Por Nathalie Beghin, coordenadora da assessoria política do Inesc.
É preciso muito cinismo para querer se comparar a Juscelino Kubitschek e seu Plano de Metas, que prometia 50 anos de progresso em 5 de governo. O presidente Michel Temer adotou o bordão “20 anos em 2” para celebrar seus dois anos de atuação, completados este mês. Somente um governo que ascendeu ao poder mediante golpe parlamentar pode ter a petulância de transformar a desgraça da maioria em festa.
Festejar o quê, exatamente? A queda da inflação e dos juros que estão em seus menores patamares há muitos anos? Esses são os únicos indicadores de sucesso que se tem notícia. De sucesso, em termos, pois a queda da inflação deve-se, em grande medida, à profunda recessão econômica dos tempos recentes: o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro encolheu em 7,5% entre 2015 e 2016. Mas de que adianta se a economia não volta a crescer? Até os operadores de mercado, que estão entre os beneficiários do presidente Temer e seus aliados, estão reduzindo as estimativas de crescimento para 2018.
O que celebrar no cenário político tendo uma aprovação de apenas 5% , segundo as últimas pesquisas de opinião?
A elevada reprovação de Temer e seus aliados pode ser creditada, em grande parte, às evidências de um governo mergulhado na corrupção, associadas aos arrochos provocados nas políticas públicas. As medidas implementadas nos últimos dois anos visam proteger, acima de tudo, os interesses dos governantes de plantão, bem como o capital, especialmente o financeiro, em detrimento do bem-estar geral da Nação.
Assim, o governo Temer congelou constitucionalmente os gastos públicos federais por 20 anos, com exceção do pagamento dos juros da dívida (por meio da Emenda Constitucional 95/2016); segurou o valor de salário mínimo abaixo da inflação, o que afeta milhões de trabalhadores; deu início a processos de privatizações de bens públicos, até mesmo abrindo para o capital estrangeiro; começou a desmontar o já frágil Estado de Bem-estar Social, associando cortes orçamentários com retirada de direitos, por intermédio da reforma trabalhista e a da formulação de uma reforma da previdência social que viola os direitos dos mais vulneráveis; extinguiu ou enfraqueceu institucionalidades criadas para defender os direitos de grupos da população historicamente excluídos, como mulheres, negros, indígenas, povos e comunidades tradicionais e comunidade LGBTI+. Da mesma maneira, vem eliminando medidas de proteção ao meio ambiente.
Esse conjunto de medidas resultou em expressivos retrocessos que penalizam, e muito, a maioria da população. Vejamos alguns deles:
A desigualdade se acirra. Um excelente indicador para dimensionar esse fenômeno é a concentração da riqueza. Segundo a Oxfam, o número de super-ricos que se apropriam de riqueza equivalente à metade mais pobre da população brasileira passou de seis para cinco entre 2016 e 2017. E mais: em 2017, o país ganhou mais 12 bilionários, que agora somam 43 pessoas. A fortuna desses super-ricos chega a US$ 549 bilhões, ou 43,52% da riqueza do país. Enquanto isso, a metade mais pobre da população brasileira detinha apenas 2% da riqueza nacional, menos do que os 2,7% de 2016. Em resumo: as medidas recessivas do governo Temer atingem somente os mais pobres, pois os mais abastados só fazem aumentar seu patrimônio em plena recessão econômica.
A pobreza e a miséria voltam a crescer depois de anos de queda. Levantamento realizado pela LCA Consultores, a partir de microdados da Pnad Contínua, divulgada recentemente pelo IBGE, mostra que o número de pessoas em situação de extrema pobreza no país passou de 13,3 milhões para cerca de 14,8 milhões entre 2016 e 2017, o que representa um aumento de mais de 11%[1]. E mais: o aumento da pobreza é generalizado, pois aconteceu em todas as regiões do país. Esse empobrecimento se explica, em grande parte, pela queda real do valor do salário mínimo e pelo aumento do desemprego e do trabalho informal. Atualmente, mais de 13 milhões de trabalhadores e trabalhadoras estão sem emprego. Os números também revelam um processo de desaparecimento do emprego formal no Brasil. Desde 2014, o país perde, em média, 1 milhão de postos com carteira assinada por ano, ainda segundo a Pnad Contínua do IBGE.
A mortalidade infantil interrompe sua trajetória descendente. Segundo o Ministério da Saúde, depois de uma longa e sustentada diminuição, a mortalidade infantil cresceu 11% para crianças entre um mês e quatro anos de idade, atingindo o patamar de 12,7 mortes por mil nascidos vivos em 2016. A título de comparação, nos países da Zona do Euro esse indicador é da ordem de quatro mortes por mil nascidos vivos. Estima-se que a situação irá se agravar em 2017 e 2018. A morte de crianças é um indicador sensível do nível de desenvolvimento de um país, e uma evidência eloquente de suas prioridades e de seus valores. A diminuição real do salário mínimo e os cortes de programas sociais, tanto na saúde, como na assistência social, educação, habitação e saneamento, entre outros, impactaram diretamente na vida das crianças.
Esses são alguns exemplos das nefastas consequências dos “20 anos em 2” do governo Temer e seus aliados. Estudo do Inesc, realizado em parceria com CESR e Oxfam Brasil, evidencia que as medidas de austeridade adotadas desde 2016 resultaram em expressivos cortes e na violação de direitos de grandes parcelas da população: a área que mais perdeu foi a da juventude, seguida dos programas de segurança alimentar e nutricional, mudanças climáticas, moradia digna e defesa dos direitos de crianças e adolescentes e de mulheres.
A perversidade se acentua com a constatação de que o subfinanciamento de programas sociais é ineficiente: segundo estudo de Antônio Albano, com a Emenda Constitucional 95, do “Teto dos Gastos”, a previsão de crescimento do PIB é menor do que sem ela, e a previsão de resultado fiscal com ou sem a EC 95 é praticamente igual.
O governo federal não tem nada para celebrar e muito para se envergonhar!
Por Iara Pietricovsky, do colegiado de gestão do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc)
Estamos quase terminando a primeira semana de debates da reunião preparatória da COP24, em Bonn, Alemanha. O processo é como um quebra-cabeça que nos desafia a entender todas as suas dimensões. Mas, vamos começar com uma pequena dose de vida real: o sistema de monitoramento atmosférico do National Oceanic and Atmospheric Administration (NOAA), do Departamento de Comércio dos EUA, marcou, no dia 2 de maio, a maior concentração de CO2 em três milhões de anos na atmosfera deste planeta. O índice chegou a 410 ppm, medido no Haiti.
Ou seja, o compromisso de reduzir emissões e limitar o aumento médio da temperatura global em 1,5ºC foi para o espaço. O consumo cresce, assim como o comércio internacional e regional, e a transição para uma sociedade de baixo carbono, como cantam os governos e corporações em prosa e verso, segue apostando suas fichas nos combustíveis fósseis. Esse tipo de combustível ainda é o maior portfólio dos financiamentos das agências do Banco Mundial, em detrimento da energia renovável, fazendo com que a ocupação e uso do solo sigam em processo de produção extensiva e intensiva, predatória e recheada de agrotóxicos.
Voltamos então para Bonn, e o que está sucedendo neste momento na reunião preparatória para a Conferência das Partes sobre Mudança Climática (COP24), que acontecerá em Katowice, Polônia, em dezembro próximo. Um dos focos está na construção do chamado “Livro de Regras”, seguindo as determinações do Acordo de Paris. Esse livro deverá conter as regras e conceitos comuns que serão utilizados por todos os países de forma a compatibilizar as contabilizações sobre emissões e sobre as ações adotadas.
Um segundo elemento novo do processo é o chamado “Diálogo Talanoa”, proposto pela presidência de Fiji na COP23, em 2017, e que se propõe a ser um espaço aberto para o diálogo baseado em experiências concretas e bem sucedidas dos países.
Entretanto, esses dois eixos centrais das negociações estão trazendo novas (velhas) tensões entre os países em desenvolvimentos (G77+China) e os países desenvolvidos. O CBDR, sigla em inglês para “responsabilidades comuns, porém diferenciadas”, volta com força. Este conceito traz a história como elemento fundamental para que se estabeleçam diferentes responsabilidades entre os países no equacionamento do aquecimento do planeta e seus impactos. Todos são responsáveis, porém de diferentes maneiras.
Por exemplo, a África é uma das regiões que menos emitem gases de efeito estufa no planeta, porém são as mais afetadas. Além disso, os países desenvolvidos, que foram os que se beneficiaram de um modelo que é responsável pelo aquecimento, deveriam contribuir bem mais para a resolução do problema. Isso inclui em especial a transferência de tecnologia, capacitação e novos financiamentos, para além do que já existe.
Os países desenvolvidos não querem pagar o custo do financiamento ao desenvolvimento que, neste caso, implicaria numa mudança radical de modelo e com implicações políticas e de poder que vão além desta negociação. As tensões persistem nos temas de recurso e ainda se mantém longe daquilo que foi estabelecido em acordos anteriores. Porém, quando olhamos de forma mais geral o debate da cooperação financeira, vemos que esta crise está em todos os setores e em todos os espaços multilaterais.
A verdade é que os debates por aqui seguem de forma lenta e pouco transparente para o grande público, que ao fim e ao cabo, sofre as consequências das falsas soluções ou deliberações vagarosas. O mundo, na verdade, o mundo real, continua sem as respostas necessárias para os desafios que se apresentam. Ao atingirmos o pico de emissão na semana passada, ficou claro que os países e corporações estão atuando de forma irresponsável e caminhando para o rumo errado. O caminho tem mostrado mais obstáculos que deliberações efetivas.
Fica sempre a pergunta: são os debates da COP realmente capazes de frear esse rumo ao desastre socioambiental? O que vemos são soluções do tipo “Business as usual”. A roleta do tempo está girando e tudo que este processo esta indicando é que nosso planeta passará por transformações mais radicais do que vimos passando, dificultando cada vez mais a construção de uma vida justa, diversa e inclusiva. Contudo, não ter esses debates em espaços multilaterais parece um cenário pior, porque nos deixariam no absoluto desconhecimento desses atores e de suas decisões.
GDF executou apenas 16,3% do orçamento prioritário para mobilidade urbana em 2017
Por Yuriê Baptista, assessor do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc)
Ao menos na área de mobilidade urbana, o atual Governo do Distrito Federal, denominado pelo seu gestor como Governo de Brasília, se mostrou incapaz de executar o planejamento que ele próprio elaborou quando assumiu em 2015.
Durante a campanha eleitoral, o então candidato Rodrigo Rollemberg fez diversas promessas relacionadas à mobilidade urbana, a maioria destinada a melhorar o transporte público. A julgar pelos compromissos assumidos naquela época pelo governador, cuja gestão encerra este ano, o brasiliense deveria ter: VLT do aeroporto até o final da W3 norte; novas estações do metrô na Asa Sul, Ceilândia e Samambaia, e ampliá-lo até a Asa Norte; bilhete único implantado no primeiro ano de gestão; um transporte público de melhor qualidade e uma tarifa que coubesse no bolso do contribuinte.
Todas essas promessas foram embasadas no diagnóstico da mobilidade urbana do DF que constava no programa de governo do candidato, onde se lia que o padrão de mobilidade adotado “dá claros sinais de esgotamento e tem significativos impactos negativos sobre o clima e a qualidade do ar”. O programa ainda afirmava que “é obrigação do poder público oferecer, direta ou indiretamente, alternativas ao automóvel, como calçadas e ciclovias conectadas e de qualidade, transporte coletivo eficiente, com o uso integrado de ônibus, metrô e trens urbanos e metropolitanos, a fim de avançar na transição para a economia de baixo carbono também no setor de transportes”.
Além disso, Rollemberg foi um dos candidatos que assinou as cartas-compromisso elaboradas pelo Movimento Nossa Brasília e outras organizações da sociedade civil, que cobram uma mobilidade urbana mais centrada nas pessoas, dando prioridade aos pedestres, bicicletas e ao transporte público, reduzindo as viagens realizadas em automóveis e motos, com integração do transporte público e redução da tarifa. Contudo, a realidade se mostrou completamente diferente do que foi prometido e, inclusive, planejado.
Planejamento
O Plano Plurianual (PPA), que foi elaborado em 2015 e é válido entre 2016 e 2019, dialoga com as propostas apresentadas durante a campanha e no programa de governo, e ainda traz a reflexão de que é necessário ter soluções diferentes daquelas repetidas nos últimos anos, que não se mostraram eficazes. Da mesma forma, reconhece a necessidade de uma “tarifa justa” no transporte público coletivo, que deve ser priorizado.
Vale lembrar que, ao contrário das promessas na campanha e do plano de governo, o PPA é elaborado no primeiro ano de gestão, ou seja, já com total domínio da máquina pública, permitindo que as promessas sejam adequadas a real capacidade do governo.
O PPA define cinco objetivos específicos para o programa Mobilidade Integrada e Sustentável, a saber: 1) Promover a atratividade do Transporte Coletivo por meio da integração física, operacional e tarifária; 2) Promover o transporte não-motorizado; 3) Promover a Segurança e Fluidez Viária; 4) Instalar o Brasília nos Trilhos; e 5) Fortalecer o planejamento, gestão, regulação e fiscalização do transporte público.
Estes objetivos juntos possuem 87 ações orçamentárias e 14 não-orçamentárias. O objetivo 3, ligado ao rodoviarismo, é o que mais possui ações orçamentárias definidas, num exemplo claro de que, apesar do PPA apresentar uma análise correta sobre a necessidade de inovar nas soluções, continua apostando no velho modelo de mobilidade.
Do total das ações orçamentárias do programa, 23 dizem respeito ao transporte público, 20 aos automóveis, três à bicicleta, quatro à caminhada, duas à acessibilidade, seis à manutenção da frota de veículos do governo, quatro à educação de trânsito, três à fiscalização e 68 à gestão das secretarias e órgãos do GDF (algumas ações dizem respeito a mais de uma destas categorias).
Execução
Outros dois instrumentos orçamentárias são importantes para o planejamento e execução das ações do governo: a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei Orçamentária Anual (LOA). Funciona assim: o PPA define todas as ações que serão realizadas no período de quatro anos, já a LDO define quais destas ações são prioritárias em cada um dos anos e, por fim, a LOA distribui o recurso entre as ações.
Aparentemente, a LDO foi completamente negligenciada, ao menos na área de mobilidade. Quase nada do orçamento destinado na LOA às prioridades foi executado. Das prioridades definidas em 2016, em dois terços delas nada aconteceu, nenhum centavo foi gasto. Já em 2017, mais da metade delas não aconteceram, como mostra a tabela abaixo:
Distrito Federal
Execução Orçamentária das Ações de Mobilidade Urbana 2016-2017
Prioridades da LDO
2016
2017
Orçamento executado
8,3%
16,4%
Quantidade de ações
16
19
Quantidade de ações não executadas
10
10
Para analisar a execução orçamentária da mobilidade urbana, classificamos cada uma das despesas realizadas em 2016 e 2017 de acordo com seu principal foco:
Na comparação entre os dois anos, as despesas de mobilidade tiveram uma redução de 10% em termos nominais. Apenas as despesas com mobilidade ativa e fiscalização tiveram aumento no período. Porém, estas categorias representam somente 2,94% do orçamento de 2017.
De maneira geral, fazendo uma média com a distribuição dos gastos com mobilidade nos dois anos, é possível dizer que o orçamento é dividido em gestão (48,99%) e transporte público (43,9%). Depois as ações voltadas ao automóvel (4,29%), fiscalização (2,08%), educação (0,39%) e mobilidade ativa (0,26%) completam a distribuição das despesas.
Apesar da categoria transporte público receber a maior parte dos recursos, é importante destacar que as despesas se concentraram nos gastos diretamente ligados ao subsídio da alta tarifa do DF, representando 71,1% em 2016 e 66,9% dos gastos em 2017. Os demais custos ligados ao transporte público dizem respeito à manutenção e investimento. Ou seja, se gasta mais para manter o sistema funcionando como está – de forma excludente a acentuando as desigualdades – do que para ampliar a sua capacidade e qualidade, como tinha sido prometido.
Somente a construção do Trevo de Triagem Norte, obra que expressa toda a lógica rodoviarista e ultrapassada deste governo, equivale a 35,1% das despesas ligadas aos automóveis em 2017, ou 3,6 vezes mais do que o que foi investido na mobilidade por bicicleta e a pé.
Em 2017, as despesas de mobilidade ativa foram duplicadas, sendo que a bicicleta recebeu uma atenção especial: 56% dos recursos destinados ao setor. A mobilidade a pé manteve um recurso constante nos dois anos, destinados principalmente à construção de calçadas. Enquanto a acessibilidade, graças aos investimentos para garantir a acessibilidade do Metrô, teve suas despesas quadruplicadas no período. Contudo, mesmo com aumento, a mobilidade ativa recebeu apenas 0,35% dos investimentos em mobilidade em 2017 – muito pouco para o governo que pretendia inverter a lógica da mobilidade.
O montante utilizado para educação no trânsito caiu pela metade no período, enquanto isso, o da fiscalização aumentou em 50%. Educação e fiscalização devem caminhar juntas, o que claramente não aconteceu.
Esse levantamento demonstra o quanto o governo liderado pelo governador Rollemberg não foi capaz de cumprir com praticamente nada do que prometeu, tanto na campanha quanto no planejamento anunciado no início do mandato. O transporte público, que de acordo com todas as promessas seria transformado, continuou servindo à reprodução das desigualdades. Com o agravante de que a promessa de reduzir a tarifa de forma a caber no bolso dos usuários não ocorreu, pelo contrário: os dois reajustes praticados pelo Executivo Distrital resultaram em 75% de aumento no preço da tarifa.
A mobilidade ativa, muito ligada às ideias inovadoras, foi deixada de lado. Com um investimento pífio e secretarias que não conversam entre si, os projetos voltados para a bicicleta e ao pedestre ficaram limitados. Foram realizadas pequenas intervenções isoladas que não foram capazes de mudar a lógica rodoviarista do DF.
Muito mais do que prometer e fazer um discurso bonito, é necessário que os gestores de fato realizem o que prometeram entregar. Em uma das cartas compromisso que o governador assinou, ele se comprometeu a elaborar um programa com indicadores e metas quantitativas, que deveria ser apresentado ao final do terceiro mês de cada ano. Mais compromissos assumidos que não foram cumpridos e que, caso o fossem, iriam contribuir para uma verdadeira transformação do Distrito Federal, com soluções inovadoras.
Cortes orçamentários afastam país de educação pública de qualidade para todos
Por Cleo Manhas, assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc)
Recentemente, a reitoria da Universidade de Brasília (UnB) expôs publicamente a difícil situação financeira na qual a instituição se encontra. Na esteira da crise econômica e política atual e o consequente regime fiscal – que tem na Emenda Constitucional 95 sua medida mais extrema – o caso da UnB não é isolado e pede uma análise mais detalhada sobre o orçamento público destinado ao ensino superior.
Geralmente, o que acontece é que as despesas executadas pelo governo são menores dos que os recursos aprovados na Lei Orçamentária Anual. Por exemplo, em 2015, o montante executado relativo ao ensino superior ficou abaixo dos R$ 40 bilhões aprovados. Ao longo dos anos, essa “inexecução orçamentária” tem aumentado – o que nos leva a crer que um valor ainda menor será executado em 2018.
Soma-se a essa situação o fato de que, neste ano, o recurso autorizado para o financiamento do ensino superior foi de apenas R$38 milhões. As receitas destinadas à garantia de bolsas de estudo seguem a mesma tendência de queda, como mostra o gráfico abaixo.
O caso da UnB é ilustrativo desse quadro de contingenciamento de gastos: a universidade recebeu o mesmo recurso (R$ 1,3 bilhão[1]) entre 2015 e 2018, a despeito da ampliação dos custos neste período. Vejamos o histórico da Universidade em números:
Entre 2006 e 2016, a quantidade de cursos saltou de 63 para 155, sendo que chegou a 161 em 2013 e, de lá para cá, vem sofrendo pequenas quedas. Em 2006, as vagas anuais eram de 4.921 e, em 2016, chegaram a 8.424 – ou seja, em 10 anos, as vagas praticamente dobraram. O motivo dessa ampliação foi um programa chamado REUNI (Reestruturação e Expansão das Universidades Federais) que expandiu campus, vagas, bolsas, cursos de pós-graduação, programas de cotas, ampliando a população negra, não só na UnB, mas em todo o Brasil.
Outro dado é importante de se conhecer: em três décadas, o número de concluintes na UnB saltou de 15.462 (de 1988 a 1997), para 51.200 (de 2008 e 2016) – mais que o triplo. No entanto, com a retração drástica de recursos, provavelmente, esse avanço não se repetirá, mesmo com o aumento na demanda por vagas nos próximos anos. A instituição anuncia um déficit orçamentário de R$ 92,3 milhões para este ano e as previsões são catastróficas para os próximos meses: demissões e aumento do preço da refeição no restaurante universitário são algumas das medidas anunciadas para garantir o funcionamento da universidade.
Assim como as universidades, os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs) também tiveram cortes de orçamento. Considerados uma das boas novidades dos últimos anos na área da educação, os IFs sofreram queda de 14% no investimento este ano, de acordo com o Ministério da Educação (MEC).
Além das graves consequências dos cortes orçamentários para o ensino superior, percebe-se que as demais metas do Plano Nacional de Educação (PNE) não serão cumpridas. A ampliação do número de creches, por exemplo, ficará na saudade, já que a manutenção dos recursos em patamares tão baixos não permitirá investimento para suprir a enorme demanda. Outra meta que não será cumprida é a ampliação do investimento geral em educação, tendo em vista os enormes desafios que ainda temos, como a implantação do valor do CAQi (custo/ aluno qualidade, inicial) previsto também no PNE, que ampliaria o custo aluno/ano no Fundeb, de acordo com a etapa escolar cursada.
Para termos uma ideia do que está sendo discutido pelas forças políticas do pós-golpe no tema da Educação, basta lermos o relatório apresentado em novembro de 2017 pelo Banco Mundial, a pedido do governo brasileiro.
Com relação ao ensino superior, ele nos dá várias pistas que em alguma medida explica a retirada de recursos. Há uma comparação rasteira entre universidades públicas e privadas, afirmando que o custo/aluno nas privadas é bem mais baixo que nas públicas, mas sem explicar que as universidades públicas fazem extensão e pesquisa, e possuem ensino de melhor qualidade.
Aliás, até admitem a maior qualidade do ensino quando dizem que os estudantes das públicas se saem melhor nos exames padrões que os das privadas. Mas esquecem de dizer que há um acúmulo anterior que vem da qualidade da educação básica e das condições de vida de cada um e do grupo. Em geral, nas universidades privadas estudam maior número de pessoas vindas do ensino público, de responsabilidade do Estado, que deveria ser de qualidade, mas não é.
O relatório afirma que a educação básica é progressiva e o ensino superior público é regressivo, pois privilegia um grupo com melhor renda e oportunidades, manipulando o argumento em favor da privatização do ensino – que é o que querem e defendem ao encomendar um relatório dessa natureza. Mas não apresentam a solução que de fato contribuiria para a redução das desigualdades: maior qualidade para a educação básica, incluindo todos e todas no ensino superior público, que por seu lado, deveria oferecer mais vagas, especialmente para o público das políticas de cotas e para pessoas oriundas de escolas públicas.
Estamos atravessando um momento difícil de defesa de direitos, não apenas na ausência de recursos orçamentários necessários, mas na ausência de espaços democráticos de diálogo e mobilização. E fala-se muito da agenda 2030 e seus “Objetivos do Desenvolvimento Sustentável”, que não são nem um pouco ambiciosos e até rebaixam o patamar de nossas lutas por direitos humanos, mas, provavelmente, com esse cenário, o objetivo 4, que diz respeito à educação de qualidade, dificilmente será alcançado.
[1] Dados disponíveis no Siga Brasil referente aos recursos federais destinados à UnB
A África do Sul de 1960 e o Brasil de 2018: processo genocida em curso
Por Layla Maryzandra, educadora social do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc)
Manhã de 21 de março 1960, cidade de Sharpeville, a África do Sul. Pelo menos 20 mil negros sul-africanos foram brutalmente atacados pela tropa do Exército durante uma manifestação pacífica contra a Lei do Passe, que limitava o trânsito de negros por determinados lugares, obrigando-os a andar com uma caderneta na qual estavam delimitados os locais por onde tinham permissão de circular.
O resultado de um dos maiores massacres do regime do Apartheid naquele país, junto ao que ocorreu no Levante de Soweto em 1976, foi 69 mortos e cerca de 180 feridos. O caso ficou conhecido como o Massacre de Sharpeville e, como tantos outros atos de violência que ocorreram no país, estava regulamentado por políticas de segregação racial vigentes no regime que durou 44 anos (1948 – 1994), e começou quando o Partido Nacional ascendeu ao poder, com um governo composto, em sua maioria, por brancos.
O Massacre de Sharpeville fez com que a Organização das Nações Unidas (ONU), proclamasse o 21 de março como o Dia Internacional para a Eliminação da Discriminação Racial, em memória das vítimas e acentuando a condenação do racismo aonde quer que ele exista.
É notório que o Atlântico Negro, seja nas Américas ou no Continente Africano, foi calcado por massacres históricos que tinham como objetivo o extermínio da população colonizada/governada por uma minoria que mantém o poder.
Intelectuais e ativistas ligados ao movimento negro defendem que ainda está em curso um processo de genocídio negro no Brasil. Abdias Nascimento, em seu livro Genocídio do Negro Brasileiro (1976), relata a forma mascarada de como funciona o racismo neste país, que muito se assemelha a um apartheid maquiado. Na conclusão do texto ele cita: “hoje estamos na rua numa campanha de denúncia! Campanha contra a discriminação racial, contra a opressão policial (…). Estamos nas ruas para denunciar as péssimas condições de vida da Comunidade Negra (…)”.
Essa frase me traz à memória os mesmos gritos de denúncia ouvidos entre os dias 13 a 17 de março deste ano, nas marchas ocorridas no Fórum Social Mundial em Salvador, em destaque a Marcha das Mulheres Negras e a Marcha em memória da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Pedro Gomes, que foram executados no centro do Rio de Janeiro, em 15 de março.
Os dados do Mapa da Violência de 2015 e do Dossiê Mulher do mesmo ano, também engrossam o coro desse tipo de denúncia. Nas últimas décadas houve um crescimento da violência letal – tanto contra a juventude negra, que aumentou mais de 30%, como em relação às mulheres negras, chegando a cerca de 54%. Esses dados caracterizam os atos de violência como crimes de genocídio.
No atual contexto em que o país se encontra, o dia Internacional Contra a Discriminação Racial é marcado por manifestações que eclodem contra a falta de reparação histórica do Estado brasileiro, o contínuo genocídio que nos acomete, e contra a avalanche de retrocessos de direitos, seja nas pautas de gênero, raça ou classe. É possível observar o mesmo cenário em vários países.
Em suma, é perceptível que o racismo se instrumentaliza de forma bem engendrada e que a violência e intimidação policial é um braço forte que nos aniquila, seja nos massacres da África do Sul, nos Estados Unidos, no Brasil, ou em qualquer lugar aonde o racismo ainda atue de forma latente.
Sigamos então resistentes em nossas marchas, ressignificando nossas lutas, e parafraseando Abdias de Nascimento: se ele se reconhece como um sobrevivente da República de Palmares, também nos reconhecemos, na perspectiva da diáspora, como sobreviventes de Sharpeville.
Por Leila Saraiva, assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc)
Em entrevista gravada no dia 11 de março, três dias antes da execução de Marielle Franco, uma militante de Acari conhecida como Buba relata os episódios de violência policial constante que sua comunidade tem sofrido. O vídeo começa com áudios de whatsapp trocados por moradores/as de Acari, seguidos por imagens que registram o barulho ininterrupto de tiros.
Buba nos conta que essas imagens e áudios foram registrados no dia anterior, 10 de março, quando policiais do 41º Batalhão da Polícia Militar (também conhecido como batalhão da morte, responsável por 112 mortes apenas em 2017 e por nove assassinatos no recém iniciado 2018) invadiram a comunidade, entrando em casas, quebrando portões e móveis, fotografando rostos e documentos de seus/as moradores/as. Os mesmos policiais faziam questão de gritar pelas ruas de Acari: “Só vamos embora quando matarmos dois ou três, por aí”. Buba arremata: “A impressão que nos dá é que com a intervenção, os policiais estão se sentindo – sempre se sentiram -mas agora estão se sentindo muito mais à vontade pra fazer o que estão fazendo”.
Talvez o relato acima não emocione, não choque. Talvez essa história seja uma daquelas que figuram no âmbito do normal, o Estado natural das coisas. Violências que ocorrem a corpos negros/as e pobres, daqueles que são feitos invisíveis, do sangue derramado de todo dia e que constituem o que chamamos de Brasil. O problema, aliás, é exatamente esse. E Marielle Franco sabia bem disso.
Marielle trazia na pele negra e na vida feita na favela as marcas dessa história que insiste em se repetir. Aqui, vou me furtar a relatar sua trajetória, construída num driblar contínuo de estatísticas: muitas companheiras a essa altura já o fizeram, com mais propriedade e poesia do que eu seria capaz ( Ver, por exemplo, texto de Givânia Maria da Silva). Acima de tudo, me furto porque Marielle (ou o povo negro) não precisa(m) de mim para isso. Como ela mesma disse, no evento feito por e para mulheres negras que movimentam as estruturas e que precedeu sua execução: “a gente que tá morrendo, é nosso povo que está morrendo”. Somos nós, donos/as daqueles corpos que não morrem, que precisamos saber escutar.
Um dos absurdos dessa história toda, quiçá menor, diante de tantos, é justamente saber que uma parte considerável de nós tenha convivido sem maiores arroubos com o extermínio contínuo e crescente do povo negro. Que tenhamos nos furtado a levar a sério números como o que nos diz que a cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras. Que a cada 23 minutos, um jovem negro é morto no Brasil. Que, enquanto a taxa de feminicídio de mulheres brancas caiu entre 2003 e 2013, entre mulheres negras ele aumentou 54% no mesmo período. (dados disponíveis em: http://www.mapadaviolencia.org.br/). Que, ainda nesse mesmo contexto, são as mulheres negras que proporcionalmente a sua renda mais pagam impostos no país.
Desta forma, é um total disparate que seja a execução sumária de Marielle Franco que nos faça finalmente olhar para o que há muito está estampado em nossa cara, quando deveríamos ter escutado sua voz viva e forte que, junto a outras tantas, gritava contra esse genocídio.
Não se trata de negar aqui que o assassinato de Marielle leva tudo isso a outras proporções. Trata-se, além de mais um trágico episódio dessa narrativa estruturante de nosso país, também de um homicídio político, como bem ressaltou a socióloga e coordenadora do Observatório da Intervenção, Silvia Ramos. O importante é entender que o caráter político dessa execução não a torna exceção do extermínio do povo negro, mas o incrementa: a bala veio com endereço certo, como costumam acontecer com as que são disparadas em nosso país.
Não creio que possamos ter, ainda, a dimensão do que esse assassinato significa. Não sabemos ainda quais recados virão junto com ele. As marchas que no dia 15/03 tomaram conta do país, em luto e luta por Marielle e pelo povo negro, podem significar um lampejo de esperança, a possibilidade de que, finalmente, as vidas de corpos que historicamente consideramos matáveis passem, de fato, a importar. Por outro lado, o governo ilegítimo tenta usar de forma pérfida o episódio para passar sua própria mensagem: afirma que a morte de Marielle mostra que o país caminha no rumo certo, tentando consolidar a intervenção no Rio de Janeiro e, quem sabe, outras medidas – símbolos daquilo contra o qual Marielle lutou. A verdade é que, a essa altura, ainda não temos ideia do que virá.
É possível que a repressão deixe de tocar apenas os de sempre e volte a bater nas portas da classe média, como muito de nós passamos a temer, pois que o assassinato de Marielle também não nos deixa esquecer os tempos em que políticos e políticas do campo da esquerda brasileira eram mortos em circunstâncias misteriosas. A preocupação com o endurecimento do regime precisa estar em nosso horizonte, inclusive porque a democratização da repressão não salva corpos negros/as: a violência continua operando na mesma estrutura racista. O problema não está na nossa preocupação com essa possibilidade, mas que apenas nos preocupemos com ela. Se o regime segue aberto para nós, voltaremos à normalidade? Seguiremos ignorando que o massacre está em curso?
“Não serei interrompida, não aturo interrupção”, declarou Marielle, em seu pronunciamento no dia internacional das mulheres. Precisamos escutá-la e aprender a como lutar a seu lado. Quem quer de nós que continue assistindo sem se mover a esta que é a forma mais brutal de interrupção – o corte seco e sem chance de defesa da vida de Marielle e Anderson, motorista que a acompanhava – continuará cúmplice deste projeto de nação. Anderson, presente! Marielle, presente!
Orçamento 2018: Funai respira, mas não se recupera
Se observado desde a perspectiva fria dos números, pode-se afirmar que em 2018 houve uma melhora de recursos para as políticas públicas indigenistas a cargo da Funai. O orçamento autorizado para o órgão neste ano é de R$ 596,90 milhões, frente aos R$ 548,65 milhões autorizados em 2017[1].
Contudo, esse ganho de R$ 48 milhões não é capaz de recompor a capacidade orçamentária da Funai, que segue como uma das mais baixas dos últimos 10 anos. Além disso, é preciso entender onde o recurso será alocado e se existem condições para ele ser executado, principalmente em uma conjuntura de desmonte do órgão e de “teto de gastos”.
Abaixo, apresentamos algumas lentes de observação que podem ajudar a entender melhor a questão:
Em termos de grupos de despesa (gastos com pessoal, gastos com outras despesas correntes, gastos com investimentos e gastos com inversões financeiras), o aumento observado está densamente localizado em “outras despesas correntes”, com acréscimo de quase R$ 47 milhões em 2018, em comparação com 2017.
Se analisarmos mais a fundo esta categoria “outras despesas correntes”, veremos que as despesas que mais cresceram foram as vinculadas à execução do programa orçamentário finalístico da Funai: “Proteção e Promoção dos Direitos dos Povos Indígenas”. Neste Programa, estão as ações que configuram a expressão orçamentária da Política Pública indigenista: 1) Demarcação e Fiscalização de Terras Indígenas e Proteção dos Povos Indígenas Isolados; 2) Gestão Ambiental e Etnodesenvolvimento; 3) Promoção dos Direitos dos Povos Indígenas de Recente Contato; 4) Direitos Sociais e Culturais e à Cidadania; 5) Preservação Cultural dos Povos Indígenas.
No total, as despesas previstas com este conjunto de ações tiveram um aumento de R$44,6 milhões em 2018. São elas que tornam a política pública mais visível aos olhos dos povos indígenas, por isso são comumente denominadas ações finalísticas. As ações garantem, por exemplo, a contratação de laudos antropológicos para subsidiar processos de demarcação, a compra de combustíveis para carros e embarcações utilizadas para o trabalho de fiscalização das Terras Indígenas, ou, ainda, o apoio a projetos de processos educativos indígenas.
O gráfico abaixo evidencia o comportamento orçamentário de cada uma das ações nos últimos três anos. São as ações de “Demarcação e Fiscalização de Terras Indígenas e Proteção dos Povos Indígenas Isolados” e “Gestão Ambiental e Etnodesenvolvimento” que responderam por quase todo o crescimento do orçamento finalístico da FUNAI: a primeira, com um ganho de R$ 25,3 milhões e a segunda com um ganho de R$ 19,6 milhões.
As “despesas de pessoal” tiveram, por sua vez, um aumento de apenas R$ 5,5 milhões, sinalizando a manutenção do atual quadro de funcionários – que é muito precário e um dos muitos gargalos da Funai. Importante lembrar que em 2017 houve um corte de quase 20% do corpo técnico do órgão. Foram eliminados 87 cargos comissionados, desmonte que atingiu principalmente a Coordenação Geral de Licenciamento (CGLIC) e as Coordenações Técnicas Regionais (CTLs), áreas estratégicas responsáveis pela análise dos impactos de grandes empreendimentos em terras indígenas, além de fazer o trabalho de receber e levar demandas dos povos indígenas ao poder público. Mesmo com esse corte significativo, as despesas com pessoal consumirão 69,5% de todo o orçamento da Funai em 2018 o que evidencia, ainda mais, o quadro de penúria do órgão.
Por fim, há que se notar o aumento sem perder de vista o cenário prospectivo. O gráfico abaixo oferece uma análise em perspectiva do orçamento 2018 e mostra que, em termos reais, o aumento no orçamento total para 2018 é pouco expressivo e não permite a superação do desastre que acometeu o órgão nos dois últimos anos, mantendo a capacidade orçamentária da Funai como uma das mais baixas dos últimos 10 anos.
Além disso, embora o aumento de recursos para programas finalísticos seja uma “boa notícia”, o fato é que a Funai seguirá com severas dificuldades operacionais em 2018, sobrepostas às dificuldades e pressões políticas, o que tende a comprometer sua capacidade de executar o orçamento mesmo sendo ele tão reduzido. Isto aconteceu claramente em 2017. Somente 63,8% do orçamento autorizado para o Programa de “Proteção e Promoção dos Direitos dos Povos Indígenas” foi executado, já incluindo aí os chamados “restos a pagar”, que são aqueles compromissos de pagamento derivados de anos anteriores. Se considerado somente o que foi pago de compromisso assumido em 2017, a Funai conseguiu executar somente 44% do recurso que, teoricamente, tinha disponível. Isto porque, além do desmonte institucional, como já mostramos em outras notas, em 2017 os recursos da Funai também foram severamente comprometidos com os cortes orçamentários (contingenciamentos) que tiraram R$ 60,7 milhões de recursos do órgão, comprometendo principalmente as ações finalísticas.
A Política Indigenista, assim como as demais políticas públicas e o orçamento público federal para 2018, sofre visivelmente a influência do Teto dos Gastos e da ideologia da austeridade fiscal sustentada pelo governo federal e incentivada pelo Banco Mundial. A fragilidade institucional e orçamentária da Funai é, também, reflexo da influência, por dentro do Estado, de pressões políticas de grupos de interesse que estão de olho no controle de terras e recursos naturais.
Nesse contexto, embora possa parecer alentador um aumento de recursos para a Funai, dificilmente este ganho se reverterá em alguma melhora efetiva na vida dos povos indígenas.
[1] – Optamos por utilizar os dados do orçamento inicial (dotação autorizada na Lei Orçamentária) em cada ano para buscar uma maior equivalência com o orçamento inicialmente aprovado em 2018. Ao longo do ano o orçamento sofre alterações seja em função de cortes (contingenciamento) seja em função da abertura de créditos que ampliam (marginalmente) a dotação autorizada. Em 2017 a Funai iniciou com um orçamento de R$ R$ 548,65 milhões, mas ao longo do ano este orçamento foi levemente ampliado alcançando R$ 560,15 milhões.
Para avaliar políticas públicas, inclusive a política fiscal, utilizamos alguns “testes” fundamentados em princípios internacionais de direitos humanos que constam na Metodologia “Orçamento e Direitos”, desenvolvida pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). Com base nesta metodologia, colocamos à prova a Emenda Constitucional nº 95, também conhecida como “Teto dos Gastos” , “PEC do fim mundo” ou ainda “Novo Regime Fiscal”.
A emenda, que completa um ano hoje (15/12), congela por vinte anos as despesas primárias, onde estão inscritos os investimentos em políticas públicas promotoras de direitos humanos, econômicos, sociais, culturais e ambientais. Nos cinco testes realizados, abaixo detalhados, a EC 95 falhou em todos.
1. Financiamento do Estado com Justiça Fiscal
A política fiscal envolve tanto a forma como o Estado se financia (arrecadação tributária) quanto a forma como realiza despesas desse orçamento público. Esse primeiro teste avalia a arrecadação tributária e nele o Brasil falhou, porque seu sistema tributário é extremamente regressivo.
Isso ocorre porque a maior parte dos tributos são indiretos. Incidem sobre o consumo, pesam mais sobre quem ganha menos. Já em países mais desenvolvidos, a maior parte dos tributos são sobre a renda, progressivos, como demonstrado no Gráfico 1.
Gráfico 1: Composição da carga tributária, em %
Fonte: OCDE
Como os tributos sobre o consumo não levam em consideração a capacidade contributiva de cada pessoa, proporcionalmente eles acabam pesando mais sobre quem ganha menos. Estudo do Ipea demonstrou que entre os 10% mais pobres, a carga tributária é de 32%, enquanto entre os 10% mais ricos, a carga tributária é bem menor, de 21%.
Quando detalhamos mais quem compõe cada um desses grupos, observamos que entre os 10% mais pobres, a maioria é de mulheres negras e entre os 10% mais ricos, a maioria é de homens brancos. O resultado disso é que são as mulheres negras pobres quem mais pagam proporcionalmente tributos no Brasil, conforme atesta estudo do Inesc.
Com um sistema tributário tão regressivo, os efeitos positivos dos investimentos sociais em políticas públicas promotoras de direitos são praticamente inviabilizados. Numa comparação internacional realizada pelo Monitor Fiscal do FMI, o Brasil está em uma das piores posições na capacidade da sua política fiscal reduzir desigualdades.
O resultado disso é que o Brasil segue como um dos países mais desiguais do mundo – um país onde apenas seis homens concentram a mesma riqueza que 100 milhões de brasileiros mais pobres (dados da Oxfam Brasil). Para obter não apenas uma nota melhor na avaliação, mas também uma melhora no equilíbrio fiscal, é essencial que o Brasil, em vez de congelar gastos públicos, realize uma reforma tributária com justiça fiscal, onde quem ganha mais, contribui mais. Exatamente o oposto do que o atual governo fez com a EC 95. O que deve ter teto é a desigualdade, reforçada pela atual forma de arrecadação tributária injusta e ineficiente.
2. Uso máximo de recursos disponíveis
Os Estados signatários do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) comprometem-se a adotar medidas, principalmente nos planos econômico e técnico, utilizando o máximo de seus recursos disponíveis, que visem assegurar, progressivamente, por todos os meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no Pacto, incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativas.
O Brasil também está reprovado nesse teste, porque a EC 95 adota um princípio contrário: o “uso mínimo de recursos disponíveis”, uma vez que coloca um teto para as despesas sociais, mas deixa completamente liberadas as despesas financeiras. A consequência disso é que o país tem experimentado uma expressiva transferência de recursos públicos de programas sociais relevantes para os serviços da dívida pública – o que significa uma redistribuição inversa e sem precedentes dos recursos públicos destinados às populações vulneráveis para as mais ricas, como podemos ver no Gráfico 2.
Gráfico 2: Variações orçamentárias nominais de programas selecionados do Brasil, 2014-2017
Por meio de uma análise minuciosa do orçamento, de seus objetivos e resultados, conseguimos avaliar se o direito que a política pretende garantir está progredindo ou regredindo. As três políticas públicas avaliadas falharam no teste, uma vez que sofreram importantes cortes orçamentários e perda de resultados, efeitos do primeiro ano de vigência da EC 95. Nesse cenário, o Brasil corre sério risco de voltar para o Mapa da Fome, deixar pessoas sem acesso a medicamentos e mulheres vítimas de violência desprotegidas.
A título de ilustração vejamos o que aconteceu com o Programa de Aquisição de Alimentos. O Gráfico 3 revela a brutal queda de recursos que o programa sofreu e seus efeitos na diminuição do número de agricultores beneficiados por região.
Gráfico 3: Quantidade de agricultores beneficiados por região; dotação e execução orçamentária
Fonte: SigaBrasil e PAA Data | Elaboração: Inesc *Orçamento executado e beneficiários em 2017 correspondem a uma projeção anual baseada na tendência de gasto até junho de 2017
4. Não discriminação
Para combater a discriminação e promover uma sociedade mais justa, igualitária e solidária, o orçamento de um governo pode e deve incorporar o combate às discriminações em relação à gênero, raça, etnia, casta, região, deficiência, migração, etc.
Nesse teste, a EC 95 também não passa, pois os cortes orçamentários estão sendo feitos de forma discriminatória. Por exemplo, nas políticas de combate à violência contra a mulher os cortes afetaram desproporcionalmente as mulheres mais pobres, negras e jovens (entre 18 e 30 anos), já que tanto os casos de violência doméstica quanto de homicídios as atingem mais.
O desmonte do PAA decorrente das medidas de austeridade atingiu especialmente os grupos mais vulneráveis do campo e da floresta, que antes eram beneficiados pelo estímulo à produção e comercialização de seus produtos alimentares: indígenas, quilombolas, ribeirinhos, comunidades tradicionais, e mulheres. Por fim, os cortes seletivos no orçamento do programa Farmácia Popular, eliminando a rede pública do programa, afetaram o acesso da população mais vulnerável aos medicamentos essenciais. Isso porque muitos municípios brasileiros são extremamente pobres e não despertam o interesse da rede privada de farmácias.
5. Participação social
O Brasil, que chegou a alcançar o 6º lugar no Índice de Orçamento Aberto (OBI, na sigla em inglês) em 2015 está piorando também no quesito participação social. Junto com os cortes orçamentários impostos pela EC 95, vieram os cortes de informação. O Relatório do Disque 180 – Central de Atendimento à Mulher, que deveria ter sido publicado em junho, ainda não está disponível para acesso público. Dados sobre a rede de serviços especializados para mulheres vítimas de violência de 2017 também não estão online. No PAA, os dados de 2017 sobre beneficiários não constam no PAA Data. E os dados sobre farmácias do SAGE – Sala de Apoio a Gestão Estratégica do Ministério da Saúde também foram reduzidos. Nos três casos, para obter informações para o estudo “Direitos Humanos em tempos de austeridade”, foi necessário recorrer à Lei de Acesso a Informação.
Igualmente grave é que todos esses cortes orçamentários e mudanças nas políticas foram feitas sem consulta aos Conselhos das políticas de cada uma dessas políticas, como o Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres (CNM), o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea) e o Conselho Nacional de Saúde (CNS).
A EC 95 está reprovada por não se encaixar em nenhum aspecto dos princípios internacionais de direitos humanos, nem permitir cumprir os compromissos assumidos perante as Nações Unidas relativos aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Essa é a razão pela qual a EC 95 deve ser revogada, para que o Brasil volte a cumprir seu objetivo de Nação previsto na Constituição Federal, o de construir uma sociedade livre, justa e solidária; com erradicação da pobreza e redução das desigualdades.
Direito ao meio ambiente não se negocia
Tú no puedes comprar el viento
Tú no puedes comprar el sol
Tú no puedes comprar la lluvia
Tú no puedes comprar el calor
(Latinoamérica; Calle 13)
No Brasil, assim como em muitos outros países e lugares deste planeta, a semana de direitos humanos deveria ser um bom momento para nos alimentar de balanços e reflexões que são urgentes. Uma visão retrospectiva nos reforça a noção de que os direitos humanos são uma construção histórica. Pessoas foram e são presas, assassinadas, coagidas e torturadas apenas por lutarem por liberdade e por uma sociedade mais justa. A luta pelos direitos humanos é, assim, uma batalha permanente em favor da emancipação e da autonomia de homens e mulheres contra a opressão, as injustiças, pelo reconhecimento de suas identidades, pelo direito à vida e à liberdade.
O contexto em que vivemos hoje, de múltiplas crises – climática, econômica, institucional, política e moral – combinadas em escala global, nacional e local, nos mostra o quanto esta batalha é atual e ainda mais essencial na longa trajetória de construção do que queremos ser como humanidade. Nos mostra também a importância de estarmos atentos e sermos resistentes aos retrocessos e à desconstrução de direitos. Isto exige um esforço tremendo, não só porque são muitas as ameaças nesse sentido, mas também porque algumas são sutis.
A Constituição Brasileira de 1988 formulou muito bem o direito ao meio ambiente, como consta em seu Artigo 225:
“Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.
Este direito está hoje sob ameaça explícita quando se tenta, por exemplo, aprovar uma Nova Lei de Licenciamento que flexibiliza os requisitos e regras para concessão de licenças que impactam, muitas das vezes de forma irreversível, o meio ambiente e a vida das pessoas. Ou quando se tenta fragilizar outras legislações, instituições e políticas socioambientais vigentes que garantem o domínio de povos indígenas, quilombolas e assentados, entre outros, sobre suas terras e territórios. Enfim, as ameaças explícitas são muitas e vem de muitos lados.
Mas existem ameaças que aparecem disfarçadas de solução para a preservação do meio ambiente e que são igualmente perigosas. É o caso da tentativa de inclusão das florestas em mecanismos de compensação de carbono (offsets), como parte dos esforços globais para redução de emissões de gases de efeito estufa assumidos multilateralmente no âmbito da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas. Em resumo, trata-se de colocar um preço no carbono retido por florestas e, depois, vendê-los para países e setores que não conseguirem cumprir com seus próprios compromissos de redução de emissões.
Mecanismo tão engenhoso tem sido propagado por grupos de interesse político e econômico como solução efetiva para os países que detêm amplas extensões de floresta tropical, como o Brasil, conseguirem recursos necessários para protegê-las. O argumento subjacente é o de que os Estados disponibilizam pouco orçamento para esta proteção e, em tempos de austeridade fiscal, os recursos são ainda mais escassos. Apresenta-se assim um lugar mais “vantajoso” para buscar dinheiro – o mercado – como se isto não tivesse consequências para todos nós.
Diante desse cenário, na semana de direitos humanos vale reforçar como argumento contrário a esta solução financeira para proteção de florestas um valor e uma ideia muito simples que deveriam ser caros ao processo de construção da nossa humanidade: não se pode colocar preço em tudo.
Construindo saídas de emergência: formação e educação popular para assegurar direitos
Que o cenário brasileiro não anda bem para os direitos humanos, infelizmente, não é mais novidade. O avanço das políticas neoliberais, calcadas em restrições de direitos e manutenção de privilégios dos setores mais ricos, só não nos desespera mais do que a nossa dificuldade em resistir a esses inúmeros ataques. Diante dessa conjuntura aterradora, as leituras melancólicas se multiplicam, muitas vezes nos deixando ainda mais paralisadas e, portanto, com mais dificuldade de organizar a mobilização necessária.
Para quebrar este ciclo vicioso, faz-se necessário ir à direção contrária. Diante do esgarçamento institucional que vivemos e dos constantes retrocessos, o que nós – os que apostamos na realização progressiva dos direitos humanos – precisamos fazer é investir em alternativas fundamentadas no poder popular. No lugar do desespero, o fortalecimento de laços comunitários; em vez da retaguarda, a aposta na política de base e nos movimentos sociais como forças propulsoras. Para construir essas que podemos chamar de “saídas de emergência”, as possibilidades são diversas.
Optamos, como Inesc, por investir nos processos transformadores da educação popular como uma das nossas prioridades. Há alguns anos, construímos a metodologia “Orçamento e Direitos” com o objetivo de oferecer formação aos diversos públicos, de crianças a adultos, com base nos Direitos Humanos e a partir do trabalho de acompanhamento do orçamento público, que já desenvolvíamos. Para tal, nos referenciamos no PIDESC (Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais, Culturais), adotado na XXI Assembleia da ONU, em 1966, e ratificado pelo Brasil, em sua legislação, em 1992.
De acordo com o Pacto, os Estados nacionais devem se comprometer a utilizar o máximo de recursos disponíveis para a garantia dos direitos e combater as descriminações estruturais, como as de raça e gênero. A esses pilares, acrescentamos ainda o assegurar da justiça fiscal, a realização progressiva de direitos e a participação popular. Em conjunto com parceiros e movimentos sociais, discutimos cada uma dessas proposições, de modo a analisarmos as políticas públicas e seus respectivos orçamentos. Foi desse diálogo que nasceu nossa metodologia de análise, que esse ano passou por uma cuidadosa reformulação, pautando os processos formativos por nós oferecidos.
Nosso principal objetivo com essa nossa metodologia é apresentar uma ferramentas que possibilite enxergar por outras lentes o que os diversos governos estão propondo (ou não) como políticas para viabilizar direitos. Ao nos debruçarmos sobre os elementos dessas políticas a partir desse olhar, também construímos o entendimento de que temos de participar da formulação das políticas e apresentar o que julgamos necessário para garantir o bem-viver a todas as pessoas, com especial atenção aos grupos marginalizados, que sofrem inúmeras violações de direitos por parte do próprio Estado.
Seguindo as premissas da educação popular, acreditamos que para assegurar direitos precisamos de formação libertadora, calcada na autonomia das sujeitas e sujeitos de direitos. Desta forma, partimos dos conhecimentos prévios dos sujeitos, emergidos de seus cotidianos, que alimentam os processos formativos, como temas geradores. Além disso, a forma como pensamos os processos formadores deve em si mesmo servir como estratégia para o incentivo à participação popular.
Em consonância com essas reflexões e com a atual necessidade de construir as saídas de emergências, ao longo de 2017 realizamos formações com diversos públicos, em todas as regiões do país. Além de crianças e adolescentes de escolas públicas e sistema socioeducativo, com os quais já trabalhamos há algum tempo, houve oficinas com as redes de bibliotecas comunitárias, com agricultores familiares organizados na Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), com povos indígenas ligados à Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e com movimentos por direito à cidade, vinculados à Rede Cidades. Dialogamos sobre políticas de cultura, educação, saúde indígena, agricultura familiar, mobilidade urbana. Esses processos fortaleceram movimentos e reforçaram os laços das redes, possibilitando que, juntos, conseguíssemos problematizar conteúdos antes tidos como de difícil acesso.
As avaliações que até agora tivemos das oficinas realizadas nos trouxeram alguns depoimentos importantes sobre o caminho escolhido. “A forma de compartilhamento favorece o fortalecimento de vínculos”; “ter oportunidade de partilhar ideias e mostrar que temos objetivos em comum”; “incentivo à participação”, “método de integração” e “abordagem complexa e interativa, garantindo aprendizagens de conteúdos áridos”, são alguns dos retornos recebidos.
Para além da nossa satisfação com o que temos escutado, sabemos que os frutos a serem colhidos desses diversos processos são de médio e longo prazo. O que esperamos dessa aposta nas formações a partir da metodologia “Orçamento e Direitos” é uma maior incidência no ciclo das políticas públicas e a afirmação da atuação em rede para fortalecer as lutas. Colaborar para uma participação popular consolidada e consistente, que abra caminhos e trincheiras para barrar os retrocessos, criando possibilidades de transformação: essa tem sido uma das nossas tentativas de contribuição para sairmos desse cenário melancólico em que nos encontramos.
Racismo institucional: a triste realidade de quem paga impostos e não recebe retorno algum
Em artigo publicado em 2014, afirmamos que a “Casa Grande” havia se “renovado” nas eleições, considerando o perfil de eleitos e eleitas para a Câmara e o Senado, com menos de 10% de mulheres, menos de 4% de negros, pouquíssimos jovens e nenhum indígena. Pois bem, três anos depois, podemos afirmar que, mais que uma metáfora, uma realidade: o projeto de poder em curso desde o golpe é completamente perverso para a população negra brasileira, que ainda experimenta os piores indicadores sociais, e tende a retroceder nos pequenos avanços alcançados em tempos recentes.
Chamamos a este cenário de “projeto de poder”, porque combina diversas medidas que afetam e afetarão a população por muitos anos. Proponho agregar dois adjetivos a este projeto: ele é machista e racista. Isso porque os mais impactados são as populações negra, indígena e os povos e comunidades tradicionais, entre eles, os quilombolas.
O governo fala em “corte de gastos”, mas a redução orçamentária acontece de forma seletiva. Houve aumento de recursos para pastas que beneficiam determinadas áreas, como o agronegócio e a mineração, e redução drástica para políticas sociais. E é essa combinação que se torna tão perigosa para os negros, negras e indígenas. Vejamos alguns exemplos:
Mais recursos para mineração e menos para quem é afetado por ela
O orçamento do Ministério de Minas e Energia aumentou em 75% (R$4,04 bilhões em 2017 para R$ 7,06 bilhões em 2018), enquanto houve redução para agricultura familiar (36,3%)[i], igualdade racial (31,3%)[ii], indígenas (5,9%)[iii] e meio ambiente (12,2%)[iv], no mesmo período. Ou seja, provavelmente serão intensificados investimentos em grandes projetos energéticos, ao mesmo tempo em que são reduzidas as medidas de promoção da sustentabilidade de comunidades quilombolas e indígenas.
Vale registrar que o recurso para distribuição de cestas de alimentos para grupos tradicionais, entre os quais indígenas e quilombolas, caiu 99,4% no novo Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA); o orçamento previsto para a regularização fundiária de territórios quilombolas encolheu em 52,3% (de R$4,9 para R$2,3 milhões) e o recurso destinado ao desenvolvimento sustentável das comunidades quilombolas, povos indígenas e comunidades tradicionais chegou a zero na proposta orçamentária para 2018.
Isso significa que uma comunidade quilombola ou indígena, afetada por um projeto de mineração, não acessará recursos para produção sustentável local, nem cestas básicas, que são emergenciais, e também não terá acesso a políticas especificas de promoção e proteção de suas culturas.
Segurança alimentar ameaçada
E o problema não para no campo, afinal, “se o campo não planta, a cidade não janta”. Quando o recurso para a segurança alimentar e nutricional é reduzido em 83,8%[v], impactando negativamente a comercialização da agricultura familiar (Programa de Aquisição de Alimentos – PAA, por exemplo) e o fomento à agroecologia, impacta a alimentação da população como um todo, porém, mais especificamente os grupos sociais que tem menor poder aquisitivo para consumo de alimentos saudáveis, não processados, etc. Considerando que as pessoas negras encontram-se nos extratos de menor renda e acesso a alimentos, podemos inferir que este será o grupo mais prejudicado com a redução das políticas de agricultura familiar, no urbano.
Mulheres e jovens negros mais expostos à violência
As mulheres negras, maiores vítimas do feminicídio, são as que têm menos acesso a todos os serviços públicos e as que mais morrem vítimas do aborto inseguro no país. O recurso para as políticas públicas voltadas para a superação da violência e promoção da autonomia das mulheres teve corte de 69,7[vi]% na PLOA 2018, e para o Programa Bolsa Família, que atende majoritariamente mulheres negras e seus filhos, a redução é de 11%[vii].
O Brasil mata, por ano, 30 mil jovens, sendo 77% negros (pretos e pardos)[viii], e tem a terceira maior população carcerária do mundo, composta majoritariamente de negros e negras. Ainda assim, o recurso para investimentos em educação e saúde foram congelados, por meio da Emenda Constitucional 95, por 20 anos. A pasta de juventude foi reduzida em 28,7%, e o país não tem um plano de redução de homicídios, mas sim uma “bancada da bala” forte e atuante que pretende armar civis como forma de solução para o problema da violência.
Mobilidade social da juventude negra em risco
Ainda que a reforma trabalhista tenha impactado menos a população negra – em sua maioria pertencente ao mercado informal –, este grupo social sofrerá os efeitos em cadeia desta reforma, com aumento da precariedade nos extratos com maior formalidade, somado ao atual índice de desemprego (13%) e à reforma iminente da previdência. Outro fenômeno que poderá decorrer das reformas trabalhista e da previdência, ao lado do ajuste fiscal, é ver estudantes negros e negras formados na universidade e… sem trabalho.
Resultado de conquistas dos movimentos negros, as cotas, ao lado das políticas de permanência e fomento à pesquisa, estariam promovendo de fato a mobilidade social da juventude negra – processo que poderá ser interrompido no futuro muito próximo. Combina-se, assim, a redução no recurso para a educação, com redução de bolsas de estudo e recurso pra pesquisa; o elevado corte orçamentário na SEPPIR, onde se localiza a coordenação de ações afirmativas e a baixa execução orçamentária: até novembro de 2017, foi gasto somente 6% do recurso do Programa 2034 – Promoção da igualdade racial e superação do racismo.
Todas estas medidas estão sendo tomadas sem diálogo com a sociedade e participação social. Também denunciamos, já em 2014, que “as forças econômicas e conservadoras se deram nas urnas, com o aumento das bancadas ruralista, neopentecostal e militar (‘bancada da bala’) no Congresso Nacional, que coroou esta vitória dias depois derrubando, na Câmara, o Decreto 8243/2014, que regulamenta os mecanismos de participação social previstos na Constituição de 1988.”
Mais impostos, menos direitos
Segundo estudo do Inesc, no Brasil, as mulheres negras pagam proporcionalmente mais impostos que os outros grupos (homens e mulheres brancas, e homens negros), pois o sistema é regressivo, ou seja, paga-se muitos impostos ao consumir qualquer produto e taxa-se pouco as pessoas ricas. Na prática, ocorre que uma mulher negra que recebe o benefício de transferência de renda no valor de 85 reais ao mês (que talvez seja sua única fonte de renda), ao utilizar o recurso para comprar alimentos, estará pagando cerca de 19% de impostos, ou seja, 22 reais. Já um homem branco de classe média que recebe entre R$4.150 e R$6.225 ao mês, compromete entre R$568,55 e R$852,82 com alimentação (POF, 2009), de modo que os tributos pagos nestas despesas giram entre R$125 e R$187 reais, ou seja, 3,01% dos seus rendimentos.
É neste mesmo país que bilhões em impostos são sonegados ao ano (R$ 453,0 bilhões ou 7,7% do PIB em 2015), por empresas e “cidadãos”. Como apontou artigo do Inesc, os direitos cabem sim no orçamento; o que não cabe é a sonegação de impostos e os privilégios. Este é o país do golpe – patrimonialista, machista e racista. Onde os negros pagam mais impostos e não recebem melhorias de vida para suas famílias e comunidades. Este é o Brasil do racismo institucional.
[i] Programa 2012 – Fortalecimento e dinamização da Agricultura familiar: de 9,73 bilhões para 6,19 bilhões.
[ii] Programa 2034 – Promoção da igualdade racial e superação do racismo: de 24,2 milhões para 16,6 milhões.
[iii] Programa 2065 – Proteção e promoção dos povos indígenas: de 1,49 bilhões para 1,40 bilhões.
[iv] Ministério do Meio Ambiente: de 3,98 bilhões para 3,49 bilhões.
[v] Programa 2069 – Segurança Alimentar e Nutricional: De 736,3 milhões para 119,4 milhões.
[vi] Programa 2016 – Políticas para mulheres, promoção da igualdade e enfrentamento da violência: de 81,6 milhões para 24,8 milhões.
[vii] Programa 2019 – Inclusão social por meio do Bolsa Família, do Cadastro Único e da articulação de políticas sociais.
Segundo o relatório “Um Rosto Familiar: A violência nas vidas de crianças e adolescentes” do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), divulgado em 2017, o Brasil subiu para o quinto lugar no ranking mundial de homicídio de adolescentes. O relatório evidencia um aumento alarmante de mortes de adolescentes pela violência.
Considerando o dado raça/cor, a taxa de homicídio de negros é três vezes maior do que de adolescentes brancos – 75% dos adolescentes vítimas de homicídios são negros ou multirraciais. Outro dado importante é a região onde moram, mostrando que maior risco corre quem vive na região nordeste. Ainda de acordo com o relatório, o risco de morte por homicídio de meninos é 13 vezes maior do que de meninas.
O censo do sistema socioeducativo revela semelhanças com os dados do relatório do Unicef. A maioria dos adolescentes que cumprem medida de internação são pretos/pardos, variando a proporção de região para região. E o maior contingente de adolescentes em privação de liberdade é masculino. O documento mostra que 68% do total de atos infracionais cometidos pelos adolescentes são roubo e tráfico. Ou seja, práticas relacionadas a estratégias de sobrevivência.
Mesmo sendo as maiores vítimas do abandono e da violência, os adolescentes em situação de exclusão são criminalizados por uma sociedade intolerante e preconceituosa. Muito desta postura é fruto de uma mídia sensacionalista, que adota uma abordagem condenatória em função de condições étnico-raciais, territoriais e de situação de pobreza. Alimenta-se a falsa e insustentável ideia de que a redução da idade penal é a solução para a violência no país.
Sabe-se que a prática do ato infracional não é fruto de escolha autônoma de adolescentes. A ausência de políticas públicas para a juventude ou a adoção de políticas públicas discriminatórias (que privilegiam determinada população em detrimento de outras); a falta de investimentos em áreas estratégicas, as enormes desigualdades sociais, o apelo radical pelo consumo e a repressão das forças policiais contra jovens negros são os principais motores da perversa engrenagem que leva adolescentes para o circuito da criminalidade. Há uma nítida relação entre a negligência do Estado e o ato infracional.
No momento histórico de redução de direitos, de avanço do conservadorismo e congelamento de gastos, este quadro tende a piorar. O discurso moralista e preconceituoso alimentado por áreas conservadoras da sociedade acirra animosidades, alimentando o ódio por adolescentes e convencendo de que, com encarceramentos, a violência se reduzirá. O recrudescimento de punições nunca levou à redução da violência. Os dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) do Ministério da Justiça indicam que o Brasil detém a terceira maior população carcerária do mundo. Não há lógica: as cadeias estão abarrotadas e o Brasil ainda figura como país violento.
Uma vez cumprindo uma medida socioeducativa, os adolescentes deveriam receber do Estado educação exemplar, numa instituição de cunho fundamentalmente educativo, visando novas possibilidades de convivência com a sociedade. Se levarmos em conta o abandono e o contexto em que se encontravam antes da medida ser aplicada, são necessários esforços redobrados para reparar tudo o que foi negligenciado em suas comunidades. A educação durante a medida socioeducativa deve assegurar escolarização de qualidade e diferenciada, atividades de arte e de cultura, esportes e profissionalização, exatamente como preconiza o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase).
O projeto político-pedagógico nas unidades deve movimentar humanidades, estimular pensamentos sobre a sociedade e seus problemas, fomentar falas, contribuir para que se compreenda o respeito como importante dimensão das relações humanas, ajudar a compreender as diversidades, provocar a percepção sobre responsabilidades. Nunca calar. Pensar e falar são ações imprescindíveis para uma educação verdadeiramente emancipadora.
Assim, o Estado brasileiro está em débito duplamente com a população mais jovem. Primeiro, por não promover direitos em todos os territórios e segundo porque ainda não investe nas medidas socioeducativas como prevê a lei. Sem investimentos, não é possível garantir direitos.
Vamos falar sobre Crianças, Adolescentes e Jovens?
As desigualdades no Brasil são abissais. Conforme atesta relatório recentemente lançado pela Oxfam Brasil[1], os 5% mais ricos possuem renda equivalente à de 95% da população! Dito de outra forma, uma trabalhadora que ganha um salário mínimo mensalmente levará 19 anos para receber o equivalente ao que um super-rico ganha em apenas um mês! Esse é o tamanho das nossas desigualdades.
É impossível crescer de forma sustentável com esses níveis de desigualdades que nos colocam entre os países mais injustos do mundo.
O que mais preocupa é que os jovens – que representam um quarto da nossa população, em torno de 50 milhões de pessoas – são fortemente afetados pelas desigualdades, o que compromete seu pleno desenvolvimento, bem como o do nosso país. Vejamos:
Os jovens têm mais dificuldades de encontrar trabalho. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o desemprego entre os jovens no Brasil atingiu em 2017 sua maior taxa em 27 anos. Atualmente, cerca de 30% dos jovens brasileiros estão sem trabalho, um em cada três. Esses dados são mais de duas vezes superiores à média internacional, que é da ordem de 13%.
Os jovens brasileiros não têm boas chances de acessar uma educação de qualidade. De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), no Brasil, cerca da metade da população maior de 15 anos (40%) possui baixa escolaridade e não completou a Educação Básica[2]. E mais: o Brasil está entre os piores países do mundo em termos da qualidade de educação. Nessas circunstâncias é muito difícil encontrar empregos decentes que possam garantir uma vida digna.
Pois é, o número de “nem nem” vem aumentando. Atualmente, de cada quatro jovens, um não estuda e não trabalha[3]. Quando a economia piora, os jovens são os mais afetados e os que mais demoram a se recuperar.
A juventude é a maior vítima da violência letal: o Brasil está entre os 10 países que mais matam seus jovens. São mais de 30 mil homicídios por ano, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA)[4]! O Estado brasileiro ainda não foi capaz de formular e implementar uma política efetiva de redução de homicídios. E qual o resultado da omissão do poder público em relação ao tema? Mais de 350 mil jovens foram assassinados entre 2005 e os dias de hoje.
Os jovens também sofrem as consequências do racismo e do sexismo, estruturantes das desigualdades no Brasil. Por exemplo, os negros representam somente um quarto dos diplomados, apesar de serem maioria na população. E mais: a chance de jovens pretos completarem um curso universitário de engenharia é a metade da que tem brancos e, no caso de odontologia, é cinco vezes menor que a de um branco. A maior parte de jovens desempregados é de mulheres.
O desinteresse pela juventude também é característica do governo Temer, que vem desconstruindo a política e a institucionalidade voltadas para esse grupo da população. A maior expressão desse descaso foi a nomeação de Bruno Filho (PMDB) para a Secretaria Nacional da área, quem, por ocasião das chacinas nos presídios de Roraima e de Manaus no começo de 2017, afirmou que “tinham que ter matado mais presos” e que “deveria haver uma chacina por semana”.
Apesar das adversidades enfrentadas a cada dia, os jovens brasileiros são sonhadores e aguerridos. Pesquisa realizada pela Secretaria Nacional de Juventude (SNJ)[5] revelou que é muito clara para eles a percepção sobre a capacidade da juventude de mudar o mundo. Cerca de nove em cada dez entrevistados responderam que os jovens podem mudar o mundo, sendo que para sete, eles podem mudá-lo e muito. E mais: entre os assuntos que os jovens consideram mais importantes para serem discutidos pela sociedade estão a desigualdade social e a pobreza.
Nessa semana de mobilização em torno dos direitos humanos, chamamos a atenção para os direitos dos jovens. Urge a retomada das políticas a eles destinadas. Urge sua inserção no movimento da reforma do sistema político para que conquistem o espaço político que lhes é de direito. A juventude brasileira vem mostrando vigor e disposição para lutar. As ocupações, as mobilizações e as massivas presenças nas frentes de resistência são exemplos claros de que não serão aceitos retrocessos. E assim vamos nos inspirando nas letras do nosso Gonzaguinha: “Eu acredito é na rapaziada, que segue em frente e segura o rojão. Eu ponho fé é na fé da moçada, que não foge da fera e enfrenta o leão. Eu vou à luta é com essa juventude, que não corre da raia a troco de nada…”.
Quando falamos de direito à cidade, nos referimos a um direito coletivo, que pressupõe o compartilhamento do espaço público democraticamente, de maneira a combater desigualdades. Sabemos, no entanto, que esse direito está longe de ser assegurado: a maioria das cidades brasileiras são segregadas e privatizadas.
Em geral, nos espaços ocupados pela parcela da população com maior renda, há equipamentos públicos, boa infraestrutura e segurança, ao passo que aqueles ocupados pela população mais pobre são carentes de equipamentos e a segurança pública costuma existir apenas para segregar e oprimir. O transporte público, como está estruturado, acaba reforçando as desigualdades, ao garantir que os/as que residem nas periferias só tenham direito à mobilidade para irem e voltarem de seus trabalhos. O tempo gasto nesses deslocamentos pendulares é alto e crescente, assim como o preço das tarifas – o que compromete boa parte da renda já bastante afetada com os custos de moradia, alimentação, vestuário.
A especulação imobiliária, com o apoio dos governantes – muitas vezes eleitos com financiamento de empresas de ônibus, empreiteiras e empresas de coleta de resíduos sólidos – determina para onde vão as cidades, o que deve ou não valorizar e quando. Desta forma, as pessoas são expulsas para lugares cada vez mais distantes, dependentes de um transporte precário, sem acesso à saúde, educação e outros serviços básicos por perto. Equipamentos de cultura e lazer, então, são vistos como supérfluos.
Para se ter uma ideia, a Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios 2015/2016, realizada pela Codeplan/DF, quando apresenta os dados relativos à escolaridade, mostra que as regiões tais como Sudoeste, Lago sul, Plano Piloto e Lago Norte abrigam o maior número de pessoas com formação superior, coincidindo com os níveis mais altos de renda. Enquanto que as mais baixas taxas de escolaridade estão na Estrututural, Itapoã, Paranoá, que também possuem as mais baixas rendas. Ou seja, o direito à cidade, da mesma forma que pavimenta o caminho de acesso aos outros direitos, quando ausente, facilita todos os tipos de violações possíveis.
Podemos ainda nos deter mais atentamente na realidade de duas das cidades acimas citadas, comparando a renda familiar da Estrutural e do Lago Sul, regiões com mais baixa e mais alta renda do Distrito Federal, respectivamente. Enquanto a primeira apresenta média de renda de dois salários mínimos e meio, a outra possui renda de 27 salários mínimos e meio; ou seja, o desigualtômetro (indicador usado no Mapa das Desigualdades, elaborado pelo Inesc, Nossa Brasília e Oxfam) é de 11 vezes. Já no que tange à renda per capita, o desigualtômetro salta para 15 vezes. Com relação à escolaridade, no Lago Sul, 69% (de uma população de 29 mil pessoas) da população possui ensino superior, enquanto que na Estrutural apenas 1,5% (de uma população de 39 mil pessoas) concluiu esta fase de ensino. Neste caso, o desigualtômetro é de 34,6 vezes.
Essas desigualdades se aprofundam ainda mais porque as cidades não são pensadas por quem nelas vivem, não havendo ambiente de participação para discutir e deliberar sobre os espaços públicos. Para nós, do Inesc, a participação popular é um pilar fundamental da realização dos direitos humanos em geral, e do direito à cidade em específico. Por isso, temos trabalhado, junto à Rede Cidades, no projeto MobCidades: Mobilidade, Orçamento e Direitos, que conta com o apoio da União Europeia. Participam da iniciativa 10 movimentos e cerca de 80 organizações que discutem direito à cidade, passando por temas que vão desde as formas de deslocamento, passando pela acessibilidade, interações raciais e de gênero no espaço público.
O direito à cidade deveria incluir a voz das pessoas que nela habitam nas decisões sobre seus rumos, sobre suas vidas. Como todo direito social, pensá-lo sem a participação popular é retirar parte de sua potência, pois são as pessoas que habitam e fazem a cidade as que de fato conhecem suas necessidades, demandas e desejos. Foi esse o recado das jornadas de 2013, ainda muito mal interpretadas pelos detentores dos poderes político e econômico. É também esse o recado que continuamos construindo.
*Cleo Manhas, Leila Saraiva e Yuriê Baptista são assessores políticos do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e educadores no projeto MobCidades
Organizações da sociedade civil dos países que integram os Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e também de outros países, vêm apostando no Novo Banco de Desenvolvimento (NBD). Há razões para essa aposta, como também existem motivos para preocupação.
O NBD, com três anos de idade, mas apenas um de efetiva operação, foi criado na esteira da insatisfação dos países emergentes com as instituições financeiras internacionais (IFI´s) existentes. Tais instituições dão pouco espaço de comando e, por vezes, negam-se a respeitar a soberania desses países. Mais: não dispõem de recursos suficientes para assegurar a expansão de infraestruturas, imprescindível para o crescimento das economias em desenvolvimento.
Com efeito, estimativas de diversas organizações (como a da Unep e a OCDE) apontam que os recursos necessários até 2030 para a infraestrutura global (transporte, energia, comunicação, saneamento, entre outros) variam de 57 a 89 trilhões de dólares, a depender da metodologia adotada, sendo que grande parte dessas necessidades vem dos países emergentes. Diante da incapacidade de as instituições financeiras internacionais tradicionais alavancarem tais montantes, o chamado Sul Global optou pela criação de novas organizações, como o Banco Asiático de Investimentos em Infraestrutura e o Novo Banco de Desenvolvimento, o chamado Banco dos Brics.
Na tentativa de pressionar o Novo Banco a seguir o caminho do desenvolvimento sustentável, organizações da sociedade civil estão apostando em um diálogo institucionalizado com o NBD, que tem se colocado como uma alternativa às velhas práticas multilaterais, lançando mão de uma narrativa atrativa que anuncia uma institucionalidade voltada para as demandas de desenvolvimento das economias do Sul.
O banco opera, por exemplo, sob o princípio da paridade das decisões dos países membros – o que é bastante inovador, considerando o excessivo peso dos países do Norte nas instituições financeiras multilaterais tradicionais. Essa lógica mais democrática e inclusiva do NBD adota o sistema de “cada país um voto” e não o de “cada dólar um voto”, daí que a África do Sul, com um PIB de 300 bilhões de dólares, tem o mesmo peso da China, que apresenta um produto interno bruto de 11,2 trilhões de dólares, 37 vezes maior, de acordo com a classificação do Banco Mundial.
Outra característica atraente é que o NBD propõe-se a trabalhar na promoção da sustentabilidade, o que amplia a visão em relação às velhas estratégias de combate à pobreza adotadas até agora. O Banco busca ainda executar seus projetos respeitando a soberania dos países, de modo a se contrapor às chamadas ingerências promovidas pelas IFI’s tradicionais por meio das condicionalidades.
O NBD tem a intenção de ser leve, inovador e efetivo. Para tal, diz que terá estrutura enxuta – não mais do que 400 pessoas quando em plena operação, número que dista dos mais de 10 mil empregados do Grupo Banco Mundial, por exemplo. Propõe-se a aprovar projetos em apenas seis meses e a utilizar produtos financeiros adequados às realidades dos seus sócios (empréstimos em moedas locais, bônus verdes etc.). Por fim, diz-se disposto, desde o início, a dialogar com os diversos atores econômicos e sociais interessados na sua atuação.
É no marco dessa disposição ao diálogo, que organizações da sociedade civil reuniram-se com a cúpula da instituição na sede do Banco em Xangai, no final do mês de outubro. Foram discutidos temas como as políticas e estratégias, as operações, as modalidades de financiamento, a dimensão de gênero e a participação social. Se é verdade que existem entendimentos comuns sobre o ineditismo do NBD, é também verdade que enormes preocupações perpassam muitas de nossas organizações da sociedade civil e suas redes.
Dentre estas inquietações pode-se destacar a pouca clareza sobre o conceito de desenvolvimento sustentável, abrindo brechas para o financiamento de projetos que violam direitos. Por exemplo, o banco considera que a energia renovável, como a eólica e a solar, contribui para o desenvolvimento sustentável. Tanto é assim, que o primeiro empréstimo para o Brasil, tomado pelo BNDES, foi nessa área. Entretanto, é sabido que a energia eólica, a depender de como é gerada, pode apresentar severos danos ambientais (como degradação de solo, desmatamento, destruição da biodiversidade) e sociais (deslocamentos de produtores familiares e populações tradicionais de suas terras e territórios, grilagem de terras, doenças provocadas pelos ruídos e contaminação de solos, especulação mobiliária). Como não existem informações detalhadas sobre os projetos aprovados, é impossível avaliar os impactos.
A falta de transparência é outro problema ainda não solucionado pelo banco. Não se sabe quais os critérios e procedimentos adotados pela instituição para aprovar projetos. Até agora, foram aprovados 11 projetos nos cinco países Brics, num valor total de 3 bilhões de dólares, e não existem maiores detalhes sobre o teor desses empréstimos. Associada a esta limitação, encontra-se a ausência de envolvimento da sociedade e, em especial, das comunidades afetadas pelos projetos, no seu desenho, implementação e monitoramento.
Outra questão que preocupa bastante nossas organizações é o fato de que a estratégia do banco e suas políticas (Informação, Ambiental e Social) foram elaboradas sem qualquer consulta pública, sem referências aos direitos humanos e com lacunas, como a ausência da dimensão de gênero – que é central para assegurar o desenvolvimento sustentável. A imprecisão quanto às diretrizes operacionais para avaliação de riscos e externalidades socioambientais e para a prestação de contas, além da inexistência de mecanismos de participação social nos níveis internacional, nacional e local são outras preocupações igualmente relevantes.
Estamos em um momento extremamente interessante, no nascedouro de uma organização que reúne as condições para se diferenciar. Resta saber se o NBD se dispõe a aceitar o desafio proposto pelas organizações da sociedade civil de ser efetivamente socioambientalmente inclusivo e participativo. Por ora, vamos apostando nessa trajetória, sem deixar de ser vigilantes.
*Nathalie Beghin é coordenadora da assessoria política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e esteve na reunião em Xangai representando o Inesc e a Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip).
Desmonte da legislação ambiental e do Estado: dois lados de uma mesma moeda
É notório o acelerado processo de desconstrução dos direitos socioambientais erigidos em grande parte na Constituição Federal de 88, mas também em legislações infraconstitucionais, em atos administrativos e na estruturação de instituições com missão de fazê-los cumprir. São muitas as mudanças e evidências nessa direção, mas vale chamar atenção para três marcos desse processo e sua cronologia a qual também tem um papel revelador:
A aprovação de um Novo Código Florestal em 2012 que trouxe transformações paradigmáticas na forma como o proprietário privado deveria lidar com seu passivo ambiental e com a proteção ambiental, entre elas destacamos: i) redução do patamar de proteção ambiental com diminuição das Áreas de Reserva Legal e de Preservação Permanente; ii) anistia do desmatamento ilegal em terras privadas; iii) criação de um mercado de compensações ambientais como forma de resolver o restante do passivo ambiental que não foi anulado. A construção e aprovação deste Código foi também um marco político para o avanço da pauta do agronegócio no Congresso Nacional. Nada mais ilustrativo do que a fala pública da bancada ruralista em março de 2011 no relançamento da Frente Parlamentar da Agropecuária anunciando que tinham “força e objetivos” e que depois do Código Florestal estariam unidos para combater o que consideravam a “farra de criação de unidades de conservação e áreas indígenas”.
A ofensiva sistêmica para reduzir ou desafetar Unidades de Conservação, por meio de sucessivas Medidas Provisórias e Projetos de Lei. O processo iniciado em 2012 por Medida Provisória com o objetivo de viabilizar a instalação de grandes projetos hidrelétricos na Amazônia foi amplamente potencializado pela força e pressão da bancada ruralista. Estudos apontam que as medidas legislativas em curso para reduzir área ou grau de proteção ambiental alcançam 80 mil quilômetros quadrados.
Iniciativas no Legislativo, e agora também no Executivo e Judiciário,de barrar a demarcação de Terras Indígenas. A despeito da força da bancada ruralista no Congresso Nacional, a forte capacidade de resistência do movimento indígena e aliados tem conseguido barrar há mais de 10 anos as tentativas de aprovação da PEC 215. No contexto mais recente – de pesadas negociações entre governo e sua base de apoio no Congresso Nacional para garantir a condução de reformas ultra neoliberais e impedir abertura de processos investigativos contra Temer – ampliou-se sobremaneira a articulação de interesses entre governo e bancada ruralista tendo como uma das moedas de troca o fim das demarcações. Expressão deste movimento é o Parecer da AGU – Advocacia Geral da União, o qual estabelece que a decisão do Supremo Tribunal Federal(STF) sobre a Raposa Serra do Sol vale para toda a administração; em outras palavras, trata-se da interpretação do marco temporal segundo o qual só são terras indígenas as ocupadas por índios na data da promulgação da Constituição. Também no STF segue em frente a estratégia de pautar ações sobre a constitucionalidade de demarcações com base no argumento do marco temporal.
A Medida Provisória 759 transformada na Lei13.465/2017 que, entre outras medidas, atribui um prazo mais restrito para que o Incra emancipe os assentados do Programa Nacional de Reforma Agrária sem que a eles tenham sido garantidas as condições de produzir e sobreviver na terra. Na prática, e no contexto de desmonte das políticas de reforma agrária e agricultura familiar, a medida visa garantir que terras “retiradas do mercado” pela Reforma Agrária sejam a ele devolvidas. A nova Lei também abre a possibilidade ampla e irrestrita de regularização fundiária de latifúndios, expandido a política já crítica de regularização fundiária na Amazônia denominada “Terra Legal”.
Estes exemplos expressam um desmonte de direitos socioambientais que é parte de um fenômeno de mais de uma década de renovação do pacto de poder conservador que interpenetra os campos econômico e político vinculados à expansão do domínio do agronegócio – ou o que Alfredo Wagner denominou agroestratégias – sobre terras e recursos. Expansão, por sua vez, também alimentada pelo recente ciclo de commodities, puxado pela China, e pela atitude pragmática do Estado brasileiro, assim como dos países da região, de aprofundamento do papel primário exportador do país na divisão internacional do trabalho historicamente estabelecida. Os dados são ilustrativos deste movimento. Em 2000 os produtos primários respondiam por 41,6% das exportações totais do país, em 2015 esta participação subiu para 61,9%, uma taxa de crescimento de 49% para o período – o crescimento mais expressivo entre todos os países da região.
Mas, se o desmonte da legislação e dos direitos socioambientais não é um fenômeno recente, é inegável que ele se aprofundou, acelerou e ganhou novos contornos a partir da reconfiguração de forças que levou ao impeachment da presidenta Dilma Rousseff.
É nesse novo contexto que (re)surge o discurso de que ao Estado cabe criar um “bom ambiente de negócios” para que novos investimentos prosperem e tirem o país da crise. É parte desse grande “acordo de cavalheiros” a tentativa de se aprovar no Congresso uma Lei Geral do Licenciamento que: agiliza e flexibiliza os processos de licenciamento para grandes obras; dispensa do licenciamento ambiental todas as atividades agrosilvopastoris – independente do porte, da localização, do uso de recursos hídricos etc.; prevê o licenciamento compulsório nos casos em que as autoridades envolvidas não se manifestem no prazo determinado, entre outras maneiras de tornar o processo mais célere e barato, a despeito das suas consequências.
Sob o argumento da crise fiscal, foi operado um rápido desmonte do Estado Brasileiro com a aprovação de mudanças estruturais que estão, entre outras coisas, fornecendo os ingredientes que faltavam para a estratégia de “liberação” de terras e outros recursos naturais. As legislações, instituições e políticas socioambientais vigentes atuam para garantir o domínio de povos indígenas, quilombolas e assentados, entre outros, sobre suas terras e territórios. Por isto e a despeito da sua fragilidade, elas representam um obstáculo à apropriação de terras e recursos por grupos econômicos privados ligados ao agronegócio, à mineração e à investimentos em infraestrutura funcionais ao escoamento da produção primário-exportadora.
Em outras palavras, um ponto a considerar é que o desmonte da Funai, do Incra, do extinto Ministério do Desenvolvimento Agrário, da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial, do ICMBio, serve apenas marginalmente ao propósito de reduzir gastos estrangulados pela Emenda Constitucional N° 95 (o teto dos gastos), visto que sempre foram instituições e políticas marginais na estrutura do Estado e do orçamento público. O desmonte das políticas públicas socioambientais, construídas em grande parte em função da luta dos movimentos e organizações sociais serve, mais que isso, ao propósito de desconstruir direitos, identidades e favorecer o discurso de que a saída não passa pelo Estado e pela garantia de direitos e sim pelo mercado. Sob esta lógica, a alternativa para os povos indígenas seria, por exemplo, arrendar suas terras para o agronegócio, aceitar a mineração ou transformar-se em agricultores integrados à agricultura de grande porte.
Tamanho desmonte não foi, portanto, construído da noite para o dia, e não será desconstruído facilmente pois expressa um conjunto de forças que ganha um terreno mais fértil para prosperar no ambiente de múltiplas crises em que o Brasil foi mergulhado. Mas a história recente tem nos mostrado que tais forças possuem raízes profundas. A criminalização dos movimentos sociais, seguida do crescimento das mortes e das chacinas no campo revelam o quanto esse processo é indissociável da violência que nos constitui enquanto nação.
Na tramitação do Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) para 2018, deputados federais e senadores estão propondo emendas em uma peça orçamentária fruto de manobra do Executivo, o que torna tanto a proposta de lei quanto o próprio trabalho dos parlamentares fictícios.
O PLOA prevê a estimativa de receitas e a fixação de todas as despesas do governo para o ano seguinte, devendo estar em concordância com o plano plurianual e a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). De acordo com a Constituição Federal, no caso da União, o Executivo deve enviar o PLOA ao Congresso Nacional até o dia 31 de agosto de cada ano e ele deve ser aprovado pelos parlamentares até 22 de dezembro; porém, esse prazo não chega a adiar o recesso parlamentar caso a aprovação não ocorra no prazo.
A LDO 2018 havia sido sancionada em 08 de agosto de 2017 e previa um resultado fiscal de déficit de R$ 129 bilhões. Foi com base nela que o PLOA 2018 foi elaborado e encaminhado no prazo estipulado de 31 de agosto. Porém, em 17 de agosto, depois da entrada em vigor da LDO e 14 dias antes do envio do PLOA 2018, o governo encaminhou ao Congresso uma proposta de alteração da meta de resultado fiscal para 2018, passando a previsão de déficit para R$ 159 bilhões. O texto principal dessa proposta de alteração foi aprovado em 30 de agosto. Com isso o PLOA teria que ser alterado para se adequar à nova meta fiscal.
Entretanto, o governo de Temer, com o propósito de manobrar o prazo legal, ignorou a própria proposta de mudança de meta fiscal e entregou o PLOA 2018 em discordância com a LDO. As provas para essa afirmação são diversas. Em debate no dia 25 de outubro, referente aos cortes orçamentários da Assistência Social no orçamento para 2018, o deputado federal Cacá Leão (PP-BA), responsável pela negociação do PLOA com o Poder Executivo, afirmou que “as informações do orçamento 2018 não condizem com a realidade”. Segundo ele, o PLOA 2018 só foi enviado para cumprir prazos e o governo federal irá mandar uma retificação da peça orçamentária com novos números.
O Relatório de Setembro de 2017 da IFI (Instituição Fiscal Independente) também confirma essa situação: “O executivo enviou em 31 de agosto o PLOA 2018 prevendo déficit de R$ 129 bilhões, número reconhecidamente carente de consistência macroeconômica e fiscal. Diante dessa situação singular, a IFI optou pela espera de nova proposta, com números atualizados e revisados, para que se possa realizar avaliação mais aprofundada”.
O próprio ministro do Planejamento, Dyogo Oliveira, afirmou no dia 16 de outubro que a equipe econômica pretende encaminhar até o fim de outubro uma mensagem modificativa do Orçamento de 2018, por entender que a mudança é necessária para ajustar as despesas do governo à nova meta fiscal, que permite déficit de até R$ 159 bilhões no ano que vem. Ele também disse que antes disso o governo ainda precisa encaminhar medidas de aumento de receitas e redução de despesas, como a mudança na tributação dos fundos exclusivos de investimento, o aumento na alíquota previdenciária de servidores e o adiamento de reajustes do funcionalismo.
O resultado disso tudo é que os parlamentares estão há dois meses debatendo e fazendo emendas ao Orçamento 2018 de forma fictícia, uma vez que ele ainda será bastante alterado pelo Executivo em breve. Manobra e fraude no Executivo resultando em ineficiência no Legislativo, com perda de tempo e dinheiro público em pleno tempo de austeridade fiscal.
Apesar de todo esse cenário bizarro da tramitação da lei orçamentária para 2018, ainda existe oportunidades para buscar um orçamento ao menos mais transparente, uma vez que com o teto dos gastos dificilmente irá ser adequado às necessidades da população brasileira.
Para isso, é essencial a sociedade demandar do governo um novo texto para o PLOA 2018 com o objetivo de: 1. Permitir uma avaliação detalhada da proposta orçamentária pela sociedade; 2. Abrir novo período de emendas parlamentares, para que elas sejam mais reais, o que é ao menos uma possibilidade de atender necessidades sociais não contempladas no projeto de lei original; 3. Com um PLOA real será possível também pensar em incidência da sociedade civil junto ao Legislativo por um orçamento mais justo, especialmente se considerarmos que a mudança da meta de resultado fiscal liberou mais R$ 30 bilhões para o orçamento.
Por fim, devemos questionar: onde o governo pretende aplicar esses R$ 30 bilhões advindos da mudança da meta fiscal? Será para reduzir desigualdades ou ampliar privilégios? Será para comprar parlamentares, como tem feito, em troca de não ser julgado por corrupção? Afinal, é isso que o orçamento público demonstra: como está a disputa pelos recursos públicos e quem está se apropriando deles.
* Grazielle David é assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc)
Sete pontos para entender a MP dos royalties da mineração e o que está em jogo
Nesta terça-feira (17/10), foi divulgado o voto do relator, Deputado Marcos Pestana (PSDB/MG), sobre a Medida Provisória (MP N° 789 de 2017) que altera as regras e taxas de cobrança da Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM). Junto a um pacote de outras três MPs (Nº 789, Nº790 e Nº 791), a Medida propõe uma nova regulação para o setor mineral brasileiro, configurando um Novo Código Mineral.
Diferente da tramitação do Projeto de Lei do Novo Código Mineral que teve início em 2013 – ainda sob forte influência do boom de preços do minério – e se arrastou por anos sem ser votado, o contexto nacional e internacional hoje é bem diverso. Os preços do minério de ferro oscilam entre US$ 50 e US$ 65 por tonelada e as previsões menos otimistas indicam que o preço pode cair ao patamar de até US$ 40 a tonelada. Vivemos uma profunda crise fiscal com queda da arrecadação federal, estadual e municipal.
Esta situação tem produzido déficits fiscais generalizados, que não podem ser compreendidos separadamente do caos político e institucional em que fomos mergulhados, tampouco, do corte drástico de despesas públicas federais – que são vitais para dinamizar as economias dos Estados e municípios- como sempre, em detrimento de mudanças nas políticas monetária e tributária.
É nesse contexto nacional que o governo apresenta a MP N° 789 para alterar a cobrança da CFEM, alterando alíquotas e mudando a base de cálculo, com uma estimativa de que a arrecadação aumentará 80%. Apesar de tratar de todos os minérios que recolhem CFEM, a medida teve um alvo claro: aumentar a arrecadação sobre o minério de ferro, responsável hoje por quase 60% do valor arrecadado. Para isso, a MP definiu alíquotas com variação entre 2% (como é hoje) até 4%, a depender da cotação internacional do minério de ferro, devendo atingir 4% somente quando o preço do minério de ferro estiver acima de US$ 100 a tonelada. Adicionalmente, mudou a base de cálculo cobrando a alíquota sobre a receita bruta da venda e não mais sobre o faturamento líquido[1].
Em tempos de penúria social, e dado que a maior parte da arrecadação da CFEM fica com municípios (65%) e estados (23%) a MP ganhou especial interesse dos entes federados, que são os maiores produtores e, não por acaso, foi relatada por um deputado mineiro, do PSDB. O relatório apresentado tenta fechar a fatura em 4%, uma proposta já antiga defendida pelo PSDB de Minas Gerais, sem vinculação à cotação internacional do minério e mantendo a nova base de cálculo. Para ampliar a força política da proposta, o relator propõe uma nova divisão da arrecadação, tirando uma pequena parcela dos estados (-3%), dos municípios (-5%) e da União (-2%) para compor um fundo de 10%, cujo valor seria distribuído entre os municípios impactados pela mineração em função da presença de barragens, depósitos de estéreis, instalações, infraestruturas de escoamento como estradas de ferro, minerodutos, portos. A repartição destes 10% ficaria a cargo de um Decreto e se daria com base na definição do grau de impacto sofrido por cada município.
Já para o uso da parte do recurso que caberia aos estados (20%) e municípios (60%), o relatório estabelece que 20% deverá ser preferencialmente destinado à diversificação econômica, ao “desenvolvimento mineral sustentável” e ao desenvolvimento científico e tecnológico. Para a União, que fica com 10%, sintomaticamente, a nova redistribuição proposta pelo relatório acaba com os míseros 0,2% que eram destinados ao meio ambiente (Ibama), deixando 7% com a futura Agência Nacional da Mineração (ANM) criada no lugar do DNPM, reduzindo de 2% para 1% o recurso a ser destinado ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) e destinando 2% para o Centro de Tecnologia Mineral (CETEM). Por fim, para dar “ampla transparência” aos usos dos recursos por todos os entes o relatório mantém a redação proposta pelo governo que prevê a publicação anual de informações relativas à aplicação da CFEM com base na Lei de Acesso à Informação.
Jogo de interesses
O relatório da MP tenta conciliar interesses, em especial: i) dos estados e municípios, onde se concentra a produção, na expectativa de que mesmo com perda de parcela da CFEM haja aumento da receita em função das mudanças de alíquota e base de cálculo; ii) dos municípios impactados, sob forte lobby dos 23 municípios do maranhão recortados pela estrada de ferro Carajás, mas também de municípios mineiros e do Espírito Santo recortados pelas estruturas de escoamento da Estrada de Ferro Vitória-Minas , que escoa grande parte da produção de minério de ferro de Minas Gerais rumo ao Porto de Tubarão em Vitória, além das ferrovias que escoam a produção para o estado do Rio de Janeiro, e para os municípios atravessados por minerodutos nos estados de MG, ES e RJ.
Da perspectiva da União, como antes, o principal interesse evidentemente não é sua parte irrisória da arrecadação da CFEM, a qual representou em 2016 míseros 0,04% do orçamento fiscal. Em tempos de crise, o cálculo em relação à nova CFEM é eminentemente político. Aos Estados e municípios interessa a possibilidade de maior arrecadação de recursos, ao atual governo interessa ter mais uma moeda de troca para se manter no poder. Já para a grande mineração de ferro, que tem 70% da produção dominada pela Vale S.A, interessa o menor dos danos possível. Nesse caso, o aumento da CFEM, como propõe o relatório, embora criticado pelo setor, representa uma fatura inadiável e baixa, se comparado aos seus concorrentes australianos, depois de ter passado mais de 10 anos de preços internacionais apetitosos sem que houvesse nenhuma mudança de alíquota.
Diante deste complexo jogo de interesses, a questão que precisa ser colocada é: por que esse assunto deveria interessar mais amplamente à sociedade? Como este debate nos diz respeito e por que devemos construir uma opinião sobre esse tema aparentemente tão distante da realidade? Ensaiamos algumas respostas:
Primeiro, porque o Brasil precisa se reconhecer como país minerado, com todas as consequências que esse lugar implica. No caso do minério de ferro, aqui em foco, o Brasil é o segundo maior produtor mundial e, ao longo do chamado boom de commodities a exploração do minério pela Vale cresceu 253% alcançando, em 2016, 348,9 milhões de toneladas extraídas. Isto significa que o Brasil é, junto com a Austrália, o maior player global do principal recurso mineral que está na base de economias industriais, em especial a da China, que demanda hoje mais de 70% de todo o minério de ferro importado pelo mundo. Entre as consequências desta gigantesca escala de exploração devemos sempre nos lembrar da Bacia do Rio Doce, que nos mostrou que a mineração não somente é uma atividade com alto potencial de dano, como também é uma atividade dominada por empresas transnacionais que não medem esforços para ampliar a escala da extração e reduzir custos, inclusive com segurança de barragens e pagamento de tributos e CFEM.
Segundo ponto a considerar é que a CFEM não é uma compensação por dano ambiental. Este dano deve ser cuidadosamente avaliado, mitigado e, em último caso, compensado no âmbito do Licenciamento Ambiental – que já é frágil e está sob intenso ataque de um governo ilegítimo e um Congresso Nacional que possui 238 parlamentares investigados em casos de corrupção. A CFEM é uma receita de natureza patrimonial, decorrente da exploração de bens que são da União, como os royalties do petróleo. Trata-se da forma mais específica pela qual o Estado se apropria de parte da renda mineral. Outra forma específica que o atual governo abriu mão de propor e que deveria ser parte da MP N° 790, que regula o acesso ao bem mineral, seria a participação especial em casos de lavras de alto potencial econômico.
Terceiro: vários estudos internacionais (CEPAL, Banco Mundial, estudos realizados pelo governo australiano, entre outros) são unânimes na avaliação de que a tributação sobre a mineração no Brasil é muito baixase comparada aos demais países produtores. Em parte, este problema é explicado pela CFEM ser muito baixa. Mas, no geral, a carga tributária efetiva que recai sobre a mineração é também baixa, o que se explica pelas elevadas isenções fiscais que a grande mineração continua a usufruir para explorar minérios na Amazônia, seja pela Lei Kandir que isenta o ICMS das exportações que representam 80% da produção nacional ou, também, pelas manobras contábeis que as transnacionais utilizam para pagar menos impostos.
Quarto: Sobre as manobras no comércio exterior que resultam em grande perda de receita, nada mais ilustrativo do que os achados da pesquisa do Instituto de Justiça Fiscal: 80% do minério que a Vale S.A exporta tem como primeiro destino a Suíça, sendo esta exportação registrada a preços muito mais baixos do que os preços do minério no mercado internacional. De lá, e sem tributação, o minério é enviado à China para abastecer sua indústria siderúrgica. Estas manobras contábeis, conhecidas como “preços de transferência”[2], ocasionam, segundo o estudo, uma perda de receita fiscal estimada em mais de US$ 5,6 bilhões de dólares ao ano, que significa algo em torno de R$ 19,6 bilhões em reais. Tal perda representa mais de 19 vezes o que foi arrecado com a CFEM sobre o minério de ferro em 2016.
Quinto: o voto do relator tem um mérito que é o de reconhecer que os municípios impactados pela mineração devem receber recursos da CFEM, como uma forma de se fazer justiça fiscal e social. Ocorre que os 10% da CFEM que serão distribuídos aos municípios impactados trarão um ganho ínfimo de arrecadação. Façamos a conta hipotética no caso do Maranhão: em 2016, a arrecadação da CFEM para o minério de ferro do Pará foi de R$ 258 milhões. Se essa arrecadação dobrasse – em função das mudanças propostas e do aumento da extração proporcionado pelo projeto S11D, que amplia a extração potencial em mais 90 milhões de toneladas – teríamos R$ 51,6 milhões (10%) distribuídos entre 23 municípios do corredor Carajás, o que daria pouco mais de R$ 2 milhões para cada município. Para ficar mais claro, Açailândia no Maranhão, por exemplo, teria um ganho de arrecadação equivalente a 7% do que foi transferido pela União a título de Fundo de Participação dos Municípios (FPM) em 2016. Ou seja, 10% de uma arrecadação que crescerá muito pouco e será dividia em muitas partes não trará alívio para os cofres destes municípios, nem melhorará efetivamente a vida das pessoas impactadas pela mineração.
Sexto: os poucos recursos da CFEM têm sido historicamente gastos pelos estados e municípios sem diálogo com a população e sem definição de prioridade que busque superar a excessiva dependência da mineração (que um dia acaba) e que vincule, de alguma forma, seu uso a investimentos públicos que ampliem os direitos dos cidadãos e que protejam o meio ambiente. Ao contrário, muitas vezes os recursos são gastos para melhorar a infraestrutura necessária à operação das grandes mineradoras.
Os problemas associados ao gasto da CFEM só não são mais evidentes porque os municípios e estados não dão transparência ao que é gasto. Sobre essas questões, o relatório apresenta um texto retórico que não muda esse estado de coisas. O documento diz que 20% do que cabe aos estados e municípios deverá ser “preferencialmente destinado a diversificação econômica, ao desenvolvimento mineral sustentável e ao desenvolvimento científico e tecnológico”. “Preferencialmente” não tem força alguma na lei, a lista de sugestões é vaga e não faz nenhuma referência a gastos vinculados ao bem estar das pessoas e ao meio ambiente. Para piorar, em relação à transparência, o texto estabelece a obrigação da “publicação anual de informações relativas à aplicação da CFEM” com base na Lei de Acesso à Informação (LAI). Isto não ajuda em praticamente nada o aumento da transparência. CFEM é recurso público e, como tal, seu uso já deveria estar disponível online e de forma atualizada ao longo do ano fiscal, com base na Lei Complementar 131 de 2009; o que não ocorre nestes municípios, como em grande parte dos demais. Logo, mandar publicar uma vez por ano a informação sobre o uso do recurso, sem mais explicações, e com base em uma lei que não obriga à transparência ativa, ou seja, demanda um pedido de acesso à informação, é prova de que não se quer dar transparência de fato.
Sétimo e último e ponto: é certo que o ferro é o minério que tem maior peso na balança comercial mineral, mas no Brasil se extraí cerca de 70 bens minerais de diversos tipos e qualidades. Para dar dois exemplos, destacaremos o nióbio e o ouro, que são minerais extraídos no território brasileiro, mas que foram secundarizados no debate da MP 789. No caso do nióbio, o país possui cerca de 98,2% de toda reserva mundial, é altamente estratégico para as novas tecnologias e a MP estabelece um percentual de apenas 3% para recolhimento da CFEM[3], sem novamente abrir qualquer debate com a sociedade sobre este minério tão estratégico. Segundo o anuário mineral do DNPM, ano base 2015, o ouro foi o segundo minério que teve a maior comercialização, ficando atrás somente do ferro, com cerca de R$ 9,5 bilhões e também foi secundarizado no texto da MP.
Uma agenda propositiva
Por tudo isso, entendemos que a MP N° 789 e o relatório apresentado expressam não um retrocesso, mas uma profunda incapacidade do Estado brasileiro de legislar em causa da população, de cuidar de forma estratégica e soberana dos bens minerais que são finitos, cuja exploração traz elevados impactos sociais e ambientais e uma dependência excessiva em relação à mineração, mas que, também, são essenciais à economia global, na qual o Brasil está hoje subalternamente inserido.
Para uma discussão aprofundada sobre arrecadação vinculada à mineração e sobre seu uso, alguns pontos deveriam ser considerados:
1) Um aumento maior da CFEM: 6% sobre o faturamento bruto para o minério de ferro, devidamente amparado em estudos técnicos que mostrem quanto é hoje a carga efetiva sobre as grandes empresas mineradoras;
2) Em relação aos outros minérios, cuja produção tem como destino prioritário o mercado externo: bauxita,cobre, níquel, nióbio, manganês e ouro, que não foram debatidos nas audiências da MP 789, deveria ser aberto espaço para debates sobre seu valor estratégico, com informações fundamentadas sobre sua carga tributária e sobre a CFEM;
3) O fim dos incentivos fiscais para a mineração na Amazônia, que representam uma isenção de até 82,5% do principal imposto federal que recai sobre as empresas: o Imposto de Renda de Pessoa Jurídica;
4) O fim da Lei Kandir, que isenta o ICMS das exportações de produtos primários.
5) A criação de um Fundo Nacional Socioambiental na Mineração (FNSM). O objetivo do fundo de caráter nacional deveria ser o apoio às políticas e iniciativas de diversificação das atividades econômicas dos municípios impactados pela mineração, proteção ambiental e a projetos de base local de comunidades impactadas pela mineração, sendo acessível a todos os municípios: mineradores e impactados por sua infraestrutura. A governança do Fundo deve incluir participação social;
6) Os recursos do FNSM deveriam vir dos 10% da CFEM (conforme proposta já apresentada pelo relator da MP 789) e, adicionalmente, de 10% da CFEM destinada aos estados e municípios. Desta forma, o Fundo seria composto por 18% do total arrecadado a título de CFEM (10% + 2% dos estados + 6% dos municípios) sendo, desta forma, capaz de suportar o financiamento das políticas e iniciativas a que se destina.
7) Participação social na definição de prioridades anuais para o uso dos recursos da CFEM pelos estados e municípios, com transparência ativa por meio de publicação nos sites institucionais de cada ente dos gastos com identificação da fonte de recursos referente à CFEM.
Ao contrário do discurso do setor, segundo o qual não há espaço para aumentar a tributação na mineração, acreditamos que a conjuntura vivenciada no país exige a discussão sobre qual modelo de mineração queremos e qual tributação é necessária e possível.
*O Inesc e o MAM integram o Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração
[1] Isto permitia deduzir despesas com transporte, seguro, mas também uma série de outras despesas operacionais que erodiam a base de cálculo e reduziam a cobrança da CFEM. O Brasil era conhecido como o único país do mundo a permitir tamanha erosão da base de cálculo da CFEM que equivale aos chamados Royalties Minerais.
[2] – Na proposta do governo e no relatório há uma tentativa de coibir essa prática pela definição de casos em que a empresa exporta para pessoas jurídicas a ela vinculadas, devendo neste caso ser usado como base para o cálculo da CFEM um preço parâmetro ou valor de referência que também leve em conta o teor da jazida. Este assunto dada sua complexidade e abrangência global necessita de um debate mais aprofundado, que esteve, também ausente das audiências públicas onde a matéria foi debatida.
[3] Em Catalão no Goiás, há 10 anos as mineradoras extraem nióbio e devem cerca de 200 milhões ao município.
A “farinata” do Doria: armadilha de soluções fáceis, preconceituosas e ineficientes
Desde o final dos anos 1980, celebramos mundialmente o Dia da Alimentação em 16 de outubro – data que corresponde à criação da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), em 1945. De acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a nossa Constituição, todos os seres humanos têm direito à alimentação.
Aqui no Brasil, infelizmente, não temos muito que celebrar. A fome, que tínhamos eliminado, volta a nos rondar. Cresce o número de pessoas que não se alimentam adequadamente. O desemprego, os salários baixos, os cortes nas políticas sociais, a retração dos investimentos e os ataques às terras e territórios dos agricultores familiares, dos povos indígenas e dos povos e comunidades tradicionais fazem com que milhões de pessoas tenham suas condições de vida precarizadas. Ao invés de irmos para frente, estamos caminhando para trás.
Não é por outra razão que passamos vexame no cenário internacional: “levamos pito” de laureados de Prêmio Nobel e de Relatores Independentes de Direitos Humanos e de Erradicação da Extrema Pobreza, da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização dos Estados Americanos (OEA).
A esse cenário bastante assustador soma-se o pesadelo das falsas soluções, daquelas “para inglês ver”, ou seja, “para efeito de aparência, sem validez”, segundo definição do Houaiss. O exemplo emblemático é o da “farinata” do João Doria, prefeito de São Paulo. Trata-se de composto preparado a partir de alimentos próximos do vencimento para ser distribuído aos pobres. Proposta por instituição pouco transparente – pois pelo seu site não se consegue saber o que é e quem a sustenta – a Plataforma Sinergia, essa ração para os desvalidos, revela o caráter preconceituoso e fascizante daqueles que pregam sua distribuição. Vejamos por quê.
Dizem seus propagandistas que a “farinata” elimina o desperdício, pois recicla alimentos que seriam jogados fora; reduz custos, porque diminui as despesas do setor privado, bem como os gastos do setor público; combate à fome, uma vez que alimenta aqueles que nada ou pouco tem para comer. Contudo, esses argumentos não se sustentam. Nossa própria experiência em políticas públicas de alimentação e nutrição os desconstrói.
Já tivemos outras “farinatas”, variações sobre o mesmo tema. Este foi o caso, por exemplo, dos alimentos formulados distribuídos por intermédio do Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE, conhecido como “merenda escolar”. Célebre auditoria minuciosamente realizada pelo Tribunal de Contas da União nos anos de 1990 revelou a falácia dos formulados, pois eram rejeitados pelos alunos, seu custo para o erário público era exorbitante, resultado da cartelização das indústrias do setor e de práticas de corrupção. Em decorrência desses absurdos, deu-se a grande guinada no PNAE, que foi a valorização dos alimentos in natura, aqueles oriundos da agricultura familiar e que respeitam os hábitos alimentares dos estudantes. De lá para cá, estudos científicos, nacionais e internacionais, vêm comprovando a centralidade dos alimentos não processados ou pouco processados para a saúde da população.
A nossa experiência também tem demonstrado que a forma mais eficiente de eliminar a fome é por meio de uma atuação intersetorial do Estado: somente a articulação e a integração de políticas públicas de alimentação e nutrição, de saúde, de educação, de transferência de renda e de geração de emprego – associadas a ações de acesso à terra, territórios e crédito para os produtores familiares, indígenas e tradicionais – são capazes de debelar a insegurança alimentar. Foi isso que o Brasil fez nos últimos anos e como resultado saiu do Mapa da Fome das Nações Unidas em 2014. Não existem soluções milagrosas: a distribuição de uma ração elaborada a partir de restos de comida além de não resolver o problema é um desrespeito profundo à dignidade das pessoas mais pobres.
Pensávamos que a era das respostas fáceis, falaciosas e em geral lideradas por empresas do setor alimentício – não podemos esquecer que a dirigente da Plataforma Sinergia já foi da Monsanto, um gigante do setor – tivessem sido superadas. Vê-se que não. O projeto do prefeito Dória é mais uma ação midiática que revela, novamente, sua visão preconceituosa e discriminatória em relação aos vulneráveis – para eles, os “restos”.
Urge acabar com essas bravatas. Sabemos que a promoção da alimentação adequada e saudável para todos, pobres e ricos, mulheres e homens, negros e brancos, requer a produção de alimentos em base familiar e agroecológica, livre de transgênicos e de agrotóxicos, que respeite nossos saberes e práticas alimentares bem como a nossa sociobiodiversidade. Uma alimentação diversa, colorida e saborosa, degustada com aqueles e aquelas que amamos. Digamos não à farinata!
No Dia Mundial Sem Carro, o jornal Correio Braziliense (edição impressa, de 22/09/2017) publicou artigo dos assessores políticos do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), Cleo Manhas e Yuriê Baptista, sobre a situação da mobilidade urbana no Distrito Federal.
Leia a íntegra do texto:
Pensar Brasília para pessoas, não para carros
Cleo Manhas e Yuriê Baptista, assessores do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e integrantes do Movimento Nossa Brasília.
O Distrito Federal, assim como milhares de outras regiões metropolitanas no planeta, sofre com os problemas gerados pelo excesso de automóveis nas ruas. São congestionamentos (com os espaços nas ruas mal divididos com o transporte coletivo), veículos estacionados em todos os lugares, mortes decorrentes de colisões, poluição sonora e do ar, e tantos outros problemas.
Por ser uma cidade modernista, Brasília teve, desde o nascedouro, um planejamento voltado preferencialmente para carros, em detrimento de uma mobilidade ativa, que priorizasse pessoas. Infelizmente, o pensamento do urbanista que planejou a capital, Lúcio Costa, não vingou, quando disse que os veículos individuais seriam domesticados. Ocorreu o contrário: eles se expandiram e ocuparam todos os espaços, até mesmo dos pedestres, que ficaram sem calçadas, transformadas que foram em estacionamentos.
A opção rodoviarista tem gerado incontáveis custos para a saúde pública. Em 2015, o Inesc fez um estudo do orçamento da mobilidade e um exercício para ver o quanto é gasto do orçamento da saúde com acidentes de trânsito. E quando comparamos os gastos dentro do orçamento temático da mobilidade, o dado é bastante relevante, pois se gasta muito mais com o atendimento aos acidentados do que com campanhas preventivas. Estimou-se que o gasto com a educação foi de cerca de 10% em relação ao gasto com acidentes, mesmo que não se tenha números precisos, visto que os acidentes são subnotificados.
Fica-se no eterno dilema de que, enquanto o transporte público não for adequado, não é possível adotar medidas de restrição ao uso do automóvel. O que não percebem é que esse mesmo sistema ‘inadequado’ funciona para cerca de 1 milhão de pessoas que se deslocam diariamente de transporte coletivo no DF, sem contar com as mais de 200 mil pessoas que moram no entorno e se deslocam para o Plano Piloto todos os dias.
Além disso, há uma ilusão vendida pela indústria do automóvel, de que o motorista sempre encontrará ruas vazias, passando assim sensação de uma falsa liberdade para quem usa o carro; ou mesmo de status por possuir um bem como um automóvel, que dialoga com a sociedade de consumo, “para se ter sucesso é preciso ter um carro potente”. No entanto, também já se sabe que a redução da velocidade nas cidades é uma necessidade não só de humanização do espaço público, como também de fruição do trânsito.
Os sucessivos governantes do DF continuam achando que é mais fácil repetir os mesmos erros do que inovar para tornar Brasília uma cidade mais humana. Por terem mandatos de quatro anos, os governantes preferem não enfrentar a cultura arraigada de que todas as pessoas devem ter carros particulares e infraestrutura adequada para a sua circulação. E, em vez de criarem campanhas educativas e políticas de restrição do uso dos automóveis, para a implantação de uma nova cultura mais humanizada, preferem continuar apostando no que a maior parte da população acredita ser o melhor caminho, até por não terem experimentado outras formas.
Com relação ao Plano Piloto, onde há durante o dia uma intensa circulação de pessoas de diversas partes do DF, é preciso superar a leitura de que o tombamento não permite alterar o seu traçado. Ora, uma das diretrizes do tombamento é a “circulação livre de pedestres garantida pela ausência de barreiras de qualquer natureza, até mesmo cercas-vivas, nos pilotis e espaços públicos”. No entanto, é necessário que a população e o governo se conscientizem que uma via, onde a velocidade permitida é de 80 km/h, como o Eixão, que corta todo Plano Piloto, é um muro que separa a cidade em duas. A ausência de iluminação pública e segurança também são barreiras, especialmente para as mulheres, para quem a cidade é mais perigosa.
A semana da mobilidade e o dia mundial sem carro é um momento de, coletivamente, a população e governo refletirem sobre outras possibilidades de cidades, mais inclusivas, mais democráticas, mais humanizadas. Para pessoas, não para carros.