaliação das despesas com medicamentos no âmbito federal do Sistema Único de Saúde entre 2008 e 2015

Semana da Mulher – Dia Internacional da Mulher – 8 de março de 2017

Para marcar o Dia Internacional da Mulher deste ano, o Inesc decidiu juntar forças com o site Outras Palavras para a publicação de uma série de artigos sobre os atuais desafios do feminismo e como a maior parte das lutas são transversais. Reunindo textos dos assessores políticos do Inesc, a série abordou temas como justica fiscal, direito à cidade, igualdade racial, educação e homo e transfobia.

Para cada texto, também foi produzido um card com mensagem sobre o tema em questão para ser divulgado pelas redes sociais. Reunimos todo o material nesta página para sua comodidade.

E seguimos na luta! Nenhum direito a menos!

SEGUNDA-FEIRA – 6/3

O primeiro dos artigos publicados foi sobre educação e feminismo, escrito por Marcia Acioli, mestre em Antropolia Aplicada à Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB).

Marcia discute a incapacidade do atual modelo de educação de abordar temas cada vez mais fundamentais às jovens estudantes, como sexismo, identidades de gênero, sexualidade e cultura não padronizada. “A despeito da escola, meninas estão construindo alternativas, querem expressar sua sexualidade e o seu desejo sem censura”, diz Marcia, lembrando que elas “desejam, sobretudo, a pleniturde da existência e construir nova lógica social”.

Um trecho do artigo de Marcia Acioli:

Comprometida com o desenvolvimento de uma visão de mundo, a educação é indispensável para a promoção de uma nova ordem social. Portanto, quanto antes se inicia o trabalho pedagógico com o foco na equidade de gênero, maior é a possibilidade da formação de sujeitos mais sensíveis e dispostos a uma relação equânime, livre de opressões e de assimetrias.”

Leia aqui a íntegra do artigo.

TERÇA-FEIRA 7/3

Como se dá a relação das mulheres com os espaços públicos das cidades? Essa foi a reflexão proposta por Cleo Manhas no segundo artigo da série, “O direito à cidade, a esfera pública e as mulheres”, discutindo as interdições de gênero nos espaços públicos e a falta de políticas públicas inclusivas e justas nas cidades brasileiras.

Cleo Manhas é mestre em Educação e Políticas Públicas pela Universidade de Brasília (UnB) e articuladora do Movimento Nossa Brasília, que tem o direito à cidade e a mobilidade urbana entre seus temas de atuação. Em seu artigo, Cleo afirma que o controle sobre os corpos das mulheres é socialmente forte e, por isso, as cidades se tornam espaços inóspitos e violentos para as mulheres, “onde ficamos expostas a assédios de variadas formas”.

Historicamente as cidades foram divididas entre lugares para homens e lugares para mulheres, entendendo o público como masculino e o privado como feminino. No entanto, esta realidade mudou e as mulheres ocuparam os espaços públicos, porém, a geografia desses espaços não acompanhou as mudanças na mesma velocidade, até porque, vivemos em uma sociedade machista, racista, classista, valores que sustentam um sistema capitalista que a tudo privatiza, especialmente, a urbis.”

Leia aqui a íntegra do artigo.

QUARTA-FEIRA 8/3 – DIA INTERNACIONAL DA MULHER

A greve internacional de mulheres proposta para o Dia Internacional da Mulher em 2017 é um passo importante para um novo ciclo de legitimação das demandas de povos historicamente discriminados, como os negros. Segundo Layla Maryzandra, autora do terceiro artigo de nossa série, “com o slogan “Se nosso trabalho não vale, produzam sem nós”, há de se refletir que o trabalho em massa está nas mãos desses povos, sobretudo das mulheres negras” e, justamente por isso, é importante renovar as demandas desse dia de luta.

Layla é pedagoga, especializada em História e Cultura Afrobrasileira e Africana, e em Educação em Direitos Humanos pela Universidade Federal de Goiás (UFG), e coordena o Fórum da Juventude Negra de Brasília.

Quando mulheres negras chamam atenção sobre interseccionar às lutas, ela demonstra que apesar de estar num espaço extremamente marginalizado, esse mesmo espaço faz com que ela visualize a sociedade de outra forma: isso é herança malunga, é ver para além das brechas do navio, são os elementos simbólicos de sua origem reacendendo em suas memórias através do discurso político.

Assim, a mulher negra foi convivendo com esses saberes simbólicos, que foram se organizando e reorganizando, tanto para dentro do movimento de mulheres como para fora, em combate a uma conjuntura que nunca foi favorável a elas. O próprio 8 de março – Dia Internacional da Mulher, ainda não é um dia em que todos os movimentos de mulheres negras se sintam confortáveis para chamar de seu, e para atribuí-lo a uma luta histórica sua também, devido à deslegitimidades e silenciamentos ainda presentes no movimento de mulheres.”

Leia aqui a íntegra do artigo.

QUINTA-FEIRA 9/3

Por que histórias como as de Luana e Veronica, uma mulher lésbica e outra trans, violentamente torturadas por policiais, têm que ser trazidas à visibilidade no mês da mulher – e em qualquer outro espaço e data de luta e resistência contra os poderes estabelecidos? Luana morreu e Veronica foi desfigurada. Ambas foram humilhadas e tiveram seus direitos desprezados, uma múltipla violação de direitos humanos que são “tijolos a mais na construção de uma sociedade racista e machista que cala diante de tamanha violência”, afirma Carmela Zigoni, assessora política do Inesc, doutora em Antropologia Social pela Universidade de Brasília (UnB) com especialização em Gênero e Sexualidade pela Universidade de Amsterdã e em Avaliação e Monitoramento de Políticas Públicas pela Escola Nacional de Administração Pública (Enap).

“O silêncio é quase generalizado, seja na imprensa de massa, seja nos próprios veículos alternativos de mídia, com poucas e exceções. Cabe aos movimentos LGBTI, ao lado de familiares e amigos, buscar manter a vivas suas histórias”, afirma Carmela no quarto artigo da série do Inesc publicada na Semana da Mulher.

Um trecho do artigo de Carmela:

Luana e Veronica foram vítimas de violência porque não se encaixavam nos discursos de sexo e gênero dominantes. O feminino é construído como “falta” ou “ausência” em nossa sociedade, a opressão do patriarcado contra a qual lutam os movimentos de mulheres. Quando o feminino se descola da norma, subvertendo e exigindo o poder sobre o corpo monopolizado pelas autoridades médica e jurídica (geralmente masculinas e brancas), tem-se uma negação do sujeito ainda maior.

Ou seja, se às mulheres cis brancas heterossexuais são negados direitos fundamentais, no caso de mulheres lésbicas e mulheres trans a negação é total. Se acionamos a Judith Butler em diálogo com Beatriz Preciado, podemos dizer que a mulher lésbica e a mulher trans, ao se colocarem no mundo assumindo suas identidades e desejos, apesar da opressão e violência, apesar da negativa social em vê-las como pessoas, de alguma forma rompem com as epistemologias dominantes do gênero, do sexo, e por consequência, do controle. A norma é o masculino [branco], o regime político dominante é o heteronormativo.

Leia aqui a íntegra do artigo.

DOMINGO 12/6

O quinto e último artigo de nossa série para a Semana da Mulher abordou o tema da Justiça Fiscal e sua relação com os direitos das mulheres. A assessora Grazielle David explicou como a arrecadação de impostos pode financiar políticas públicas e programas sociais para garantir e ampliar esses direitos. A luta por igualdade de gênero, afirma Grazielle, tem uma forte dimensão fiscal, já que somente a justiça tributária é capaz de assegurar serviços públicos de qualidade e impede a penalização social das mulheres.

“Quando os serviços públicos deixam de receber um financiamento adequado, e quando os impostos não são arrecadados e alocados de forma justa, são as mulheres que pagam o preço mais alto”, explica Grazielle no artigo. “E entre as mulheres, são as negras que arcam com a carga mais pesada, uma vez que são elas que pagam proporcionalmente mais impostos que os demais segmentos sociais no Brasil, conforme estudo do Inesc.”

O texto elenca 7 motivos pelos quais a Justiça Fiscal é necessária para promover os direitos das mulheres. São eles:

1. #JustiçaFiscal melhora os níveis de educação

2. #JustiçaFiscal reduz a carga sobre as mulheres em decorrência dos trabalhos e cuidados não remunerados

3. #JustiçaFiscal possibilita o acesso das mulheres a serviços de saúde que salvam vidas

4. #JustiçaFiscal reduz a violência contra mulheres

5. Quando as multinacionais e os muito ricos não pagam seus tributos devidos, dói mais nas mulheres

6. #JustiçaFiscal garante o acesso à água limpa que mantém as mulheres mais seguras e constrói sua emancipação econômica

7. #JustiçaFiscal oferece proteção social para mulheres

Um trecho do artigo de Grazielle David:

Os tributos que pagamos de variadas formas são a fonte mais sustentável de receitas que um governo pode ter. Eles bancam a maioria dos serviços públicos dos quais as sociedades dependem, especialmente as mulheres. É por isso que defendemos a justiça fiscal com arrecadação e alocação orçamentárias sensíveis a gênero. Outros elementos, como a questão racial e diversidade étnica devem ser consideradas ao se pensar em justiça fiscal, uma vez que para o alcance dos direitos humanos é necessário que os orçamentos sejam não discriminatórios.

Leia aqui a íntegra do artigo.

8 de Março para Luana e Veronica

Luana Barbosa dos Reis e Veronica Bolina não foram esquecidas. No entanto, a invisibilidade social que cerca a morte da primeira e prisão da segunda fazem parte da lesbofobia e transfobia, ao lado do racismo, determinantes das relações em nossa sociedade.  A múltipla violação de direitos humanos pelas quais elas passaram são tijolos a mais na construção de uma sociedade racista e machista que cala diante de tamanha violência. O silêncio é quase generalizado, seja na imprensa de massa, seja nos próprios veículos alternativos de mídia, com poucas e exceções. Cabe aos movimentos LGBTI, ao lado de familiares e amigos, buscar manter a vivas suas histórias.

Neste 8 de Março, Dia Internacional das Mulheres, trago-as lado a lado neste texto porque elas têm algo em comum: são mulheres negras periféricas que sofreram violência policial por não estarem de acordo com as normas hegemônicas de gênero. Se tradicionalmente o 8M marca a luta das mulheres por direitos, é na conjuntura política do avanço das forças conservadoras e aprofundamento das desigualdades econômicas que o chamado de Angela Davis desde os Estados Unidos revela a urgência de uma reorganização das resistências a partir dos movimentos de mulheres. E estes movimentos devem incluir as mulheres lésbicas e as mulheres trans, além de tomar o racismo como uma pauta central.

No Brasil, uma visão crítica permeia o 8 de Março, na medida em que a data não seria representativa da diversidade de mulheres e das formas diferenciadas de como as violações de direitos as impactam.  É bom lembrar que essa crítica [legítima] também foi feita internamente ao feminismo enquanto movimento social e na produção acadêmica, daí a emergência de feminismos no plural. No caso da convocação à greve, chama-se a atenção, também, para o fato de que as mulheres mais pobres não podem simplesmente “parar”, com perigo de perderem os empregos ou o dia de ganho em suas atividades produtivas.

As críticas antes e hoje são positivas e geram efeitos, e podemos compreender o próprio processo de construção deste 8 de Março como um momento de reafirmação de lutas específicas, como os movimentos de mulheres negras, do campo, indígenas, bissexuais, lésbicas e trans; mas também das latinas em relação às negras norte-americanas, e destas em relação às feministas brancas e assim sucessivamente: o fato é, a mobilização de mulheres em 2017, está ganhando visibilidade e adesão, além de estar produzindo muito debate sobre as desigualdades.

Homenagem à Luana Barbosa  mulher trans assassinadaLuana Barbosa dos Reis foi espancada por ser lésbica, “considerada masculina” pelos policiais que a revistaram. Ela se negou a ser violada – pois somente uma policial feminina poderia revistá-la de acordo com a lei –, disse ser mulher, mostrou os seios, mas seu feminino, sua maternidade [ela tinha um filho de 14 anos], seus estudos, seus conhecimentos sobre seus direitos, nada disso fez diferença para os agentes de “segurança”. Mesmo após o pedido de investigação imparcial feito em Nota pública do Alto Comissariado de Direitos Humanos das Nações Unidas para América do Sul e da ONU Mulheres Brasildestacando o risco de impunidade de um caso emblemático de racismo e a lesbofobia, em fevereiro deste ano o caso foi arquivado pela Justiça Militar por ausência de provas materiais de crime militar, e agora será investigado pela Polícia Civil.

Veronica Bolina foi torturada por ser travesti. Em que pesem acusações sobre ela, pelas quais está presa, nada justifica o espancamento e exposição de suas fotos na internet. Seu rosto foi transfigurado e seu corpo nu fotografado pelos próprios agentes policiais, que disponibilizaram as fotos na internet. A última notícia que encontrei sobre Veronica na internet é de maiode 2016, e traz uma importante reflexão sobre as constantes violações às quais são submetidas travestis e transexuais no sistema carcerário brasileiro.

Luana e Veronica foram vítimas de violência porque não se encaixavam nos discursos de sexo e gênero dominantes. O feminino é construído como “falta” ou “ausência” em nossa sociedade, a opressão do patriarcado contra a qual lutam os movimentos de mulheres. Quando o feminino se descola da norma, subvertendo e exigindo o poder sobre o corpo monopolizado pelas autoridades médica e jurídica (geralmente masculinas e brancas), tem-se uma negação do sujeito ainda maior.

Foto Verônica Bolina
Reprodução/Instagram

Ou seja, se às mulheres cis brancas heterossexuais são negados direitos fundamentais, no caso de mulheres lésbicas e mulheres trans a negação é total. Se acionamos a Judith Butler em diálogo com Beatriz Preciado, podemos dizer que a mulher lésbica e a mulher trans, ao se colocarem no mundo assumindo suas identidades e desejos, apesar da opressão e violência, apesar da negativa social em vê-las como pessoas, de alguma forma rompem com as epistemologias dominantes do gênero, do sexo, e por consequência, do controle. A norma é o masculino [branco], o regime político dominante é o heteronormativo.

Como eram lidas Luana e Veronica? O gênero é, ao lado da raça e da classe, uma classificação construída socialmente, necessária ao controle dos corpos para o capital. É na experiência colonial que estas categorias começam a se entrelaçar, por isso a interseccionalidade responde às nossas questões mais urgentes relativas às desigualdades na atualidade. As identidades sexo-diversas, em trânsito, onde masculino e feminino são mais deslizantes e resistem ao binarismo, a construção e poder sobre si, respondem resistindo e pautando a estrutura hegemônica que informa os gêneros. Com os povos escravizados, Luana e Veronica também compartilham a diáspora negra. Eram mulheres negras e periféricas. O racismo é estruturante de nossa sociedade e trata-se de um sistema de exploração e reprodução de privilégios. No caso de Veronica, ainda lhe é imputada a “loucura”, como forma de reafirmar seu caráter “agressivo” e “perigoso”, como se a criminalização dos corpos negros não fosse a própria norma social no Brasil [e nos Estados Unidos]. Em suma, Luana e Veronica foram lidas, no momento das agressões [e provavelmente em outros momentos] a partir de opressão de gênero, de classe e de raça. O fato de serem elas uma mulher trans e uma mulher lésbica interseccionam ainda mais sua vulnerabilidade social.

Se buscamos informações sobre a violação de direitos de mulheres negras, mulheres trans e mulheres lésbicas, podemos compreender como Luana e Veronica eram vulneráveis ao que lhes ocorreu. Segundo a ONG Transgender Europe (TGEU), entre janeiro de 2008 e março de 2014, foram registradas 604 mortes de pessoas trans no país, o que coloca o Brasil entre os países que mais mata transgêneros, transexuais e travetis no mundo. Somente em 2016 foram 144, de acordo com a Rede Trans Brasil. A Liga Brasileira de Lésbicas (LBL) estima que cerca de 6% das vítimas de estupro que procuraram o Disque 100 do Governo Federal em 2012 eram mulheres lésbicas. E, dentro desta estatística, havia um percentual considerável de denúncias de estupro corretivo. O Mapa da Violência 2015 elaborado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), aponta um aumento de 54% em dez anos no número de homicídios de mulheres negras, passando de 1.864, em 2003, para 2.875, em 2013. No mesmo período, a quantidade anual de homicídios de mulheres brancas caiu 9,8%, saindo de 1.747 em 2003 para 1.576 em 2013.

O que significam estas violências e mortes sistemáticas, pouco divulgadas na mídia, pouco apuradas pelo sistema de justiça? Significa que estas violências são autorizadas socialmente, e autorizadas também pelo Estado.

As lutas das mulheres lésbicas e mulheres trans vem dizer à sociedade que as amarras de gênero da nossa sociedade, iniciadas com a chamada nomeação primária dada pelos médicos (é um menino, é uma menina), e legitimada pelas instituições familiar e jurídica, não encontram eco na realidade das múltiplas possibilidades de vivenciar o masculino e o feminino.

As lutas das mulheres negras vem dizer que elas estão em luta contra o racismo e pelo bem viver à revelia do racismo que as oprime desde sempre, contra o racismo institucional e a violação de direitos. Assim, ao lado das mães, irmãs e companheiras dos jovens negros assassinados cotidianamente no país, Luana e Veronica também são a face feminina do genocídio da juventude negra no Brasil. Elas sofreram grave violência em situações onde a polícia estava presente. Uma lésbica negra, uma mulher trans negra.

Muito se tem falado sobre crise civilizatória no campo da esquerda. Colunistas, acadêmicos, ativistas. No entanto, não sei se por ingenuidade ou cinismo, pois essa crise civilizatória é bastante anterior, e a conjuntura política atual vem revelar como as estruturas coloniais, como o patriarcado e a escravidão, uma vez não descontruídas, seguem determinando nossas relações sociais. Um exemplo disso é a “nova escravidão” da qual nos fala Angela Davis, ao denunciar o encarceramento em massa dos corpos negros como atividade lucrativa; mas também ao denunciar a militarização das relações sociais em todo o mundo. Aqui no Brasil, tristemente, mas não inesperadamente, o método tem sido o mesmo.

De forma legítima, as mulheres negras elegeram o 25 de Julho como o seu dia, e as pessoas trans tem o seu dia da visibilidade, 29 de janeiro. No entanto, Luana e Veronica devem ser trazidas à tona, à visibilidade, neste “mês da mulher” e em qualquer outro espaço e data de luta e resistência que questionem os poderes estabelecidos. É pela visbilididade lésbica, é pela visbilidade trans, é contra o racismo e pelo bem viver.

*Quem escreve este texto é uma mulher cis lésbica de classe média. Trata-se de uma contribuição que se apequena diante de Luana e Veronica, e do que suas histórias representam. Agradeço a generosidade de Antonella, Caetano e Ludmila, que dialogaram sobre a limitação do lugar de fala, mas também sobre a necessidade de dar visibilidade às mulheres lésbicas negras e às mulheres trans negras neste 8 de Março.

8 de Março para Luana e Veronica

Luana Barbosa dos Reis e Veronica Bolina não foram esquecidas. No entanto, a invisibilidade social que cerca a morte da primeira e prisão da segunda fazem parte da lesbofobia e transfobia, ao lado do racismo, determinantes das relações em nossa sociedade.  A múltipla violação de direitos humanos pelas quais elas passaram são tijolos a mais na construção de uma sociedade racista e machista que cala diante de tamanha violência. O silêncio é quase generalizado, seja na imprensa de massa, seja nos próprios veículos alternativos de mídia, com poucas e exceções. Cabe aos movimentos LGBTI, ao lado de familiares e amigos, buscar manter a vivas suas histórias.

Neste 8 de Março, Dia Internacional das Mulheres, trago-as lado a lado neste texto porque elas têm algo em comum: são mulheres negras periféricas que sofreram violência policial por não estarem de acordo com as normas hegemônicas de gênero. Se tradicionalmente o 8M marca a luta das mulheres por direitos, é na conjuntura política do avanço das forças conservadoras e aprofundamento das desigualdades econômicas que o chamado de Angela Davis desde os Estados Unidos revela a urgência de uma reorganização das resistências a partir dos movimentos de mulheres. E estes movimentos devem incluir as mulheres lésbicas e as mulheres trans, além de tomar o racismo como uma pauta central.

No Brasil, uma visão crítica permeia o 8 de Março, na medida em que a data não seria representativa da diversidade de mulheres e das formas diferenciadas de como as violações de direitos as impactam.  É bom lembrar que essa crítica [legítima] também foi feita internamente ao feminismo enquanto movimento social e na produção acadêmica, daí a emergência de feminismos no plural. No caso da convocação à greve, chama-se a atenção, também, para o fato de que as mulheres mais pobres não podem simplesmente “parar”, com perigo de perderem os empregos ou o dia de ganho em suas atividades produtivas.

As críticas antes e hoje são positivas e geram efeitos, e podemos compreender o próprio processo de construção deste 8 de Março como um momento de reafirmação de lutas específicas, como os movimentos de mulheres negras, do campo, indígenas, bissexuais, lésbicas e trans; mas também das latinas em relação às negras norte-americanas, e destas em relação às feministas brancas e assim sucessivamente: o fato é, a mobilização de mulheres em 2017, está ganhando visibilidade e adesão, além de estar produzindo muito debate sobre as desigualdades.

Homenagem à Luana Barbosa  mulher trans assassinadaLuana Barbosa dos Reis foi espancada por ser lésbica, “considerada masculina” pelos policiais que a revistaram. Ela se negou a ser violada – pois somente uma policial feminina poderia revistá-la de acordo com a lei –, disse ser mulher, mostrou os seios, mas seu feminino, sua maternidade [ela tinha um filho de 14 anos], seus estudos, seus conhecimentos sobre seus direitos, nada disso fez diferença para os agentes de “segurança”. Mesmo após o pedido de investigação imparcial feito em Nota pública do Alto Comissariado de Direitos Humanos das Nações Unidas para América do Sul e da ONU Mulheres Brasildestacando o risco de impunidade de um caso emblemático de racismo e a lesbofobia, em fevereiro deste ano o caso foi arquivado pela Justiça Militar por ausência de provas materiais de crime militar, e agora será investigado pela Polícia Civil.

Veronica Bolina foi torturada por ser travesti. Em que pesem acusações sobre ela, pelas quais está presa, nada justifica o espancamento e exposição de suas fotos na internet. Seu rosto foi transfigurado e seu corpo nu fotografado pelos próprios agentes policiais, que disponibilizaram as fotos na internet. A última notícia que encontrei sobre Veronica na internet é de maiode 2016, e traz uma importante reflexão sobre as constantes violações às quais são submetidas travestis e transexuais no sistema carcerário brasileiro.

Luana e Veronica foram vítimas de violência porque não se encaixavam nos discursos de sexo e gênero dominantes. O feminino é construído como “falta” ou “ausência” em nossa sociedade, a opressão do patriarcado contra a qual lutam os movimentos de mulheres. Quando o feminino se descola da norma, subvertendo e exigindo o poder sobre o corpo monopolizado pelas autoridades médica e jurídica (geralmente masculinas e brancas), tem-se uma negação do sujeito ainda maior.

Foto Verônica Bolina
Reprodução/Instagram

Ou seja, se às mulheres cis brancas heterossexuais são negados direitos fundamentais, no caso de mulheres lésbicas e mulheres trans a negação é total. Se acionamos a Judith Butler em diálogo com Beatriz Preciado, podemos dizer que a mulher lésbica e a mulher trans, ao se colocarem no mundo assumindo suas identidades e desejos, apesar da opressão e violência, apesar da negativa social em vê-las como pessoas, de alguma forma rompem com as epistemologias dominantes do gênero, do sexo, e por consequência, do controle. A norma é o masculino [branco], o regime político dominante é o heteronormativo.

Como eram lidas Luana e Veronica? O gênero é, ao lado da raça e da classe, uma classificação construída socialmente, necessária ao controle dos corpos para o capital. É na experiência colonial que estas categorias começam a se entrelaçar, por isso a interseccionalidade responde às nossas questões mais urgentes relativas às desigualdades na atualidade. As identidades sexo-diversas, em trânsito, onde masculino e feminino são mais deslizantes e resistem ao binarismo, a construção e poder sobre si, respondem resistindo e pautando a estrutura hegemônica que informa os gêneros. Com os povos escravizados, Luana e Veronica também compartilham a diáspora negra. Eram mulheres negras e periféricas. O racismo é estruturante de nossa sociedade e trata-se de um sistema de exploração e reprodução de privilégios. No caso de Veronica, ainda lhe é imputada a “loucura”, como forma de reafirmar seu caráter “agressivo” e “perigoso”, como se a criminalização dos corpos negros não fosse a própria norma social no Brasil [e nos Estados Unidos]. Em suma, Luana e Veronica foram lidas, no momento das agressões [e provavelmente em outros momentos] a partir de opressão de gênero, de classe e de raça. O fato de serem elas uma mulher trans e uma mulher lésbica interseccionam ainda mais sua vulnerabilidade social.

Se buscamos informações sobre a violação de direitos de mulheres negras, mulheres trans e mulheres lésbicas, podemos compreender como Luana e Veronica eram vulneráveis ao que lhes ocorreu. Segundo a ONG Transgender Europe (TGEU), entre janeiro de 2008 e março de 2014, foram registradas 604 mortes de pessoas trans no país, o que coloca o Brasil entre os países que mais mata transgêneros, transexuais e travetis no mundo. Somente em 2016 foram 144, de acordo com a Rede Trans Brasil. A Liga Brasileira de Lésbicas (LBL) estima que cerca de 6% das vítimas de estupro que procuraram o Disque 100 do Governo Federal em 2012 eram mulheres lésbicas. E, dentro desta estatística, havia um percentual considerável de denúncias de estupro corretivo. O Mapa da Violência 2015 elaborado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), aponta um aumento de 54% em dez anos no número de homicídios de mulheres negras, passando de 1.864, em 2003, para 2.875, em 2013. No mesmo período, a quantidade anual de homicídios de mulheres brancas caiu 9,8%, saindo de 1.747 em 2003 para 1.576 em 2013.

O que significam estas violências e mortes sistemáticas, pouco divulgadas na mídia, pouco apuradas pelo sistema de justiça? Significa que estas violências são autorizadas socialmente, e autorizadas também pelo Estado.

As lutas das mulheres lésbicas e mulheres trans vem dizer à sociedade que as amarras de gênero da nossa sociedade, iniciadas com a chamada nomeação primária dada pelos médicos (é um menino, é uma menina), e legitimada pelas instituições familiar e jurídica, não encontram eco na realidade das múltiplas possibilidades de vivenciar o masculino e o feminino.

As lutas das mulheres negras vem dizer que elas estão em luta contra o racismo e pelo bem viver à revelia do racismo que as oprime desde sempre, contra o racismo institucional e a violação de direitos. Assim, ao lado das mães, irmãs e companheiras dos jovens negros assassinados cotidianamente no país, Luana e Veronica também são a face feminina do genocídio da juventude negra no Brasil. Elas sofreram grave violência em situações onde a polícia estava presente. Uma lésbica negra, uma mulher trans negra.

Muito se tem falado sobre crise civilizatória no campo da esquerda. Colunistas, acadêmicos, ativistas. No entanto, não sei se por ingenuidade ou cinismo, pois essa crise civilizatória é bastante anterior, e a conjuntura política atual vem revelar como as estruturas coloniais, como o patriarcado e a escravidão, uma vez não descontruídas, seguem determinando nossas relações sociais. Um exemplo disso é a “nova escravidão” da qual nos fala Angela Davis, ao denunciar o encarceramento em massa dos corpos negros como atividade lucrativa; mas também ao denunciar a militarização das relações sociais em todo o mundo. Aqui no Brasil, tristemente, mas não inesperadamente, o método tem sido o mesmo.

De forma legítima, as mulheres negras elegeram o 25 de Julho como o seu dia, e as pessoas trans tem o seu dia da visibilidade, 29 de janeiro. No entanto, Luana e Veronica devem ser trazidas à tona, à visibilidade, neste “mês da mulher” e em qualquer outro espaço e data de luta e resistência que questionem os poderes estabelecidos. É pela visbilididade lésbica, é pela visbilidade trans, é contra o racismo e pelo bem viver.

*Quem escreve este texto é uma mulher cis lésbica de classe média. Trata-se de uma contribuição que se apequena diante de Luana e Veronica, e do que suas histórias representam. Agradeço a generosidade de Antonella, Caetano e Ludmila, que dialogaram sobre a limitação do lugar de fala, mas também sobre a necessidade de dar visibilidade às mulheres lésbicas negras e às mulheres trans negras neste 8 de Março.

Direito à cidade, esfera pública e as mulheres

Nesta Semana da Mulher, o Inesc vai atuar em parceria com o site Outras Palavras com a publicação conjunta de artigos que examinam questões importantes de gênero e do movimento feminista em nosso cotidiano. O primeiro dessa série é sobre educação.

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Por Cleo Manhas, assessora política do Inesc.

A proposta aqui é dialogar com outras pessoas sobre as cidades, a esfera pública e as mulheres, tendo como mote o Dia Internacional da Mulher. Bom momento de reflexão sobre o não reconhecimento e as interdições de gênero nos espaços públicos, que em geral são masculinos e tentam, a todo momento e a todo custo, constranger mulheres, devolvê-las ao espaço privado de onde, aparentemente para o machismo e o patriarcalismo, nunca deveriam ter saído.

Bela, recatada e do lar. Essa foi a chamada de uma reportagem feita por uma revista de grande circulação, sobre a atual primeira-dama. Além do reforço a um estereótipo de mulher que cuida do privado enquanto o homem trabalha no espaço público, traz a ideia de que ser do lar é respeitoso, resguarda e protege as mulheres e seus corpos. Um contraponto à luta feminista, em constante disputa pelos espaços públicos e privados, pois nem sempre quatro paredes são protetoras, a violência doméstica é uma constante e, em briga de marido e mulher, é preciso sim meter a colher, tornar público, judicializar e punir agressores.

O controle sobre os corpos das mulheres é muito forte socialmente, por isso essa eterna força que faz das cidades espaços inóspitos e violentos, onde ficamos expostas a assédios de variadas formas. Para muitas a violência que vai além dos assédios, são ao mesmo tempo alvos da violência machista e responsabilizadas por ela, pela forma como interagem no espaço público.

E antes de avançar na reflexão sobre mulheres e cidades, é necessário esclarecer que não é possível falar de mulher ou feminismo no singular, são mulheres e feminismos, visto que há grandes diferenças, por exemplo, quando estamos falando de mulheres brancas, classe média, cisgênero, heterossexuais e mulheres negras faveladas cis e hetero e ainda mulheres, negras, faveladas, lésbicas ou mulheres transexuais. Somos seres multifacetadas, com suas distinções e diferenças. E se as cidades não são amigáveis com o primeiro grupo, imagine com os demais? Além de as cidades terem espaços interditados para mulheres de maneira geral, por serem pensadas por e para homens, há ainda as interdições por privatização de espaços públicos que não permitem a convivência com mulheres negras, lésbicas, trans.Momentos em que todas as desigualdades se juntam em um só corpo.

Então: direito à cidade e feminismo, o que temos a dizer sobre isso? Por que a relação ou a não relação? Como perguntaria um cineasta brasiliense, a cidade é uma só? Há várias cidades na cidade. Divididas e hierarquizadas, em geral segregadas. Os locais mais centrais, onde concentram os postos de trabalho não são os mais habitados, ao contrário, a maior parte da população precisa se descolocar por grandes distâncias. E aí mora o perigo, as mulheres de baixa renda gastam mais de três horas em deslocamentos, saem de suas casas muito cedo, ainda escuro, e retornam muito tarde. Os bairros periféricos, em geral, são pouco iluminados e inseguros. O transporte público é de má qualidade e lotado, facilitando o assédio que é corriqueiro em ônibus, metrôs e trens.

A resposta dada por alguns governos municipais aos assédios em transporte público foi, no caso do metrô, criar vagões exclusivos. Foi uma decisão polêmica, sem consenso, mesmo entre os movimentos feministas. E sem querer discutir se os vagões são necessários ou não, só uma problematização: as mulheres que não estiverem nos vagões exclusivos estão liberadas para serem assediadas? Ao que parece esta decisão mais uma vez as responsabiliza pela violência sofrida, ao precisarem ficar segregadas se não quiserem sofrer violações. Os espaços públicos não estão abertos e liberados, elas precisam esconder seus corpos se quiserem respeito.

As cidades em geral não são amistosas com a população periférica, mas as mulheres sofrem mais. Só no dia 2 de março o jornal Correio Braziliense veiculou uma notícia em três partes, a manchete principal dizia que na noite anterior uma jovem de 19 anos havia sido estuprada na parada de ônibus. Na sequência diz que uma aposentada de 62 anos foi estuprada por um vizinho embriagado. Por último, uma criança de 12 anos sofreu violência sexual no caminho da escola. Isso em apenas um dia na capital do país. Casos que foram registrados, pois há inúmeros não computados porque os equipamentos públicos oferecidos nas cidades para as mulheres registrarem ocorrência também não são amigáveis. Na maioria das vezes a vítima “torna-se” a culpada, conforme já problematizado aqui.

Como e por quem são pensadas as políticas públicas?

Historicamente as cidades foram divididas entre lugares para homens e lugares para mulheres, entendendo o público como masculino e o privado como feminino. No entanto, esta realidade mudou e as mulheres ocuparam os espaços públicos, porém, a geografia desses espaços não acompanhou as mudanças na mesma velocidade, até porque, vivemos em uma sociedade machista, racista, classista, valores que sustentam um sistema capitalista que a tudo privatiza, especialmente, a urbis.

E não há tradição no Brasil de se pensar políticas e planos participativamente, ouvindo de fato as usuárias de tais serviços públicos. Não é assim com a saúde e educação, que são tradicionalmente mais vivas no cotidiano das mulheres, o que dizer da mobilidade, apesar de termos de nos deslocar cotidianamente. As cidades não foram planejadas para as pessoas, mas sim para o capital, para as grandes empreiteiras e grandes corporações. E as formas de ir e vir e onde é o seu espaço na urbis determinam as relações sociais para com o local.

Mesmo que esses espaços urbanos sejam vivenciados de diversas formas por diferentes grupos sociais e pelos distintos gêneros, apesar de serem públicos, há inúmeras interdições culturais nos variados lugares e recantos das cidades. As distancias e os deslocamentos também são determinantes para as relações sociais nos espaços ditos públicos.

E quem pensa as políticas para as cidades? Sejam de mobilidade, segurança, uso e ocupação do solo? Em geral homens brancos que transitam de carro privado, não utilizam os espaços urbanos de fato, não circulam de transporte público coletivo.

Há reflexões importantes a serem feitas para mudanças de rumo, em primeiro lugar pensar que cidade queremos e quais as políticas necessárias para a sua concretização. A cidade é de todas as pessoas, portanto, as questões de igualdade e de reconhecimento devem estar presentes quando se pensa políticas. E as sujeitas das políticas devem participar ativamente em sua concepção.

É importante pensar a cidade e a esfera pública para quem nela convive, reconhecendo as desigualdades de gênero e, de forma participativa, pensar nas políticas, para que sejam de fato promotoras de direito e construtoras de espaços de convivência que contemplem, respeitem e sejam dignos das diferentes pessoas que nelas vivem.

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Educação e as novas demandas de feminismo

Nesta Semana da Mulher, o Inesc vai atuar em parceria com o site Outras Palavras com a publicação conjunta de artigos que examinam questões importantes de gênero e do movimento feminista em nosso cotidiano. O primeiro dessa série é sobre educação.

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Por Marcia Acioli, assessora política do Inesc.

Historicamente, as mulheres têm lutado pela emancipação, pela conquista de autonomia e pela entrada no mercado de trabalho como forma de equidade de gênero.

Simone de Beauvoir, filósofa francesa conhecida por seus tratados sobre feminismo, já sinalizava que pela via do trabalho as mulheres, ao lutar por independência concreta, diminuiriam a distância entre elas e os homens. Para isso, a educação seria estratégica na medida em que as prepararia para um trabalho mais qualificado.

A essas demandas clássicas, que permanecem atuais, soma-se uma diversidade de questões que se apresentam como urgentes. Hoje o feminismo na educação se entrelaça a outros temas indissociáveis. O ser menina na escola não é uma experiência única a todas as meninas e meninos que se percebem meninas. No mínimo, o ser menina se relaciona à raça/cor, à expressão de gênero, à sexualidade, à experiência familiar, ao local de morada, à construção do ativismo, ao talento e ao desejo intelectual, à produção e ao acesso à arte e à identidade cultural.

Ser menina, negra, moradora de favela é uma experiência diferente de ser menina não negra, de classe média, que por sua vez é diferente daquela de uma menina trans. A escola deve dar conta dessa diversidade, favorecendo o desenvolvimento do ser pleno, das possibilidades e dos desejos, visando à superação das desigualdades e ao fim da violência de gênero.

Portanto, o feminismo não diz respeito somente às meninas na escola. A dignidade é uma construção relacional que também tem nexo com as desigualdades estruturantes. Ela se estabelece num complexo de relações pessoais e sociais nas quais todas as pessoas devem ter o livre exercício da expressão de seus anseios e desejos. O ideal da educação é sempre ampliar possibilidades rompendo barreiras simbólicas que colocam sujeitos em relações assimétricas.

A educação sexista, a mais comum no Brasil, tem como pressuposto um fosso que separa o universo feminino do masculino, sendo este associado à força e aquele à fragilidade. A educação sexista condiciona, desde a mais tenra infância, meninos e meninas a se comportar de formas diferentes. Nega a sexualidade das meninas e estimula a dos meninos, prepara meninas para serem mulheres “cereja do bolo”, princesas inertes, delicadas e sem voz. Educa meninos para atitudes mais agressivas, mesmo que porventura não queiram esse lugar.

O Brasil é território violento para meninas. Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada Ipea1 baseado em dados de 2011 do Sistema de Informações de Agravo de Notificação do Ministério da Saúde (Sinan) revelou que 70% das vítimas de estupro no Brasil são crianças e adolescentes, dos quais 89% do sexo feminino. A pesquisa estima que no mínimo 527 mil pessoas são estupradas por ano no Brasil e que, desses casos, apenas 10% chegam ao conhecimento da polícia. Desses estupros, cerca de 70% são cometidos por pessoas próximas ou da própria família. Ou seja, o estupro é uma violência banalizada que tem ganhado novos contornos. O estupro coletivo, por exemplo, violência perpetrada como forma de ostentação, tem ganhado espaço na mídia. A divulgação nos meios de comunicação e os trâmites da denúncia, não raras vezes, apontam a vítima como responsável. No mínimo, há esforço para desqualificar o caráter de quem sofreu a agressão. Em outra pesquisa também realizada pelo Ipea em 20132, 26% dos entrevistados concordam total ou parcialmente com a afirmação de que “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”. A lógica machista mata de diversas formas.

Vozes conservadoras da sociedade reclamam das iniciativas que propõem discutir questões de gênero na escola, alegando ser uma intervenção nos valores familiares. Ao contrário disso, a discussão de gênero não diz respeito ao mundo privado. Significa educar para a esfera pública; debate urgente no país líder mundial em assassinatos de gays, travestis e transgêneros. Como exemplo de debate sobre o tema, a revista Descolad@s 2017, uma produção de adolescentes do Inesc com o foco em direitos humanos, promove e divulga reflexões acerca do assunto, oferecendo para as escolas públicas um material rico e provocador.

Comprometida com o desenvolvimento de uma visão de mundo, a educação é indispensável para a promoção de uma nova ordem social. Portanto, quanto antes se inicia o trabalho pedagógico com o foco na equidade de gênero, maior é a possibilidade da formação de sujeitos mais sensíveis e dispostos a uma relação equânime, livre de opressões e de assimetrias.

A despeito da escola, meninas estão construindo alternativas, querem expressar sua sexualidade e o seu desejo sem censura. Querem escolher e escolhem suas roupas e cores livremente, buscam novas carreiras, querem dançar sem serem vistas como objeto disponível para o desejo do outro, querem expor seus corpos sem que isso signifique um convite ao estupro, querem namorar, querem estudar, querem não estudar, querem fazer rimas e batalhas de hip hop, querem fazer grafite, andar de skate, dançar ballet, fazer ciência, pensar e ser respeitadas. Elas têm rompido com padrões cristalizados na sociedade, muitas vezes com alegria, outras com dor. Elas, desejam, sobretudo, a plenitude da existência e construir nova lógica social. Querem viver sem violência!

Assim como a dignidade, a felicidade – afinal, a vocação mais radical de todas as crianças – deve emergir da educação feminista.

1Nota Técnica Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde.

2Sistema de Indicadores de Percepção Social (SIPS)

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Perfil da Desigualdade e da Injustiça Tributária

Nota Técnica realizada com base nas informações disponibilizadas pela Secretaria de Receita Federal na base de dados “Grandes Números das Declarações do Imposto de Renda das Pessoas Físicas”. Os dados estão disponíveis para os anos-calendário de 2007 a 2013, que permitem o acesso às declarações realizadas no período de 2008 a 2014. Essas informações foram disponibilizadas em planilhas de dados, o que é um facilitador para a análise dos dados.

O estudo é uma realização do Inesc com apoio da Oxfam Brasil e apoio institucional da Christian Aid e Pão Para o Mundo.

Clique aqui para baixar o estudo completo (arquivo PDF).

Direito a Medicamentos: avaliação das despesas com medicamentos no âmbito federal do Sistema Único de Saúde entre 2008 e 2015

Estudo do Inesc, assinado por Grazielle David, Alane Andrelino e Nathali Beghin analisa os dados referentes ao orçamento dos medicamentos entre 2008 e 2015 no âmbito federal do Sistema Único de Saúde (SUS), utilizando-se para isso as despesas pagas no ano acrescidas dos restos a pagar pagos no mesmo ano (pago + restos a pagar pagos).

As fontes para a elaboração do estudo são: as Leis Orçamentárias Anuais, Relatórios Anuais de Gestão das Secretarias do Ministério da Saúde; Secretaria de Atenção à Saúde (SAS), Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE) e Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS, Fundo Nacional de Saúde (FNS), e sistemas de informaçnao como o sobre Orçamentos Públicos em Saúde (SIOPS), sobre Orçamento Público (SIOP) e o Siga Brasil, além de requisições feitas pela Lei de Acesso à Informação (LAI).

Acesse o estudo aqui (arquivo PDF para baixar).

Mapa das Desigualdes de Brasília 2016

Produzido pelo Movimento Nossa Brasília, Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e Oxfam Brasil, o Mapa das Desigualdades mede e compara dados sobre mobilidade urbana, saúde, educação, cultura, saneamento básico e meio ambiente, segurança pública e trabalho e renda de regiões administrativas do Distrito Federal com o Plano Piloto da capital. Os dados foram levantados no IBGE, na Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (PDAD) da Codeplan do DF, e no Fundo de Apoio à Cultura (FAC), também do DF.

O estudo foi construído e sistematizado a partir de oficinas participativas realizadas na Cidade Estrutural, Samambaia e São Sebastião entre os meses de outubro e novembro, em parceria com movimentos e organizações comunitárias locais.

Leia aqui a íntegra do Mapa das Desigualdades de Brasília 2016 (arquivo PDF).

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