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Há esperança para o financiamento do SUS

Por Grazielle David*, para o site Outras Palavras

Depois de sucessivas desilusões, eis que surge uma esperança, jurídica, para o financiamento da Saúde Pública: a restituição dos royalties do petróleo como recurso financeiro adicional, por decisão liminar na Ação Direta de Inconstitucionalidade no 5.595. Processo foi liberado esta semana para entrar em pauta no plenário do STF.


Breve histórico do financiamento da saúde pública

Quando da promulgação da Constituição em 1988, no artigo que menciona que a saúde é direito de todos e dever do Estado, “esqueceram” de dizer de onde viria o dinheiro. Em uma busca constante e incansável por um financiamento adequado, apoiadores do SUS foram ao Legislativo e ao Judiciário em busca do que poderia vir a salvar não apenas a vida do SUS, mas de diversos brasileiros.

Somente após 12 anos, uma primeira vitória parecia surgir no horizonte. A Emenda Constitucional no 29/2000 iniciou o processo para garantir um valor mínimo a ser aplicado em ações e serviços públicos de saúde. Porém, ela descreveu apenas de onde o dinheiro deveria vir no caso dos estados e municípios, mas não o valor. No caso da União foi pior, uma nova Lei teria que ser editada. Assim, a busca do SUS por um financiamento adequado, progressivo e justo permaneceu. Foram mais 12 anos para que a Lei Complementar 141/2012 fosse aprovada. Ali, finalmente, as fontes e porcentagens de recursos foram estipuladas.

A luz da esperança para o financiamento mais progressivo para o SUS ganhou brilho no ano seguinte com a Lei no 12.858/2013, que tratou da vinculação de parcela da participação no resultado ou da compensação financeira pela exploração de petróleo e gás natural – dos contratos firmados a partir de 3/12/2012 sob os regimes de concessão, de cessão onerosa e de partilha de produção, exploradas em plataforma – no montante de 25% para a saúde e de 75% para a educação.

Porém, essa luz durou pouquíssimo tempo. Em 2015, primeiro ano de nova leva de medidas de austeridade fiscal no Brasil, pós crise econômica global de 2008, uma nova Emenda Constitucional no 86 foi aprovada e com ela as esperanças de um financiamento mais adequado para o SUS foram pelo ralo. Isso porque além de reduzir os recursos financeiros para o SUS com um escalonamento ao longo de 5 anos, para finalmente chegar em 15% da Receita Corrente Líquida – RCL, colocaram os royalties do petróleo como uma das fontes para o cumprimento do mínimo a ser aplicado em saúde. Assim, uma receita que deveria ser adicional tornou-se parte do mínimo. Uma receita ainda pequena, mas com grande potencial de crescimento.

O resultado foi uma aplicação baixa em saúde para o ano de 2016. Nesse momento, mais uma vez os defensores do SUS** foram buscar no Judiciário a defesa de recursos financeiros apropriados, o que resultou na Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI no 5.595. Um ano depois, em 31/08/2017, o Ministro do Supremo Tribunal Federal – STF, Ricardo Lewandowski, deferiu medida liminar suspendendo os efeitos de artigos da EC 86, que tratavam do escalonamento e inserção dos royalties no cálculo do mínimo a ser aplicado em saúde. A liminar foi emitida para evitar que o Orçamento de 2018 para a saúde seja elaborada com recursos inferiores e para que o valor devido seja restituído em 2017, de acordo com art. 25 da LC 141.

Os efeitos da liminar na ADI 5.595

Com a suspensão dos artigos 2º e 3º da EC 86 pela liminar e a manutenção do artigo 1º, a União passaria a ter que aplicar em saúde 15% da RCL mais os royalties do petróleo como recurso adicional. Ocorre que isso teria que valer desde quando a EC 86 passou a vigorar, tendo um efeito temporal no valor que foi aplicado em saúde em 2016. Assim, a União deveria corrigir o valor que havia aplicado, saindo de 13,2% da RCL com os royalties incluídos no mínimo a ser aplicado em saúde, para 15% da RCL mais os 25% dos royalties do petróleo dos contratos a partir de 3/12/2012. Isso quer dizer que há uma previsão de ter que ocorrer uma complementação de R$ 2,48 bilhões ao orçamento da Saúde referente a 2016.

Fonte: Siga Brasil; Tesouro Transparente

Elaboração: própria

*O valor da RCL considerada foi de R$ 722 bilhões, conforme consta no site da STN, referente ao RREO do 6º bimestre de 2016. Caso seja considerada a RCL de R$ 709 bilhões, conforme DOU de 07 de junho de 2017, o valor a ser restituído caí para R$ 600,3 milhões.

** O valor empenhado (LC 141/12) foi de R$ 106,7 bilhões, porém como ocorreu cancelamento de restos a pagar no montante de R$ 428,3 milhões e também o Acórdão TCU-Plenário 31/2017 ditou que R$ 559 milhões empenhados em despesas com a capitalização da Hemobras e com o Programa Nacional de Reestruturação dos Hospitais foram indevidos, o valor empenhado considerado é de R$ 105,9 bilhões.

Detalhando um pouco mais os cálculos sobre os royalties do petróleo para a saúde: eles haviam sido incorporados como fonte para o mínimo da saúde, e sequer foram utilizados em sua totalidade. De R$ 10,8 milhões, apenas aplicaram R$ 139,5 mil; como demonstrado abaixo. Agora, deveria ser um recurso adicional e aplicado em sua totalidade.

 

Em 2017, os 15% da RCL já foram a base de cálculo em decorrência da EC no 95 de 2016, conhecida como Teto dos Gastos, que também já havia suspendido o efeito do art. 2º da EC86. Porém, agora, com a liminar, o orçamento do SUS deverá também ser complementado, de forma adicional, com os 25% dos royalties do petróleo. Isso representa R$ 21 milhões a mais a ser investido em Saúde em 2017, conforme apurado em 09/09/17 no Portal Siga Brasil, o que ainda pode aumentar até o fim do ano.

Cabe destacar a potencialidade ao longo dos anos que os royalties do petróleo representam para a saúde como um recurso adicional: de R$ 10,8 milhões em 2016 já está em R$ 21 milhões em 2017, um crescimento de 94,4% em apenas um ano.

A perversidade do “Teto dos Gastos”, mais uma vez

Entretanto, assim como ocorreu em toda a história do financiamento do SUS e de todas as políticas públicas promotoras de direito, existe o risco de a liminar ter seu brilho ofuscado. E isso pode ocorrer por culpa da EC 95.

Como existe um limite para os gastos sociais, um aumento nos recursos para a saúde, com o adicional dos royalties, pode representar menos recursos ainda para outras políticas públicas essenciais. A questão é que a saúde das pessoas é extremamente influenciada por diversos outros setores, como saneamento básico, habitação, acesso à água potável, educação. O resultado é que o “teto dos gastos” pode inviabilizar a melhora da saúde da população por cortar recursos financeiros para outras políticas, mesmo com mais orçamento indo para o SUS. Essa questão foi inclusive defendida pelo Ministro na sua liminar: “alterações que impliquem retrocesso no estágio de proteção dos direitos e garantias fundamentais não são admissíveis, ainda que a pretexto de limites orçamentário-financeiros”, em consonância com o princípio de não retrocesso social. Isso quer dizer que, a cada avanço na proteção dos direitos, não é possível voltar atrás, inclusive no seu financiamento, mesmo com a justificativa de dificuldades financeiras.

Uma forma de garantir um adequado financiamento do SUS, sem afetar outras políticas públicas, seria a ministra do STF, Rosa Weber, declarar inconstitucional o teto para saúde e educação na ADI 5.658, na qual é relatora. Ainda mais adequada seria a revogação da EC 95, por sua inviabilidade técnica e humanitária. Por fim, considerando que hoje, 12/09/17, o processo da ADI 5595 foi liberado para entrar na pauta do plenário do STF***, é essencial a defesa da sociedade para que a decisão seja no mesmo sentido em que foi a liminar, defendendo o não retrocesso dos direitos sociais e visando garantir um financiamento mais adequado para a saúde.

Vamos falar sobre Orçamento e Direitos?

Ações

*Assessora política do Inesc – Instituto de Estudos Socioeconômicos; conselheira do Cebes – Centro Brasileiro de Estudos em Saúde; Mestre em Saúde Coletiva/Economia da Saúde; especialista em direito sanitário, orçamento público e bioética.

** Informação publicada no artigo de 12/09/17 da Dra. Élida Graziane Pinto, procuradora do Ministério Público de Contas de SP, que trata dos argumentos jurídicos em defesa da liminar cedida na ADI 5595. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2017-set-12/contas-vista-stf-reconhece-direito-custeio-adequado-direitos-adi-5595



*** Importante destacar entidades da reforma sanitária como CEBES, ABRASCO, ABRES, IDISA, outras; Conselho Nacional de Saúde, em nome do Francisco Funcia; acadêmicos; técnicos do Executivo, em nome da Fabíola Vieira e Rodrigo Benevides; membros do judiciário, MP, TC, em nome da Dra. Élida Graziane; indivíduos e membros de movimentos sociais e organizações da sociedade civil; e especialmente trabalhadores e usuários do SUS.

 

Dos muitos cenários previstos para o país após 2013, nenhum superou a realidade de hoje

Há poucos anos, exatamente em 2013, um grupo de organizações da sociedade civil brasileira se reuniu para pensar os cenários possíveis frente a novos fatos que ocorriam na nossa sociedade.

Uma série de expressivas manifestações de rua irromperam em todo o Brasil. Como a explosão de uma grande represa, mostravam em sua insatisfação, de forma contundente, uma agenda para o País. Ao mesmo tempo, expressavam uma repulsa aos partidos políticos e a forma como as instituições do Estado brasileiro estavam sendo conduzidas.

Era uma rejeição da política enquanto tal, ainda que, seu meio de expressão fosse profundamente político. Uma luz vermelha se acendia. No ano seguinte houve o processo eleitoral que reelegeu a candidata do Partido dos Trabalhadores, Dilma Rousseff. O resto da história, continuamos vivendo, como capítulos de um seriado de terror, onde a realidade consegue ser mais absurda que o script mais criativo da Netflix.

Nos perguntávamos se o Brasil teria condições de trilhar um caminho de desenvolvimento socialmente inclusivo e ambientalmente sustentável e ainda manter seu papel de protagonismo no cenário internacional?

Os anos de redemocratização tinham sido profícuos com avanços na conquista de direitos humanos, por meio de políticas sociais que, de fato, fizeram a diferença. O Brasil, melhorousua posição no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Os programas de transferência de renda beneficiaram mais de 50 milhões de pessoas, segundo dados oficiais, que conseguiram – ainda que de forma precária – maior inserção na sociedade de consumo.

A população, historicamente marginalizada, em especial a população negra, conseguiu ampliar seus direitos; os agricultores familiares passaram a contar com políticas públicas específicas, tão importantes para um setor que é responsável por mais de 70% de determinados alimentos que vão para a mesa dos brasileiros e brasileiras; o salário mínimo conheceu expressiva valorização em termos reais e a formalização do mercado de trabalhou aumentou. Enfim, dados e análises referentes aos últimos anos são fartos e unanimes na afirmação de que a vida da população mais pobre melhorou em todos os níveis, ainda que, os ricos, ficaram também mais ricos. Entretanto, esse modelo desenvolvido pelo PT, estava no fim, batia no teto.

A frágil social democracia à brasileira estava longe da perfeição. Questões estruturais responsáveis por abismos de desigualdades históricas persistiam: o racismo, o patriarcalismo e a lesbohomofobia, que são responsáveis não somente por apathaids sociais, mas também pela morte de milhares de mulheres, jovens negros e de integrantes da comunidade LGBTI. Entre as fragilidades, detectamos um sistema político viciado e esgotado, um modelo tributário regressivo que perpetuava as injustiças, um total descompromisso com as populações indígenas, que foram abandonadas por falta de recursos e de políticas públicas, um tipo de desenvolvimento que valorizava a extração dos recursos naturais em detrimento do meio ambiente e do clima.

Esse País contraditório, com manifestações de desagrado nas ruas, parecia mostrar, que queria mais democracia, mais políticas públicas para a sua população. Mais igualdade.

Exercitamos assim, naquela ocasião, três cenários para o Brasil até 2020.

Cenário I – pessimista

Neste cenário, o Brasil apenas se recupera de uma sucessão de crises internacionais, com uma economia semi-estagnada, retornando a inflação à casa dos dois dígitos, redução dos gastos com políticas públicas, continuidade da criminalização dos movimentos sociais e afastamento do governo dos movimentos que contribuíram para sua eleição. A inserção global do Brasil se dando, cada vez mais profundamente, por intermédio de produtos primários as custas do meio ambiente. Mercado interno em contração, concentração de renda e poder ampliando-se. A agricultura familiar é deslocada em favor do agronegócio. Espaços urbanos marcados pela guerra civil e pelo narcotráfico.

O Brasil segue uma trajetória errática, a guerra cambial prossegue no plano global, o país sofre ataques especulativos, desvaloriza a moeda e eleva os juros. A crise internacional se agrava, afetando o motor chinês, que até então impulsionava o preço das commodities na economia mundial.

O primeiro cenário concluía que o Brasil estaria bastante fragilizado e sem potencial de expansão interna e externa. A desigualdade é naturalizada sem qualquer esforço de superação devido à ausência de políticas sociais que ataquem as discriminações de raça, etnia, gênero e orientação sexual. A natureza pouco importa, assim como os povos e comunidades que nela habitam.

Cenário II – intermediário

A economia encontra um ritmo mais dinâmico em função do crescimento do mercado para as commodities e crescimento do mercado interno e regional. Com indicadores econômicos alvissareiros, a luta contra a pobreza extrema continua e segue a universalização do ensino básico. O Brasil se afirma como global player, com forte protagonismo internacional.

No plano interno seguem as desigualdades que caracterizam a sociedade brasileira. Desigualdade de renda, concentração fundiária e desrespeito ao meio ambiente e aos territórios indígenas; vida urbana marcada pela violência e precária condição de vida para os mais pobres. O sistema político não é revisto e continua expressando a concentração de renda e poder no Legislativo. Baixa escuta da sociedade civil. O descolamento entre o social e o político é agravado pela manutenção do monopólio dos meios de comunicação. Volta do desemprego e tentativa de desmontar o frágil Estado de Bem-Estar Social conquistado nos últimos trinta anos.

A conclusão deste cenário é que a economia consegue sustentar taxas razoáveis de crescimento econômico, acima dos países desenvolvidos e abaixo das economias dos países em desenvolvimento.Cenário global de estabilização de preços das commodities devido à continuidade do crescimento chinês.

Cenário III – otimista

O País do quase sonho. Uma economia dinâmica e um País menos desigual. Uma política econômica mais soberana e uma reconfiguração das instituições, tornando-as mais inclusivas e com melhor distribuição de poder. Um mercado interno crescente e dinâmico, altos níveis de emprego, mais crédito de longo prazo para a população. Economia regional dinamizada e mais integrada. O Brasil exportando produtos agrícolas, industriais e serviços e avançando nos segmentos intensivos de tecnologia.

No plano global, um papel proativo nos temas ambientais e de direitos humanos; internamente caminha-se rumo à preservação do meio ambiente, à diminuição dos gases de efeito estufa e a universalização das políticas sociais, como saúde, educação e habitação. Os movimentos sociais influenciando e monitorando as políticas públicas.

Este é o cenário quase ideal, de um País que combina uma economia dinâmica, sociedade vibrante, participativa e sustentável.

Nenhum dos 3 foi capaz de antecipar os dias de hoje: cenário IV – o apocalipse

Em 2017, vemos que nem o pior dos três cenários construídos há apenas quatro anos vigora. Temos a tristeza de conviver com um governo ilegítimo, corrupto, que governa para seu próprio interesse –  aliado aum parlamento majoritariamente envolto em processos judiciais e que legisla em causa própria, totalmente deslocado dos anseios da população brasileira. Tanto é assim, que a popularidade do governo Temer é da ordem de 5%! Congelamento e cortes de gastos e de investimentos, aumento de impostos, venda do território nacional aos estrangeiros, permissão para mineração na Amazônia, recrudescimento do desmatamento das florestas primárias e não demarcação e invasão das terras indígenas.

Essa ação perversa do governo em exercício acaba resultando em uma anomia social: aumento da pobreza e da fome; assassinatos de lideranças camponesas, indígenas e de defensores de direitos humanos; e crescimento da violência nos centros urbanos penalizando, principalmente, jovens negros das favelas e periferia. Além da criminalização de organizações e movimentos sociais e doaumento da concentração de renda.

Do País sonhado ficam o desejo e a expectativade que um dia a inteligência e a solidariedade sejam abundantes e consigam matar o individualismo, o egoísmo, o casuísmo e a mentalidade tacanha de uma elite que vai morrer, não há dúvida, porque está apodrecendo, mas até lá insiste em espalhar maldades.

(Publicado originalmente na Caros Amigos)

Fluxos Financeiros e Paraísos Fiscais: Uma Combinação para Limitar a Vida de Bilhões de Pessoas

Análise dos fluxos financeiros globais que impactam países em desenvolvimento pelo mundo, com ênfase nos efeitos prejudiciais dos paraísos fiscais elaborada pelo Centro de Pesquisa Aplicada, Escola de Economia da Noruega (SNF), Global Financial Integrity (GFI), Universidade Jawaharlal Nehru, Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e Instituto Nigeriano de Pesquisa Social e Econômica.

Clique aqui para baixar o arquivo PDF do estudo.

Governo temerário traz a fome de volta

Por Nathalie Beghin e Iara Pietricovsky, do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) para o site do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI)

As Nações Unidas abrigaram recentemente em Nova York uma reunião de alto nível para discutir o progresso dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Um dos temas em discussão foi o Objetivo 2, batizado de Fome Zero, inspirado na bem-sucedida experiência brasileira de eliminar a fome, atestada pela FAO em 2014.

Note-se a relevância que o Brasil já teve no cenário internacional, pois suas políticas públicas foram capazes de influenciar um dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030, assinada em 2015 por 193 países.

Em função desse debate global, começou a circular a informação de que o Brasil estava retrocedendo em um dos objetivos, o de erradicar a fome, pois a insegurança alimentar e nutricional voltou a assombrar o país.

Dados oficiais revelam que a pobreza vem recrudescendo. Segundo o IBGE, 9,2% de famílias tinham em 2015 rendimento per capita inferior a um quarto de salário-mínimo, um dos indicadores de medição da fome. Em 2014, essa proporção era de 7,9%, o que corresponde a um aumento de 16% em apenas um ano.

Como a redução da pobreza no Brasil nos últimos anos esteve fortemente atrelada à melhora real dos rendimentos das famílias, que vêm caindo desde 2014, a chaga da miséria se torna novamente uma questão em nosso país. O Banco Mundial diz a mesma coisa. Em estudo publicado recentemente, o Banco calcula que o número de pessoas vivendo na pobreza extrema no Brasil deverá aumentar entre 2,5 milhões e 3,6 milhões até o final de 2017.

Organizações da sociedade civil vêm produzindo dados na mesma direção. A Fundação Abrinq lançou relatório que evidencia que cerca de 6 milhões de crianças vivem atualmente na pobreza extrema, o que equivale a toda a população da cidade do Rio de Janeiro. Já a Oxfam Brasil nos informa que apenas 6 homens brancos detém renda equivalente à metade mais pobre da população brasileira, que equivale a 100 milhões de pessoas!

Apesar de evidências indiscutíveis, pois produzidas por entidades idôneas, o governo em exercício no Brasil tem a ousadia de afirmar que está tudo bem. Em relatório elaborado por conta da reunião de Nova York acima mencionada, o presidente da República chega a afirmar que tal relatório “constitui, também, exercício de prestação de contas, em primeiro lugar perante a sociedade brasileira, das medidas que nosso governo vem adotando em nome de um país mais próspero e justo, com oportunidades para todos – até mesmo para as gerações futuras”. A pergunta que não quer calar é: como o aumento da fome e da miséria pode ser resultado de medidas inclusivas e justas?

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A afirmação do Temer no relatório brasileiro revela que o atual governo se mostra insensível ao aumento da pobreza e da fome, bem como da destruição dos recursos naturais do país. O Inesc vem mostrando, por meio de uma série de notas e textos, que todas as medidas implementadas nos últimos meses com o pretexto de “combater a crise” afetam, única e exclusivamente, os que menos têm.

Estamos nos referindo à emenda constitucional que congela os gastos públicos por 20 anos e que irá diminuir em termos reais os recursos disponíveis para saúde, educação, assistência social e segurança alimentar e nutricional, entre outros; aos cortes orçamentários que afetam proporcionalmente mais as políticas voltadas para os mais vulneráveis; à reforma trabalhista que resulta na precarização das relações de trabalho e na diminuição da renda dos trabalhadores e das trabalhadoras; à implementação de parcerias público-privadas que contribuem para enfraquecer ainda mais o combalido Estado e sua capacidade de promover políticas de combate às desigualdades, fome e pobreza além de constituírem-se em mecanismos de corrupção; à reforma da Previdência que penaliza a base da pirâmide e, especialmente mulheres e negros.

Especialistas como Luciana Jaccoud do Ipea mostram que a reforma da Previdência Social irá excluir 44% das mulheres urbanas ocupadas da aposentadoria, além de aumentar as desigualdades entre homens e mulheres, e de elevar a desproteção no campo. Estima-se que essa exclusão afete entre 60% e 80% dos que se aposentariam.

Temos ainda as medidas de flexibilização das leis ambientais, que impactarão os povos indígenas e os povos e comunidades tradicionais; a reforma ministerial que ceifou a institucionalidade voltada para os excluídos (agricultores familiares com a extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário; mulheres com a extinção da Secretaria de Políticas para as Mulheres; negros com a extinção da Secretaria de Igualdade Racial; povos indígenas com o esvaziamento da FUNAI); e o aumento de impostos indiretos (PIS e Cofins nos combustíveis) que agrava a regressividade da carga tributária fazendo com que os mais pobres paguem proporcionalmente mais.

A extorsão dos mais vulneráveis somam-se às benesses concedidas aos mais ricos: o direito de invadir terras indígenas e florestas para expansão do agronegócio e das mineradoras; o perdão de dívidas de grandes empresas; a privatização de serviços públicos que abre novos mercados para o setor privado; e a implementação de parcerias público-privadas que transformam a infraestrutura, em todos os níveis federativos, na nova fronteira de acumulação e lucratividade para investidores nacionais e estrangeiros.

Enfim, eliminam-se os obstáculos (institucionais, sociais, ambientais, culturais e trabalhistas) que possam postergar ou afetar a rentabilidade esperada pelo setor empresarial.

Na lógica dos governantes de plantão, comprovadamente corruptos, pouco importa a volta da fome, já que conseguem, mesmo sem voto e sem popularidade, a façanha de assegurar o enriquecimento das elites. Não há qualquer interesse, nem vontade política, de caminhar na direção dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Por isso é preciso resistir mais que nunca, e lutar para impedir os retrocessos porque a grande maioria da população brasileira só tem a perder com esse arranjo político em exercício.

Nós – ONGs, movimentos sociais e ativistas do campo democrático e popular – temos a obrigação legal e moral de denunciar diuturnamente as violações de direitos humanos perpetuadas por esse governo temerário. Temos um longo caminho pela frente, mas a causa é justa e é isso que mantém nossa chama viva!

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O Distritão impacta nossas vidas?

A recente decisão do Congresso Nacional de rejeitar a denúncia contra o presidente Michel Temer, além de não levar a sério as denúncias e as provas factíveis que apontam para práticas de corrupção, reforçam os caminhos para as várias reformas colocadas no horizonte político brasileiro.

Uma dessas reformas é a reforma política, amplamente debatida, a pelo menos dez anos, pela sociedade civil organizada. Igrejas, organizações não governamentais, movimentos sociais têm discutido e proposto mecanismos para a superação de velhas práticas patrimonialistas e clientelistas tão características da nossa política. Um dos resultados concretos desse trabalho foi o fim do financiamento empresarial para campanhas eleitorais.

Agora muitos parlamentares têm pressa em agilizar esta Reforma. Para eles, ela tem sido tão prioritária quanto a Reforma da Previdência. É claro que quando existe pressa há sempre uma intenção nem sempre transparente. No caso da Reforma Política são as eleições de 2018, caso ocorram.

Se poderia dizer que está tudo bem que o parlamento discuta a reforma política. No entanto, o problema é a quase ausente vontade de ouvir a sociedade civil sobre o tema e de desconsiderar o que tem sido elaborado pelo conjunto das organizações sociais sobre esta agenda.

Um dos pontos problemáticos da reforma política é um sistema eleitoral que tem sido chamado de “distritão”.

Nesse modelo, serão eleitas as pessoas mais votadas para os parlamentos, independente da votação que o partido teve. Este sistema reforça o personalismo na política e retira todo o caráter coletivo que a política deve ter. É fácil de entender que esta proposta não irá superar o clientelismo.

Aparentemente poderíamos pensar que isso não tem muita analisamos com atenção a proposta, é possível perceber que esse modelo irá garantir a continuidade da cultura baseada no abuso de poder político e econômico. Isso significa que esse modelo irá garantir que as velhas oligarquias políticas e econômicas reinem soberanas.

Há muito se critica no Brasil a compra de votos. No entanto, um modelo como o “distritão” garantirá que essa prática continue valendo. Este é um modelo, portanto, que fragiliza a cidadania e faz da política única e exclusivamente um caminho para manter as velhas elites no poder.

Novamente pode se fazer a pergunta, de como este sistema pode impactar diretamente nas nossas vidas, até porque, já nos acostumamos com as elites no poder.  Com isso, não nos apropriamos desse tema. Mas, estamos errados em pensar assim, porque a Reforma Política, impacta diretamente em nossas vidas.

Desde o impedimento da Presidenta Dilma Rousseff, uma das questões sobre as quais mais se tem debatido é a democracia. As manifestações contra o golpe, as vigílias inter-religiosas pela democracia tinham como elemento comum o reconhecimento da diversidade cultural, religiosa e de gênero.

E por que reivindicar o direito à diversidade? Por que nosso país é um país plural e a democracia brasileira precisa expressar essa pluralidade. Ora, se olharmos para o Congresso Nacional, veremos que ele não representa a pluralidade do nosso país.

A grande maioria dos parlamentares são homens, alinhados com os interesses de grandes corporações do agronegócio e do mercado financeiro. Eles também são brancos e a grande maioria é contrária às políticas públicas que poderiam responder à divida histórica que o país tem com os descendentes de escravos. Não temos parlamentares representando os povos indígenas, por isso, não surpreende os ataques sistemáticos do Congresso Nacional contra os direitos dessas populações. Temos somente uma pessoa que representa  a população LGBTT. E as mulheres são representadas por um número pequeno de deputadas e senadoras engajadas com as pautas dos movimentos de mulheres. O Congresso, portanto, não representa a população brasileira.

Além disso tudo, há outra questão muito séria, que diz respeito à religião. A constituição brasileira estabelece a separação entre religião e estado. Essa separação não inibe a cooperação entre estado e religião, sempre que a cooperação seja voltada para o interesse público. Porém, essa cláusula de nossa Constituição tem sido gradativamente desconsiderada. Cada vez mais temos representações religiosas cristãs no Congresso Nacional. Poderíamos perguntar: qual é o problema disso? Um parlamentar não pode ter religião? Sim, é claro que pode. No entanto, o que tem acontecido no Brasil é diferente. Aqui, os parlamentares religiosos atuam a partir das doutrinas, dogmas e valores da sua tradição de fé. Essa prática é incoerente com a Constituição.  Quando uma pessoa assume uma função pública ela precisa atuar em favor do conjunto da sociedade. O que rege os espaços de política representativa é a Constituição Federal e não preceitos dessa ou daquela religião.

A presença religiosa no Congresso Nacional tem reforçado agendas que são contrárias ao meio-ambiente, contrárias às demarcações de terras indígenas e quilombolas, desconsideram a melhoria das políticas públicas para as mulheres e têm se posicionado contrários à diversidade religiosa brasileira.

As posturas quase nada abertas para o diálogo do parlamento também tem se refletindo na sociedade. Basta ver a perseguição sofrida pelas pessoas de tradições africanas, indígenas, muçulmanas. Em muitos municípios tramitam, por exemplo, leis que querem proibir o abate de animais nas celebrações de matriz africana. Em outros, impedem que crianças indígenas frequentem as escolas com suas pinturas e tem surgido a intolerância e perseguição a muçulmanos com base na lei anti-terrorismo. Apesar disso, estas tantas tradições de fé não estão representadas no Congresso Nacional. Não há quem fale por elas.

Poder-se-ia dizer que elas também podem se candidatar e concorrer a cargos. Minha resposta seria não. No ambiente de representação política as pessoas precisam orientar-se com base em valores republicanos e democráticos, pois elas devem trabalhar e atuar olhando o conjunto da sociedade.

Por fim, essa simbiose entre religião e política, impacta diretamente na vida das mulheres. Não é raro ver parlamentares desrespeitando parlamentares mulheres. Mas, são estes parlamentares que decidem sobre leis relacionadas à vida das mulheres. Nosso país é patriarcal. Para o patriarcalismo não cabe à mulher a autonomia. Orientados por valores religiosos, parlamentares propõem projetos de lei que negam um conjunto de direitos para as mulheres.

O baixo percentual de representação de mulheres no Congresso faz com que a força das mulheres para lutar por leis que garantam a igualdade seja desproporcional em relação a dos homens. Um exemplo recente foi a aprovação da reforma trabalhista, que, entre outras coisas, possibilita que mulheres grávidas e lactantes trabalhem em locais insalubres de grau baixo e médio.

Todas essas questões e muitas outras têm relação direta com o sistema político. Por isso, o “ Distritão”  não é um sistema democrático, pois além de encarecer as eleições, ele não garante a igualdade de condições para as pessoas concorrerem. Grupos sociais economicamente mais fragilizados jamais terão chance de concorrer com pessoas das antigas elites ou representantes delas.

Creio que a resposta à pergunta se o “ distritão”  impacta nas nossas vidas está respondida. É justamente porque este sistema não favorece a democracia que ele está sendo articulado às escondidas.  Como sociedade é importante que nos apropriemos dessa discussão e não aceitemos que algo tão relevante seja definido sem nós. Não cabe ao Congresso decidir as coisas relacionadas às nossas vidas sem ouvir a nossa voz.

São Paulo é protótipo para legalizar ineficiência na gestão de medicamentos

Por Grazielle David, assessora política do Inesc.

Foi aprovado na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados proposta que autoriza empresas e comércios a doarem remédios com prazo próximo do fim de validade em troca de benefícios tributários, assim como vem ocorrendo em São Paulo. O texto aprovado é um substitutivo do relator deputado Dr. Sinval Malheiros (Pode-SP) ao Projeto de Lei 5691/16, do deputado Flavinho (PSB-SP).

No texto original do projeto de lei, o remédio só poderia ser doado se estivesse dentro de pelo menos 20% do prazo de validade. Na versão do texto substitutivo, bastará que os medicamentos a serem doados estejam dentro do tempo de validade na data da doação.

Com isso, os medicamentos poderão ser doados com prazo muito próximo ao fim de sua validade, o que poderá tornar inviável a efetividade da medida. Por dois motivos: ou porque não haverá tempo suficiente para a logística da distribuição e entrega à população, ou porque o paciente não conseguirá tomar o medicamento dentro do período de validade – se ele recebe uma caixa de remédio com 30 comprimidos que vencerão em dois dias, provavelmente não conseguirá se beneficiar da doação. E ainda ficará com a responsabilidade do descarte do material.

O relator do projeto de lei incluiu ainda no texto a permissão para doação diretamente a pessoas físicas. Pela proposta original, a doação seria só para pessoa jurídica sem fins lucrativos, com o repasse dos medicamentos aos seus pacientes que atendem, sob supervisão médica ou mediante receita médica. Essa nova autorização do texto substitutivo é preocupante, pois a doação direta à pessoa física pode facilitar a comercialização do medicamento doado ou o uso do produto sem prescrição médica.

Como contrapartida, os medicamentos doados gerarão créditos tributários aos doadores relativos a tributos federais. O deputado Malheiros retirou a limitação que obrigava o uso dos créditos somente no abatimento dos impostos na compra de novos medicamentos iguais aos doados. Outro benefício à empresa é que ela não terá que arcar com o custo do descarte de medicamentos vencidos.

O caso da Prefeitura de São Paulo é um exemplo emblemático do quão ineficiente e lesiva aos cofres públicos é essa proposta. A Secretaria Municipal de Saúde recebeu uma doação de medicamentos que, se fossem comprados diretamente, custariam R$ 35 milhões. No entanto, as empresas doadoras receberam isenção tributária no ICMS no valor de R$ 66 milhões – o saldo é um prejuízo de R$ 31 milhões para a Prefeitura – fora o custo pelo descarte de medicamentos, que foi transferido das empresas para a administração pública.

O que na teoria parece um ato bondoso, na prática é pernicioso, ao ampliar o gasto público ao mesmo tempo em que reduz o acesso a medicamentos da população. Uma renúncia tributária é um gasto público indireto. Assim, os gastos públicos federais, já bastante limitados pela lei do “teto dos gastos” são ainda mais pressionados com o governo fazendo uma transferência de recursos para o setor corporativo farmacêutico via créditos tributários. Isso em troca de uma medida extremamente ineficiente de “doação” de medicamentos com prazo de validade tão no limite que sequer dá tempo de serem dispensados e utilizados pela população brasileira que deles necessita.

projeto de lei federal segue para a Comissão de Finanças e Tributação, sob relatoria do deputado Paulo Henrique Lustosa (PP-CE) e deve passar ainda pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, antes de ser votado pelo Plenário da Câmara.

Leia também:

Direito a medicamentos: avaliação das despesas com medicamentos no âmbito federal do Sistema Único de Saúde entre 2008 e 2015

Semana da Mulher – Dia Internacional da Mulher – 8 de março de 2017

Para marcar o Dia Internacional da Mulher deste ano, o Inesc decidiu juntar forças com o site Outras Palavras para a publicação de uma série de artigos sobre os atuais desafios do feminismo e como a maior parte das lutas são transversais. Reunindo textos dos assessores políticos do Inesc, a série abordou temas como justica fiscal, direito à cidade, igualdade racial, educação e homo e transfobia.

Para cada texto, também foi produzido um card com mensagem sobre o tema em questão para ser divulgado pelas redes sociais. Reunimos todo o material nesta página para sua comodidade.

E seguimos na luta! Nenhum direito a menos!

SEGUNDA-FEIRA – 6/3

O primeiro dos artigos publicados foi sobre educação e feminismo, escrito por Marcia Acioli, mestre em Antropolia Aplicada à Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB).

Marcia discute a incapacidade do atual modelo de educação de abordar temas cada vez mais fundamentais às jovens estudantes, como sexismo, identidades de gênero, sexualidade e cultura não padronizada. “A despeito da escola, meninas estão construindo alternativas, querem expressar sua sexualidade e o seu desejo sem censura”, diz Marcia, lembrando que elas “desejam, sobretudo, a pleniturde da existência e construir nova lógica social”.

Um trecho do artigo de Marcia Acioli:

Comprometida com o desenvolvimento de uma visão de mundo, a educação é indispensável para a promoção de uma nova ordem social. Portanto, quanto antes se inicia o trabalho pedagógico com o foco na equidade de gênero, maior é a possibilidade da formação de sujeitos mais sensíveis e dispostos a uma relação equânime, livre de opressões e de assimetrias.”

Leia aqui a íntegra do artigo.

TERÇA-FEIRA 7/3

Como se dá a relação das mulheres com os espaços públicos das cidades? Essa foi a reflexão proposta por Cleo Manhas no segundo artigo da série, “O direito à cidade, a esfera pública e as mulheres”, discutindo as interdições de gênero nos espaços públicos e a falta de políticas públicas inclusivas e justas nas cidades brasileiras.

Cleo Manhas é mestre em Educação e Políticas Públicas pela Universidade de Brasília (UnB) e articuladora do Movimento Nossa Brasília, que tem o direito à cidade e a mobilidade urbana entre seus temas de atuação. Em seu artigo, Cleo afirma que o controle sobre os corpos das mulheres é socialmente forte e, por isso, as cidades se tornam espaços inóspitos e violentos para as mulheres, “onde ficamos expostas a assédios de variadas formas”.

Historicamente as cidades foram divididas entre lugares para homens e lugares para mulheres, entendendo o público como masculino e o privado como feminino. No entanto, esta realidade mudou e as mulheres ocuparam os espaços públicos, porém, a geografia desses espaços não acompanhou as mudanças na mesma velocidade, até porque, vivemos em uma sociedade machista, racista, classista, valores que sustentam um sistema capitalista que a tudo privatiza, especialmente, a urbis.”

Leia aqui a íntegra do artigo.

QUARTA-FEIRA 8/3 – DIA INTERNACIONAL DA MULHER

A greve internacional de mulheres proposta para o Dia Internacional da Mulher em 2017 é um passo importante para um novo ciclo de legitimação das demandas de povos historicamente discriminados, como os negros. Segundo Layla Maryzandra, autora do terceiro artigo de nossa série, “com o slogan “Se nosso trabalho não vale, produzam sem nós”, há de se refletir que o trabalho em massa está nas mãos desses povos, sobretudo das mulheres negras” e, justamente por isso, é importante renovar as demandas desse dia de luta.

Layla é pedagoga, especializada em História e Cultura Afrobrasileira e Africana, e em Educação em Direitos Humanos pela Universidade Federal de Goiás (UFG), e coordena o Fórum da Juventude Negra de Brasília.

Quando mulheres negras chamam atenção sobre interseccionar às lutas, ela demonstra que apesar de estar num espaço extremamente marginalizado, esse mesmo espaço faz com que ela visualize a sociedade de outra forma: isso é herança malunga, é ver para além das brechas do navio, são os elementos simbólicos de sua origem reacendendo em suas memórias através do discurso político.

Assim, a mulher negra foi convivendo com esses saberes simbólicos, que foram se organizando e reorganizando, tanto para dentro do movimento de mulheres como para fora, em combate a uma conjuntura que nunca foi favorável a elas. O próprio 8 de março – Dia Internacional da Mulher, ainda não é um dia em que todos os movimentos de mulheres negras se sintam confortáveis para chamar de seu, e para atribuí-lo a uma luta histórica sua também, devido à deslegitimidades e silenciamentos ainda presentes no movimento de mulheres.”

Leia aqui a íntegra do artigo.

QUINTA-FEIRA 9/3

Por que histórias como as de Luana e Veronica, uma mulher lésbica e outra trans, violentamente torturadas por policiais, têm que ser trazidas à visibilidade no mês da mulher – e em qualquer outro espaço e data de luta e resistência contra os poderes estabelecidos? Luana morreu e Veronica foi desfigurada. Ambas foram humilhadas e tiveram seus direitos desprezados, uma múltipla violação de direitos humanos que são “tijolos a mais na construção de uma sociedade racista e machista que cala diante de tamanha violência”, afirma Carmela Zigoni, assessora política do Inesc, doutora em Antropologia Social pela Universidade de Brasília (UnB) com especialização em Gênero e Sexualidade pela Universidade de Amsterdã e em Avaliação e Monitoramento de Políticas Públicas pela Escola Nacional de Administração Pública (Enap).

“O silêncio é quase generalizado, seja na imprensa de massa, seja nos próprios veículos alternativos de mídia, com poucas e exceções. Cabe aos movimentos LGBTI, ao lado de familiares e amigos, buscar manter a vivas suas histórias”, afirma Carmela no quarto artigo da série do Inesc publicada na Semana da Mulher.

Um trecho do artigo de Carmela:

Luana e Veronica foram vítimas de violência porque não se encaixavam nos discursos de sexo e gênero dominantes. O feminino é construído como “falta” ou “ausência” em nossa sociedade, a opressão do patriarcado contra a qual lutam os movimentos de mulheres. Quando o feminino se descola da norma, subvertendo e exigindo o poder sobre o corpo monopolizado pelas autoridades médica e jurídica (geralmente masculinas e brancas), tem-se uma negação do sujeito ainda maior.

Ou seja, se às mulheres cis brancas heterossexuais são negados direitos fundamentais, no caso de mulheres lésbicas e mulheres trans a negação é total. Se acionamos a Judith Butler em diálogo com Beatriz Preciado, podemos dizer que a mulher lésbica e a mulher trans, ao se colocarem no mundo assumindo suas identidades e desejos, apesar da opressão e violência, apesar da negativa social em vê-las como pessoas, de alguma forma rompem com as epistemologias dominantes do gênero, do sexo, e por consequência, do controle. A norma é o masculino [branco], o regime político dominante é o heteronormativo.

Leia aqui a íntegra do artigo.

DOMINGO 12/6

O quinto e último artigo de nossa série para a Semana da Mulher abordou o tema da Justiça Fiscal e sua relação com os direitos das mulheres. A assessora Grazielle David explicou como a arrecadação de impostos pode financiar políticas públicas e programas sociais para garantir e ampliar esses direitos. A luta por igualdade de gênero, afirma Grazielle, tem uma forte dimensão fiscal, já que somente a justiça tributária é capaz de assegurar serviços públicos de qualidade e impede a penalização social das mulheres.

“Quando os serviços públicos deixam de receber um financiamento adequado, e quando os impostos não são arrecadados e alocados de forma justa, são as mulheres que pagam o preço mais alto”, explica Grazielle no artigo. “E entre as mulheres, são as negras que arcam com a carga mais pesada, uma vez que são elas que pagam proporcionalmente mais impostos que os demais segmentos sociais no Brasil, conforme estudo do Inesc.”

O texto elenca 7 motivos pelos quais a Justiça Fiscal é necessária para promover os direitos das mulheres. São eles:

1. #JustiçaFiscal melhora os níveis de educação

2. #JustiçaFiscal reduz a carga sobre as mulheres em decorrência dos trabalhos e cuidados não remunerados

3. #JustiçaFiscal possibilita o acesso das mulheres a serviços de saúde que salvam vidas

4. #JustiçaFiscal reduz a violência contra mulheres

5. Quando as multinacionais e os muito ricos não pagam seus tributos devidos, dói mais nas mulheres

6. #JustiçaFiscal garante o acesso à água limpa que mantém as mulheres mais seguras e constrói sua emancipação econômica

7. #JustiçaFiscal oferece proteção social para mulheres

Um trecho do artigo de Grazielle David:

Os tributos que pagamos de variadas formas são a fonte mais sustentável de receitas que um governo pode ter. Eles bancam a maioria dos serviços públicos dos quais as sociedades dependem, especialmente as mulheres. É por isso que defendemos a justiça fiscal com arrecadação e alocação orçamentárias sensíveis a gênero. Outros elementos, como a questão racial e diversidade étnica devem ser consideradas ao se pensar em justiça fiscal, uma vez que para o alcance dos direitos humanos é necessário que os orçamentos sejam não discriminatórios.

Leia aqui a íntegra do artigo.

8 de Março para Luana e Veronica

Luana Barbosa dos Reis e Veronica Bolina não foram esquecidas. No entanto, a invisibilidade social que cerca a morte da primeira e prisão da segunda fazem parte da lesbofobia e transfobia, ao lado do racismo, determinantes das relações em nossa sociedade.  A múltipla violação de direitos humanos pelas quais elas passaram são tijolos a mais na construção de uma sociedade racista e machista que cala diante de tamanha violência. O silêncio é quase generalizado, seja na imprensa de massa, seja nos próprios veículos alternativos de mídia, com poucas e exceções. Cabe aos movimentos LGBTI, ao lado de familiares e amigos, buscar manter a vivas suas histórias.

Neste 8 de Março, Dia Internacional das Mulheres, trago-as lado a lado neste texto porque elas têm algo em comum: são mulheres negras periféricas que sofreram violência policial por não estarem de acordo com as normas hegemônicas de gênero. Se tradicionalmente o 8M marca a luta das mulheres por direitos, é na conjuntura política do avanço das forças conservadoras e aprofundamento das desigualdades econômicas que o chamado de Angela Davis desde os Estados Unidos revela a urgência de uma reorganização das resistências a partir dos movimentos de mulheres. E estes movimentos devem incluir as mulheres lésbicas e as mulheres trans, além de tomar o racismo como uma pauta central.

No Brasil, uma visão crítica permeia o 8 de Março, na medida em que a data não seria representativa da diversidade de mulheres e das formas diferenciadas de como as violações de direitos as impactam.  É bom lembrar que essa crítica [legítima] também foi feita internamente ao feminismo enquanto movimento social e na produção acadêmica, daí a emergência de feminismos no plural. No caso da convocação à greve, chama-se a atenção, também, para o fato de que as mulheres mais pobres não podem simplesmente “parar”, com perigo de perderem os empregos ou o dia de ganho em suas atividades produtivas.

As críticas antes e hoje são positivas e geram efeitos, e podemos compreender o próprio processo de construção deste 8 de Março como um momento de reafirmação de lutas específicas, como os movimentos de mulheres negras, do campo, indígenas, bissexuais, lésbicas e trans; mas também das latinas em relação às negras norte-americanas, e destas em relação às feministas brancas e assim sucessivamente: o fato é, a mobilização de mulheres em 2017, está ganhando visibilidade e adesão, além de estar produzindo muito debate sobre as desigualdades.

Homenagem à Luana Barbosa  mulher trans assassinadaLuana Barbosa dos Reis foi espancada por ser lésbica, “considerada masculina” pelos policiais que a revistaram. Ela se negou a ser violada – pois somente uma policial feminina poderia revistá-la de acordo com a lei –, disse ser mulher, mostrou os seios, mas seu feminino, sua maternidade [ela tinha um filho de 14 anos], seus estudos, seus conhecimentos sobre seus direitos, nada disso fez diferença para os agentes de “segurança”. Mesmo após o pedido de investigação imparcial feito em Nota pública do Alto Comissariado de Direitos Humanos das Nações Unidas para América do Sul e da ONU Mulheres Brasildestacando o risco de impunidade de um caso emblemático de racismo e a lesbofobia, em fevereiro deste ano o caso foi arquivado pela Justiça Militar por ausência de provas materiais de crime militar, e agora será investigado pela Polícia Civil.

Veronica Bolina foi torturada por ser travesti. Em que pesem acusações sobre ela, pelas quais está presa, nada justifica o espancamento e exposição de suas fotos na internet. Seu rosto foi transfigurado e seu corpo nu fotografado pelos próprios agentes policiais, que disponibilizaram as fotos na internet. A última notícia que encontrei sobre Veronica na internet é de maiode 2016, e traz uma importante reflexão sobre as constantes violações às quais são submetidas travestis e transexuais no sistema carcerário brasileiro.

Luana e Veronica foram vítimas de violência porque não se encaixavam nos discursos de sexo e gênero dominantes. O feminino é construído como “falta” ou “ausência” em nossa sociedade, a opressão do patriarcado contra a qual lutam os movimentos de mulheres. Quando o feminino se descola da norma, subvertendo e exigindo o poder sobre o corpo monopolizado pelas autoridades médica e jurídica (geralmente masculinas e brancas), tem-se uma negação do sujeito ainda maior.

Foto Verônica Bolina
Reprodução/Instagram

Ou seja, se às mulheres cis brancas heterossexuais são negados direitos fundamentais, no caso de mulheres lésbicas e mulheres trans a negação é total. Se acionamos a Judith Butler em diálogo com Beatriz Preciado, podemos dizer que a mulher lésbica e a mulher trans, ao se colocarem no mundo assumindo suas identidades e desejos, apesar da opressão e violência, apesar da negativa social em vê-las como pessoas, de alguma forma rompem com as epistemologias dominantes do gênero, do sexo, e por consequência, do controle. A norma é o masculino [branco], o regime político dominante é o heteronormativo.

Como eram lidas Luana e Veronica? O gênero é, ao lado da raça e da classe, uma classificação construída socialmente, necessária ao controle dos corpos para o capital. É na experiência colonial que estas categorias começam a se entrelaçar, por isso a interseccionalidade responde às nossas questões mais urgentes relativas às desigualdades na atualidade. As identidades sexo-diversas, em trânsito, onde masculino e feminino são mais deslizantes e resistem ao binarismo, a construção e poder sobre si, respondem resistindo e pautando a estrutura hegemônica que informa os gêneros. Com os povos escravizados, Luana e Veronica também compartilham a diáspora negra. Eram mulheres negras e periféricas. O racismo é estruturante de nossa sociedade e trata-se de um sistema de exploração e reprodução de privilégios. No caso de Veronica, ainda lhe é imputada a “loucura”, como forma de reafirmar seu caráter “agressivo” e “perigoso”, como se a criminalização dos corpos negros não fosse a própria norma social no Brasil [e nos Estados Unidos]. Em suma, Luana e Veronica foram lidas, no momento das agressões [e provavelmente em outros momentos] a partir de opressão de gênero, de classe e de raça. O fato de serem elas uma mulher trans e uma mulher lésbica interseccionam ainda mais sua vulnerabilidade social.

Se buscamos informações sobre a violação de direitos de mulheres negras, mulheres trans e mulheres lésbicas, podemos compreender como Luana e Veronica eram vulneráveis ao que lhes ocorreu. Segundo a ONG Transgender Europe (TGEU), entre janeiro de 2008 e março de 2014, foram registradas 604 mortes de pessoas trans no país, o que coloca o Brasil entre os países que mais mata transgêneros, transexuais e travetis no mundo. Somente em 2016 foram 144, de acordo com a Rede Trans Brasil. A Liga Brasileira de Lésbicas (LBL) estima que cerca de 6% das vítimas de estupro que procuraram o Disque 100 do Governo Federal em 2012 eram mulheres lésbicas. E, dentro desta estatística, havia um percentual considerável de denúncias de estupro corretivo. O Mapa da Violência 2015 elaborado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), aponta um aumento de 54% em dez anos no número de homicídios de mulheres negras, passando de 1.864, em 2003, para 2.875, em 2013. No mesmo período, a quantidade anual de homicídios de mulheres brancas caiu 9,8%, saindo de 1.747 em 2003 para 1.576 em 2013.

O que significam estas violências e mortes sistemáticas, pouco divulgadas na mídia, pouco apuradas pelo sistema de justiça? Significa que estas violências são autorizadas socialmente, e autorizadas também pelo Estado.

As lutas das mulheres lésbicas e mulheres trans vem dizer à sociedade que as amarras de gênero da nossa sociedade, iniciadas com a chamada nomeação primária dada pelos médicos (é um menino, é uma menina), e legitimada pelas instituições familiar e jurídica, não encontram eco na realidade das múltiplas possibilidades de vivenciar o masculino e o feminino.

As lutas das mulheres negras vem dizer que elas estão em luta contra o racismo e pelo bem viver à revelia do racismo que as oprime desde sempre, contra o racismo institucional e a violação de direitos. Assim, ao lado das mães, irmãs e companheiras dos jovens negros assassinados cotidianamente no país, Luana e Veronica também são a face feminina do genocídio da juventude negra no Brasil. Elas sofreram grave violência em situações onde a polícia estava presente. Uma lésbica negra, uma mulher trans negra.

Muito se tem falado sobre crise civilizatória no campo da esquerda. Colunistas, acadêmicos, ativistas. No entanto, não sei se por ingenuidade ou cinismo, pois essa crise civilizatória é bastante anterior, e a conjuntura política atual vem revelar como as estruturas coloniais, como o patriarcado e a escravidão, uma vez não descontruídas, seguem determinando nossas relações sociais. Um exemplo disso é a “nova escravidão” da qual nos fala Angela Davis, ao denunciar o encarceramento em massa dos corpos negros como atividade lucrativa; mas também ao denunciar a militarização das relações sociais em todo o mundo. Aqui no Brasil, tristemente, mas não inesperadamente, o método tem sido o mesmo.

De forma legítima, as mulheres negras elegeram o 25 de Julho como o seu dia, e as pessoas trans tem o seu dia da visibilidade, 29 de janeiro. No entanto, Luana e Veronica devem ser trazidas à tona, à visibilidade, neste “mês da mulher” e em qualquer outro espaço e data de luta e resistência que questionem os poderes estabelecidos. É pela visbilididade lésbica, é pela visbilidade trans, é contra o racismo e pelo bem viver.

*Quem escreve este texto é uma mulher cis lésbica de classe média. Trata-se de uma contribuição que se apequena diante de Luana e Veronica, e do que suas histórias representam. Agradeço a generosidade de Antonella, Caetano e Ludmila, que dialogaram sobre a limitação do lugar de fala, mas também sobre a necessidade de dar visibilidade às mulheres lésbicas negras e às mulheres trans negras neste 8 de Março.

8 de Março para Luana e Veronica

Luana Barbosa dos Reis e Veronica Bolina não foram esquecidas. No entanto, a invisibilidade social que cerca a morte da primeira e prisão da segunda fazem parte da lesbofobia e transfobia, ao lado do racismo, determinantes das relações em nossa sociedade.  A múltipla violação de direitos humanos pelas quais elas passaram são tijolos a mais na construção de uma sociedade racista e machista que cala diante de tamanha violência. O silêncio é quase generalizado, seja na imprensa de massa, seja nos próprios veículos alternativos de mídia, com poucas e exceções. Cabe aos movimentos LGBTI, ao lado de familiares e amigos, buscar manter a vivas suas histórias.

Neste 8 de Março, Dia Internacional das Mulheres, trago-as lado a lado neste texto porque elas têm algo em comum: são mulheres negras periféricas que sofreram violência policial por não estarem de acordo com as normas hegemônicas de gênero. Se tradicionalmente o 8M marca a luta das mulheres por direitos, é na conjuntura política do avanço das forças conservadoras e aprofundamento das desigualdades econômicas que o chamado de Angela Davis desde os Estados Unidos revela a urgência de uma reorganização das resistências a partir dos movimentos de mulheres. E estes movimentos devem incluir as mulheres lésbicas e as mulheres trans, além de tomar o racismo como uma pauta central.

No Brasil, uma visão crítica permeia o 8 de Março, na medida em que a data não seria representativa da diversidade de mulheres e das formas diferenciadas de como as violações de direitos as impactam.  É bom lembrar que essa crítica [legítima] também foi feita internamente ao feminismo enquanto movimento social e na produção acadêmica, daí a emergência de feminismos no plural. No caso da convocação à greve, chama-se a atenção, também, para o fato de que as mulheres mais pobres não podem simplesmente “parar”, com perigo de perderem os empregos ou o dia de ganho em suas atividades produtivas.

As críticas antes e hoje são positivas e geram efeitos, e podemos compreender o próprio processo de construção deste 8 de Março como um momento de reafirmação de lutas específicas, como os movimentos de mulheres negras, do campo, indígenas, bissexuais, lésbicas e trans; mas também das latinas em relação às negras norte-americanas, e destas em relação às feministas brancas e assim sucessivamente: o fato é, a mobilização de mulheres em 2017, está ganhando visibilidade e adesão, além de estar produzindo muito debate sobre as desigualdades.

Homenagem à Luana Barbosa  mulher trans assassinadaLuana Barbosa dos Reis foi espancada por ser lésbica, “considerada masculina” pelos policiais que a revistaram. Ela se negou a ser violada – pois somente uma policial feminina poderia revistá-la de acordo com a lei –, disse ser mulher, mostrou os seios, mas seu feminino, sua maternidade [ela tinha um filho de 14 anos], seus estudos, seus conhecimentos sobre seus direitos, nada disso fez diferença para os agentes de “segurança”. Mesmo após o pedido de investigação imparcial feito em Nota pública do Alto Comissariado de Direitos Humanos das Nações Unidas para América do Sul e da ONU Mulheres Brasildestacando o risco de impunidade de um caso emblemático de racismo e a lesbofobia, em fevereiro deste ano o caso foi arquivado pela Justiça Militar por ausência de provas materiais de crime militar, e agora será investigado pela Polícia Civil.

Veronica Bolina foi torturada por ser travesti. Em que pesem acusações sobre ela, pelas quais está presa, nada justifica o espancamento e exposição de suas fotos na internet. Seu rosto foi transfigurado e seu corpo nu fotografado pelos próprios agentes policiais, que disponibilizaram as fotos na internet. A última notícia que encontrei sobre Veronica na internet é de maiode 2016, e traz uma importante reflexão sobre as constantes violações às quais são submetidas travestis e transexuais no sistema carcerário brasileiro.

Luana e Veronica foram vítimas de violência porque não se encaixavam nos discursos de sexo e gênero dominantes. O feminino é construído como “falta” ou “ausência” em nossa sociedade, a opressão do patriarcado contra a qual lutam os movimentos de mulheres. Quando o feminino se descola da norma, subvertendo e exigindo o poder sobre o corpo monopolizado pelas autoridades médica e jurídica (geralmente masculinas e brancas), tem-se uma negação do sujeito ainda maior.

Foto Verônica Bolina
Reprodução/Instagram

Ou seja, se às mulheres cis brancas heterossexuais são negados direitos fundamentais, no caso de mulheres lésbicas e mulheres trans a negação é total. Se acionamos a Judith Butler em diálogo com Beatriz Preciado, podemos dizer que a mulher lésbica e a mulher trans, ao se colocarem no mundo assumindo suas identidades e desejos, apesar da opressão e violência, apesar da negativa social em vê-las como pessoas, de alguma forma rompem com as epistemologias dominantes do gênero, do sexo, e por consequência, do controle. A norma é o masculino [branco], o regime político dominante é o heteronormativo.

Como eram lidas Luana e Veronica? O gênero é, ao lado da raça e da classe, uma classificação construída socialmente, necessária ao controle dos corpos para o capital. É na experiência colonial que estas categorias começam a se entrelaçar, por isso a interseccionalidade responde às nossas questões mais urgentes relativas às desigualdades na atualidade. As identidades sexo-diversas, em trânsito, onde masculino e feminino são mais deslizantes e resistem ao binarismo, a construção e poder sobre si, respondem resistindo e pautando a estrutura hegemônica que informa os gêneros. Com os povos escravizados, Luana e Veronica também compartilham a diáspora negra. Eram mulheres negras e periféricas. O racismo é estruturante de nossa sociedade e trata-se de um sistema de exploração e reprodução de privilégios. No caso de Veronica, ainda lhe é imputada a “loucura”, como forma de reafirmar seu caráter “agressivo” e “perigoso”, como se a criminalização dos corpos negros não fosse a própria norma social no Brasil [e nos Estados Unidos]. Em suma, Luana e Veronica foram lidas, no momento das agressões [e provavelmente em outros momentos] a partir de opressão de gênero, de classe e de raça. O fato de serem elas uma mulher trans e uma mulher lésbica interseccionam ainda mais sua vulnerabilidade social.

Se buscamos informações sobre a violação de direitos de mulheres negras, mulheres trans e mulheres lésbicas, podemos compreender como Luana e Veronica eram vulneráveis ao que lhes ocorreu. Segundo a ONG Transgender Europe (TGEU), entre janeiro de 2008 e março de 2014, foram registradas 604 mortes de pessoas trans no país, o que coloca o Brasil entre os países que mais mata transgêneros, transexuais e travetis no mundo. Somente em 2016 foram 144, de acordo com a Rede Trans Brasil. A Liga Brasileira de Lésbicas (LBL) estima que cerca de 6% das vítimas de estupro que procuraram o Disque 100 do Governo Federal em 2012 eram mulheres lésbicas. E, dentro desta estatística, havia um percentual considerável de denúncias de estupro corretivo. O Mapa da Violência 2015 elaborado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), aponta um aumento de 54% em dez anos no número de homicídios de mulheres negras, passando de 1.864, em 2003, para 2.875, em 2013. No mesmo período, a quantidade anual de homicídios de mulheres brancas caiu 9,8%, saindo de 1.747 em 2003 para 1.576 em 2013.

O que significam estas violências e mortes sistemáticas, pouco divulgadas na mídia, pouco apuradas pelo sistema de justiça? Significa que estas violências são autorizadas socialmente, e autorizadas também pelo Estado.

As lutas das mulheres lésbicas e mulheres trans vem dizer à sociedade que as amarras de gênero da nossa sociedade, iniciadas com a chamada nomeação primária dada pelos médicos (é um menino, é uma menina), e legitimada pelas instituições familiar e jurídica, não encontram eco na realidade das múltiplas possibilidades de vivenciar o masculino e o feminino.

As lutas das mulheres negras vem dizer que elas estão em luta contra o racismo e pelo bem viver à revelia do racismo que as oprime desde sempre, contra o racismo institucional e a violação de direitos. Assim, ao lado das mães, irmãs e companheiras dos jovens negros assassinados cotidianamente no país, Luana e Veronica também são a face feminina do genocídio da juventude negra no Brasil. Elas sofreram grave violência em situações onde a polícia estava presente. Uma lésbica negra, uma mulher trans negra.

Muito se tem falado sobre crise civilizatória no campo da esquerda. Colunistas, acadêmicos, ativistas. No entanto, não sei se por ingenuidade ou cinismo, pois essa crise civilizatória é bastante anterior, e a conjuntura política atual vem revelar como as estruturas coloniais, como o patriarcado e a escravidão, uma vez não descontruídas, seguem determinando nossas relações sociais. Um exemplo disso é a “nova escravidão” da qual nos fala Angela Davis, ao denunciar o encarceramento em massa dos corpos negros como atividade lucrativa; mas também ao denunciar a militarização das relações sociais em todo o mundo. Aqui no Brasil, tristemente, mas não inesperadamente, o método tem sido o mesmo.

De forma legítima, as mulheres negras elegeram o 25 de Julho como o seu dia, e as pessoas trans tem o seu dia da visibilidade, 29 de janeiro. No entanto, Luana e Veronica devem ser trazidas à tona, à visibilidade, neste “mês da mulher” e em qualquer outro espaço e data de luta e resistência que questionem os poderes estabelecidos. É pela visbilididade lésbica, é pela visbilidade trans, é contra o racismo e pelo bem viver.

*Quem escreve este texto é uma mulher cis lésbica de classe média. Trata-se de uma contribuição que se apequena diante de Luana e Veronica, e do que suas histórias representam. Agradeço a generosidade de Antonella, Caetano e Ludmila, que dialogaram sobre a limitação do lugar de fala, mas também sobre a necessidade de dar visibilidade às mulheres lésbicas negras e às mulheres trans negras neste 8 de Março.

Direito à cidade, esfera pública e as mulheres

Nesta Semana da Mulher, o Inesc vai atuar em parceria com o site Outras Palavras com a publicação conjunta de artigos que examinam questões importantes de gênero e do movimento feminista em nosso cotidiano. O primeiro dessa série é sobre educação.

Acompanhe também nossas publicações pelo Twitter e Facebook (#8M e #Inesc8M).

Por Cleo Manhas, assessora política do Inesc.

A proposta aqui é dialogar com outras pessoas sobre as cidades, a esfera pública e as mulheres, tendo como mote o Dia Internacional da Mulher. Bom momento de reflexão sobre o não reconhecimento e as interdições de gênero nos espaços públicos, que em geral são masculinos e tentam, a todo momento e a todo custo, constranger mulheres, devolvê-las ao espaço privado de onde, aparentemente para o machismo e o patriarcalismo, nunca deveriam ter saído.

Bela, recatada e do lar. Essa foi a chamada de uma reportagem feita por uma revista de grande circulação, sobre a atual primeira-dama. Além do reforço a um estereótipo de mulher que cuida do privado enquanto o homem trabalha no espaço público, traz a ideia de que ser do lar é respeitoso, resguarda e protege as mulheres e seus corpos. Um contraponto à luta feminista, em constante disputa pelos espaços públicos e privados, pois nem sempre quatro paredes são protetoras, a violência doméstica é uma constante e, em briga de marido e mulher, é preciso sim meter a colher, tornar público, judicializar e punir agressores.

O controle sobre os corpos das mulheres é muito forte socialmente, por isso essa eterna força que faz das cidades espaços inóspitos e violentos, onde ficamos expostas a assédios de variadas formas. Para muitas a violência que vai além dos assédios, são ao mesmo tempo alvos da violência machista e responsabilizadas por ela, pela forma como interagem no espaço público.

E antes de avançar na reflexão sobre mulheres e cidades, é necessário esclarecer que não é possível falar de mulher ou feminismo no singular, são mulheres e feminismos, visto que há grandes diferenças, por exemplo, quando estamos falando de mulheres brancas, classe média, cisgênero, heterossexuais e mulheres negras faveladas cis e hetero e ainda mulheres, negras, faveladas, lésbicas ou mulheres transexuais. Somos seres multifacetadas, com suas distinções e diferenças. E se as cidades não são amigáveis com o primeiro grupo, imagine com os demais? Além de as cidades terem espaços interditados para mulheres de maneira geral, por serem pensadas por e para homens, há ainda as interdições por privatização de espaços públicos que não permitem a convivência com mulheres negras, lésbicas, trans.Momentos em que todas as desigualdades se juntam em um só corpo.

Então: direito à cidade e feminismo, o que temos a dizer sobre isso? Por que a relação ou a não relação? Como perguntaria um cineasta brasiliense, a cidade é uma só? Há várias cidades na cidade. Divididas e hierarquizadas, em geral segregadas. Os locais mais centrais, onde concentram os postos de trabalho não são os mais habitados, ao contrário, a maior parte da população precisa se descolocar por grandes distâncias. E aí mora o perigo, as mulheres de baixa renda gastam mais de três horas em deslocamentos, saem de suas casas muito cedo, ainda escuro, e retornam muito tarde. Os bairros periféricos, em geral, são pouco iluminados e inseguros. O transporte público é de má qualidade e lotado, facilitando o assédio que é corriqueiro em ônibus, metrôs e trens.

A resposta dada por alguns governos municipais aos assédios em transporte público foi, no caso do metrô, criar vagões exclusivos. Foi uma decisão polêmica, sem consenso, mesmo entre os movimentos feministas. E sem querer discutir se os vagões são necessários ou não, só uma problematização: as mulheres que não estiverem nos vagões exclusivos estão liberadas para serem assediadas? Ao que parece esta decisão mais uma vez as responsabiliza pela violência sofrida, ao precisarem ficar segregadas se não quiserem sofrer violações. Os espaços públicos não estão abertos e liberados, elas precisam esconder seus corpos se quiserem respeito.

As cidades em geral não são amistosas com a população periférica, mas as mulheres sofrem mais. Só no dia 2 de março o jornal Correio Braziliense veiculou uma notícia em três partes, a manchete principal dizia que na noite anterior uma jovem de 19 anos havia sido estuprada na parada de ônibus. Na sequência diz que uma aposentada de 62 anos foi estuprada por um vizinho embriagado. Por último, uma criança de 12 anos sofreu violência sexual no caminho da escola. Isso em apenas um dia na capital do país. Casos que foram registrados, pois há inúmeros não computados porque os equipamentos públicos oferecidos nas cidades para as mulheres registrarem ocorrência também não são amigáveis. Na maioria das vezes a vítima “torna-se” a culpada, conforme já problematizado aqui.

Como e por quem são pensadas as políticas públicas?

Historicamente as cidades foram divididas entre lugares para homens e lugares para mulheres, entendendo o público como masculino e o privado como feminino. No entanto, esta realidade mudou e as mulheres ocuparam os espaços públicos, porém, a geografia desses espaços não acompanhou as mudanças na mesma velocidade, até porque, vivemos em uma sociedade machista, racista, classista, valores que sustentam um sistema capitalista que a tudo privatiza, especialmente, a urbis.

E não há tradição no Brasil de se pensar políticas e planos participativamente, ouvindo de fato as usuárias de tais serviços públicos. Não é assim com a saúde e educação, que são tradicionalmente mais vivas no cotidiano das mulheres, o que dizer da mobilidade, apesar de termos de nos deslocar cotidianamente. As cidades não foram planejadas para as pessoas, mas sim para o capital, para as grandes empreiteiras e grandes corporações. E as formas de ir e vir e onde é o seu espaço na urbis determinam as relações sociais para com o local.

Mesmo que esses espaços urbanos sejam vivenciados de diversas formas por diferentes grupos sociais e pelos distintos gêneros, apesar de serem públicos, há inúmeras interdições culturais nos variados lugares e recantos das cidades. As distancias e os deslocamentos também são determinantes para as relações sociais nos espaços ditos públicos.

E quem pensa as políticas para as cidades? Sejam de mobilidade, segurança, uso e ocupação do solo? Em geral homens brancos que transitam de carro privado, não utilizam os espaços urbanos de fato, não circulam de transporte público coletivo.

Há reflexões importantes a serem feitas para mudanças de rumo, em primeiro lugar pensar que cidade queremos e quais as políticas necessárias para a sua concretização. A cidade é de todas as pessoas, portanto, as questões de igualdade e de reconhecimento devem estar presentes quando se pensa políticas. E as sujeitas das políticas devem participar ativamente em sua concepção.

É importante pensar a cidade e a esfera pública para quem nela convive, reconhecendo as desigualdades de gênero e, de forma participativa, pensar nas políticas, para que sejam de fato promotoras de direito e construtoras de espaços de convivência que contemplem, respeitem e sejam dignos das diferentes pessoas que nelas vivem.

Vamos falar sobre Direito à Cidade?

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Educação e as novas demandas de feminismo

Nesta Semana da Mulher, o Inesc vai atuar em parceria com o site Outras Palavras com a publicação conjunta de artigos que examinam questões importantes de gênero e do movimento feminista em nosso cotidiano. O primeiro dessa série é sobre educação.

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Por Marcia Acioli, assessora política do Inesc.

Historicamente, as mulheres têm lutado pela emancipação, pela conquista de autonomia e pela entrada no mercado de trabalho como forma de equidade de gênero.

Simone de Beauvoir, filósofa francesa conhecida por seus tratados sobre feminismo, já sinalizava que pela via do trabalho as mulheres, ao lutar por independência concreta, diminuiriam a distância entre elas e os homens. Para isso, a educação seria estratégica na medida em que as prepararia para um trabalho mais qualificado.

A essas demandas clássicas, que permanecem atuais, soma-se uma diversidade de questões que se apresentam como urgentes. Hoje o feminismo na educação se entrelaça a outros temas indissociáveis. O ser menina na escola não é uma experiência única a todas as meninas e meninos que se percebem meninas. No mínimo, o ser menina se relaciona à raça/cor, à expressão de gênero, à sexualidade, à experiência familiar, ao local de morada, à construção do ativismo, ao talento e ao desejo intelectual, à produção e ao acesso à arte e à identidade cultural.

Ser menina, negra, moradora de favela é uma experiência diferente de ser menina não negra, de classe média, que por sua vez é diferente daquela de uma menina trans. A escola deve dar conta dessa diversidade, favorecendo o desenvolvimento do ser pleno, das possibilidades e dos desejos, visando à superação das desigualdades e ao fim da violência de gênero.

Portanto, o feminismo não diz respeito somente às meninas na escola. A dignidade é uma construção relacional que também tem nexo com as desigualdades estruturantes. Ela se estabelece num complexo de relações pessoais e sociais nas quais todas as pessoas devem ter o livre exercício da expressão de seus anseios e desejos. O ideal da educação é sempre ampliar possibilidades rompendo barreiras simbólicas que colocam sujeitos em relações assimétricas.

A educação sexista, a mais comum no Brasil, tem como pressuposto um fosso que separa o universo feminino do masculino, sendo este associado à força e aquele à fragilidade. A educação sexista condiciona, desde a mais tenra infância, meninos e meninas a se comportar de formas diferentes. Nega a sexualidade das meninas e estimula a dos meninos, prepara meninas para serem mulheres “cereja do bolo”, princesas inertes, delicadas e sem voz. Educa meninos para atitudes mais agressivas, mesmo que porventura não queiram esse lugar.

O Brasil é território violento para meninas. Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada Ipea1 baseado em dados de 2011 do Sistema de Informações de Agravo de Notificação do Ministério da Saúde (Sinan) revelou que 70% das vítimas de estupro no Brasil são crianças e adolescentes, dos quais 89% do sexo feminino. A pesquisa estima que no mínimo 527 mil pessoas são estupradas por ano no Brasil e que, desses casos, apenas 10% chegam ao conhecimento da polícia. Desses estupros, cerca de 70% são cometidos por pessoas próximas ou da própria família. Ou seja, o estupro é uma violência banalizada que tem ganhado novos contornos. O estupro coletivo, por exemplo, violência perpetrada como forma de ostentação, tem ganhado espaço na mídia. A divulgação nos meios de comunicação e os trâmites da denúncia, não raras vezes, apontam a vítima como responsável. No mínimo, há esforço para desqualificar o caráter de quem sofreu a agressão. Em outra pesquisa também realizada pelo Ipea em 20132, 26% dos entrevistados concordam total ou parcialmente com a afirmação de que “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”. A lógica machista mata de diversas formas.

Vozes conservadoras da sociedade reclamam das iniciativas que propõem discutir questões de gênero na escola, alegando ser uma intervenção nos valores familiares. Ao contrário disso, a discussão de gênero não diz respeito ao mundo privado. Significa educar para a esfera pública; debate urgente no país líder mundial em assassinatos de gays, travestis e transgêneros. Como exemplo de debate sobre o tema, a revista Descolad@s 2017, uma produção de adolescentes do Inesc com o foco em direitos humanos, promove e divulga reflexões acerca do assunto, oferecendo para as escolas públicas um material rico e provocador.

Comprometida com o desenvolvimento de uma visão de mundo, a educação é indispensável para a promoção de uma nova ordem social. Portanto, quanto antes se inicia o trabalho pedagógico com o foco na equidade de gênero, maior é a possibilidade da formação de sujeitos mais sensíveis e dispostos a uma relação equânime, livre de opressões e de assimetrias.

A despeito da escola, meninas estão construindo alternativas, querem expressar sua sexualidade e o seu desejo sem censura. Querem escolher e escolhem suas roupas e cores livremente, buscam novas carreiras, querem dançar sem serem vistas como objeto disponível para o desejo do outro, querem expor seus corpos sem que isso signifique um convite ao estupro, querem namorar, querem estudar, querem não estudar, querem fazer rimas e batalhas de hip hop, querem fazer grafite, andar de skate, dançar ballet, fazer ciência, pensar e ser respeitadas. Elas têm rompido com padrões cristalizados na sociedade, muitas vezes com alegria, outras com dor. Elas, desejam, sobretudo, a plenitude da existência e construir nova lógica social. Querem viver sem violência!

Assim como a dignidade, a felicidade – afinal, a vocação mais radical de todas as crianças – deve emergir da educação feminista.

1Nota Técnica Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde.

2Sistema de Indicadores de Percepção Social (SIPS)

Vamos falar sobre Gênero, Raça e Etnia?

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Perfil da Desigualdade e da Injustiça Tributária

Nota Técnica realizada com base nas informações disponibilizadas pela Secretaria de Receita Federal na base de dados “Grandes Números das Declarações do Imposto de Renda das Pessoas Físicas”. Os dados estão disponíveis para os anos-calendário de 2007 a 2013, que permitem o acesso às declarações realizadas no período de 2008 a 2014. Essas informações foram disponibilizadas em planilhas de dados, o que é um facilitador para a análise dos dados.

O estudo é uma realização do Inesc com apoio da Oxfam Brasil e apoio institucional da Christian Aid e Pão Para o Mundo.

Clique aqui para baixar o estudo completo (arquivo PDF).

Direito a Medicamentos: avaliação das despesas com medicamentos no âmbito federal do Sistema Único de Saúde entre 2008 e 2015

Estudo do Inesc, assinado por Grazielle David, Alane Andrelino e Nathali Beghin analisa os dados referentes ao orçamento dos medicamentos entre 2008 e 2015 no âmbito federal do Sistema Único de Saúde (SUS), utilizando-se para isso as despesas pagas no ano acrescidas dos restos a pagar pagos no mesmo ano (pago + restos a pagar pagos).

As fontes para a elaboração do estudo são: as Leis Orçamentárias Anuais, Relatórios Anuais de Gestão das Secretarias do Ministério da Saúde; Secretaria de Atenção à Saúde (SAS), Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE) e Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS, Fundo Nacional de Saúde (FNS), e sistemas de informaçnao como o sobre Orçamentos Públicos em Saúde (SIOPS), sobre Orçamento Público (SIOP) e o Siga Brasil, além de requisições feitas pela Lei de Acesso à Informação (LAI).

Acesse o estudo aqui (arquivo PDF para baixar).

Mapa das Desigualdes de Brasília 2016

Produzido pelo Movimento Nossa Brasília, Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e Oxfam Brasil, o Mapa das Desigualdades mede e compara dados sobre mobilidade urbana, saúde, educação, cultura, saneamento básico e meio ambiente, segurança pública e trabalho e renda de regiões administrativas do Distrito Federal com o Plano Piloto da capital. Os dados foram levantados no IBGE, na Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (PDAD) da Codeplan do DF, e no Fundo de Apoio à Cultura (FAC), também do DF.

O estudo foi construído e sistematizado a partir de oficinas participativas realizadas na Cidade Estrutural, Samambaia e São Sebastião entre os meses de outubro e novembro, em parceria com movimentos e organizações comunitárias locais.

Leia aqui a íntegra do Mapa das Desigualdades de Brasília 2016 (arquivo PDF).

“É preciso superar paradigma do crescimento e desenvolvimento infinitos”

Publicado por Abong.

As Organizações da Sociedade Civil (OSCs) e movimentos sociais atuam de forma independente e articulada, tendo como cimento de união o interesse coletivo e a luta em prol da cidadania plena, entendendo esta como um conjunto de direitos definidos pelos vários tratados de direitos humanos no âmbito internacional (Declaração dos Direitos Humanos Universais e Direitos Econômicos, Culturais, Sociais e Ambientais).

Uma das formas prioritárias de atuar se faz pela pressão ao Estado para que esses direitos sejam garantidos no marco legal, assim como efetivo.  Para tal, é preciso que os direitos se expressem em objetivos, metas e indicadores e uma linha de base sobre a qual se possa avaliar no tempo que aquele objetivo foi alcançado. Essa efetividade se faz, concretamente, pela transformação desses marcos legais, objetivos e metas em políticas públicas bem desenhadas e orçamentadas para que resultem positivamente na vida das pessoas e no respeito ao meio ambiente.

Mas, para tanto, é preciso que os objetivos dialoguem diretamente com as interpretações que buscam garantia e exigibilidade dos direitos. Se os objetivos acordados, ao serem concretizados, não efetivam direitos ou não os garantem de forma ampla e integral, o diálogo fica inviabilizado para os movimentos sociais. Podemos usar como exemplo a adoção dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) que, na sua própria declaração já rebaixava a agenda das lutas sociais para metas pouco eficazes na concretização de direitos. Neste sentido, o processo de elaboração dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) é um importante avanço. Alguns Objetivos incorporam conceitos que os movimentos sociais e a sociedade civil organizada defendem e que, se concretizados, podem melhorar as condições no caminho da efetivação dos direitos.

No entanto, é preciso reconhecer que nenhum dos Objetivos enfrenta as questões essenciais que promovem as desigualdades porque não mexe, por exemplo, nos mecanismos que possibilitam a acumulação e concentração de capital, não se propõe a reduzir o complexo militar global e suas guerras, assim como não incide sobre o modelo de desenvolvimento econômico que tem sido o principal vetor da degradação ambiental e social. Isto ocorre porque o que orienta a maioria dos ODS é a premissa do direito ao desenvolvimento, sem condicioná-lo aos direitos humanos e aos direitos da natureza. Por isso, questões como o crescimento demográfico e populacional e a exigência cada vez maior da exploração de riquezas naturais, base do atual modelo de desenvolvimento, não entraram na conta dos ODS. Cabe aqui ressaltar o fato de que a discussão sobre o financiamento ao desenvolvimento não avançou. Nenhum dos países mais ricos, que têm a maior responsabilidade histórica sobre o aquecimento global, se mostra disposto a pagar a conta rumo a mudanças. Não há dinheiro novo circulando para dar conta dos desafios que estão apontados pelos Objetivos. As teses vencedoras até o momento são via mercantilização e financeirização da natureza. Mantido o atual modelo, não haverá energia nem alimentos para atender às nove bilhões de pessoas que viverão no Planeta em 2050.

Há, ainda, outra questão necessária para que este diálogo entre sociedade civil organizada e Estado possa ser frutífero. É a intenção real de assumir os compromissos para a efetivação dos Objetivos. Esta premissa não pode ser analisada apenas do ponto de vista dos discursos e declaração, mas da prática efetiva dos sujeitos que se põem em diálogo. Neste sentido, é preciso manter sempre uma análise crítica sobre a conjuntura e seus/suas atores/atrizes.  Nos últimos tempos, as estruturas que deveriam sustentar uma governança global menos centralizada nas grandes potências têm se esfacelado ou caído em descrédito. Recentemente, visto pelos pífios resultados da Conferência do Clima (COP22), está evidente que estes processos de diálogos internacionais não têm conseguido produzir acordos mínimos capazes de serem efetivados para conter as mudanças climáticas, por exemplo. E para piorar, sua sustentação financeira está cada dia mais capturada pelo setor privado e seus interesses. As Nações Unidas e seus órgãos não possuem nenhum poder real para impedir ou mesmo conseguem condenar as práticas que ceifam milhares de vidas humanas e produzem a maior crise de refugiados de que se tem notícia desde a II Guerra Mundial, comprometendo a dignidade humana de milhões de pessoas, a maioria delas, mulheres, crianças e idosos/as.

Frente a tudo isso, a decisão de participar de um diálogo sobre a implementação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável deve estar subordinada à análise deste contexto. Como foi reconhecido acima, sua construção representou uma evolução em relação aos ODM. No entanto, dada a conjuntura internacional, o declarado desinteresse das grandes potências e, principalmente, a incapacidade dos demais países em pressioná-las para assumirem compromissos concretos, a conclusão é que os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável se tornaram um rol de boas intenções que sequer serão levadas a sério por boa parte de seus signatários. Na prática, sua efetivação está longe de ser alcançada.

Mesmo duvidando de sua real eficácia, é preciso estar atento porque todos os governos tentarão utilizar o debate dos ODS para criar a ideia de que estão em busca de soluções para os dilemas ambientais, sociais e econômicos do planeta. A chamada economia verde, acordada na Rio+20, veio para legitimar a saída de mercado para a nova fase de acordos na chamada Agenda 2030. Para enfrentar esta situação e, principalmente, para que as OSCs e os movimentos sociais não sejam absorvidos por rodas de conversas, seminários e eventos nada eficazes, sua atuação em espaços de diálogo sobre o tema deve estar subordinada à apresentação de propostas concretas que possam colocar os agentes econômicos e políticos que defendem o atual modelo de desenvolvimento em contradição. Os ODS, certamente, terão espaços privilegiados na mídia coorporativa e estes espaços também podem ser utilizados para denunciar as contradições dos Objetivos e para a defesa de propostas que realmente possam significar uma saída para a crise civilizatória que vivemos. Esta estratégia só será eficaz se for assumida por um leque amplo de forças políticas, movimentos sociais e da sociedade civil organizada no sentido de realmente inflexionar o debate sobre a insustentabilidade do atual modelo de desenvolvimento e de promover uma aliança global para mudanças estruturais em nosso modo de vida.

Finalmente, para as OSCs e os movimentos sociais, o principal objetivo é superar o paradigma do crescimento e desenvolvimento infinitos. Diante da possibilidade de uma possível catástrofe mais radical, a alternativa passa pelo decrescimento das atividades insustentáveis e do investimento imediato em medidas sustentáveis e duradouras, em especial, as energias limpas, a alimentação agroecológica, a proteção dos territórios, o respeito aos direitos e a valorização das diversidades. A questão central para um outro modelo de vida não é tecnológica ou mercadológica e sim política e cultural. Portanto, só haverá saída com mais democracia capaz de incidir sobre quem vai pagar a conta da mudança dos paradigmas e quem serão as atrizes e os atores deste outro mundo possível. A questão é: será que estamos à altura destes desafios?

Vamos falar sobre a agenda internacional?


PEC 55 é um salto no escuro que condena o Brasil a retrocessos

Publicado pelo El País.

A PEC (Proposta de Emenda Constitucional) 55, que estabelece um teto global para os gastos públicos pelos próximos 20 anos, é uma medida de austeridade fiscal sem precedentes porque combina um status constitucional, um prazo incomum de duração e uma excepcional rigidez sobre a capacidade do governo de gerir a política fiscal. Cabe, portanto, analisar seus potenciais efeitos à luz de uma abordagem baseada nos direitos humanos protegidos pela Constituição e por instrumentos internacionais, como o direito à educação, saúde, moradia digna, à cultura, direitos da criança, laborais entre tantos outros.

Inicialmente, cumpre ressaltar que nenhum governo possui um cheque em branco para impor sacrifícios coletivos sem que antes suas medidas sejam testadas para averiguar a compatibilidade com as obrigações internacionais assumidas pelo país perante os direitos humanos.
Conforme organismos internacionais de monitoramento dos direitos humanos, como o Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU, qualquer medida de austeridade deve atender aos seguintes parâmetros:

1 – ser temporária, estritamente necessária e proporcional;

2 – levar em consideração todas as alternativas possíveis;

3 – não discriminar grupos vulneráveis;

4 – ser adotada apenas após um processo de tomada de decisão com a participação genuína de indivíduos e grupos afetados.

A PEC 55 não resiste ao crivo de nenhum desses quatro requisitos. Primeiramente, sob qualquer ótica, vinte anos é um prazo exagerado. Não é improvável admitir que uma crise global como a que tomou os mercados financeiros em 2008 possa vir a ocorrer novamente. Naquela ocasião, o Brasil ganhou reconhecimento internacional pela adoção de políticas anticíclicas bem-sucedidas para estimular a economia. Graças a elas, o país se recuperou rapidamente da crise e viu alguns anos de crescimento inclusivo.
Como o regime fiscal proposto não possui nenhuma cláusula de “escape”, diante de uma grave crise as autoridades públicas brasileiras seriam severamente limitadas em sua capacidade de manter e ampliar a rede de proteção social, o que mostra a desproporcionalidade da PEC.

Quanto ao segundo parâmetro, o governo não fez – ou pelo menos não divulgou publicamente – nenhuma avaliação do impacto que a PEC terá sobre os níveis de pobreza, sobre a desigualdade e os direitos humanos. A população idosa brasileira irá dobrar nos próximos 20 anos, e será necessário um aumento de pelo menos 37% do orçamento da saúde. Como o governo enxerga esse desafio dentro do Novo Regime Fiscal? Não se sabe.

Tampouco foram exauridas as análises sobre o custo-benefício desta medida face a outras reformas, como a tributária, muito menos houve processo participativo para avaliar as opções. Sabe-se que, no Brasil, a arrecadação é predominantemente composta por impostos indiretos e regressivos, enquanto que em países desenvolvidos ela incide mais sobre o patrimônio e a renda.
Sequer há um debate sério sobre a necessidade de abolir regras tributárias que praticamente só o Brasil tem, como a isenção da taxação de lucros e dividendos da pessoa física. Segundo estudo do Programa para o Desenvolvimento das Nações Unidas, apenas a reinstituição da tributação sobre essa classe de rendimentos por uma alíquota linear de 15% traria aos cofres públicos mais de R$ 190 bilhões anuais. O Ministério da Fazenda reconheceu em relatório recente que a alíquota efetiva do imposto de renda, isto é, descontadas isenções e outros privilégios, incidente sobre o estrato mais rico da população (mais de 160 salários mínimos anuais) caiu 0,5% entre 2007 e 2013, enquanto que subiu 1,6% na camada mais pobre (até 20 salários mínimos anuais).

No que diz respeito à distribuição não equitativa dos ônus da PEC 55, a experiência comparada fornece provas claras de que cortar gastos em direitos básicos enquanto que se mantêm privilégios é a receita certa para o aumento da desigualdade. Segundo relatório da ONG Oxfam, entre os principais fatores que explicam o crescimento recente da desigualdade na Europa estão as medidas de austeridade, que cortaram o gasto público, e a regressividade do sistema tributário. Exatamente o cenário que se busca reproduzir por aqui.

O próprio FMI (Fundo Monetário Internacional), ao comparar programas de consolidação fiscal pelo lado do gasto e da arrecadação, concluiu que ajustes do primeiro tipo, como o promovido pela PEC 55, levam a um aumento significativo e persistente da desigualdade, à diminuição da renda salarial e da parcela salarial da renda e ao aumento do desemprego de longa duração – sem nenhum impacto econômico positivo.

O ônus de demonstrar que todas as alternativas menos gravosas foram avaliadas é do governo, e está mais do que claro que ele não se desincumbiu dessa obrigação para com a sociedade brasileira.

Se aprovada, a PEC 55 certamente resultará em uma séria erosão dos direitos sociais como resultado de uma diminuição da despesa real per capita, à medida que a demanda por serviços vai aumentar e as receitas não, prejudicando o progresso de vários direitos sociais, especialmente para os mais vulneráveis que dependem mais da prestação de serviços públicos.

Por fim, por representar uma ameaça direta aos direitos fundamentais e uma ruptura do pacto social firmado na Constituição Federal de 1988, passível de questionamento junto ao Supremo Tribunal Federal, a medida expõe também o Brasil à condenação dos mecanismos internacionais de proteção de direitos humanos.Urge, portanto, suspender imediatamente a tramitação da PEC 55 e submetê-la a uma avaliação independente prévia do seu impacto sobre a capacidade do Brasil de cumprir com suas obrigações constitucionais e internacionais em matéria de direitos humanos.

Evasão escolar e educação de qualidade: com a palavra, os estudantes

Nosso modelo de educação está muito preso a padrões da modernidade, positivista, trancafiado entre as paredes das salas de aula, sem considerar outros espaços educadores. E por isso trabalhamos na perspectiva dos territórios educadores, do direito à cidade e de uma vida no campo que faça parte e integre os espaços de convivência.

Até para conseguirmos sair do senso comum de que o espaço de fora é violento, perigoso, olhado sempre pelo negativo, as cidades e o campo podem e devem fazer parte dos processos educativos. Ocupá-los pode contribuir para a construção de escolas mais abertas e democráticas, ao passo que as cidades podem se tornar mais amigáveis e acolhedoras.

A pergunta que não quer calar: se mudássemos tudo – o modelo de escola, a disposição das carteiras, a disciplina, as disciplinas -, seria possível para escolas e educadores educarem sem controle dos corpos, do espaço e do tempo? É possível fazer diferente apesar de ter recebido uma educação com controle?

Precisamos de escolas diferentes e de formação de formadores também diferente.

E foi isso que dialogamos com adolescentes e jovens de escolas da segunda etapa do ensino fundamental, do ensino médio vespertino e noturno, dos campos e das cidades. Buscamos ouvi-los e ouvi-las para entender o que estão pensando da escola e da educação no século 21 em momento político tão atribulado, com vários riscos e ameaças, mas também oportunidades de insurgências, especialmente dos que estão vivenciando o processo educativo na prática cotidiana das escolas e instituições educadoras.

E quais mudanças esperam para que as escolas sejam o lugar da diferença, do diálogo e da prática de uma educação de qualidade, aberta aos espaços públicos e em relação dialógica com os territórios onde se situam?

Ao mesmo tempo, é necessário discutir o que significam as mudanças propostas por este governo nada legítimo que ocupa o Palácio do Planalto nesse momento. Até que ponto as alterações legislativas propostas influenciarão a educação em todos os seus níveis? Até que ponto há intenção de precarizar o ensino médio para dificultar o acesso das pessoas mais pobres ao ensino superior?

A reforma do ensino médio por medida provisória:

Há várias questões a serem analisadas, entre elas o fato de o governo desconsiderar a participação popular na construção da proposta já em vigor; a precarização da formação, ao designar que cada sistema optará por complementar as horas de formação da maneira mais conveniente. Podendo ser horas práticas trabalhadas, cursos produzidos por instituições diversas não especificadas, educação à distância ou “presencial mediada por recursos tecnológicos”.

O que acontecerá nos mais diversos territórios, que terão menos recursos por conta da proposta de emenda constitucional (PEC 55) que congela os recursos para políticas sociais por vinte anos, só saberemos ao caminhar. No entanto, o cenário não é promissor.

Com a palavra, a comunidade escolar:

E o que disseram estudantes com os quais interagimos sobre educação de qualidade e o que faz com que várias delas abandonem a escola antes de terminar a educação básica?

Há questões que dizem respeito aos diferentes territórios, no entanto, podemos dizer que há um núcleo que os aproxima, que faz com que dialoguem mesmo que à distância, pois se repetem, ainda que estejamos falando de diferentes lugares como do campo ou da cidade.

Uma das motivações citadas em todos os lugares com muita ênfase é a falta de interesse. O que estaria dentro desta categoria? Mesmo que a maioria, quando o diz, esteja falando de responsabilidades individuais, o que leva tantas pessoas, em diferentes partes do Brasil, abandonarem a escola por falta de interesse? E por que os responsáveis pelas políticas públicas não analisam tal questão? E continuamos sem estabelecer o diálogo?

Outras duas questões que aparecem com ênfase nos diferentes locais é o trabalho precoce, seja no campo ou na cidade, o que tem tudo a ver com a estrutura desigual desse nosso país, onde boa parte de adolescentes precisa contribuir com a renda familiar muito jovens, atrapalhando radicalmente o percurso da escolarização. E a gravidez na adolescência também é uma questão agravada pelas desigualdades, visto que há, mesmo no século 21, falta de informação e responsabilização das meninas, principalmente, de maneira individual e não sistêmica.

Também foram apontados como fatores para evasão escolar pelos estudantes as dificuldades de aprendizagem, falta de perspectiva, problemas pessoais, professores, regras abusivas das escolas, internet, distorção idade/série, influência de amigos, racismo, homofobia.

Essas são as principais das questões levantadas por adolescentes de Brasília, da Bahia e do Pará seus processos de escolarização em relação ao que descrevem como educação de qualidade e o que favorece o abandono escolar.

O projeto Onda: Educação de Qualidade, que compartilha e problematiza os dados da campanha “Fora da Escola não Pode”, termina mais uma edição em 2016 em um momento especialmente complexo, visto que um dos seus objetivos era gerar argumentos para uma efetiva reforma do ensino médio a partir dos usuários, ou seja, estudantes. No entanto, nos foi imposta uma reforma por medida provisória, sem considerar todas as vozes das comunidades escolares, profissionais da educação, educadores, estudantes.
Desta vez expandimos os horizontes, multiplicando a metodologia para o Instituto Chapada, que trabalha em vários municípios da Chapada Diamantina, na Bahia e para o Instituto Peabirú, que atua em Belém, no Pará, nos possibilitando uma visão mais ampla do que se espera da escola, dos motivos que levam à evasão escolar e qual a  escola que estudantes gostariam de ter.

De acordo com o Instituto Chapada, nosso parceiro na Bahia:

“A oportunidade de conhecer a metodologia desenvolvida pelo INESC motivou o grupo de técnicos das Secretarias a pensar nos fóruns de debates nos quais os adolescentes podem e devem ser convocados a participarem dentro e fora da escola.”

O Novo Banco de Desenvolvimento – o tiro saiu pela culatra?

Entre os dias 12 e 14 de outubro de 2016, será realizada em Goa, Índia, a 8ª Cúpula do BRICS, bloco de países que reúne Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Por que uma organização não governamental como o Inesc, com sede em Brasília, poderia se interessar por essa reunião?

Por muitas razões, mas talvez a principal delas seja a defesa incondicional da radicalização da democracia e da promoção dos direitos humanos, no Brasil e alhures. E o que isso tem a ver com o BRICS?

Muito. O BRICS nos deu a impressão que o jogo poderia mudar no cenário internacional. O poder dos chamados países desenvolvidos é tamanho que são eles que ditam as regras na grande cena global. Um exemplo: os países do BRICS correspondem a 40% da população global e cerca de 23% do conjunto dos PIB das nações, mas só têm 11% dos votos do Fundo Monetário Internacional (FMI). Inconformados com tamanha assimetria, os governantes do Bloco atuaram por dentro do FMI para mudar o jogo, mas os americanos que mandam não toparam. Os governos do BRICS, que já vinham conversando informalmente há vários anos, se deram conta que juntos poderiam desafiar o status quo e tencionar as relações hegemônicas vigentes. O poder dos cinco países vem crescendo significativamente: se no começo do século 21 o BRICS representavam menos de 5% do PIB global, essa proporção mais do que quadruplicou em 15 anos. Já o G7 – os sete mais ricos do mundo – vem perdendo terreno: o grupo era responsável por dois terços do PIB global em 2000 e essa proporção caiu para cerca de 45% nos dias de hoje[2].

Diante desse quadro – poder crescente, mas destituído de voz – o BRICS resolveu no final da década passada se organizar de maneira mais estruturada, estabelecendo agenda de trabalho comum e reuniões anuais de chefes de Estado. Os encontros são rotativos, cada ano um dos países hospeda a Cúpula. Desde sua criação em 2009, o Brasil recebeu duas Cúpulas: a 2ª em Brasília, em 2010, e a 6ª em Fortaleza, em 2014. Apesar de existirem muitas assimetrias entre os países, em termos políticos, econômicos, sociais e culturais, há um desejo comum de ganhar autonomia em relação aos que vêm dando as ordens desde o fim da Segunda Guerra Mundial.

Uma das primeiras medidas concretas do Bloco foi a criação do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD). Considerando as imensas necessidades de financiamento para o desenvolvimento dos países do Sul, estimadas em mais de um trilhão de dólares, e a crescente dificuldade do Banco Mundial e de outros bancos de desenvolvimento oriundos dos acordos de Bretton Woods de atender a essas demandas, o NBD se apresenta como alternativa de interesse dos países em desenvolvimento. A ideia foi lançada em Fortaleza em 2014, e o Banco criado em 2016. Os primeiros empréstimos no valor de pouco mais de 800 milhões de dólares foram aprovados para Brasil, Índia, China e África do Sul na área de energias renováveis.

A diferença em relação aos bancos de desenvolvimento existentes é que, neste caso, há igualdade nas decisões – cada país, um voto. E uma construção que acomoda todos os países: a sede é na China, a Presidência é da Índia, o Presidente do Conselho de Administração é brasileiro, o Presidente do Conselho de Governadores é russo e a África do Sul sedia o escritório regional do Banco.

A princípio deveríamos estar contentes, pois finalmente as vozes de Sul desafiaram os poderosos do Norte, contribuindo para alterar as desiguais relações de poder prevalecentes. Mas, não é bem assim. São inúmeros os desafios que o NBD traz. Não basta ser do Sul para ser bom. O Banco nasce com pouca transparência. Apesar de ter lançado em julho um documento intitulado Política Provisória de Divulgação de Informação (Interim Information Disclosure Policy)[3], que sem dúvida representa algum avanço, note-se que tal política, ainda que provisória, foi elaborada sem qualquer mecanismos de escuta dos povos e comunidades que serão afetados por suas ações. O site do Novo Banco de Desenvolvimento é lastimável[4], não diz nada. Não se sabe quais projetos foram aprovados, nem quais estão no pipeline (na fila para aprovação), nem quais são os critérios de aprovação e as condições dos empréstimos. E mais: o NBD, ao invés de empurrar os “velhos” bancos para uma agenda mais socioambientalmente sustentável, tem feito com que estes flexibilizem seus critérios para emprestar. Como se não bastasse, o NBD recém celebrou acordos de cooperação com o Banco Mundial e com o maior banco privado da Índia, o ICICI, para assessoramento nas áreas de gestão de risco e análise de projetos, entre outros. Ou seja, o NBD ao invés de instituir práticas públicas inovadoras de transparência, prestação de contas e participação social está se associando à tudo que tem de mais retrógrado. Parece um filme de terror, onde as mocinhas e os mocinhos viram bandidos!

O cenário não é alvissareiro, pois os atuais governantes do BRICS cada vez mais se distanciam de sistemas políticos minimamente democráticos. O Brasil acabou de passar por um golpe institucional. Na África do Sul, na Índia e na Rússia crescem as medidas neoliberais e a perseguição e criminalização de organizações e movimentos sociais. E o governo chinês, como é sabido, pouco se interessa em saber o que seu povo pensa. A Índia é o exemplo mais emblemático de um crescimento sem redistribuição. Apesar de sucessivas taxas invejáveis de crescimento de sua econômica nos últimos anos, o abismo social permanece imenso. Segundo o Prêmio Nobel de Economia Amartya Sen e seu colaborador Jean Drèze[5], somente cinco países no mundo (Afeganistão, Camboja, Haiti, Myanmar e Paquistão) apresentam taxas de mortalidade infantil piores que as da Índia. E mais: nenhum país, nem mesmo na África, tem índices de desnutrição (baixo peso) menor do que o indiano. O Brasil segue o mesmo caminho – pior, pois a economia está em recessão. As propostas do atual governo são as de cortar gastos, especialmente nas políticas de trabalho e renda, previdência social, assistência social, saúde e educação. Isso no momento em que o desemprego cresce e a renda do trabalho cai. E mais: a ideia é congelar as despesas públicas por 20 anos!

Que podemos esperar do NBD com esses governos?

Diversas iniciativas de organizações e movimentos sociais dos países integrantes do BRICS e de outros países vêm buscando denunciar essa estratégia por meio de cúpulas paralelas às cúpulas oficiais, elaboração de declarações, envio de correspondências para os governos, apresentação de proposta de criação do Fórum da Sociedade Civil dos BRICS e do Fórum Sindical dos BRICS, entre outras. Se nada mudar, a atual estratégia do Novo Banco de Desenvolvimento contribuirá para aumentar as desigualdades; diretamente em função das ações do Banco, e indiretamente pelos seus impactos nas demais instituições financeiras que deverão abaixar seus padrões para enfrentar a concorrência do NBD e poder continuar emprestando.

Agora, mais do que nunca, nós, organizações e movimentos sociais preocupados com os destinos dos que mais sofrem, temos que nos unir para lutar e recuperar a ideia original, de termos uma instituição que efetivamente impulsione um desenvolvimento sociombientalmente justo, inclusivo e participativo. As Cúpulas dos Povos são os locci privilegiados para travar esses debates – este ano, data e local já estão definidos: dias 13 e 14 de outubro em Goa, na Índia, às vésperas da Cúpula oficial do BRICS.

[2] http://cic.nyu.edu/blog/global-development/role-brics-changing-global-governance-case-study-post-2015-development

[3] A esse respeito veja: http://www.ndb.int/pdf/ndb-interim-information-disclosure-policy-201607.pdf

[4] A esse respeito veja: http://ndb.int

[5] A esse respeito ver: http://www.outlookindia.com/magazine/story/putting-growth-in-its-place/278843

Novo sinal da estupidez rodoviária em Brasília

Por Movimento Nossa Brasília.

Nas últimas décadas, cidades de todo o mundo sofreram com os problemas gerados pelo excesso de automóveis e buscaram alternativas para reduzir e desestimular o seu uso. Diversas soluções foram tentadas, como o rodízio na cidade de São Paulo, a tarifa por congestionamento em Londres, o estímulo ao uso da bicicleta em Amsterdã, as áreas livres de automóveis em Freiburg. Mas, no Distrito Federal, a lógica foi outra.

Na cidade modernista, pensada para os automóveis, acreditou-se que ele, nas palavras de Lúcio Costa, “domesticou-se”, que era necessário apenas abrir grandes vias, com rodovias rasgando a cidade e estacionamentos por todos os lados que o convívio seria pacífico. Ledo engano.

Hoje, o Distrito Federal tem uma das maiores frotas por habitante do Brasil. Tem automóveis estacionados em quase todos os espaços públicos, sejam eles calçadas, gramados, ao longo do meio fio e, inclusive, ao lado das placas que proíbem o seu estacionamento. A cidade, que há cerca de 15 anos, se orgulhava de permitir que os moradores, ao menos os do Plano Piloto, almoçassem em casa, hoje tem engarrafamentos constantes que já extrapolam os horários de pico e impedem este tipo de trajeto rápido.

Seria então o momento de reconhecer que a quantidade de automóveis já extrapolou os limites da vida coletiva, que precisamos mudar, repensar toda a lógica rodoviarista que vem desde a gestação da cidade?

Pelo contrário, nossos governantes ainda insistem em dar mais espaços para que mais pessoas andem de carro na cidade. Ainda não tratam o transporte público com a devida prioridade que merece. Ainda pensam que os pedestres e ciclistas são marginais ao Deus Automóvel.

Em 2014, época das eleições ao governo do DF, a sociedade brasiliense se organizou e elaborou a “Carta Compromisso com a Mobilidade Urbana e Sustentável“, que foi apresentada a todos os candidatos ao cargo. Ela foi assinada e incluída no plano de governo do atual governador eleito, Rodrigo Rollemberg.

A carta expressa textualmente o compromisso de “inverter a atual prioridade dada aos meios de locomoção, estabelecendo metas de redução do percentual das viagens diárias feitas de carro ou moto, assegurando a fluidez preferencial aos pedestres, às bicicletas e ao transporte coletivo, reduzindo os espaços destinados ao uso individual do carro”.

Porém, as ações do atual governador vão para o outro lado. Ele insiste na construção de novos viadutos, novas pontes e novas rodovias urbanas, que não garantem de forma nenhuma a prioridade aos modos ativos e, efetivamente, não apresentam nada de novo no modo de governar e de pensar a mobilidade urbana.

O Trevo de Triagem Norte – TTN, é uma obra que sintetiza bem essa vontade de dar mais espaço para os automóveis. A ponte do Bragueto está condenada, é necessário que ela seja reconstruída.

Aproveitando da situação, o Departamento de Estradas e Rodagem (DER) elaborou um mega projeto rodoviário para a região. Cujo objetivo é separar os fluxos de automóveis que passam pela ponte e duplicar a sua capacidade de tráfego. O valor da obra está orçado em cerca de 100 milhões de reais.

Porém, o projeto ignora que por ali passam centenas de ciclistas e pedestres todos os dias, mesmo sendo um dos locais mais perigosos do DF para se pedalar. Ignora, que a ponte dá acesso ao Plano Piloto, que já está entupido de automóveis e que não terá sua capacidade de tráfego aumentada, muito menos duplicada, devido ao seu tombamento. Ignora que as novas infraestruturas vão destruir nascentes, veredas e olhos d’água e assorear, ainda mais o lago Paranoá. Ignora a comunidade local, diretamente afetada, que terá que conviver com mais poluição, ruído e calor. Ignora, que mais infraestrutura viária vai estimular que mais pessoas passem de automóvel naquele local.

Ignora a Política Nacional de Mobilidade Urbana (lei federal 12.587/2012) que determina a prioridade para os modos ativos e para o transporte coletivo sobre o automóvel particular. Ignora todos os estudos e a vivência empírica que demonstram que não precisamos estimular ainda mais o uso de automóveis nas nossas cidades. Ignora a população, que não foi na única audiência pública realizada, que contou com a participação de apenas 39 pessoas, delas, somente 5 eram da sociedade civil. Ignora, que 17 novos viadutos e pontes e seus taludes impedem a passagem de pedestres e ciclistas. Ignora que ao lado tem um setor hospitalar que será afetado com todos os problemas citados e terá seu acesso prejudicado.

“A obra é herança dos governos anteriores…” | “Já está licitada, tem que fazer!”

Estas são as duas justificativas dadas pelo atual governador para que a obra aconteça. Justificativa que não convence. Não faltam problemas ambientais e de mobilidade urbana para parar a obra. Não falta a comunidade se mobilizando contra o empreendimento. Falta apenas que o Rollemberg tome uma atitude que se espera de um gestor sério e mande que a obra seja suspensa. Que chame a sociedade para conversar e se pense em uma solução que recupere a ponte do Bragueto e garanta que as pessoas tenham segurança e conforto para se deslocar pela região, independente de seu modo de transporte.

Infelizmente, pouco se espera que o governador tome tal atitude já que em seu governo foi desenterrada a Via Interbairros, com o novo nome de Via Transbrasília. Que nada mais é que uma nova via expressa que priorizará os automóveis no deslocamento de Samambaia ao Plano Piloto, passando por áreas de proteção ambiental, rasgando e dividindo as cidades por onde passará.

A pergunta que fica é: a quem interessa estas grandes obras rodoviaristas?

Ser contra o Trevo de Triagem Norte não é ser contra a população que necessita atravessar todos os dias a ponte do Bragueto para chegar ao seu local de trabalho, estudo ou lazer. Ser contra o TTN é ser a favor de uma política de mobilidade urbana que priorize os deslocamentos realizados por pedestres e ciclistas. Que os deslocamentos longos sejam realizados através de um transporte público gratuito e de qualidade. É necessário repensar como as pessoas se deslocam no DF e como o governo distrital age na mobilidade urbana.

Na recuperação da ponte do Bragueto poderia ser incluído um corredor estruturante de alta capacidade de transporte público, através de metrô, trem ou BRT. Poderia facilitar o trajeto de pedestres e ciclistas ao invés de piorar. Poderia investir em emprego, cultura e lazer na região norte do DF ao invés de manter a centralização de todas as atividades no Plano Piloto. Mas soluções alternativas nem foram cogitadas pelo DER. É mais fácil continuar repetindo os mesmos erros do que inovar e transformar a mobilidade urbana e o DF.

Por tudo isso, o Movimento Nossa Brasília, luta, apóia e fortalece a mobilização de todas as comunidades do DF pela valorização do transporte público, dos pedestres e ciclistas, visando a transformação das nossas cidades para que mais pessoas desfrutem do espaço público e de todas as possibilidades que a capital federal oferece.

Novas diretrizes colocam Brasil em segundo plano nas relações internacionais

Por Tereza Campello, Samuel Pinheiro Guimarães Neto, Lindbergh Farias, Padre João, Maria Emília Pacheco, Renato Maluf, Márcia Lopes, Francisco Menezes, Ana Fonseca, Gala Dahlet e Nathalie Beghin (coordenadora da Assessoria Política do Inesc).

Artigo publicado originalmente no site da revista Carta Capital.

O Brasil saiu do Mapa Mundial da Fome das Nações Unidas em 2014, segundo o “Relatório de Insegurança Alimentar no Mundo”, publicado no mesmo ano. Entre 2002 e 2013, o número de brasileiros em condição de subalimentação caiu em 82%.

Tal feito não é fruto do acaso ou de uma conjuntura econômica internacional favorável, mas, sobretudo, de uma vontade politica materializada em politicas públicas inovadoras, robustas e multissetoriais que tornaram o Brasil uma referência mundial no que diz respeito ao combate à fome e à erradicação da pobreza.

O aumento da disponibilidade de calorias para a população em 10% em dez anos; o crescimento real da renda dos mais pobres em 71,5%; a cobertura de 14 milhões de famílias pelo Programa Bolsa Família; o diálogo e a participação da sociedade civil como um princípio; a restruturação e fortalecimento do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), são algumas destas medidas que contribuíram para superação da fome do Brasil e despertaram crescente interesse da comunidade internacional.

Por essa razão, o País se tornou uma referência para o compartilhamento de experiências e boas práticas nessa área, especialmente por meio da Cooperação Horizontal e da Cooperação Sul-Sul. Não por acaso, as Nações Unidas estabeleceram em Brasília um Centro de Excelência dedicado à sistematização, difusão e implantação destas políticas em outros países.

No governo brasileiro, diferentes órgãos e instituições são co-responsáveis pela cooperação internacional para erradicação da fome e da pobreza, para estruturação de sistemas de proteção social e para promoção do desenvolvimento sustentável, seja por meio de parcerias com governos, organizações da sociedade civil ou Organismos Internacionais. O papel da Coordenação-Geral de Cooperação Humanitária e Combate à Fome (CGFOME) é central nesta dinâmica.

Como parte integrante da estratégia brasileira para o combate à fome, a CGFome foi criada em 1º de janeiro de 2004, no Ministério das Relações Exteriores, para coordenar a política externa brasileira na área da segurança alimentar e nutricional, do desenvolvimento rural e da cooperação humanitária internacional.

Em suas iniciativas de cooperação humanitária, o Brasil pautou-se pela busca da sustentabilidade socioeconômica e ambiental procurando conciliar respostas emergenciais a ações de longo prazo, voltadas para o desenvolvimento socioeconômico da população e do local afetado por crises socioambientais. O objetivo dessa estratégia inovadora de dupla tração – emergencial e estruturante – é garantir o fortalecimento da resiliência a desastres socioambientais, sobretudo de grupos menos favorecidos.

De 2006 a 2015, o país empreendeu 682 ações internacionais de cooperação humanitária, das quais 392 priorizaram projetos estruturantes que beneficiaram mais de 96 países na América Latina e Caribe, África, Ásia e Oriente Médio. Em paralelo, 290 ações foram realizadas em coordenação com outros órgãos governamentais, dentre os quais o Ministério da Saúde, o Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome, o Ministério da Defesa e o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, para doações de itens de primeira necessidade, tais como medicamentos e alimentos em benefício de 69 países na América Latina e Caribe, África, Ásia e Oriente Médio.

A cooperação humanitária brasileira distinguiu-se por privilegiar: (a) as compras locais de alimentos, principalmente aqueles produzidos pela agricultura familiar; (b) ações de resposta que prevejam a rápida recuperação socioeconômica; (c) participação da sociedade civil na construção e controle social dos projetos; e (d) ações pós-emergenciais de caráter estruturante, para que os países e as populações sejam capazes de superar as vulnerabilidades de forma permanente.

Graças à atuação da CGFome, Senegal, Níger, Malaui, Etiópia e Moçambique desenvolveram os seus respectivos Programas de Aquisição de Alimentos (PAA África), com base no PAA brasileiro, beneficiando comunidades, agricultores e especialmente as crianças, com ações em escolas.

Programa similar foi desenvolvido no Haiti, com o objetivo de reduzir a vulnerabilidade social, alimentar e nutricional da sociedade haitiana, por meio da melhora na produção e comercialização do leite, além da compra do leite para a melhoria nutricional e cognitiva dos estudantes beneficiários do Programa Leite na Escola (“Programme Lait à l’École”), parte do Programa Nacional de Cantinas Escolares (PNCS). Aproximadamente 84.571 estudantes entre 6 e 12 anos já receberam leite produzido localmente.

Dos 54 países da África, 47 foram parceiros em alguma iniciativa de cooperação internacional apoiada pelo Brasil, medidas que têm orientado várias políticas públicas para a garantia da segurança alimentar e a proteção social nesses países .

Ademais, a CGFOME, em parceria com diversos setores do governo brasileiro e articulada às Agências da ONU e ao Banco Mundial, realizou uma série de seminários e capacitações anuais com a presença das comitivas dos países africanos, para troca de experiências sobre políticas sociais e de desenvolvimento sustentável, reforçando o protagonismo do País nessa matéria no cenário internacional, mas, principalmente, contribuindo para a melhora das condições de vida de milhares de pessoas ao redor do globo.

Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), ratificados pela ONU como agenda pós-2015, têm no seu objetivo número dois a marca da conquista brasileira, o Fome Zero (Zero Hunger), sinalizando para o mundo que sim, é possível erradicar a fome.

As relações internacionais são peça chave na definição da visão que um povo tem de si mesmo e o inegável retorno diplomático da atuação da CGFOME contribuiu em muito para uma inserção estratégica do Brasil no cenário internacional.

Por essa razão, lamentamos profundamente a extinção da CGFOME, anunciada em 13 de setembro pelo Itamaraty e publicada no jornal O Globo. Aqui perdemos todos: os países e organismos nacionais e internacionais parceiros, a sociedade civil brasileira e as de outros países, que reforçavam mutuamente seus conhecimentos e práticas nos temas tratados.

E o Brasil, que perde uma oportunidade de apoiar concretamente países a superar a fome, a estruturarem sistemas públicos e estratégias nacionais de desenvolvimento sustentável. Perde o Itamaraty que, com uma nova visão economicista e comercial, subestima o protagonismo internacional que o Brasil adquiriu e escolhe relegá-lo a um segundo plano das relações internacionais e da cooperação Sul-Sul. Na política, não há espaço vazio. Na cooperação também não. Perdemos. Quem ganha?

*Tereza Campello, ex-ministra de Desenvolvimento Social e Combate à fome; Samuel Pinheiro Guimarães Neto, embaixador e ex-secretário-geral do Itamaraty; Lindbergh Farias, senador; Padre João, deputado federal; Maria Emília Pacheco, presidenta do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea); Renato Maluf, ex-presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea); Márcia Lopes, ex-ministra de Desenvolvimento Social e Combate à Fome; Francisco Menezes, coordenador de projetos do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase); Ana Fonseca, pesquisadora da Unicamp e ex-secretária executiva do Programa Bolsa Família; Gala Dahlet, coordenadora da Iniciativa África do Instituto Lula; Nathalie Beghin, coordenadora da assessoria política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).

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