“É preciso superar paradigma do crescimento e desenvolvimento infinitos”

Publicado por Abong.

As Organizações da Sociedade Civil (OSCs) e movimentos sociais atuam de forma independente e articulada, tendo como cimento de união o interesse coletivo e a luta em prol da cidadania plena, entendendo esta como um conjunto de direitos definidos pelos vários tratados de direitos humanos no âmbito internacional (Declaração dos Direitos Humanos Universais e Direitos Econômicos, Culturais, Sociais e Ambientais).

Uma das formas prioritárias de atuar se faz pela pressão ao Estado para que esses direitos sejam garantidos no marco legal, assim como efetivo.  Para tal, é preciso que os direitos se expressem em objetivos, metas e indicadores e uma linha de base sobre a qual se possa avaliar no tempo que aquele objetivo foi alcançado. Essa efetividade se faz, concretamente, pela transformação desses marcos legais, objetivos e metas em políticas públicas bem desenhadas e orçamentadas para que resultem positivamente na vida das pessoas e no respeito ao meio ambiente.

Mas, para tanto, é preciso que os objetivos dialoguem diretamente com as interpretações que buscam garantia e exigibilidade dos direitos. Se os objetivos acordados, ao serem concretizados, não efetivam direitos ou não os garantem de forma ampla e integral, o diálogo fica inviabilizado para os movimentos sociais. Podemos usar como exemplo a adoção dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) que, na sua própria declaração já rebaixava a agenda das lutas sociais para metas pouco eficazes na concretização de direitos. Neste sentido, o processo de elaboração dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) é um importante avanço. Alguns Objetivos incorporam conceitos que os movimentos sociais e a sociedade civil organizada defendem e que, se concretizados, podem melhorar as condições no caminho da efetivação dos direitos.

No entanto, é preciso reconhecer que nenhum dos Objetivos enfrenta as questões essenciais que promovem as desigualdades porque não mexe, por exemplo, nos mecanismos que possibilitam a acumulação e concentração de capital, não se propõe a reduzir o complexo militar global e suas guerras, assim como não incide sobre o modelo de desenvolvimento econômico que tem sido o principal vetor da degradação ambiental e social. Isto ocorre porque o que orienta a maioria dos ODS é a premissa do direito ao desenvolvimento, sem condicioná-lo aos direitos humanos e aos direitos da natureza. Por isso, questões como o crescimento demográfico e populacional e a exigência cada vez maior da exploração de riquezas naturais, base do atual modelo de desenvolvimento, não entraram na conta dos ODS. Cabe aqui ressaltar o fato de que a discussão sobre o financiamento ao desenvolvimento não avançou. Nenhum dos países mais ricos, que têm a maior responsabilidade histórica sobre o aquecimento global, se mostra disposto a pagar a conta rumo a mudanças. Não há dinheiro novo circulando para dar conta dos desafios que estão apontados pelos Objetivos. As teses vencedoras até o momento são via mercantilização e financeirização da natureza. Mantido o atual modelo, não haverá energia nem alimentos para atender às nove bilhões de pessoas que viverão no Planeta em 2050.

Há, ainda, outra questão necessária para que este diálogo entre sociedade civil organizada e Estado possa ser frutífero. É a intenção real de assumir os compromissos para a efetivação dos Objetivos. Esta premissa não pode ser analisada apenas do ponto de vista dos discursos e declaração, mas da prática efetiva dos sujeitos que se põem em diálogo. Neste sentido, é preciso manter sempre uma análise crítica sobre a conjuntura e seus/suas atores/atrizes.  Nos últimos tempos, as estruturas que deveriam sustentar uma governança global menos centralizada nas grandes potências têm se esfacelado ou caído em descrédito. Recentemente, visto pelos pífios resultados da Conferência do Clima (COP22), está evidente que estes processos de diálogos internacionais não têm conseguido produzir acordos mínimos capazes de serem efetivados para conter as mudanças climáticas, por exemplo. E para piorar, sua sustentação financeira está cada dia mais capturada pelo setor privado e seus interesses. As Nações Unidas e seus órgãos não possuem nenhum poder real para impedir ou mesmo conseguem condenar as práticas que ceifam milhares de vidas humanas e produzem a maior crise de refugiados de que se tem notícia desde a II Guerra Mundial, comprometendo a dignidade humana de milhões de pessoas, a maioria delas, mulheres, crianças e idosos/as.

Frente a tudo isso, a decisão de participar de um diálogo sobre a implementação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável deve estar subordinada à análise deste contexto. Como foi reconhecido acima, sua construção representou uma evolução em relação aos ODM. No entanto, dada a conjuntura internacional, o declarado desinteresse das grandes potências e, principalmente, a incapacidade dos demais países em pressioná-las para assumirem compromissos concretos, a conclusão é que os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável se tornaram um rol de boas intenções que sequer serão levadas a sério por boa parte de seus signatários. Na prática, sua efetivação está longe de ser alcançada.

Mesmo duvidando de sua real eficácia, é preciso estar atento porque todos os governos tentarão utilizar o debate dos ODS para criar a ideia de que estão em busca de soluções para os dilemas ambientais, sociais e econômicos do planeta. A chamada economia verde, acordada na Rio+20, veio para legitimar a saída de mercado para a nova fase de acordos na chamada Agenda 2030. Para enfrentar esta situação e, principalmente, para que as OSCs e os movimentos sociais não sejam absorvidos por rodas de conversas, seminários e eventos nada eficazes, sua atuação em espaços de diálogo sobre o tema deve estar subordinada à apresentação de propostas concretas que possam colocar os agentes econômicos e políticos que defendem o atual modelo de desenvolvimento em contradição. Os ODS, certamente, terão espaços privilegiados na mídia coorporativa e estes espaços também podem ser utilizados para denunciar as contradições dos Objetivos e para a defesa de propostas que realmente possam significar uma saída para a crise civilizatória que vivemos. Esta estratégia só será eficaz se for assumida por um leque amplo de forças políticas, movimentos sociais e da sociedade civil organizada no sentido de realmente inflexionar o debate sobre a insustentabilidade do atual modelo de desenvolvimento e de promover uma aliança global para mudanças estruturais em nosso modo de vida.

Finalmente, para as OSCs e os movimentos sociais, o principal objetivo é superar o paradigma do crescimento e desenvolvimento infinitos. Diante da possibilidade de uma possível catástrofe mais radical, a alternativa passa pelo decrescimento das atividades insustentáveis e do investimento imediato em medidas sustentáveis e duradouras, em especial, as energias limpas, a alimentação agroecológica, a proteção dos territórios, o respeito aos direitos e a valorização das diversidades. A questão central para um outro modelo de vida não é tecnológica ou mercadológica e sim política e cultural. Portanto, só haverá saída com mais democracia capaz de incidir sobre quem vai pagar a conta da mudança dos paradigmas e quem serão as atrizes e os atores deste outro mundo possível. A questão é: será que estamos à altura destes desafios?

Vamos falar sobre a agenda internacional?


PEC 55 é um salto no escuro que condena o Brasil a retrocessos

Publicado pelo El País.

A PEC (Proposta de Emenda Constitucional) 55, que estabelece um teto global para os gastos públicos pelos próximos 20 anos, é uma medida de austeridade fiscal sem precedentes porque combina um status constitucional, um prazo incomum de duração e uma excepcional rigidez sobre a capacidade do governo de gerir a política fiscal. Cabe, portanto, analisar seus potenciais efeitos à luz de uma abordagem baseada nos direitos humanos protegidos pela Constituição e por instrumentos internacionais, como o direito à educação, saúde, moradia digna, à cultura, direitos da criança, laborais entre tantos outros.

Inicialmente, cumpre ressaltar que nenhum governo possui um cheque em branco para impor sacrifícios coletivos sem que antes suas medidas sejam testadas para averiguar a compatibilidade com as obrigações internacionais assumidas pelo país perante os direitos humanos.
Conforme organismos internacionais de monitoramento dos direitos humanos, como o Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU, qualquer medida de austeridade deve atender aos seguintes parâmetros:

1 – ser temporária, estritamente necessária e proporcional;

2 – levar em consideração todas as alternativas possíveis;

3 – não discriminar grupos vulneráveis;

4 – ser adotada apenas após um processo de tomada de decisão com a participação genuína de indivíduos e grupos afetados.

A PEC 55 não resiste ao crivo de nenhum desses quatro requisitos. Primeiramente, sob qualquer ótica, vinte anos é um prazo exagerado. Não é improvável admitir que uma crise global como a que tomou os mercados financeiros em 2008 possa vir a ocorrer novamente. Naquela ocasião, o Brasil ganhou reconhecimento internacional pela adoção de políticas anticíclicas bem-sucedidas para estimular a economia. Graças a elas, o país se recuperou rapidamente da crise e viu alguns anos de crescimento inclusivo.
Como o regime fiscal proposto não possui nenhuma cláusula de “escape”, diante de uma grave crise as autoridades públicas brasileiras seriam severamente limitadas em sua capacidade de manter e ampliar a rede de proteção social, o que mostra a desproporcionalidade da PEC.

Quanto ao segundo parâmetro, o governo não fez – ou pelo menos não divulgou publicamente – nenhuma avaliação do impacto que a PEC terá sobre os níveis de pobreza, sobre a desigualdade e os direitos humanos. A população idosa brasileira irá dobrar nos próximos 20 anos, e será necessário um aumento de pelo menos 37% do orçamento da saúde. Como o governo enxerga esse desafio dentro do Novo Regime Fiscal? Não se sabe.

Tampouco foram exauridas as análises sobre o custo-benefício desta medida face a outras reformas, como a tributária, muito menos houve processo participativo para avaliar as opções. Sabe-se que, no Brasil, a arrecadação é predominantemente composta por impostos indiretos e regressivos, enquanto que em países desenvolvidos ela incide mais sobre o patrimônio e a renda.
Sequer há um debate sério sobre a necessidade de abolir regras tributárias que praticamente só o Brasil tem, como a isenção da taxação de lucros e dividendos da pessoa física. Segundo estudo do Programa para o Desenvolvimento das Nações Unidas, apenas a reinstituição da tributação sobre essa classe de rendimentos por uma alíquota linear de 15% traria aos cofres públicos mais de R$ 190 bilhões anuais. O Ministério da Fazenda reconheceu em relatório recente que a alíquota efetiva do imposto de renda, isto é, descontadas isenções e outros privilégios, incidente sobre o estrato mais rico da população (mais de 160 salários mínimos anuais) caiu 0,5% entre 2007 e 2013, enquanto que subiu 1,6% na camada mais pobre (até 20 salários mínimos anuais).

No que diz respeito à distribuição não equitativa dos ônus da PEC 55, a experiência comparada fornece provas claras de que cortar gastos em direitos básicos enquanto que se mantêm privilégios é a receita certa para o aumento da desigualdade. Segundo relatório da ONG Oxfam, entre os principais fatores que explicam o crescimento recente da desigualdade na Europa estão as medidas de austeridade, que cortaram o gasto público, e a regressividade do sistema tributário. Exatamente o cenário que se busca reproduzir por aqui.

O próprio FMI (Fundo Monetário Internacional), ao comparar programas de consolidação fiscal pelo lado do gasto e da arrecadação, concluiu que ajustes do primeiro tipo, como o promovido pela PEC 55, levam a um aumento significativo e persistente da desigualdade, à diminuição da renda salarial e da parcela salarial da renda e ao aumento do desemprego de longa duração – sem nenhum impacto econômico positivo.

O ônus de demonstrar que todas as alternativas menos gravosas foram avaliadas é do governo, e está mais do que claro que ele não se desincumbiu dessa obrigação para com a sociedade brasileira.

Se aprovada, a PEC 55 certamente resultará em uma séria erosão dos direitos sociais como resultado de uma diminuição da despesa real per capita, à medida que a demanda por serviços vai aumentar e as receitas não, prejudicando o progresso de vários direitos sociais, especialmente para os mais vulneráveis que dependem mais da prestação de serviços públicos.

Por fim, por representar uma ameaça direta aos direitos fundamentais e uma ruptura do pacto social firmado na Constituição Federal de 1988, passível de questionamento junto ao Supremo Tribunal Federal, a medida expõe também o Brasil à condenação dos mecanismos internacionais de proteção de direitos humanos.Urge, portanto, suspender imediatamente a tramitação da PEC 55 e submetê-la a uma avaliação independente prévia do seu impacto sobre a capacidade do Brasil de cumprir com suas obrigações constitucionais e internacionais em matéria de direitos humanos.

Evasão escolar e educação de qualidade: com a palavra, os estudantes

Nosso modelo de educação está muito preso a padrões da modernidade, positivista, trancafiado entre as paredes das salas de aula, sem considerar outros espaços educadores. E por isso trabalhamos na perspectiva dos territórios educadores, do direito à cidade e de uma vida no campo que faça parte e integre os espaços de convivência.

Até para conseguirmos sair do senso comum de que o espaço de fora é violento, perigoso, olhado sempre pelo negativo, as cidades e o campo podem e devem fazer parte dos processos educativos. Ocupá-los pode contribuir para a construção de escolas mais abertas e democráticas, ao passo que as cidades podem se tornar mais amigáveis e acolhedoras.

A pergunta que não quer calar: se mudássemos tudo – o modelo de escola, a disposição das carteiras, a disciplina, as disciplinas -, seria possível para escolas e educadores educarem sem controle dos corpos, do espaço e do tempo? É possível fazer diferente apesar de ter recebido uma educação com controle?

Precisamos de escolas diferentes e de formação de formadores também diferente.

E foi isso que dialogamos com adolescentes e jovens de escolas da segunda etapa do ensino fundamental, do ensino médio vespertino e noturno, dos campos e das cidades. Buscamos ouvi-los e ouvi-las para entender o que estão pensando da escola e da educação no século 21 em momento político tão atribulado, com vários riscos e ameaças, mas também oportunidades de insurgências, especialmente dos que estão vivenciando o processo educativo na prática cotidiana das escolas e instituições educadoras.

E quais mudanças esperam para que as escolas sejam o lugar da diferença, do diálogo e da prática de uma educação de qualidade, aberta aos espaços públicos e em relação dialógica com os territórios onde se situam?

Ao mesmo tempo, é necessário discutir o que significam as mudanças propostas por este governo nada legítimo que ocupa o Palácio do Planalto nesse momento. Até que ponto as alterações legislativas propostas influenciarão a educação em todos os seus níveis? Até que ponto há intenção de precarizar o ensino médio para dificultar o acesso das pessoas mais pobres ao ensino superior?

A reforma do ensino médio por medida provisória:

Há várias questões a serem analisadas, entre elas o fato de o governo desconsiderar a participação popular na construção da proposta já em vigor; a precarização da formação, ao designar que cada sistema optará por complementar as horas de formação da maneira mais conveniente. Podendo ser horas práticas trabalhadas, cursos produzidos por instituições diversas não especificadas, educação à distância ou “presencial mediada por recursos tecnológicos”.

O que acontecerá nos mais diversos territórios, que terão menos recursos por conta da proposta de emenda constitucional (PEC 55) que congela os recursos para políticas sociais por vinte anos, só saberemos ao caminhar. No entanto, o cenário não é promissor.

Com a palavra, a comunidade escolar:

E o que disseram estudantes com os quais interagimos sobre educação de qualidade e o que faz com que várias delas abandonem a escola antes de terminar a educação básica?

Há questões que dizem respeito aos diferentes territórios, no entanto, podemos dizer que há um núcleo que os aproxima, que faz com que dialoguem mesmo que à distância, pois se repetem, ainda que estejamos falando de diferentes lugares como do campo ou da cidade.

Uma das motivações citadas em todos os lugares com muita ênfase é a falta de interesse. O que estaria dentro desta categoria? Mesmo que a maioria, quando o diz, esteja falando de responsabilidades individuais, o que leva tantas pessoas, em diferentes partes do Brasil, abandonarem a escola por falta de interesse? E por que os responsáveis pelas políticas públicas não analisam tal questão? E continuamos sem estabelecer o diálogo?

Outras duas questões que aparecem com ênfase nos diferentes locais é o trabalho precoce, seja no campo ou na cidade, o que tem tudo a ver com a estrutura desigual desse nosso país, onde boa parte de adolescentes precisa contribuir com a renda familiar muito jovens, atrapalhando radicalmente o percurso da escolarização. E a gravidez na adolescência também é uma questão agravada pelas desigualdades, visto que há, mesmo no século 21, falta de informação e responsabilização das meninas, principalmente, de maneira individual e não sistêmica.

Também foram apontados como fatores para evasão escolar pelos estudantes as dificuldades de aprendizagem, falta de perspectiva, problemas pessoais, professores, regras abusivas das escolas, internet, distorção idade/série, influência de amigos, racismo, homofobia.

Essas são as principais das questões levantadas por adolescentes de Brasília, da Bahia e do Pará seus processos de escolarização em relação ao que descrevem como educação de qualidade e o que favorece o abandono escolar.

O projeto Onda: Educação de Qualidade, que compartilha e problematiza os dados da campanha “Fora da Escola não Pode”, termina mais uma edição em 2016 em um momento especialmente complexo, visto que um dos seus objetivos era gerar argumentos para uma efetiva reforma do ensino médio a partir dos usuários, ou seja, estudantes. No entanto, nos foi imposta uma reforma por medida provisória, sem considerar todas as vozes das comunidades escolares, profissionais da educação, educadores, estudantes.
Desta vez expandimos os horizontes, multiplicando a metodologia para o Instituto Chapada, que trabalha em vários municípios da Chapada Diamantina, na Bahia e para o Instituto Peabirú, que atua em Belém, no Pará, nos possibilitando uma visão mais ampla do que se espera da escola, dos motivos que levam à evasão escolar e qual a  escola que estudantes gostariam de ter.

De acordo com o Instituto Chapada, nosso parceiro na Bahia:

“A oportunidade de conhecer a metodologia desenvolvida pelo INESC motivou o grupo de técnicos das Secretarias a pensar nos fóruns de debates nos quais os adolescentes podem e devem ser convocados a participarem dentro e fora da escola.”

O Novo Banco de Desenvolvimento – o tiro saiu pela culatra?

Entre os dias 12 e 14 de outubro de 2016, será realizada em Goa, Índia, a 8ª Cúpula do BRICS, bloco de países que reúne Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Por que uma organização não governamental como o Inesc, com sede em Brasília, poderia se interessar por essa reunião?

Por muitas razões, mas talvez a principal delas seja a defesa incondicional da radicalização da democracia e da promoção dos direitos humanos, no Brasil e alhures. E o que isso tem a ver com o BRICS?

Muito. O BRICS nos deu a impressão que o jogo poderia mudar no cenário internacional. O poder dos chamados países desenvolvidos é tamanho que são eles que ditam as regras na grande cena global. Um exemplo: os países do BRICS correspondem a 40% da população global e cerca de 23% do conjunto dos PIB das nações, mas só têm 11% dos votos do Fundo Monetário Internacional (FMI). Inconformados com tamanha assimetria, os governantes do Bloco atuaram por dentro do FMI para mudar o jogo, mas os americanos que mandam não toparam. Os governos do BRICS, que já vinham conversando informalmente há vários anos, se deram conta que juntos poderiam desafiar o status quo e tencionar as relações hegemônicas vigentes. O poder dos cinco países vem crescendo significativamente: se no começo do século 21 o BRICS representavam menos de 5% do PIB global, essa proporção mais do que quadruplicou em 15 anos. Já o G7 – os sete mais ricos do mundo – vem perdendo terreno: o grupo era responsável por dois terços do PIB global em 2000 e essa proporção caiu para cerca de 45% nos dias de hoje[2].

Diante desse quadro – poder crescente, mas destituído de voz – o BRICS resolveu no final da década passada se organizar de maneira mais estruturada, estabelecendo agenda de trabalho comum e reuniões anuais de chefes de Estado. Os encontros são rotativos, cada ano um dos países hospeda a Cúpula. Desde sua criação em 2009, o Brasil recebeu duas Cúpulas: a 2ª em Brasília, em 2010, e a 6ª em Fortaleza, em 2014. Apesar de existirem muitas assimetrias entre os países, em termos políticos, econômicos, sociais e culturais, há um desejo comum de ganhar autonomia em relação aos que vêm dando as ordens desde o fim da Segunda Guerra Mundial.

Uma das primeiras medidas concretas do Bloco foi a criação do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD). Considerando as imensas necessidades de financiamento para o desenvolvimento dos países do Sul, estimadas em mais de um trilhão de dólares, e a crescente dificuldade do Banco Mundial e de outros bancos de desenvolvimento oriundos dos acordos de Bretton Woods de atender a essas demandas, o NBD se apresenta como alternativa de interesse dos países em desenvolvimento. A ideia foi lançada em Fortaleza em 2014, e o Banco criado em 2016. Os primeiros empréstimos no valor de pouco mais de 800 milhões de dólares foram aprovados para Brasil, Índia, China e África do Sul na área de energias renováveis.

A diferença em relação aos bancos de desenvolvimento existentes é que, neste caso, há igualdade nas decisões – cada país, um voto. E uma construção que acomoda todos os países: a sede é na China, a Presidência é da Índia, o Presidente do Conselho de Administração é brasileiro, o Presidente do Conselho de Governadores é russo e a África do Sul sedia o escritório regional do Banco.

A princípio deveríamos estar contentes, pois finalmente as vozes de Sul desafiaram os poderosos do Norte, contribuindo para alterar as desiguais relações de poder prevalecentes. Mas, não é bem assim. São inúmeros os desafios que o NBD traz. Não basta ser do Sul para ser bom. O Banco nasce com pouca transparência. Apesar de ter lançado em julho um documento intitulado Política Provisória de Divulgação de Informação (Interim Information Disclosure Policy)[3], que sem dúvida representa algum avanço, note-se que tal política, ainda que provisória, foi elaborada sem qualquer mecanismos de escuta dos povos e comunidades que serão afetados por suas ações. O site do Novo Banco de Desenvolvimento é lastimável[4], não diz nada. Não se sabe quais projetos foram aprovados, nem quais estão no pipeline (na fila para aprovação), nem quais são os critérios de aprovação e as condições dos empréstimos. E mais: o NBD, ao invés de empurrar os “velhos” bancos para uma agenda mais socioambientalmente sustentável, tem feito com que estes flexibilizem seus critérios para emprestar. Como se não bastasse, o NBD recém celebrou acordos de cooperação com o Banco Mundial e com o maior banco privado da Índia, o ICICI, para assessoramento nas áreas de gestão de risco e análise de projetos, entre outros. Ou seja, o NBD ao invés de instituir práticas públicas inovadoras de transparência, prestação de contas e participação social está se associando à tudo que tem de mais retrógrado. Parece um filme de terror, onde as mocinhas e os mocinhos viram bandidos!

O cenário não é alvissareiro, pois os atuais governantes do BRICS cada vez mais se distanciam de sistemas políticos minimamente democráticos. O Brasil acabou de passar por um golpe institucional. Na África do Sul, na Índia e na Rússia crescem as medidas neoliberais e a perseguição e criminalização de organizações e movimentos sociais. E o governo chinês, como é sabido, pouco se interessa em saber o que seu povo pensa. A Índia é o exemplo mais emblemático de um crescimento sem redistribuição. Apesar de sucessivas taxas invejáveis de crescimento de sua econômica nos últimos anos, o abismo social permanece imenso. Segundo o Prêmio Nobel de Economia Amartya Sen e seu colaborador Jean Drèze[5], somente cinco países no mundo (Afeganistão, Camboja, Haiti, Myanmar e Paquistão) apresentam taxas de mortalidade infantil piores que as da Índia. E mais: nenhum país, nem mesmo na África, tem índices de desnutrição (baixo peso) menor do que o indiano. O Brasil segue o mesmo caminho – pior, pois a economia está em recessão. As propostas do atual governo são as de cortar gastos, especialmente nas políticas de trabalho e renda, previdência social, assistência social, saúde e educação. Isso no momento em que o desemprego cresce e a renda do trabalho cai. E mais: a ideia é congelar as despesas públicas por 20 anos!

Que podemos esperar do NBD com esses governos?

Diversas iniciativas de organizações e movimentos sociais dos países integrantes do BRICS e de outros países vêm buscando denunciar essa estratégia por meio de cúpulas paralelas às cúpulas oficiais, elaboração de declarações, envio de correspondências para os governos, apresentação de proposta de criação do Fórum da Sociedade Civil dos BRICS e do Fórum Sindical dos BRICS, entre outras. Se nada mudar, a atual estratégia do Novo Banco de Desenvolvimento contribuirá para aumentar as desigualdades; diretamente em função das ações do Banco, e indiretamente pelos seus impactos nas demais instituições financeiras que deverão abaixar seus padrões para enfrentar a concorrência do NBD e poder continuar emprestando.

Agora, mais do que nunca, nós, organizações e movimentos sociais preocupados com os destinos dos que mais sofrem, temos que nos unir para lutar e recuperar a ideia original, de termos uma instituição que efetivamente impulsione um desenvolvimento sociombientalmente justo, inclusivo e participativo. As Cúpulas dos Povos são os locci privilegiados para travar esses debates – este ano, data e local já estão definidos: dias 13 e 14 de outubro em Goa, na Índia, às vésperas da Cúpula oficial do BRICS.

[2] http://cic.nyu.edu/blog/global-development/role-brics-changing-global-governance-case-study-post-2015-development

[3] A esse respeito veja: http://www.ndb.int/pdf/ndb-interim-information-disclosure-policy-201607.pdf

[4] A esse respeito veja: http://ndb.int

[5] A esse respeito ver: http://www.outlookindia.com/magazine/story/putting-growth-in-its-place/278843

Novo sinal da estupidez rodoviária em Brasília

Por Movimento Nossa Brasília.

Nas últimas décadas, cidades de todo o mundo sofreram com os problemas gerados pelo excesso de automóveis e buscaram alternativas para reduzir e desestimular o seu uso. Diversas soluções foram tentadas, como o rodízio na cidade de São Paulo, a tarifa por congestionamento em Londres, o estímulo ao uso da bicicleta em Amsterdã, as áreas livres de automóveis em Freiburg. Mas, no Distrito Federal, a lógica foi outra.

Na cidade modernista, pensada para os automóveis, acreditou-se que ele, nas palavras de Lúcio Costa, “domesticou-se”, que era necessário apenas abrir grandes vias, com rodovias rasgando a cidade e estacionamentos por todos os lados que o convívio seria pacífico. Ledo engano.

Hoje, o Distrito Federal tem uma das maiores frotas por habitante do Brasil. Tem automóveis estacionados em quase todos os espaços públicos, sejam eles calçadas, gramados, ao longo do meio fio e, inclusive, ao lado das placas que proíbem o seu estacionamento. A cidade, que há cerca de 15 anos, se orgulhava de permitir que os moradores, ao menos os do Plano Piloto, almoçassem em casa, hoje tem engarrafamentos constantes que já extrapolam os horários de pico e impedem este tipo de trajeto rápido.

Seria então o momento de reconhecer que a quantidade de automóveis já extrapolou os limites da vida coletiva, que precisamos mudar, repensar toda a lógica rodoviarista que vem desde a gestação da cidade?

Pelo contrário, nossos governantes ainda insistem em dar mais espaços para que mais pessoas andem de carro na cidade. Ainda não tratam o transporte público com a devida prioridade que merece. Ainda pensam que os pedestres e ciclistas são marginais ao Deus Automóvel.

Em 2014, época das eleições ao governo do DF, a sociedade brasiliense se organizou e elaborou a “Carta Compromisso com a Mobilidade Urbana e Sustentável“, que foi apresentada a todos os candidatos ao cargo. Ela foi assinada e incluída no plano de governo do atual governador eleito, Rodrigo Rollemberg.

A carta expressa textualmente o compromisso de “inverter a atual prioridade dada aos meios de locomoção, estabelecendo metas de redução do percentual das viagens diárias feitas de carro ou moto, assegurando a fluidez preferencial aos pedestres, às bicicletas e ao transporte coletivo, reduzindo os espaços destinados ao uso individual do carro”.

Porém, as ações do atual governador vão para o outro lado. Ele insiste na construção de novos viadutos, novas pontes e novas rodovias urbanas, que não garantem de forma nenhuma a prioridade aos modos ativos e, efetivamente, não apresentam nada de novo no modo de governar e de pensar a mobilidade urbana.

O Trevo de Triagem Norte – TTN, é uma obra que sintetiza bem essa vontade de dar mais espaço para os automóveis. A ponte do Bragueto está condenada, é necessário que ela seja reconstruída.

Aproveitando da situação, o Departamento de Estradas e Rodagem (DER) elaborou um mega projeto rodoviário para a região. Cujo objetivo é separar os fluxos de automóveis que passam pela ponte e duplicar a sua capacidade de tráfego. O valor da obra está orçado em cerca de 100 milhões de reais.

Porém, o projeto ignora que por ali passam centenas de ciclistas e pedestres todos os dias, mesmo sendo um dos locais mais perigosos do DF para se pedalar. Ignora, que a ponte dá acesso ao Plano Piloto, que já está entupido de automóveis e que não terá sua capacidade de tráfego aumentada, muito menos duplicada, devido ao seu tombamento. Ignora que as novas infraestruturas vão destruir nascentes, veredas e olhos d’água e assorear, ainda mais o lago Paranoá. Ignora a comunidade local, diretamente afetada, que terá que conviver com mais poluição, ruído e calor. Ignora, que mais infraestrutura viária vai estimular que mais pessoas passem de automóvel naquele local.

Ignora a Política Nacional de Mobilidade Urbana (lei federal 12.587/2012) que determina a prioridade para os modos ativos e para o transporte coletivo sobre o automóvel particular. Ignora todos os estudos e a vivência empírica que demonstram que não precisamos estimular ainda mais o uso de automóveis nas nossas cidades. Ignora a população, que não foi na única audiência pública realizada, que contou com a participação de apenas 39 pessoas, delas, somente 5 eram da sociedade civil. Ignora, que 17 novos viadutos e pontes e seus taludes impedem a passagem de pedestres e ciclistas. Ignora que ao lado tem um setor hospitalar que será afetado com todos os problemas citados e terá seu acesso prejudicado.

“A obra é herança dos governos anteriores…” | “Já está licitada, tem que fazer!”

Estas são as duas justificativas dadas pelo atual governador para que a obra aconteça. Justificativa que não convence. Não faltam problemas ambientais e de mobilidade urbana para parar a obra. Não falta a comunidade se mobilizando contra o empreendimento. Falta apenas que o Rollemberg tome uma atitude que se espera de um gestor sério e mande que a obra seja suspensa. Que chame a sociedade para conversar e se pense em uma solução que recupere a ponte do Bragueto e garanta que as pessoas tenham segurança e conforto para se deslocar pela região, independente de seu modo de transporte.

Infelizmente, pouco se espera que o governador tome tal atitude já que em seu governo foi desenterrada a Via Interbairros, com o novo nome de Via Transbrasília. Que nada mais é que uma nova via expressa que priorizará os automóveis no deslocamento de Samambaia ao Plano Piloto, passando por áreas de proteção ambiental, rasgando e dividindo as cidades por onde passará.

A pergunta que fica é: a quem interessa estas grandes obras rodoviaristas?

Ser contra o Trevo de Triagem Norte não é ser contra a população que necessita atravessar todos os dias a ponte do Bragueto para chegar ao seu local de trabalho, estudo ou lazer. Ser contra o TTN é ser a favor de uma política de mobilidade urbana que priorize os deslocamentos realizados por pedestres e ciclistas. Que os deslocamentos longos sejam realizados através de um transporte público gratuito e de qualidade. É necessário repensar como as pessoas se deslocam no DF e como o governo distrital age na mobilidade urbana.

Na recuperação da ponte do Bragueto poderia ser incluído um corredor estruturante de alta capacidade de transporte público, através de metrô, trem ou BRT. Poderia facilitar o trajeto de pedestres e ciclistas ao invés de piorar. Poderia investir em emprego, cultura e lazer na região norte do DF ao invés de manter a centralização de todas as atividades no Plano Piloto. Mas soluções alternativas nem foram cogitadas pelo DER. É mais fácil continuar repetindo os mesmos erros do que inovar e transformar a mobilidade urbana e o DF.

Por tudo isso, o Movimento Nossa Brasília, luta, apóia e fortalece a mobilização de todas as comunidades do DF pela valorização do transporte público, dos pedestres e ciclistas, visando a transformação das nossas cidades para que mais pessoas desfrutem do espaço público e de todas as possibilidades que a capital federal oferece.

Novas diretrizes colocam Brasil em segundo plano nas relações internacionais

Por Tereza Campello, Samuel Pinheiro Guimarães Neto, Lindbergh Farias, Padre João, Maria Emília Pacheco, Renato Maluf, Márcia Lopes, Francisco Menezes, Ana Fonseca, Gala Dahlet e Nathalie Beghin (coordenadora da Assessoria Política do Inesc).

Artigo publicado originalmente no site da revista Carta Capital.

O Brasil saiu do Mapa Mundial da Fome das Nações Unidas em 2014, segundo o “Relatório de Insegurança Alimentar no Mundo”, publicado no mesmo ano. Entre 2002 e 2013, o número de brasileiros em condição de subalimentação caiu em 82%.

Tal feito não é fruto do acaso ou de uma conjuntura econômica internacional favorável, mas, sobretudo, de uma vontade politica materializada em politicas públicas inovadoras, robustas e multissetoriais que tornaram o Brasil uma referência mundial no que diz respeito ao combate à fome e à erradicação da pobreza.

O aumento da disponibilidade de calorias para a população em 10% em dez anos; o crescimento real da renda dos mais pobres em 71,5%; a cobertura de 14 milhões de famílias pelo Programa Bolsa Família; o diálogo e a participação da sociedade civil como um princípio; a restruturação e fortalecimento do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), são algumas destas medidas que contribuíram para superação da fome do Brasil e despertaram crescente interesse da comunidade internacional.

Por essa razão, o País se tornou uma referência para o compartilhamento de experiências e boas práticas nessa área, especialmente por meio da Cooperação Horizontal e da Cooperação Sul-Sul. Não por acaso, as Nações Unidas estabeleceram em Brasília um Centro de Excelência dedicado à sistematização, difusão e implantação destas políticas em outros países.

No governo brasileiro, diferentes órgãos e instituições são co-responsáveis pela cooperação internacional para erradicação da fome e da pobreza, para estruturação de sistemas de proteção social e para promoção do desenvolvimento sustentável, seja por meio de parcerias com governos, organizações da sociedade civil ou Organismos Internacionais. O papel da Coordenação-Geral de Cooperação Humanitária e Combate à Fome (CGFOME) é central nesta dinâmica.

Como parte integrante da estratégia brasileira para o combate à fome, a CGFome foi criada em 1º de janeiro de 2004, no Ministério das Relações Exteriores, para coordenar a política externa brasileira na área da segurança alimentar e nutricional, do desenvolvimento rural e da cooperação humanitária internacional.

Em suas iniciativas de cooperação humanitária, o Brasil pautou-se pela busca da sustentabilidade socioeconômica e ambiental procurando conciliar respostas emergenciais a ações de longo prazo, voltadas para o desenvolvimento socioeconômico da população e do local afetado por crises socioambientais. O objetivo dessa estratégia inovadora de dupla tração – emergencial e estruturante – é garantir o fortalecimento da resiliência a desastres socioambientais, sobretudo de grupos menos favorecidos.

De 2006 a 2015, o país empreendeu 682 ações internacionais de cooperação humanitária, das quais 392 priorizaram projetos estruturantes que beneficiaram mais de 96 países na América Latina e Caribe, África, Ásia e Oriente Médio. Em paralelo, 290 ações foram realizadas em coordenação com outros órgãos governamentais, dentre os quais o Ministério da Saúde, o Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome, o Ministério da Defesa e o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, para doações de itens de primeira necessidade, tais como medicamentos e alimentos em benefício de 69 países na América Latina e Caribe, África, Ásia e Oriente Médio.

A cooperação humanitária brasileira distinguiu-se por privilegiar: (a) as compras locais de alimentos, principalmente aqueles produzidos pela agricultura familiar; (b) ações de resposta que prevejam a rápida recuperação socioeconômica; (c) participação da sociedade civil na construção e controle social dos projetos; e (d) ações pós-emergenciais de caráter estruturante, para que os países e as populações sejam capazes de superar as vulnerabilidades de forma permanente.

Graças à atuação da CGFome, Senegal, Níger, Malaui, Etiópia e Moçambique desenvolveram os seus respectivos Programas de Aquisição de Alimentos (PAA África), com base no PAA brasileiro, beneficiando comunidades, agricultores e especialmente as crianças, com ações em escolas.

Programa similar foi desenvolvido no Haiti, com o objetivo de reduzir a vulnerabilidade social, alimentar e nutricional da sociedade haitiana, por meio da melhora na produção e comercialização do leite, além da compra do leite para a melhoria nutricional e cognitiva dos estudantes beneficiários do Programa Leite na Escola (“Programme Lait à l’École”), parte do Programa Nacional de Cantinas Escolares (PNCS). Aproximadamente 84.571 estudantes entre 6 e 12 anos já receberam leite produzido localmente.

Dos 54 países da África, 47 foram parceiros em alguma iniciativa de cooperação internacional apoiada pelo Brasil, medidas que têm orientado várias políticas públicas para a garantia da segurança alimentar e a proteção social nesses países .

Ademais, a CGFOME, em parceria com diversos setores do governo brasileiro e articulada às Agências da ONU e ao Banco Mundial, realizou uma série de seminários e capacitações anuais com a presença das comitivas dos países africanos, para troca de experiências sobre políticas sociais e de desenvolvimento sustentável, reforçando o protagonismo do País nessa matéria no cenário internacional, mas, principalmente, contribuindo para a melhora das condições de vida de milhares de pessoas ao redor do globo.

Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), ratificados pela ONU como agenda pós-2015, têm no seu objetivo número dois a marca da conquista brasileira, o Fome Zero (Zero Hunger), sinalizando para o mundo que sim, é possível erradicar a fome.

As relações internacionais são peça chave na definição da visão que um povo tem de si mesmo e o inegável retorno diplomático da atuação da CGFOME contribuiu em muito para uma inserção estratégica do Brasil no cenário internacional.

Por essa razão, lamentamos profundamente a extinção da CGFOME, anunciada em 13 de setembro pelo Itamaraty e publicada no jornal O Globo. Aqui perdemos todos: os países e organismos nacionais e internacionais parceiros, a sociedade civil brasileira e as de outros países, que reforçavam mutuamente seus conhecimentos e práticas nos temas tratados.

E o Brasil, que perde uma oportunidade de apoiar concretamente países a superar a fome, a estruturarem sistemas públicos e estratégias nacionais de desenvolvimento sustentável. Perde o Itamaraty que, com uma nova visão economicista e comercial, subestima o protagonismo internacional que o Brasil adquiriu e escolhe relegá-lo a um segundo plano das relações internacionais e da cooperação Sul-Sul. Na política, não há espaço vazio. Na cooperação também não. Perdemos. Quem ganha?

*Tereza Campello, ex-ministra de Desenvolvimento Social e Combate à fome; Samuel Pinheiro Guimarães Neto, embaixador e ex-secretário-geral do Itamaraty; Lindbergh Farias, senador; Padre João, deputado federal; Maria Emília Pacheco, presidenta do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea); Renato Maluf, ex-presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea); Márcia Lopes, ex-ministra de Desenvolvimento Social e Combate à Fome; Francisco Menezes, coordenador de projetos do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase); Ana Fonseca, pesquisadora da Unicamp e ex-secretária executiva do Programa Bolsa Família; Gala Dahlet, coordenadora da Iniciativa África do Instituto Lula; Nathalie Beghin, coordenadora da assessoria política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).

Código Florestal: Considerações sobre a redação final

 
O primeiro Código Florestal brasileiro data de 1934 e foi criado para normatizar o uso das florestas . Em seu art.1° expressa a preocupação em considerar as florestas nacionais em seu conjunto, reconhecendo-a como de interesse social, um bem jurídico de interesse comum do povo brasileiro. O Código Florestal de 1934 estabeleceu restrições ao direito de propriedade por meio da imposição da reserva obrigatória de 25% de vegetação nativa nas propriedades rurais (art. 23).

Desde 1934, o Código Florestal foi alterado diversas vezes. Em vigor está a Lei 4.771, de 1965 , que revogou o Código de 1934. O Código Florestal de 1965 estabeleceu dois mecanismos importantes de proteção: i) a Reserva Legal – um percentual do imóvel que deve ser coberto por vegetação natural e que pode ser explorada com o manejo florestal sustentável; ii) a Área de Preservação Permanente (APP) – área destinada a proteger o solo e as águas, cujo uso é limitado e depende de situações a ser autorizada pelo poder público.

Após muitas mudanças, o percentual de cobertura vegetal exigido para compor a Reserva Legal é 80% em floresta na Amazônia Legal, de 35% em cerrado na Amazônia Legal, e 20% no restante do Brasil. No caso da Reserva Legal em área de floresta da Amazônia durante muitos anos o exigido foi de 50%, mas passou para 80% por meio da MP 1.511, de 1996 (reeditada várias vezes). O aumento foi introduzido para frear o desmatamento na região Amazônica.

Os limites das Áreas de Preservação Permanente também foram alterados, um exemplo é a Lei 7.511/1986, que aumentou a largura da mata ciliar , preocupação decorrente dos desastres naturais que ocorrem à época. Depois foi substituída pela Lei 7.830/1989, que alterou outra vez a largura da APP da mata ciliar.

 

Em 2001, foi editada a Medida Provisória 2.166-67/2001 que promoveu várias alterações, entre elas, incluiu os conceitos de utilidade pública e interesse social; definiu regras para delimitação e registro de reserva legal; definiu regras para a recomposição da reserva legal (mesmo ecossistema e na mesma microbacia).
A pressão pela reformulação do Código Florestal ganhou força em 2008. Primeiro, com a edição da Resolução n°3545/2008 do Banco Central, que passou a exigir documentação para comprovar a regularidade ambiental para fins de financiamento agropecuário no bioma Amazônia. Segundo, com a edição do Decreto n°6.514/2008 que passou a exigir a regulamentação da Reserva Legal e definiu multas para o caso de não efetivação da averbação.

O Decreto n°6.514/2008 substituiu o Decreto 3.179/1999, o primeiro que regulamentou a Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605, de 1998). O prazo para o início das sanções penais estabelecidas pelo Decreto foi prorrogado algumas vezes. A última redação, dada pelo Decreto n°7029, de 2009, estabelece a data de 11 de junho de 2011 para entrada em vigor das sanções penais.

 

Veja o artigo na íntegra

 

Eleições 2016: No Brasil, mulheres negras não têm vez na política

A análise do perfil das candidaturas para as Eleições 2016 revela, mais uma vez, o sexismo e o racismo das estruturas de poder no Brasil. Das 493.534 candidaturas em todo o Brasil, sendo 156.317 candidaturas do sexo feminino, apenas 14,2% (70.265) são mulheres negras concorrendo ao cargo de vereadora e 0,13% (652) ao cargo de prefeita – considerando-se “negra” a somatória das variáveis ‘pretas’ e ‘pardas’. Se considerarmos somente as candidatas que se auto-declararam ‘pretas’, o número é ainda menor: 0,01% (60) para prefeitura, 0,03% vice prefeitura (135), 2,64% (13.035) se candidataram ao cargo de vereadora.

Com relação aos homens negros (‘pretos’ + ‘pardos’), eles representam 28,8% das candidaturas para prefeitura, 30,1% para vice prefeitura e 33,4% para vereador. Os partidos que mais têm candidaturas de mulheres negras (pretas + pardas) são o Partido da Mulher Brasileira (PMB) e Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU): 23,6% e 20,4% respectivamente. Entre os grandes partidos, a proporção de candidaturas de mulheres negras (pretas + pardas) é a seguinte: 16,4% no PT, 13,8% no PSB, 13% no PDT, 12,3% no PSDB e 12,1% no PMDB. Considerando apenas as candidatas que se auto-declaram ‘pretas’, os números são ainda menores: 4,5% no PT, 2,4% no PSB, 2,3% no PDT, 2,2% no PSDB e 2% no PMDB.

O estado que tem mais candidatas negras (pretas + pardas) é o Amapá (25,2%), seguido do Acre (25%) e Pará (24,9%).

De acordo com o IBGE, São Paulo, Bahia e Minas Gerais são os estados que mais têm mulheres negras em sua população: nestes, a proporção de mulheres negras candidatas, para todos os cargos em disputa nas Eleições 2016, é de 7,8% em São Paulo (6.678), 24,0% em São Paulo (8.759) e 15% em Minas Gerais (11.724).

Os dados também demonstram a tendência à sub-representação de mulheres em geral (brancas, pretas, pardas, amarelas e indígenas): em todo o país, temos 12,6% para candidaturas ao cargo de ‘prefeita’, 17,4% para ‘vice-prefeita’ e 32,9% para ‘vereadora’ – ou seja, 87,4% das candidaturas a prefeituras de todo o país é composta por homens. É importante ressaltar que as mulheres representam 51,04% da população brasileira e que cota mínima obrigatória para os partidos para candidaturas femininas é de 30%. Quase todos os partidos cumpriram a cota legal – embora nenhum tenha atingido 50% –, exceto pelo PCO, que possui 29,4% de suas candidatas mulheres. Mas quando observada a distribuição entre os cargos, esse comportamento se mantém somente para o cargo de vereador. Para prefeitura, somente os partidos PMB, PSTU e NOVO têm 30% ou mais de candidatas mulheres, e para a vice-prefeitura, apenas o PMB atingiu essa cota.

No que se refere aos indígenas, foram 1.702 candidatos em todo o Brasil (0,3% do total de candidatos), dos quais 29 para o cargo de prefeito e 1.613 para os cargos de vereador. Candidatos que se declararam indígenas às prefeituras estão no Acre, Amazonas, Bahia, Ceará, Pará, Paraíba, Pernambuco, Rio de Janeiro, Roraima e Rio Grande do Sul.

Tratamento da base de dados do TSE: Luciana Guedes

As mulheres negras (pretas + pardas) experimentam os piores indicadores sociais hoje no Brasil, apesar de grandes avanços recentes como a diminuição da pobreza extrema por meio de políticas de segurança alimentar e nutricional, de transferência de renda, de elevação real do salário mínimo e de aumento da formalização da mão de obra, entre outras. Neste grupo, as pretas ainda são as mais vulnerabilizadas pela desigualdade social brasileira. O Mapa da Violência 2015: Homicídios de Mulheres no Brasil, produzido pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), a pedido da ONU Mulheres, demonstrou que as negras também são as maiores vítimas da violência doméstica e violência letal: o índice de homicídios cresceu 54,2% entre 2003 e 2013, ao passo que o das mulheres brancas caiu 9,2%. A população carcerária de mulheres no Brasil também tem crescido aceleradamente (567% entre 2000 e 2014), e as mulheres negras representam 68% das mulheres encarceradas hoje no Brasil (Fonte: Conselho Nacional de Justiça, 2015). Outro dado dramático de contexto das relações raciais no país é o fato de que convivemos com uma média de 25 mil jovens negros homens mortos ao ano por arma de fogo (fonte: Mapa da Violência, 2014) – a morte do jovem negro impacta diretamente a vida de suas mães, filhas, esposas. A boa notícia neste cenário é que as jovens negras também conquistaram espaços sociais positivos. A partir de políticas públicas afirmativas e de inclusão social, a presença das jovens negras aumentou nas universidades nos últimos anos.

O mundo do trabalho é uma das dimensões mais importantes da vida social, especialmente do ponto de vista da autonomia econômica e de realização individual. O racismo e o sexismo também operam nessa dimensão da vida social: estudo recente do IPEA revela que as mulheres negras ganham, em média, 40% da remuneração dos homens brancos.

Em 2015, as mulheres negras demonstraram para o país que seguirão com suas demandas nas arenas de participação na vida política: a Marcha de Mulheres Negras, que contou com mais de 30 mil mulheres, trouxe a Brasília a agenda anti-racista, contra a violência e pelo bem viver. Na ocasião, marcharam em direção a um Congresso Nacional que tem apenas 56 mulheres, sendo 12 mulheres negras (11 eleitas para a Câmara e 1 para o Senado). Atualmente, convivemos com um Ministério sem nenhuma mulher, em um governo que cortou o orçamento da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) e para direitos humanos, tornando o Ministério da Justiça um órgão voltado somente para a ação policial. Os dados das candidaturas às Eleições 2016 demonstram, mais uma vez, que os espaços de poder institucionalizados continuam fechados para as mulheres negras no Brasil.

Em 2014, o Inesc publicou análise semelhante para as eleições daquele ano. O “Perfil dos Candidatos às Eleições 2014: sub-representação de negros, indígenas e mulheres: desafio à democracia” revelou que, apesar de as candidaturas das mulheres cumprirem então a cota de 30% prevista em lei, ainda continuavam sendo minoria em todos os partidos políticos. E no quesito racial, as candidatas pretas e pardas, bem como as indígenas, também não tinham espaço.

Eleições 2016: No Brasil, mulheres negras não têm vez na política

A análise do perfil das candidaturas para as Eleições 2016 revela, mais uma vez, o sexismo e o racismo das estruturas de poder no Brasil. Das 493.534 candidaturas em todo o Brasil, sendo 156.317 candidaturas do sexo feminino, apenas 14,2% (70.265) são mulheres negras concorrendo ao cargo de vereadora e 0,13% (652) ao cargo de prefeita – considerando-se “negra” a somatória das variáveis ‘pretas’ e ‘pardas’. Se considerarmos somente as candidatas que se auto-declararam ‘pretas’, o número é ainda menor: 0,01% (60) para prefeitura, 0,03% vice prefeitura (135), 2,64% (13.035) se candidataram ao cargo de vereadora.

Com relação aos homens negros (‘pretos’ + ‘pardos’), eles representam 28,8% das candidaturas para prefeitura, 30,1% para vice prefeitura e 33,4% para vereador. Os partidos que mais têm candidaturas de mulheres negras (pretas + pardas) são o Partido da Mulher Brasileira (PMB) e Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU): 23,6% e 20,4% respectivamente. Entre os grandes partidos, a proporção de candidaturas de mulheres negras (pretas + pardas) é a seguinte: 16,4% no PT, 13,8% no PSB, 13% no PDT, 12,3% no PSDB e 12,1% no PMDB. Considerando apenas as candidatas que se auto-declaram ‘pretas’, os números são ainda menores: 4,5% no PT, 2,4% no PSB, 2,3% no PDT, 2,2% no PSDB e 2% no PMDB.

O estado que tem mais candidatas negras (pretas + pardas) é o Amapá (25,2%), seguido do Acre (25%) e Pará (24,9%).

De acordo com o IBGE, São Paulo, Bahia e Minas Gerais são os estados que mais têm mulheres negras em sua população: nestes, a proporção de mulheres negras candidatas, para todos os cargos em disputa nas Eleições 2016, é de 7,8% em São Paulo (6.678), 24,0% em São Paulo (8.759) e 15% em Minas Gerais (11.724).

Os dados também demonstram a tendência à sub-representação de mulheres em geral (brancas, pretas, pardas, amarelas e indígenas): em todo o país, temos 12,6% para candidaturas ao cargo de ‘prefeita’, 17,4% para ‘vice-prefeita’ e 32,9% para ‘vereadora’ – ou seja, 87,4% das candidaturas a prefeituras de todo o país é composta por homens. É importante ressaltar que as mulheres representam 51,04% da população brasileira e que cota mínima obrigatória para os partidos para candidaturas femininas é de 30%. Quase todos os partidos cumpriram a cota legal – embora nenhum tenha atingido 50% –, exceto pelo PCO, que possui 29,4% de suas candidatas mulheres. Mas quando observada a distribuição entre os cargos, esse comportamento se mantém somente para o cargo de vereador. Para prefeitura, somente os partidos PMB, PSTU e NOVO têm 30% ou mais de candidatas mulheres, e para a vice-prefeitura, apenas o PMB atingiu essa cota.

No que se refere aos indígenas, foram 1.702 candidatos em todo o Brasil (0,3% do total de candidatos), dos quais 29 para o cargo de prefeito e 1.613 para os cargos de vereador. Candidatos que se declararam indígenas às prefeituras estão no Acre, Amazonas, Bahia, Ceará, Pará, Paraíba, Pernambuco, Rio de Janeiro, Roraima e Rio Grande do Sul.

Tratamento da base de dados do TSE: Luciana Guedes

As mulheres negras (pretas + pardas) experimentam os piores indicadores sociais hoje no Brasil, apesar de grandes avanços recentes como a diminuição da pobreza extrema por meio de políticas de segurança alimentar e nutricional, de transferência de renda, de elevação real do salário mínimo e de aumento da formalização da mão de obra, entre outras. Neste grupo, as pretas ainda são as mais vulnerabilizadas pela desigualdade social brasileira. O Mapa da Violência 2015: Homicídios de Mulheres no Brasil, produzido pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), a pedido da ONU Mulheres, demonstrou que as negras também são as maiores vítimas da violência doméstica e violência letal: o índice de homicídios cresceu 54,2% entre 2003 e 2013, ao passo que o das mulheres brancas caiu 9,2%. A população carcerária de mulheres no Brasil também tem crescido aceleradamente (567% entre 2000 e 2014), e as mulheres negras representam 68% das mulheres encarceradas hoje no Brasil (Fonte: Conselho Nacional de Justiça, 2015). Outro dado dramático de contexto das relações raciais no país é o fato de que convivemos com uma média de 25 mil jovens negros homens mortos ao ano por arma de fogo (fonte: Mapa da Violência, 2014) – a morte do jovem negro impacta diretamente a vida de suas mães, filhas, esposas. A boa notícia neste cenário é que as jovens negras também conquistaram espaços sociais positivos. A partir de políticas públicas afirmativas e de inclusão social, a presença das jovens negras aumentou nas universidades nos últimos anos.

O mundo do trabalho é uma das dimensões mais importantes da vida social, especialmente do ponto de vista da autonomia econômica e de realização individual. O racismo e o sexismo também operam nessa dimensão da vida social: estudo recente do IPEA revela que as mulheres negras ganham, em média, 40% da remuneração dos homens brancos.

Em 2015, as mulheres negras demonstraram para o país que seguirão com suas demandas nas arenas de participação na vida política: a Marcha de Mulheres Negras, que contou com mais de 30 mil mulheres, trouxe a Brasília a agenda anti-racista, contra a violência e pelo bem viver. Na ocasião, marcharam em direção a um Congresso Nacional que tem apenas 56 mulheres, sendo 12 mulheres negras (11 eleitas para a Câmara e 1 para o Senado). Atualmente, convivemos com um Ministério sem nenhuma mulher, em um governo que cortou o orçamento da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) e para direitos humanos, tornando o Ministério da Justiça um órgão voltado somente para a ação policial. Os dados das candidaturas às Eleições 2016 demonstram, mais uma vez, que os espaços de poder institucionalizados continuam fechados para as mulheres negras no Brasil.

Em 2014, o Inesc publicou análise semelhante para as eleições daquele ano. O “Perfil dos Candidatos às Eleições 2014: sub-representação de negros, indígenas e mulheres: desafio à democracia” revelou que, apesar de as candidaturas das mulheres cumprirem então a cota de 30% prevista em lei, ainda continuavam sendo minoria em todos os partidos políticos. E no quesito racial, as candidatas pretas e pardas, bem como as indígenas, também não tinham espaço.

Reforma do ensino médio é mais um golpe do governo Temer

O ministro da Educação, Mendonça Filho, integrante de um governo não legitimado pelo voto popular, anunciou uma ampla reforma no ensino médio por meio de uma Medida Provisória, o que significa que ela entrará em vigor no dia de sua publicação no Diário Oficial da União (no caso, neste dia 22 de setembro de 2016), sem diálogo ou reflexão. Tal anúncio provoca mais perplexidade a uma sociedade profundamente abalada por inúmeras ameaças e sequestros de direitos que evidenciam aumento de privilégios para poucos, aprofundando as desigualdades sociais no país.

Toda política de educação ao mesmo tempo reflete e contribui para um projeto de sociedade. Cabe-nos perguntar qual é o projeto de sociedade que se fundamenta em decisões unilaterais apressadas, sem amplo debate, especialmente sem a participação dos mais interessados: os próprios estudantes e a comunidade escolar.

As várias reportagens que noticiam mais essa medida intempestiva do governo Temer são sempre comentadas por um único movimento, que referenda a iniciativa e deixa a impressão de que a sociedade, ou ao menos os especialistas, foram ouvidos.

Dia desses uma grande empresa de comunicação fez uma reportagem talhada para esvaziar o debate e dar como evidente a necessidade de uma reforma nos moldes da que foi anunciada hoje. Adolescentes de uma favela de Brasília foram questionados sobre o motivo de não estarem na escola, e os dois meninos dizem apenas ‘porque não’, e a menina diz que saiu porque engravidou. A conclusão, segundo a reportagem: há vários (assim mesmo, genericamente) motivos para o abandono escolar, e os dos entrevistados foi ‘falta de estímulo’. Mas que motivos são esses? Falta de estímulo porque a escola é desinteressante? Por que não aproveitam o assunto para problematizar questões importantes que provocam muitos abandonos da escola, como o racismo, a homofobia, o sexismo, a dificuldade de letramento, e desigualdades de todas as ordens.

As organizações da sociedade civil estão há muito tempo voltadas para a educação, promovendo inúmeros diálogos com movimentos sociais, educadores e estudantes sobre o ensino médio e as questões que permeiam esse debate. Há uma certa unanimidade quanto à necessidade de mudanças. Os estudantes promoveram dezenas de ocupações de escolas pelo país, principalmente São Paulo, Ceará e Goiás, apresentando pautas e propostas para o ensino médio e sobre a relação dos governos com as escolas públicas. Essas reflexões têm se acumulado e já se tem muitos elementos que apontam caminhos.

Uma das principais reivindicações de adolescentes e jovens estudantes de escolas públicas é a participação direta nas possíveis mudanças na educação. Eles sabem que a educação que querem e, especialmente, a que não querem. O Inesc, em parceria com a UNICEF, desenvolve um projeto em escolas públicas em Brasília desde 2014, e em municípios da Chapada Diamantina (BA) e Belém (PA) desde 2016. O projeto Educação de Qualidade tem como principal objetivo ouvir o que os estudantes têm a dizer sobre o ensino médio e qual escola desejam. Os diálogos têm sido muito enriquecedores e o acúmulo de ideias e propostas é enorme. Mas o que adianta tudo isso se vem um governo ilegítimo, sob aplausos de uns poucos, e muda tudo por meio de medida provisória, de cima para baixo?


Leia também: Vamos falar sobre crianças, adolescentes e jovens?

Podemos dizer que nos últimos anos tivemos avanços interessantes, de forma geral, na educação. O ensino fundamental foi praticamente universalizado, houve uma significativa ampliação das vagas para o ensino superior, e o acesso às universidades foi democratizado com a importante ação afirmativa das cotas raciais. No entanto, o Plano Nacional de Educação (PNE) aprovado em 2014 praticamente não saiu do papel, e não há luz no fim desse túnel. Pelo contrario: a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 241, em tramitação no Congresso Nacional, propõe um draconiano corte de recursos a curto prazo, e um enorme prejuízo a médio prazo, para o financiamento de políticas sociais, principalmente as de educação – essa mesmo que o governo Temer alega estar querendo ‘salvar’ com essa medida provisória de reforma do ensino médio.

O mais chocante disso tido é a informação registrada pela imprensa de que a área de educação do governo ilegítimo vem evitando ‘vazar’ informações sobre a proposta de reforma do ensino médio para não esvaziar o ato de seu lançamento. Ou seja: é tudo para a platéia, não há real interesse genuíno em de fato melhorar a qualidade da educação, muito menos do ensino médio, até porque não há política de ampliação do ensino superior para receber um maior número de estudantes. Aliás, ocorre justamente o contrario, um desmonte de políticas que vinham mudando a cara das universidades, em especial as públicas.

Ironicamente, no discurso de apresentação da proposta de reforma do ensino médio, o ministro da Educação falou que o “novo ensino médio tem como pressuposto principal a autonomia do jovem. É muito comum o jovem colocar que aquela escola não é a escola que dialoga com ele”. Pois é ministro, a escola não dialoga com estudante, e o ministério que propõe mudanças também não. Ao contrário, impõe uma proposta por medida provisória!

Pelo jeito, o que importa mesmo para o governo ilegítimo e seu ministro da Educação que tem como um de seus interlocutores centrais o pessoal do equivocado (para dizer o mínimo) movimento ‘escola sem partido’ – é valorizar apenas o ensino técnico para quem estuda em escola pública, para termos mão de obra pronta e barata para atender os anseios do mercado. E assim afastam os jovens das periferias das universidades. Para esses, empregos técnicos, de nível médio, são mais do que suficientes para garantir suas sobrevivências.

Apostila do Participante – Meta 2 – Projeto Pró Catador

Nada mais ideológico do que uma escola sem partido

O que seria a tão falada, e pouco explicada, ‘escola sem partido’? Basicamente, trata-se de uma falsa dicotomia, pois não diz respeito a não partidarização das escolas, mas sim à retirada do pensamento crítico, da problematização e da possibilidade de se democratizar a escola, esse espaço de partilhas e aprendizados ainda tão fechado, que precisa de abertura e diálogo.

A pauta que precisamos debater é a da qualidade da educação, e não falácias ideológicas sobre a “não ideologização da escola”, algo que se vê até mesmo em alguns diálogos sobre a Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

O Plano Nacional de Educação foi aprovado há dois anos e, durante sua tramitação, uma das polêmicas suscitadas foi acerca da promoção das equidades de gênero, raça/etnia, regional, orientação sexual, que acabou excluída do texto do projeto. Por consequência, isso influenciou a tramitação dos planos estaduais e municipais, que também sucumbiram ao lobby conservador e refutaram qualquer menção a gênero, por exemplo, difundindo a falsa tese da aberração intitulada “ideologia de gênero”. Isso causou uma confusão deliberada entre uma categoria teórica e uma pretensa ideologia.

Marivete Gesser, do Laboratório de Psicologia Escolar e Educacional da Universidade Federal de Santa Catarina, explica que “gênero pode ser caracterizado como uma construção discursiva sobre nascer com um corpo com genitália masculina ou feminina” e, por meio de normas sobre masculinidade e feminilidade, vamos nos construindo como sujeitos “generificados”. O preconceito vem dos discursos que naturalizam os lugares sociais de homens e mulheres como únicas representações, e segregam qualquer outra forma de manifestação. Além disso, em pesquisa realizada com por estudantes do ensino médio em Brasília, feita no âmbito do projeto Educação de Qualidade (Inesc/Unicef), constatamos que uma das razões do abandono escolar é a discriminação relativa ao público LGBTI. Razões mais do que suficientes para discutirmos gênero nas escolas.

Qual a ligação entre esses dois temas, ‘escola sem partido’ e ‘ideologia de gênero’, e momentos tão distintos? O que parece ter diferentes motivações e origens resulta dos mesmos elementos: os fundamentalismos conservadores que tentam passar às pessoas suas ideologias e crenças. Afinal de contas, não são apenas os pensamentos marxistas que são ideológicos, como tentam fazer crer os defensores da “escola sem partido”. Sendo assim, o que significa ideologia então?

Um dos conceitos mais difundidos é o de Karl Marx em parceria com Friedrich Engels, na obra a Ideologia Alemã, em que afirmam ser a ideologia uma consciência falsa da realidade, importante para que determinada classe social exerça poder sobre a outra, bem como a necessidade de a classe dominante fazer com que a realidade seja vista a partir de seu enfoque.

O conceito, no entanto, sofreu inúmeras interpretações, como a de Lênin para a ideologia socialista, como forma de definir o próprio marxismo. Portanto, há ideologia nas diferentes formas de ver e conceber o mundo. Não existe neutralidade. Quando defendem a ‘não ideologização’, em nome dessa pretensa neutralidade, também estão impregnados de ideologia. Os teóricos do projeto “escola sem partido” advogam a neutralidade e se dizem não partidários. No entanto, suas intenções são claras: a retroação dos avanços que tivemos nos últimos tempos, especialmente com relação aos direitos humanos. Por exemplo, quando dizem lutar contra a doutrinação, uma das situações apresentadas no site do movimento da ‘escola sem partido’ é um seminário realizado pela Comissão de Educação da Câmara dos Deputados sobre direitos LGBT e a política de educação. Eles citam esse caso como uma afronta ao artigo 12 da Convenção Americana sobre Direitos humanos, afirmando que pais e seus filhos têm que ter uma educação moral de acordo com suas convicções. É uma deturpação do citado artigo, que diz respeito à liberdade religiosa que deve ser respeitada individualmente. Além disso, manipulam e fazem confusão deliberada com a discussão realizada no seminário, que reafirmou a importância de se debater questões de gênero e de sexualidade nas escolas, para que as diferenças não sejam transformadas em desigualdades.

Em outro momento, dizem que os alunos (a quem chamam de ‘vítimas’) acabam sofrendo de Síndrome de Estocolmo, se ligando emocionalmente a seus algozes (‘professores doutrinadores’). Nesse caso, os estudantes se recusariam a admitir que estão sendo manipulados por seus professores e sairiam furiosos em suas defesas. Para exemplificar, citam momentos identificados como “monstro totalitário arreganha os dentes” e chamam os estudantes de soldadinhos da guarda vermelha.

Em um dos livros desse movimento, é passada a noção de que o professor não é um educador, separando assim o ato de ensinar (passar conteúdos) e educar. O/A professor(a) deveria estar ali apenas para passar conteúdo sem crítica, problematização ou contextualização, em um ato mecânico. Paulo Freire é demonizado como o grande doutrinador – justo ele, que construiu uma obra toda para combater doutrinações.

Esse movimento da ‘escola sem partido’ nasceu em 2004 e não gerou muitas preocupações, porque parecia muito absurdo e coisa pequena. No entanto, tem tomado corpo e crescido, na mesma toada de movimentos fascistas tais como ‘revoltados online’, responsável por apresentar recentemente a proposta da ‘escola sem partido’ ao ministro da Educação do governo ilegítimo. Aliás, é bom dizer que foi a primeira audiência concedida pela pasta da Educação nesta gestão ilegítima. E em vídeo, os criadores da ‘escola sem partido’ e do ‘revoltados online’ explicam que criaram tais coisas a partir de motivações pessoais. Ou seja, eles tentam impingir ao país projeto com base em impressões e vivências individuais.

A proposta foi apresentada em forma de projeto pela primeira vez no Estado do Rio de Janeiro, pelo deputado Flávio Bolsonaro. A segunda vez foi no Município do Rio de Janeiro, pelo vereador Carlos Bolsonaro – ambos filhos do deputado federal Jair Bolsonaro. E tal proposta já se espalhou por diversas câmaras municipais e assembleias legislativas. Em âmbito nacional, o deputado Izalci (PSDB/DF) apresentou o PL 867/2015 à Câmara Federal , que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Dentre várias questões, o artigo 3º do referido projeto diz o seguinte: Art. 3º. São vedadas, em sala de aula, a prática de doutrinação política e ideológica bem como a veiculação de conteúdos ou a realização de atividades que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes.O que viola tais convicções provavelmente será julgado de acordo com o que e com quem quiserem criminalizar. O projeto ainda levanta uma polêmica do século XIX quando se discutia a dicotomia família e escola, o que deveria estar superado no século XXI.

Há vários projetos tramitando apensados a esse, ainda mais perversos. Um deles, do deputado Victório Galli, do PSC/MT, proíbe a distribuição de livros didáticos que falem de diversidade sexual. E há ainda o projeto de lei 1411/2015, do deputado Rogério Marinho PSDB/RN, cujo relator é o mesmo deputado Izalci. Esse projeto tipifica o crime de assédio ideológico, que,  de acordo com o projeto,  significa: “toda prática que condicione o aluno a adotar determinado posicionamento político, partidário, ideológico ou qualquer tipo de constrangimento causado por outrem ao aluno por adotar posicionamento diverso do seu, independente de quem seja o agente.” E diz ainda que o professor, orientador, coordenador que o praticar dentro do estabelecimento de ensino terá a pena acrescida de um terço. Ou seja, as opiniões fora da escola, tais como nas redes sociais, poderão penalizar o profissional da educação também.

O movimento criou recentemente uma ‘associação escola sem partido’ para ter uma entidade com a qual pudesse recorrer à Justiça em casos que julgasse relevantes. E a primeira ação por eles promovida foi contra o INEP, devido ao tema da redação do Enem de 2015, que tratava de violência contra as mulheres, tema que julgaram doutrinador e partidário. A violência contra as mulheres é reconhecida como grave problema em diversos tratados internacionais de direitos humanos, como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW), aprovada pela ONU em 1979 e outros que a seguiram. No Brasil, a cada xx horas uma mulher é morta vítima de xxx, e a cada xx uma mulher é estuprada (tem os dados na cartilha DH2Min). A violência está inclusive nas próprias escolas, como demonstrou a iniciativa “Meu professor abusador”.

Há vários ovos de serpente chocando no momento em diversos locais, sejam no âmbito dos legislativos municipais, estaduais, ou nacional, e mesmo nos Executivos, e não temos garantias que o Judiciário irá barrar tais aberrações. Portanto, nossa única arma é a manifestação, a nossa presença nas ruas e a disseminação de informações a um público maior possível, já que é na internet e em redes como whatsapp que esses grupos tem angariado seguidores, muitos deles muito jovens. É preciso promover debates que esclareçam essas situações que estão amadurecendo na surdina, com pessoas que não nos representam, mas estão em cadeiras que permitem tais movimentos.

Direitos Humanos “congelados” e o Estado autoritário de Michel Temer

No último dia 10 de junho, o Ministro da Justiça Alexandre Moraes publicou a Portaria Nº 611, que “suspende a realização de atos de gestão no âmbito do Ministério da Justiça e Cidadania”, exceto pelos atos relacionados a: I – a operações e atividades da Força Nacional de Segurança Pública;  II – às ações de preparação e mobilização para a realização dos Jogos Olímpicos de 2016; III – ao cumprimento de decisões judiciais; IV – à execução do orçamento impositivo; e V – à gestão da folha de pagamento de pessoa.

Direitos humanos congelados por 90 dias. É difícil compreender como é possível que um governo seja capaz de um ato político-administrativo tão cruel e violento. Se na gestão de Dilma já criticamos a extinção de secretarias importantíssimas como Juventude, Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos, que passaram a conviver em um único Ministério, é nesta gestão golpista que o escândalo contra os direitos humanos chega ao seu ápice. A mensagem que a Portaria Nº 611 passa para a sociedade é a de que os direitos humanos não são importantes para o Brasil, e que a prioridade são os Jogos Olímpicos e o Estado policial militarizado.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos prevê que os direitos humanos compõem uma unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada, no qual os direitos civis e políticos devem ser conjugados com os direitos econômicos, sociais, culturais e socioambientais. Infelizmente, o Brasil conta com terríveis estatísticas de violação de direitos humanos: mulheres vítimas de violência (inclusive estupros coletivos e feminicídio), extermínio da juventude negra, pessoas vivendo em situação análoga à escravidão, assassinatos de pessoas LGBTI, especialmente de pessoas trans, violação de direitos dos povos indígenas, tortura dentro de prisões e aumento significativo de mulheres no sistema carcerário, isso para citar os exemplos mais emblemáticos, pois ainda somam-se a estes o racismo institucional em todas as esferas de políticas e serviços públicos, a violação de direitos de crianças e adolescentes, de pessoas com deficiência, população em situação de rua, povos e comunidades tradicionais impactados por grandes projetos, tráfico de pessoas e por aí vai. Estes problemas são resultado de uma configuração histórica e cultural bastante complexa, uma combinação de história colonial e seus desdobramentos pós-coloniais, diversos períodos de autoritarismo político, e a inserção subalterna no capitalismo global. Temos, assim, uma estrutura política branca, elitista e pouco permeável à democracia de fato.

Diversos são os órgãos públicos responsáveis por garantir o combate a toda esta violência e promover os direitos humanos no Brasil. O Ministério de Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos tinha a missão de promover a transversalidade do tema, além de executar algumas políticas e programas, somando um orçamento de R$ 487,62 milhões em 2016, ou seja apenas 0,016% do orçamento total da União. Considerando que 55,66% do orçamento público deste ano foi destinado para o pagamento da dívida, os direitos humanos ficaram com 0,029% do recurso para gastos com políticas públicas. É pouco! É muito pouco para a promoção de direitos dos brasileiros e das brasileiras que mais precisam de atenção do Estado. A Fundação Nacional do Índio (FUNAI), que é parte do MJ, também não poderá realizar suas atividades normalmente. O recurso da FUNAI representa apenas 0,19% do orçamento da União.

Michel Temer extinguiu o Ministério das Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos, e passou suas funções para o Ministério da Justiça – mas na nova estrutura deste Ministério, não aparecem ‘mulheres’, ‘igualdade racial’ ou ‘direitos humanos’. O Ministro Alexandre Moraes resolveu, provavelmente junto com seu chefe, o presidente ilegítimo, que não vai trabalhar nessa pauta. Essa é a mensagem da famigerada Portaria Nº 611. O recurso, já autorizado pelo Congresso na LOA 2016, não poderá ser executado porque o Ministro da Justiça (!) decidiu que não é prioridade.  Por meio de uma canetada, este senhor violentou e re-vitimizou milhares de cidadãos e cidadãs. Ignorou a Constituição de 1988, todos os tratados internacionais de direitos humanos nos quais o Brasil é signatário, e a construção histórica de movimentos sociais em prol de uma sociedade menos brutalizada e mais justa e igualitária. Estado autoritário.

*No dia 23 de junho, um Decreto transferiu R$12.927.981,00 dos direitos humanos para a Presidência da Republica: o recurso seria destinado para ‘Formulação, Desenvolvimento e Capacitação para Participação Social’ na agenda de direitos humanos. O Decreto não informa em que será gasto este recurso no âmbito da Presidência.

**A ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais) e a Conectas denunciaram na quinta-feira (23), em uma assembleia do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), as ameaças de retrocesso dos direitos humanos, agravadas com a crise política.

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O Brasil e a crise financeira da Comissão Interamericana de Direitos Humanos

A cultura do estupro: uma culpa para a vítima

Como se não bastasse a absurda e monstruosa violência sofrida pela adolescente que foi estuprada por dezenas de homens no Morro da Barão (Rio de Janeiro), ela agora é apontada como suspeita de uma possível ligação com o tráfico de drogas.

O primeiro delegado que assumiu a investigação, Alessandro Thiers, foi afastado por tê-la constrangido e agora busca um motivo para desqualificar a adolescente.

Este é o comportamento clássico da cultura do estupro: busca na vítima alguma coisa que a condene, que justifique a violência sofrida, que atenue a responsabilidade de quem perpetrou a agressão e/ou desvia atenção do ato brutal sofrido. Ainda nessa lógica, o delegado afirmou em entrevista publicada no dia 9 de junho sobre o vídeo divulgado: “(…) se você conversar com qualquer especialista em Direito, da área penal, vai ouvir que não houve estupro ali, tecnicamente falando. O dolo não foi de satisfazer a lascívia sexual”, quando o que todos viram foi indubitavelmente cenas de abuso, exploração e violência.

Cabe lembrar que, desde 2009, o estupro está configurado no artigo 213 do Código Penal brasileiro: constranger alguém mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.

Um operador da lei não pode relativizar a brutalidade e a dor perante um ato de tamanha violência, e quando o faz, estimula a banalização do estupro e ‘autoriza’ outros atos desta natureza.

Só quem é vítima de estupro sabe o quanto necessita de um ambiente de absoluta confiança e segurança para fazer a denúncia, revelar os detalhes e ser, mais uma vez, invadida na sua intimidade com o exame que comprova a violência sexual. Inclusive o impacto emocional e a pressão social podem levar a vítima a construir versões diferentes para o mesmo fato.

Segundo o antropólogo Roque Laraia, cultura é “um complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes e quaisquer outros hábitos adquiridos pelo homem como membro da sociedade.” O Mapa da Violência que mostra que, em 2014, o Sistema Único de Saúde (SUS) atendeu a 23.630 mulheres vítimas de violência sexual. Já a Central de Atendimento à Mulher, o Ligue 180 (serviço da Secretaria de Políticas para Mulheres), registrou em 2015 cerca de 10 casos de violência sexual por dia, computando a média de oito estupros diários, um a cada três horas. Diante desses dados podemos concluir facilmente a existência da cultura do estupro no Brasil.

A violência de gênero exige uma educação que trate diretamente do assunto. São meninas, mulheres e a dimensão feminina de meninos e homens que são violentadas diariamente no Brasil. É necessário e urgente educar novas sensibilidades e consciências. Educação de gênero nas escolas é condição para a superação desta modalidade de violência, compreendendo que o estupro não começa na conjunção carnal e nem termina ali. Começa quando uma pessoa é desprezada na sua condição humana e a sua sexualidade é tida como do domínio do outro.

Se cultura é uma construção humana, também é possível desnaturalizá-la e reconstruí-la em outras bases, em bases de respeito e compreensão em que todas as pessoas reconheçam suas autonomias para determinar as próprias regras sobre seus corpos e suas sexualidades.

A MP que materializa o projeto político-econômico por trás do golpe

Enquanto olhávamos atônitos e reagíamos à primeira ação de desmonte do Estado Democrático de Direito materializada pela Medida Provisória N° 726, deixamos passar despercebida uma segunda, a N° 727, publicada no mesmo dia 12 em edição extra do Diário Oficial da União, criando o Programa de Parcerias de Investimentos – PPI.

Se a MP 726 da reforma ministerial concretizou a intenção dos articuladores do golpe de extirpar da estrutura de governo  representações e interesses de minorias (e só secundariamente cortar despesas), a MP 727, por sua vez, materializa o que há de mais estratégico e ideológico no projeto político-econômico que está por trás do golpe.

É ela que “garantirá”, caso o golpe chegue ao final, o sonho de consumo dos neoliberais outrora acanhados e agora completamente excitados com a retomada do Estado que lhes interessa, que é aquele que abre caminhos para seus lucros, rebaixa seus custos sociais e trabalhistas, ignora condicionantes ambientais e sociais, e confere a ordem para que seu progresso se faça.

É esta a essência da MP 727:

1) a retomada do processo de desestatização da economia conduzido por Fernando Henrique Cardoso, entregando para a iniciativa privada as empresas estatais que interessarem ao capital privado.

Está claro no texto da MP 727 a recepção integral da Lei  N° 9.494 de 1997, que instituiu o Programa Nacional de Desestatização. A Lei de 1997 que garantiu a privatização, criminosa, da Companhia Vale do Rio Doce, Eletropaulo e Telebrás, por exemplo, assumiu como propósito principal “reordenar a posição estratégica do Estado na economia, transferindo à iniciativa privada atividades indevidamente exploradas pelo setor público”. Depois de 13 anos morta pelos governos do PT ela foi reencarnada no novo corpo: o Programa de Parcerias de Investimentos (PPI).

Isto significa na prática que poderão ser objeto de desestatização todas as empresas, inclusive instituições financeiras – controladas direta ou indiretamente pela União e as estaduais -, serviços públicos objetos de concessão, permissão ou autorização. Ou seja, que deverão ser privatizadas prioritariamente aquelas já cobiçadas pelos investidores, nacionais e internacionais: Petrobrás, Caixa Econômica, Eletrobrás…

Para que este projeto neoliberal ressuscitado das trevas seja viabilizado, a MP estabelece que as medidas de desestatização a serem implementadas serão autoritariamente definidas por Decreto e passarão a desfrutar a condição de “prioridade nacional”, tratada como tal por todos os agentes públicos de execução ou de controle. Em outras palavras, se bradamos outrora, e com razão, contra a elevação de algumas obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) à condição de empreendimentos de interesse nacional (acima do interesse público) seremos agora, massacrados, por um novo e mais potente status jurídico, a prioridade nacional.

A execução dos projetos de desestatização ficará a cargo de uma nova institucionalidade comandada pela “inteligência golpista”: o Conselho do Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da República, um órgão de assessoramento imediato ao Chefe do Poder Executivo que passa a incorporar as atribuições do Conselho Nacional de Desestatização criado pela mesma Lei N° 9.491, de 1997, que esteve à frente das privatizações de FHC.

O Conselho – composto pelos ministros da Casa Civil, Fazenda, Planejamento, Portos e Aviação Civil, Meio Ambiente e BNDES – será presidido por Moreira Franco, conhecido por apelidos como “camaleão” e “anjo mal”. Sua fama vinculada a licitações viciadas é tão notória quanto seus apelidos. No governo do Rio enfrentou acusações repetidas de desvios e concorrências fraudulentas.

2) a transformação da infraestrutura em todos os níveis federativos na nova fronteira de acumulação e lucratividade para investidores nacionais e estrangeiros.

Não se pode dizer que esta parte do projeto golpista seja realmente nova. A identificação da infraestrutura como gargalo e ao mesmo tempo oportunidade de lucro é bem antiga no Brasil, e uma realidade governo após governo. A novidade nesse caso é a disposição muito mais firme de colocar esta fronteira, inclusive nos planos estadual e municipal, acima de tudo e todos e sob comando central.

Isto significa na prática, garantir o terceiro ponto da MP.

3) a retirada do caminho de quaisquer empecilhos (sociais, ambientais, culturais, trabalhistas) que possam postergar ou afetar a rentabilidade esperada pelos investidores.

As estratégias estão umbilicalmente amarradas na MP. Sob o comando central da “inteligência do golpe” todos os órgãos – em todos os níveis federativos – terão o “dever de atuar, em conjunto e com eficiência, para que sejam concluídos, de forma uniforme, econômica e em prazo compatível com o caráter prioritário nacional do empreendimento, todos os processos e atos administrativos necessários à sua estruturação, liberação e execução”.

O conceito de liberação é claro na MP: “a obtenção de quaisquer licenças, autorizações, registros, permissões, direitos de uso ou exploração, regimes especiais, e títulos equivalentes, de natureza regulatória, ambiental, indígena, urbanística, de trânsito, patrimonial pública, hídrica, de proteção do patrimônio cultural, aduaneira, minerária, tributária, e quaisquer outras, necessárias à implantação e à operação do empreendimento.

Trocando em miúdos, Ibama, ICMBio, Funai, Fundação Cultura Palmares, IPHAN que hoje participam do licenciamento trifásico (Licença Prévia, Licença de Instalação, Licença de Operação) e atuam com seus muitos limites e debilidades para evitar que empreendimentos passem por cima das leis de proteção do meio ambiente, de indígenas e outros povos e comunidades tradicionais, serão convocados pelo “poder central” para cumprir com seu dever de emitir as licenças necessárias aos empreendimentos que o Conselho definir como prioritários.

É importante lembrar que no legislativo o movimento de flexibilização da legislação ambiental e em específico do licenciamento está em estágio avançado de tramitação: tem a PEC 65/2012 que acaba de vez com o licenciamento, tem o PL 3729 que acaba com grande parte do sistema de licenciamento ambiental. Tem, também, o PLS 654/2015 de autoria do Senador e agora Ministro do Planejamento Romero Jucá. Esse PLS define um prazo curtíssimo para o licenciamento de grandes obras consideradas estratégicas pelo governo, como grandes hidrelétricas e estradas e também prevê que em caso de descumprimento dos prazos as licenças estarão automaticamente aprovadas.

Com a MP 727 não precisa mais da aprovação do Projeto de Jucá, ele já é lei. Mais um golpe dentro do golpe!

4) a construção de um braço privado dentro do BNDES para estruturar os projetos do PPI para que eles possam, depois, serem financiados pela parte do Banco que ainda convêm que seja público, posto que lhe oferece crédito subsidiado.

Contrariando a ideia de que o BNDES seria mais um banco no alvo da privatização, o núcleo duro do golpe lhe reservou um renovado e estratégico papel: garantir as condições financeiras e técnicas para a estruturação dos projetos de infraestrutura a serem assumidos pela iniciativa privada.  O BNDES passa a ter agora a atribuição de criar e gerir o Fundo de Apoio à Estruturação de Parcerias (público-privadas) que possui natureza privada e patrimônio próprio. Suas duas principais fontes de recursos serão: i) os recursos aplicados por pessoas físicas ou jurídicas, de direito público e privado, inclusive de organismos internacionais que, obviamente, se interessam na construção dos projetos de parcerias; ii) os recursos recebidos pela alienação de bens e direitos (privatizações?).

Os projetos robustecidos e validados pela capacidade técnica e financeira conferidas pelo braço privado do BNDES estão, assim, prontos para serem licitados. A MP não deixou escapar, ainda, a clara orientação para que todo esse processo seja feito sem transparência nenhuma já que prevê que o estatuto do Fundo “deverá prever medidas que assegurem a segurança da informação”.

Em síntese, no caso do BNDES, todo o esforço de transparência e o ainda tímido compromisso de construção de uma “Política Socioambiental” caíram por terra.

Esse é o projeto político ideológico que já se anunciava na Agenda Brasil, na Ponte para o Futuro, e que agora se consolida com o golpe como a Ponte para o Passado: sem licenciamento, sem política socioambiental, sem travas e amarras, sem estado democrático de direito, sem voto popular e sem vergonha.

Extinção do MDA é mais um tiro no pé de um governo ‘morto-vivo’

Brasília, 17 de maio de 2016

A famigerada Medida Provisória Nº 726 de 12 de maio de 2016, aquela assinada por Temer para alterar a institucionalidade do governo federal, é como muitos já disseram, a expressão de um “governo zumbi”, vindo do passado e que teima em não morrer. Ao que tudo indica não terá futuro duradouro pois, além de ilegítimo, deu seus primeiros passos  cometendo erros que não serão perdoados.

Um desses erros, entre tantos outros, foi o de ter passado o rodo numa das experiências mais bem sucedidas dos últimos anos: a promoção da segurança alimentar e nutricional no país. Tal iniciativa remonta ao governo Itamar Franco, no começo da década de 1990. Na ocasião, o Itamar – que sucedeu outro presidente que sofreu processo de impeachment, Fernando Collor – entendeu a importância de fazer eco às vozes do povo  que clamavam por terra e acesso digno e justo a uma alimentação adequada e saudável para todas e todos os brasileiros. Já na ocasião tinha-se o entendimento de que tal reivindicação necessitaria da valorização de um ator central, o do agricultor familiar, camponês e indígena.

Como resposta imediata foi instalado o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, o Consea, órgão assessor da Presidência da República que tinha a reforma agrária como item de pauta. Pouco tempo depois, o governo Fernando Henrique Cardoso, atendendo às pressões e reivindicações dos movimentos sociais do campo, criou o Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA. Em 2003 novos passos importantes foram dados com a fundação do Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (Condraf) e a recriação do Consea, que tinha sido extinto em meados dos anos 1990. Finalmente, mais recentemente, foi instaurada a Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, a Cnapo. E mais: em 2010, o Parlamento brasileiro, por meio de emenda constitucional, incluiu o direito à alimentação entre os direitos sociais individuais e coletivos.

Ao direito à alimentação e a esse conjunto de atores colegiados, que reúnem representantes do poder público e da sociedade, estão associadas diversas e importantes políticas públicas. Tais políticas vêm sendo construídas a várias mãos, a partir dos insumos das conferências nacionais, como são o caso da Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural, do Plano Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário, do Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, e da Política Nacional de Agroecologia e Agricultura Orgânica.

Essas políticas estão longe de ser perfeitas, e em muito precisam ser aprimoradas. Entretanto contribuíram para produzir resultados expressivos, valorizados inclusive internacionalmente. O fortalecimento do/a agricultor/a familiar como ator econômico responsável pelo fornecimento de grande parte da alimentação dos brasileiros foi fator crucial para a expressiva diminuição da fome e da desnutrição no Brasil. A crescente alocação de recursos para assegurar crédito subsidiado, seguro agrícola, assistência técnica e extensão rural e compras institucionais, entre outras, foi decisiva para a retirada do Brasil do Mapa da Fome das Nações Unidas. Essa experiência brasileira, inovadora e inédita, tem sido fonte de inspiração para regiões e países do mundo, merecendo atenção especial ao que vem sendo feito no Mercosul, na Unasul e em diversos países da África.

Diante de um sucesso que perpassa vários governos e que é resultado de muitos anos de luta das organizações e movimentos sociais, e da consolidação de uma institucionalidade que vinha se mostrando eficiente, o que o governo Temer faz? Extingue o MDA. Simples assim, e passa suas funções para um recém criado Ministério de Desenvolvimento Social e Agrário, tratando o/a agricultor/a familiar, camponês e indígena não como elemento central de um desenvolvimento socioambientalmente sustentável, mas como público-alvo de uma política social que mais bem busca reproduzir a pobreza do que enfrentá-la. E mais: sequer menciona na sua MP 726, eivada de erros e trapalhadas, o Consea e a Cnapo.

O que há de ganhar o governo Temer com tamanho erro estratégico? Nada, ao contrário, só tem a perder. Internamente, irá enfrentar a luta e resistência de milhões de pessoas, entre produtores e consumidores articulados em torno dos agricultores familiares, camponeses, indígenas, quilombolas, que sonham com uma alimentação saudável, livre de transgênicos e agrotóxicos e respeitosa da diversidade sociocultural do nosso país. Internacionalmente terá que explicar o inexplicável: por que interromper uma trajetória de sucesso, que é modelo para as Nações Unidas e até para poderosos fazedores de políticas públicas, como é o caso da Fundação Bill e Melinda Gates? Um tiro no pé, mais um…

O muro marketing de Rodrigo Rollemberg e o flerte com o fascismo

Passei o dia ontem tentando digerir o muro do Rollemberg. Para quem não sabe, o Governo de Brasília levantou um muro na Esplanada dos Ministérios para receber o “grande evento” da votação do impeachment no domingo. E para isso utilizou mão de obra dos presos da presídio da Papuda.

A primeira reação das pessoas, na internet e com quem conversei pessoalmente, foi de estranhamento, incômodo e dúvida. A segunda foi “ah, mas pelo menos isso pode garantir a segurança dos dois lados, as pessoas estão a flor da pele, etc.”. O dia foi passando, o Leonardo Sakamoto escreveu um texto interessante, mas o fato é que eu não consegui digerir esse muro.

Vejam bem: um muro, no meio da Esplanada, levantado para separar as pessoas e ideias em um dia que está sendo tratado como um espetáculo. Um muro erguido por presos e reverberando na imprensa intensamente uma mensagem que, vendida como sentido de justiça, transporta todas as desigualdades e injustiças da sociedade brasileira.

Vamos por partes. Primeiro o muro. Um muro para separar cidadãos e cidadãs que pensam diferente sobre política.  Democracia, jovem ou não, deve promover o diálogo, com dissensos ou consensos: os muros estão aí para dividir, apartar, e historicamente violentar, nações, territórios, pessoas. Do muro de Berlim aos enclaves fortificados dos condomínios das grandes cidades, não conheço ninguém minimamente comprometido com a democracia, a igualdade e a solidariedade que se identifique com esse tipo de arquitetura, tão comum ao autoritarismo político em diversas partes do mundo. E esse muro, que também reverbera uma arquibancada de estádio, está ali, na Esplanada, centro do poder e das instituições da República, antecipando de maneira hobbesiana a violência potencial de brasileiros e brasileiras. Como destacou Sakamoto, desde o processo colonial aos dias de hoje, temos uma sociedade desigual e apartada, racista e machista. O “homem cordial” e a “democracia racial” nunca foram tão denunciados como nos anos que se seguiram após a ditadura militar. Mas então o Governo, esse ente que representa as pessoas e deve garantir o bem estar da sociedade, não deveria estar preocupado em conciliar, mediar e dissolver a possibilidade do confronto violento no domingo?

Segundo, a mão de obra. Os jornais estavam lá para cobrir o evento de levantamento desse muro. Os presos, homens negros que são parte do terceiro maior sistema carcerário do mundo (depois de EUA e China), foram levados à Esplanada, com escolta, para montagem desse bizarro muro. Para uns, mais que a obrigação: cometeram crimes, devem pagar com a liberdade e um pouco de trabalho, afinal, os “vagabundos” estão sendo sustentados pelos impostos. Nessa lógica, repete-se o “branco sai, preto fica”, parafraseando a obra genial do cineasta brasiliense Adyrley Queiroz, já que 100% dos parlamentares que votaram a favor do processo de impeachment ontem respondem a processos por corrupção. O evento “muro” reforça a cultura de que no Brasil cadeia é para pobre e negro, não para político branco.

Não consigo imaginar como pensaram a logística para o domingo. Seria algo como: as pessoas chegam para exercer sua cidadania na rua, e escolhem um lado. Uma vez escolhido, não pode passar para o outro lado. Se tiver um amigo ou parente do lado oposto, problema seu. Não pode dialogar. Pode tentar dar a volta, mas é um pouco longe (o muro tem muitos metros). Se quiser pode xingar, através do muro. Se tentar pular o muro, a polícia reprime com spray de pimenta e bomba de efeito moral. Pode tentar quebrar o muro, que é frágil, mas também pode se transformar em arma, pois entre uma placa de ferro e outra tem umas estacas de madeira. Um muro. Pra nos lembrar que somos diferentes e violentos. Pra impedir qualquer possibilidade de diálogo e expressão de humanidade entre pessoas que pensam diferente sobre política. Um muro contra a democracia justificado pela necessidade de segurança. O fascismo mal disfarçado que hierarquiza pessoas pela sua raça, gênero, poder aquisitivo… e opinião política. Uma afronta a todos os tratados duramente conquistados de direitos humanos.

Em tempo: o muro foi erguido na Semana do Direito à Cidade – Inspira Brasília, evento construído colaborativamente por movimentos sociais e coletivos de Brasília para discutir uma cidade mais justa, inclusiva e sustentável. Os debates e oficinas acontecerão no Complexo Cultural Dulcina de Moraes, referência identitária da cidade, um dos poucos locais em que os moradores do Plano Piloto e das “cidades satélites” tem se encontrado há décadas para eventos culturais. Pertinho da Rodoviária, outro símbolo dos poucos encontros possíveis nesta cidade cuja arquitetura segrega sistematicamente as pessoas. Lembro que o Governador assinou a carta compromisso com o Programa Cidades Sustentáveis. E a resposta veio agora, em forma de muro.

HQ do Manifesto da Juventude pelo Trabalho e Emprego

Para baixar o Manifesto da Juventude em PDF, clique aqui.

Reforma da Previdência: urgência para que(m)?

Não existe propósito em se realizar uma Reforma da Previdência neste momento, às pressas, sem amplo acordo social, por três razões principais.

1. A Previdência não é deficitária.

Estudos demonstram que a Previdência não é deficitária se for respeitado o cálculo contábil previsto na Constituição Federal. A Previdência, junto com a Saúde e a Assistência, têm um orçamento próprio, o Orçamento da Seguridade Social, que conta com uma diversidade de fontes de receitas (art.195), provenientes do orçamento da União, dos Estados e Municípios, e das contribuições sociais feitas pelas empresas e pelos trabalhadores. Dessas fontes, destaque para: Contribuição Previdenciária para o Regime Geral da Previdência Social (RGPS); Contribuição Social sobre o Lucro Líquido das Empresas (CSLL); Contribuição Social Para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins); Contribuição para o PIS/Pasep; Contribuições sociais sobre concurso de prognósticos (ex: loteria).

Contrariando a determinação constitucional, o Ministério da Previdência adota um critério contábil inadequado, ao dizer que a Previdência é deficitária porque considera para sua sustentação financeira exclusivamente as receitas das contribuições dos empregados e empregadores. Ignora-se, assim, as demais receitas que compõem o Orçamento da Seguridade Social. Quando se avalia todas as receitas e despesas do Orçamento da Seguridade Social, o resultado final é superavitário, conforme demonstrado na tabela 1 abaixo.

Existem ainda dois grandes usurpadores dos recursos financeiros do Orçamento da Seguridade Social: a DRU e as renúncias tributárias. A DRU, Desvinculação de Receitas da União, permite retirar 20% (e já existe proposta tramitando no Congresso para que esse valor suba para 30%) das contribuições sociais e econômicas que compõem o Orçamento da Seguridade Social (OSS). Em 2014, a DRU retirou R$ 63,2 bilhões do OSS. Isto quer dizer que 20% do que foi recolhido para financiar a Previdência, a Saúde e a Assistência não foi realmente para essa finalidade, foi para o Orçamento Fiscal. Dentro do Orçamento Fiscal, o recurso que foi retirado do Orçamento da Seguridade Social pode ser utilizado em outra ação orçamentária; sendo que muitas vezes (o que é mais revoltante), pode ser utilizado para pagar juros.

Os juros brasileiros são inexplicavelmente um dos mais altos do mundo (taxa Selic está em 14,25%), resultando em gastos imensos, como em 2015, quando R$ 208 bilhões do Orçamento da União foram destinado exclusivamente para o pagamento de juros. Esses juros absurdamente altos são os mesmos que fazem a dívida pública aumentar num ritmo insuportável e insustentável para o povo brasileiro. Para saciar o capital extremamente financeirizado, que pressiona pela manutenção dos juros altos para garantir a rentabilidade de suas aplicações financeiras, os investimentos e gastos sociais estão sendo sufocados.

Há também as renúncias tributárias, que são gastos indiretos de natureza tributária do Estado, com o objetivo de aliviar a carga tributária de uma classe específica, de um setor econômico ou de uma região – quase sempre a uma empresa -, sem no entanto o necessário controle democrático da sociedade, e sem contrapartidas sociais. Em um estudo do Inesc, foi possível observar que, no período de 2011 a 2014, as renúncias tributárias sobre as contribuições sociais (PIS-Pasep, CSLLL, Cofins e contribuição para a previdência) tiveram uma variação de 72,76%. Isto é: em apenas 4 anos, houve uma aumento de 72,76% nas renúnciais tributárias de fontes de receita que deveriam servir como fonte de receita para o Orçamento da Seguridade Social. Com isso, a União deixa de arrecadar uma média anual de R$ 130 bilhões de contribuições sociais que deveriam servir para financiar a Seguridade Social. Esse valor das desonerações está ficando com algumas corporações, sem controle democrático, sem avaliação do retorno social, enquanto a Previdência é acusada de deficitária. Quando avaliadas somente as renúncias tributárias sobre as contribuições previdenciárias, temos uma variação de 147,10% em 4 anos (2010-2014), com a União deixando de arrecadar uma média anual de R$ 49 bilhões.

Pela Tabela 2 acima é possível observar como as renúncias tributárias sobre as contribuições previdenciárias aumentam num ritmo muito superior aos gastos previdenciários, 65% e 27%, respectivamente, entre 2012 e 2014; demonstrando seu importante impacto negativo nas contas da Previdência Social. Se é necessário conter gastos com a Previdência, que se comece cortando as renúncias tributárias realizadas no que deveriam ser suas fontes de receitas – as contribuições previdenciárias e as demais contribuições sociais.

2. Possíveis mudanças demográficas brasileiras são de médio/longo prazo, não requerem uma mudanças imediatas e não podem retroceder na garantia de direitos.

Com as previstas mudanças demográficas e a ampliação dos detentores de direitos previdenciários no Brasil, é possível que a Previdência tenha que ser reavaliada; porém essa é uma necessidade de médio/longo prazo. Assim, não cabe fazer mudanças na Previdência num momento em que se busca identificar problemas e encontrar soluções de imediato, para enfrentar uma crise. Além disso, mudanças como as demográficas requerem uma repactuação social que se constrói com o tempo, com estudos, com discussões e construções coletivas. E não com medidas atropeladas, por imposições das corporações.

Assim, é importante que tanto no Executivo quanto no Legislativo sejam criados, reativados ou fortalecidos espaços de governança, com ampla participação social, para avaliação do real cenário nacional referente à Previdência Social. Somente após esse diagnóstico será possível pensar em um prognóstico e em medidas que podem ser adotadas. Quando se trata de direitos humanos, não é possível pular etapas nem retroceder na garantia social, especialmente num Estado Democrático de Direito, como é o caso do Brasil.

3. Reforma Tributária e Receitas em Potencial são as ações imediatas que o Brasil precisa.

Existe neste momento na Câmara dos Deputados uma Comissão Especial da Reforma Tributária, montada por iniciativa do seu presidente, o deputado Eduardo Cunha, cujos trabalhos têm ocorrido de maneira bastante fechada e distante da sociedade. Isso é preocupante porque se trata de um tema de grande interesse social, num momento de crise econômica. Um exemplo: em 2 de março passado, a Comissãoentre os deputados membros da Comissão. O ideal seria que o parecer estivesse disponível para a sociedade no site da Câmara, como acontece nas demais comissões. Por que justo essa Comissão está se esquivando de garantir a transparência e a participação social?

Apesar do discurso de que o Brasil tem a maior carga tributária do mundo, ao compará-la com a de outros países, percebemos que a carga tributária brasileira está na média mundial. O problema que temos não refere-se ao tamanho da carga tributária e sim à sua distribuição. Hoje os pobres e a classe média pagam muitos tributos proporcionalmente à sua renda, enquanto os super ricos praticamente não pagam nada. Isso ocorre por dois fatores: a taxação é muito maior sobre o consumo (indireta) do que sobre a renda e o patrimônio (direta). Além disso, a tributação sobre a renda também não está ocorrendo de maneira mais progressiva, cobrando mais de quem ganha mais, devido à isenção de taxação sobre lucros e dividendos. Isso é um problema porque as pessoas mais ricas têm sua renda proveniente justamente de lucros e dividendos, e não de salários taxados na fonte como ocorre com a classe média e trabalhadores assalariados.

Reformar o sistema tributário brasileiro – tornando o mais progressivo, diminuindo os tributos sobre o consumo, aumentando os sobre a renda e o patrimônio, tornando o imposto de renda mais equânime entre as rendas do trabalho e do capital, distribuindo a carga tributária ao diminui-la para os pobres e classe média e aumentá-la para os super ricos –  permitiria inclusive uma ampliação da capacidade de consumo interna e de movimentação e fortalecimento da economia nacional. Ainda seria possível aumentar o volume da arrecadação, em decorrência da redistribuição, e não do aumento, da carga tributária. Em vez de vencer a crise com cortes na Previdência, é possível superá-la com medidas de justiça fiscal, como a redistribuição da carga tributária, e ainda promover justiça social, garantindo que não haja retrocessos nos direitos humanos, sociais, econômicos, culturais, ambientais.

Ainda na Reforma Tributária, existe uma iniciativa de algumas organizações da sociedade civil da qual o Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos) faz parte junto com o IJF (Instituto de Justiça Fiscal), chamada de Projeto Isonomia Já, que estima que com as devidas correções progressivas na cobrança do Imposto de Renda, seria possível ampliar a sua arrecadação em R$ 80 bilhões, além de aumentar a isenção desse imposto para até R$ 3.299 (salário mínimo calculado pelo DIEESE) e diminuir seu peso para quem recebe até 20 salários mínimos.

Já as receitas em potencial que o Brasil tem são decorrentes, principalmente, da sonegação fiscal (R$ 500 bilhões), dos fluxos financeiros ilícitos (R$ 90 bilhões), e da dívida ativa da União (R$ 1,5 trilhão). Do total da dívida ativa da União (DAU), R$ 150 bilhões já tiveram seus processos judiciais finalizados e podem ser cobrados imediatamente; outros R$ 913 bilhões estão sob discussão administrativa nas Delegacias da Receita Federal de Julgamento (DRJ) e no Conselho de Administração de Recursos Fiscais (Carf). Assim, com priorização de atividades e direcionamento de servidores da Receita Federal, a União poderia  atuar fortemente na análise e no processamento desses créditos. Para todos esses casos de Receitas em Potencial, medidas administrativas, a cargo do Executivo apenas, seriam capazes de fortalecer a capacidade arrecadatória e garantir pelo menos mais R$ 690 bilhões aos cofres públicos (sem contar a DAU que está sob contencioso administrativo).

Somente com as propostas aqui apresentadas seria possível ampliar o Orçamento da União em R$ 933 bilhões; então, por que discutir de forma apressada os tais R$ 85 bilhões de um dito déficit da Previdência Social? Às corporações, especialmente multinacionais e bancos, interessa manipular o discurso e dizer que a Previdência, os direitos trabalhistas, as proteções sociais, as políticas públicas e os direitos humanos são os culpados das crises econômicas, mas a verdade é outra, os culpados são os juros altos, as renúncias, a financeirização excessiva, a sonegação, os fluxos ilicítos, os paraísos fiscais e os devedores da União (no caso, as mesmas corporações – surpresa!) que não pagam sua parte, o justo.

Clima e desigualdade em Brasília

Durante a II Jornada sobre o Clima nas Cidades, ocorrido entre os dias 23 e 25 de fevereiro, em Fortaleza (Ceará), promovido pelo Iclei- Governos Locais pela Sustentabilidade, vários gestores públicos de diferentes municípios do Brasil apresentaram estratégias de mitigação e adaptação às mudanças climáticas nas cidades. Afinal, junto com agropecuária e o desmatamento, os transportes e os resíduos também são grandes fatores de emissões de gases de efeito estufa.

De acordo com dados apresentados pelos palestrantes, cerca de 30% dos municípios brasileiros tiveram, em 2015, algum evento climático extremo ligado às mudanças climáticas. E isso precisa colocar todos os entes governamentais em estado de alerta. Em diálogo com a sociedade, devem pensar em formas de redução das emissões, além de proporem políticas que protejam as populações de eventos dessa natureza.

Uma tendência dos governos é pensar em reduzir emissões raciocinando a partir das consequências geradas pelos eventos, no entanto, a desigualdade social nunca é considerada, apesar de as populações de baixa renda serem mais vulneráveis aos efeitos climáticos, por terem dificuldades estruturais de adaptação. Além disso, ainda não discutimos os nossos padrões de consumo, apesar de a maior parte das emissões nas cidades serem oriundas das pessoas que auferem as maiores rendas, tanto com relação à geração de resíduos, quanto com relação à mobilidade.

Em Brasília isso é gritante, tendo em vista que a capital brasileira é o território mais desigual do país, com maior coeficiente de gini (0,57), acima do nacional, 0,49, que já é bastante alto. Apresenta desníveis de renda com enormes variações. Um exemplo disso é a comparação entre Cidade Estrutural e Plano Piloto, a primeira com renda per capita de R$ 378,00 e a segunda com R$ 5.188,00[1], ou seja, quase quatorze vezes maior. Enquanto a Estrutural abriga o maior lixão a céu aberto da América Latina e a maior população de catadores e catadoras de resíduos sólidos do DF, o Plano Piloto é um dos maiores geradores de resíduos da capital, apesar de praticamente não sofrer os impactos ambientais gerados pelos descartes em local não apropriado.

Com relação à mobilidade, os pesos são os mesmos, visto que as regiões mais ricas têm uma frota de veículos particulares muito maior. O Distrito Federal já está com cerca de um milhão e 600 mil veículos individuais e, segundo o IPEA, em Brasília acontece um fenômeno diferente com relação à maior parte das cidades: o crescimento populacional não é do centro para a periferia, mas da periferia para o centro, provocando baixa produtividade dos sistemas de transporte coletivo, que já é de baixíssima qualidade. As populações mais pobres sofrem com uma qualidade de transporte ruim e com um trânsito engarrafado com uma frota crescente de automóveis dividindo as ruas da cidade e emitindo gases de efeito estufa.

Portanto, quando se fala em discutir padrões de consumo é necessário começarmos pelas altas rendas e seus padrões exagerados e não fazer o que sempre se faz primeiro, ou seja, cortar na carne de quem já tem tão pouco.


[1] Dados da Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios- PDAD

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