Fome no mundo: uma questão política que exige justiça econômica - INESC

Fome no mundo: uma questão política que exige justiça econômica

12/06/2025, às 18:25 (updated on 13/06/2025, às 18:30) | Tempo estimado de leitura: 8 min
Por Por Nathalie Beghin, economista e membro do Colegiado de Gestão do Inesc
Para enfrentá-la, é preciso falar sobre concentração de renda, modelo de produção, justiça fiscal e democratização do poder.
Foto: Freepik

Enquanto o mundo segue enfrentando crises entrelaçadas — econômica, climática, social, energética e sanitária — cresce a fome, a má nutrição e as desigualdades. Tudo isso em um planeta que produz comida suficiente para todas as pessoas. A pergunta inevitável é: como explicar tamanha contradição?

A resposta é simples, mas incômoda: a fome é uma escolha política. E para enfrentá-la, é preciso falar sobre concentração de renda, modelo de produção, justiça fiscal e democratização do poder.

Um cenário de exclusão alimentar

Segundo a FAO, cerca de 735 milhões de pessoas estavam subnutridas em 2022. Ao mesmo tempo, 2,3 bilhões enfrentavam insegurança alimentar moderada ou grave. Do outro lado da balança, três bilhões de pessoas vivem com sobrepeso, das quais um bilhão têm obesidade. A má alimentação, seja por escassez ou pela péssima qualidade, já afeta metade da população mundial.

Esse cenário não é aleatório. A fome, a desnutrição e a alimentação inadequada atingem de forma desigual as mulheres, as populações racializadas e  as pessoas empobrecidas. É a combinação entre racismo, classismo e patriarcado que estrutura a injustiça alimentar no mundo.

A desigualdade como motor da fome

A desigualdade global está em níveis obscenos. Os 10% mais ricos concentram 52% da renda mundial, enquanto a metade mais pobre se apropria de  apenas 8,5% dela. Quando se olha para a riqueza, a disparidade é ainda maior: os 10% mais ricos detêm 76% da riqueza global.

Em 2024, a fortuna dos bilionários cresceu três vezes mais rápido do que no ano anterior. Foram criados, em média, quatro novos bilionários por semana. Esse acúmulo de riqueza nas mãos de poucos não apenas alimenta a desigualdade, mas captura o espaço público, influencia políticas e mina os direitos sociais.

A crise climática ainda agrava esse quadro. Eventos extremos como secas e enchentes atingem com mais força as populações do Sul Global, aprofundando a insegurança alimentar. O resultado? Fome não por falta de comida, mas por decisões políticas que priorizam lucros em vez de vidas.

Um modelo alimentar que adoece

A forma como produzimos e consumimos alimentos está nos levando ao colapso. O agronegócio industrial, concentrado em poucas corporações, é responsável por:

  • altíssimo consumo de água e destruição da biodiversidade;
  • contaminação de solo e água por agrotóxicos;
  • emissões significativas de gases de efeito estufa;
  • expulsão de povos indígenas  e camponeses de seus territórios;
  • disseminação de alimentos ultraprocessados.

Esse modelo, baseado em lucro, tem adoecido populações e o planeta. E tudo isso é reforçado por um marketing agressivo e pela captura das instituições públicas por grandes corporações. O que comemos hoje não é apenas uma escolha individual — é resultado de um sistema alimentado por interesses privados e sustentado por políticas públicas que os favorecem.

Sabemos o que fazer. Falta vontade política.

A boa notícia é que as soluções existem — e o Brasil já mostrou que é possível enfrentar a fome com políticas públicas robustas.

São quatro os pilares para garantir o direito humano à alimentação adequada:

  1. Estado forte e atuante, com capacidade de regular o mercado e implementar políticas públicas de segurança alimentar e nutricional que incluam o enfrentamento das mudanças climáticas, o combate ao racismo e ao patriarcado e políticas de cuidados .
  2. Gestão intersetorial e integrada, reconhecendo que a segurança alimentar e nutricional  se conecta à saúde, educação, meio ambiente, geração de emprego e renda, assistência social, cultura e clima, entre outras
  3. Participação ativa da sociedade civil, especialmente das pessoas  mais impactadas pela insegurança alimentar e nutricional.
  4. Cooperação internacional solidária, decolonial e horizontal, com protagonismo do Sul Global.

Mas nada disso se viabiliza sem dinheiro. É preciso enfrentar o tabu da escassez orçamentária. Os recursos existem, mas é preciso mobilizá-los com justiça tributária.

Sem justiça tributária, não há direito à alimentação

A luta contra a fome passa obrigatoriamente por um novo pacto fiscal. Isso inclui:

  1. Tributar os super-ricos

Apenas 0,5% das famílias mais ricas do mundo poderiam gerar, com alíquotas progressivas, até US$ 2,1 trilhões por ano, segundo a Tax Justice Network. Dinheiro mais que suficiente para financiar políticas de combate à fome em escala global.

  1. Combater a evasão e elisão fiscal

Multinacionais e indivíduos ultrarricos usam brechas legais e paraísos fiscais para escapar de impostos. Estima-se uma perda global de US$ 492 bilhões por ano com essas práticas.

  1. Revisar os incentivos fiscais

Em 2023, governos destinaram US$ 1,5 trilhão a combustíveis fósseis, os principais causadores da crise climática. Produtos nocivos à saúde, como pesticidas e ultraprocessados, também recebem isenções fiscais. É urgente reverter essa lógica.

Brasil: duas oportunidades imediatas

Diante desse cenário, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) pode — e deve — se posicionar politicamente. Duas recomendações são estratégicas:

  1. Apoiar publicamente a reforma tributária da renda proposta pelo governo federal. Mesmo que tímida, ela é um avanço na direção da justiça fiscal e do financiamento de políticas públicas.
  2. Atuar ativamente na Convenção-Quadro da ONU sobre Cooperação Tributária Internacional (UNFCITC), em negociação. Esse espaço pode representar a maior mudança na governança tributária global e uma chance histórica de reduzir a evasão fiscal de forma justa e democrática.

Não há neutralidade diante da fome. Combater a insegurança alimentar e nutricional é lutar contra as desigualdades que a produzem. Para garantir comida no prato de todas e todos, precisamos de políticas públicas bem financiadas, justiça tributária  e a coragem de enfrentar os interesses que lucram com a miséria.

Categoria: Artigo
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