O governo que odeia as mulheres: a inércia de Damares Alves na crise da Covid-19

O Brasil vive hoje uma crise sem precedentes gerada pela pandemia da Covid-19. Com 16.188 casos notificados e 820 mortes confirmadas[1] decorrentes do vírus em todo o país, o governo bate cabeça diariamente buscando uma linha de atuação para gerenciar a crise de saúde. O Presidente Jair Bolsonaro tem sofrido desgastes contínuos, disseminando teorias da conspiração e atuando contra do isolamento social recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Chegou ao ponto de convocar “protestos” em sua defesa, ir a uma manifestação, e realizar chamado a um jejum nacional, no último domingo 5 de abril.

A maioria dos governadores, por seu turno, optaram pelo isolamento horizontal à revelia do presidente, gerando acirramento de disputas políticas que acabam atrapalhando o traçado de um plano eficaz para contenção da doença e proteção dos cidadãos e cidadãs. Esta semana – a terceira ou quarta em isolamento para muitas famílias brasileiras –, iniciou com a notícia de demissão do Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, também por motivações políticas: estaria ele desagradando Bolsonaro em suas decisões para gestão da crise, mas acabou permanecendo no cargo, ao que parece por pressão da ala militar do governo.

Uma boa notícia foi a aprovação da renda básica emergencial, que poderá impactar diretamente a vida de milhões de mulheres brasileiras sem renda, principalmente mulheres negras que vivem nas periferias dos grandes centros urbanos. No projeto aprovado no Congresso e assinado com demora pelo presidente, autoriza-se o pagamento de R$600 reais por três meses, para até 2 adultos em uma família com renda de até 3 salários mínimos. As mães solo poderão acumular 2 benefícios. Ainda não é possível avaliar a implementação da medida, pois há dúvidas em relação à logística de movimentação nas agências bancárias e sobre o real acesso do público alvo ao aplicativo digital, lançado na terça feira, 7 de abril.

Em meio a toda esta crise e às confusões desnecessárias no campo diplomático – como os ataques racistas à China, maior parceira econômica do Brasil –, chama a atenção a inoperância do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MDH). A Ministra Damares Alves foi a público apoiar o jejum, mas demorou quase um mês para se pronunciar sobre a gestão da pasta sob sua responsabilidade na Covid-19: no último dia 2 de abril anunciou as medidas do MDH, em sua maioria ações de conscientização da população e articulação com outros órgãos. A ação mais concreta parece ser a ampliação dos serviços Ligue 100 e Ligue 180, canais de denuncia de violência, reconhecendo que a convivência intermitente com o agressor aumenta a vulnerabilidade das mulheres.

No entanto, nada foi dito sobre a execução do orçamento do MDH, que teve recursos autorizados de cerca de R$394 milhões de reais para 2020[2]. É importante salientar, como destacamos em artigo anterior, que R$25 milhões estão carimbados para “Políticas de Igualdade e Enfrentamento à Violência”; mais de R$71 milhões para a “Construção da Casa da Mulher Brasileira e de Centros de Atendimento às Mulheres em Fronteira Seca”; e mais de R$35 milhões para os dois canais de atendimento, Ligue 100 e Ligue 180 (canais para os quais uma empresa já foi contratada no ano passado, ou seja, já está em andamento). Estas três ações somam cerca de R$132 milhões em recursos do MDH voltados para o enfrentamento a violência contra as mulheres.

Passados 4 meses do início do ano orçamentário, o MDH executou somente R$536 mil reais: isso mesmo, 0,13% do recurso autorizado para o ano de 2020![3] Deste parco recurso, foram R$336.000,00 para “Despesas diversas” e o restante para o funcionamento dos conselhos da Pessoa Idosa, Pessoa com Deficiência e Juventude, além de publicidade institucional.

Com a crise da Covid-19, uma nova ação orçamentária foi criada, a Ação Orçamentária 21C0: Enfrentamento da Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional decorrente do Corona Vírus, que conta, para execução do MDH, com R$40 milhões de reais, mas ainda não sabemos como será executado. O recurso total do MDH, hoje, é de R$416 milhões de reais[4].

As questões que se colocam são: como estes recursos irão chegar aos municípios e territórios neste momento de emergência? Qual o plano do MDH para execução destes recursos, visando cumprir um objetivo bem prático, salvar a vida das mulheres? Como as mulheres periféricas, em sua maioria negras, terão acesso ao sistema de proteção social em um quadro onde os serviços de atendimento encontram-se praticamente, todos, fechados?

A maior parte do recurso autorizado do MDH foi para a Ação 21AR – Promoção e Defesa de Direitos para Todos, no valor de R$159 milhões[5], sem detalhamento de como seria gasto: o Plano Orçamentário desta ação ainda consta como “PO – 0000: Despesas Diversas. Como os planos orçamentários podem ser alterados durante o ano orçamentário, realizamos um pedido via Lei de Acesso à Informação (março/2020) para verificar a destinação destes recursos, e obtivemos como resposta que se trata de orçamento advindo de emendas individuais impositivas para o ministério. O que descobrimos?

Checando a listagem e descrição de tais emendas, podemos encontrar diversas ações que seriam de suma importância serem executadas neste momento da Covid-19, como equipamentos para instituições de longa permanência para idosos e atendimento a meninas e meninos em situação de rua. Outras, perdem o sentido, por enquanto, em uma situação de isolamento social, como equipamentos para centros de atendimento a crianças e adolescentes e conselhos tutelares, bem como projetos de educação presencial.

Diversas emendas são voltadas para o enfrentamento a violência contra as mulheres, e devem ser executadas o quantos antes, pois somam cerca de R$39 milhões de reais, para os seguintes estados: Amazonas, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Distrito Federal, Goiás, Maranhão, Sergipe, Pernambuco, Bahia, Alagoas, Ceará, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul e Santa Catarina.

O fato é que será impossível construir as casas da mulher brasileira este ano, e se estes equipamentos já estivessem prontos, provavelmente não poderiam abrir para atendimento – para não gerar uma situação de contágio –, ou mesmo poderiam ser solicitados para instalação de hospitais de emergência. Em um cenário de escassez de recursos e com os impactos da Emenda Constitucional 95 (Teto de Gastos) se fazendo sentir no Sistema Único de Saúde (SUS), todos os recursos disponíveis devem ser executados pelo bem da sociedade. O MDH precisa apresentar para a sociedade como pretende proteger, concretamente, os direitos humanos de mulheres, idosos, pessoas com deficiência, em situação de rua, quilombolas e indígenas, neste momento de Codiv-19.

É possível e necessário apoiar ações locais para acesso à renda emergencial, pois sabemos que os mais vulneráveis terão dificuldades com o acesso ao benefício, seja pela limitação em encontrar informações, seja pela exclusão digital. As mulheres em situação de violência precisam da renda básica para se proteger. Esta é uma pauta relacionada às mulheres, famílias e direitos humanos!

Há recursos autorizados disponíveis para execução. São mais de R$400 milhões de reais. A Ministra precisa arregaçar as mangas e fazer o seu trabalho, pois a fome, a violência e o vírus Sars-Cov-2 já chegaram à casa das famílias brasileiras.

[1] Fonte: https://www.worldometers.info/coronavirus/

[2] Fonte: Siga Brasil, acesso em fevereiro de 2020, dados corrigidos pelo IPCA.

[3] Fonte: Siga Brasil, acesso em 8 de abril de 2020. Dados corrigidos pelo IPCA.

[4] Fonte: Siga Brasil, acesso em 8 de abril de 2020. Dados corrigidos pelo IPCA.

[5] Fonte: Siga Brasil, acesso em fevereiro de 2020: R$159.340.917,00; e em 8 de abril de 2020: R$159.739.312,00. Dados corrigidos pelo IPCA.

Pasta de Damares tem R$ 394 mi. Como a ministra vai utilizar esse recurso?

Muito se tem publicado sobre os cortes orçamentários de políticas para as mulheres. O Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) tem monitorado a alocação de recursos para esta política desde o início do período de austeridade fiscal, intensificado com o Teto de Gastos. Em comparação com o recurso autorizado em 2015, a política de mulheres sofreu redução de 82% em 2018.

Em 2019, o recurso autorizado para o Programa 2016: Políticas para as Mulheres: Promoção da Igualdade e Enfrentamento a Violência foi de R$ 62,5 bilhões. A execução foi de R$ 46 milhões, sendo cerca de R$ 28 milhões em recursos pagos e R$ 18 milhões de restos a pagar, ou seja, recursos comprometidos com contratos de anos anteriores pagos em 2019.

 

Em 2020, o recurso autorizado para o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MDH) foi de R$394 milhões: deste recurso, R$96 milhões é alocado especificamente para as mulheres (24,43% do total). O que isso significa, na prática, para as brasileiras? O Plano Plurianual (PPA) de Bolsonaro e declarações e medidas adotadas pela ministra Damares Alves tem nos dado algumas pistas.

O novo PPA

O novo Plano PluriAnual 2020-2023, elaborado pelo Governo do presidente Jair Bolsonaro, excluiu o Programa 2016: Políticas para as Mulheres: Promoção da Igualdade e Enfrentamento a Violência, e criou o Programa 5034: Proteção à Vida, Fortalecimento da Família, Promoção e Defesa dos Direitos Humanos para Todos. Se o Programa 2016 era destinado somente às mulheres, o novo Programa 5034 é um guarda-chuva para execução de políticas do Ministério, hoje chefiado por Damares Alves, destinadas às mulheres, aos idosos, e pessoas com deficiência.

O PPA é o instrumento de planejamento e organização da ação pública e expressa as escolhas de um governo. Não é coincidência o fato de as palavras racismo, negros e quilombolas terem sido excluídas deste documento em sua versão bolsonarista, adotando uma visão “direitos humanos para humanos direitos”, tão difundida pelo grupo político da extrema direita. Enterram-se três décadas de construção das políticas de igualdade racial e promoção dos direitos dos povos e comunidades tradicionais.

Em relação às mulheres, a construção do novo PPA ignorou o II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (PNPM), construído por meio de quatro conferências nacionais, com participação de mais de 2 mil mulheres em cada edição. Não é possível visualizar as prioridades do II PNPM no PPA 2020-2023, e este tampouco apresenta metas e indicadores para monitorar o alcance dos resultados.

No PPA 2020-2023, o Programa 5034 tem o seguinte objetivo: “Objetivo: 1179 – Ampliar o acesso e o alcance das políticas de direitos, com foco no fortalecimento da família, por meio da melhoria da qualidade dos serviços de promoção e proteção da vida, desde a concepção, da mulher, da família e dos direitos humanos para todos”.

Chama a atenção a exclusão da questão da violência contra as mulheres, por um lado, e a inclusão da “proteção da vida desde a concepção”, por outro. O recado é bastante claro em relação ao tipo de política para as mulheres que será colocado em curso até 2022. Ao retirar a violência do documento que planeja a política pública para as mulheres, focando somente na família, o governo esconde o fato comprovado de que a violência doméstica é sofrida por milhares de mulheres e meninas dentro de suas próprias casas, na maioria dos casos pelos próprios maridos e parentes.

O orçamento no país do fundamentalismo religioso

A Ministra Damares Alves não esconde sua predileção pelo Estado religioso: em recente entrevista, defendeu a “ocupação da nação pelas igrejas”, e afirmou que “Temos falta de casas de abrigo para mulheres vítimas de violência. Por que essas igrejas não fazem uma parceria conosco, cedendo o seu espaço físico para abrigar essas mulheres?”. Em 2019, dos quase R$ 20 milhões autorizados para a construção das casas da mulher brasileira, nenhum recurso foi gasto. Também não houve recurso autorizado para o Disque 180 e o Disque 100, canais voltados, respectivamente, para denúncias de violência contra as mulheres e violação de direitos humanos.

Em 2020, isso muda: ainda que o PPA 2020-2023 invisibilize a questão da violência, o MDH priorizou o tema no orçamento. Dos mais de R$96 milhões autorizados em 2020, voltados especificamente para as mulheres, quase R$25 milhões estão carimbados para “Políticas de Igualdade e Enfrentamento à Violência”; mais de R$71 milhões são para a “Construção da Casa da Mulher Brasileira e de Centros de Atendimento às Mulheres em Fronteira Seca”; e mais de R$ 35 milhões para os dois canais de atendimento. Estas três ações somam cerca de R$132 milhões em recursos.

Se o problema de recursos, então, parece estar superado – pelo menos até o primeiro decreto de reprogramação orçamentária, onde o governo pode decidir contingenciar uma parte destes recursos –, a questão passa a ser: como estas políticas serão implementadas? Será respeitado o princípio de laicidade do Estado nos atendimentos, equipamentos e serviços? A pertinência do questionamento está no fato de que o governo se furtou de apresentar o desenho da política no PPA 2020-2023, embora esteja publicando decretos para regular algumas iniciativas.

É o caso da Casa da Mulher Brasileira, serviço que visa ser a porta de entrada da política pública para mulheres em situação de vulnerabilidade extrema, cujas diretrizes para os convênios estão publicadas no site do MDH, e tem regulamentação no Decreto nº10.112 de 12 de novembro de 2019, que cria o Programa Mulher Segura e Protegida.

Chama a atenção a presença de salas para reconhecimento dos agressores, presença da Polícia Militar e sala para detenção provisória.  Não está explicitado como será o funcionamento dos serviços, mas pela forma como estão organizados os espaços e equipes, trata-se de um equipamento militarizado, para atendimento tanto de mulheres (vítimas), como de homens (agressores).

Ao mesmo tempo, o PPA 2020-2023 reforça a mensagem da defesa da vida desde a concepção em um que país continua se negando a discutir o aborto como saúde pública e social, tramitando Projetos de Lei para criminalizar a interrupção de gravidez em casos de estupro, risco de vida para a mãe e anencefalia do feto, hoje permitidos. Dentro do Programa 5034, a Ação 21AQ: Proteção do Direito à Vida, teve recurso autorizado em 2020 no valor de R$41 milhões – no entanto, não há nenhum documento, até o presente momento, que apresente o desenho desta ação, ou seja, como será implementada.

A maior parte do recurso autorizado do MDH foi para a Ação 21AR – Promoção e Defesa de Direitos para Todos, no valor de R$159 milhões, sem detalhamento de como será gasto: por enquanto, o Plano Orçamentário desta ação ainda consta como “PO – 0000: Despesas Diversas”, podendo ser alterado durante o ano, mas convenhamos, é bastante recurso para ser manejado sem planejamento ou destinação específica.

Atentas e fortes!

A questão das mulheres é central na atual conjuntura política. Em 2018, principais opositoras à candidatura de Jair Bolsonaro organizaram marchas por todo o Brasil dizendo #EleNão. A motivação era baseada no fato do então deputado federal proferir falas sexistas e racistas em diversos espaços, chegando ao ponto de agredir a Deputada Maria do Rosário dizendo que não a estupraria porque ela não merecia, agressão pela qual foi condenado.

Uma vez no poder, o governo Bolsonaro, que conta com militares, olavistas e fundamentalistas religiosos, iniciou uma verdadeira cruzada para disputar a narrativa moral junto à sociedade. A Ministra Damares Alves é uma das que reza esta cartilha com maestria: se enganam os que a resumem a uma doidivanas interessada em vestir meninos de azul e meninas de rosa. Ela tem cumprido uma agenda intensa, que inclui viagens internacionais para combater a “ideologia de gênero” (como na visita à Hungria) e participação em reuniões da ONU, fortalecendo pautas conservadoras.  Sem deixar de fazer o seu trabalho no Brasil, tem ido em busca de parcerias com  estatais, setor privado e setores da igreja e campanhas para adesão aos seus programas sociais. Em 2020, ela terá 394 milhões para sua pasta, o que não é pouco, considerando o atual momento de redução do recurso para gastos sociais.

Neste 8 de março, as mulheres irão às ruas novamente levar suas pautas e demandas. Mais um compromisso se soma à nossa luta, a saber, monitorar o recurso do governo destinado às mulheres, se será executado, e por meio de que programas, ações e diretrizes. Neste cenário, o princípio da transparência e a participação da sociedade são, mais do que nunca, fundamentais.

***ERRATA***

Editamos o texto em 12/3 para corrigir uma informação. Onde se lia:

“Em 2019, o recurso foi recomposto, tendo sido autorizados quase 300 milhões para o Programa 2016: Políticas para as Mulheres: Promoção da Igualdade e Enfrentamento a Violência. No entanto, a execução foi baixíssima, menos de 10%, sendo cerca de 28 milhões em recursos pagos e 46 milhões de restos a pagar, ou seja, recursos comprometidos com contratos de anos anteriores pagos em 2019.”

O correto é:

“Em 2019, o recurso autorizado para o Programa 2016: Políticas para as Mulheres: Promoção da Igualdade e Enfrentamento a Violência foi de R$ 62,5 bilhões. A execução foi de R$ 46 milhões, sendo cerca de R$ 28 milhões em recursos pagos e R$ 18 milhões de restos a pagar, ou seja, recursos comprometidos com contratos de anos anteriores pagos em 2019.”

Carnaval também é direito à cidade.

Estava almoçando em um dos tantos shoppings de Brasília, quando me dei conta de que em cerca de 30 anos nossas cidades foram totalmente privatizadas. Os espaços públicos foram fechados com agentes de segurança nas portarias, para evitar que pobres adentrem ao recinto, perturbando o conforto de quem está ali para alimentar o capitalismo, consumindo e fazendo a roda girar.

Então, se “A praça Castro Alves já foi do povo”, não é mais, os espaços públicos estão cada vez mais gentrificados.  Todavia, há uma brecha durante o ano, que permite a democratização desses locais: o carnaval. As pessoas se fantasiam e enchem praças e ruas, misturando classes e raças em um só lugar. Pois carnaval é direito à cidade, é portal aberto para os encontros. Será?

A resposta é sim e não. Há os locais sem cordas, com mistura de linguagens e mensagens. Narrativas diversas, quebra de tabus e preconceitos. Espaços livres de racismo e homolesbotransfobia, que são raqueados, pois até mesmo o carnaval é disputado. Como podemos ver nos abadás, cordas separando a pipoca, transporte público indisponível ou reduzido.

E em Brasília ainda há outro advento, a administração local acredita que apenas o Plano Piloto tem direito à folia. Pois vários e tradicionais blocos de outras partes desse quadrado não recebem fomento para saírem, mesmo que suas histórias se confundam com a própria história da cidade, como é o caso do Asé Dudu, Galinho de Brasília ou Comboio Percussivo, que ficaram sem recursos ou com recursos muito abaixo do que foi pedido. Mesmo fazendo Carnaval na cidade há mais de dez anos e oferecendo muita cultura, aprendizado e música.

Além disso, o Governo do Distrito Federal (GDF) ainda sinalizou um Carnaval que privilegiaria grupos de fora da cidade, em detrimento das tradicionais escolas de samba, como a Aruc do Cruzeiro, que ano que vem completa 60 anos. E com as incontáveis rodas de samba que podemos saborear o ano todo nos diversos pontos do quadrado, passando por Ceilândia, Candangolândia, Taguatinga e por aí vai. E ainda que o GDF tenha desistido do carnaval gourmetizado, não significou mais recursos para os de casa.

A boa notícia é que nos últimos anos, em várias cidades, incluindo Brasília, os blocos saíram do armário, vencendo a privatização dos espaços públicos e botando o bloco na rua, gingando ao som dos tambores, cuícas e chocalhos. Se ao longo do ano as ruas são propriedade dos carros, que ocupam e se apossam do que seria de todas as pessoas, no carnaval há uma ocupação alegre, festiva, combativa, que leva para fora mensagens políticas. Então, carnaval é político, é resistência.

Como promover justiça social por meio da justiça fiscal?

Hoje, 20 de fevereiro, é celebrado no mundo inteiro o dia da justiça social. A data foi criada pela ONU em 2007 para reforçar as metas da organização em prol da erradicação da fome e promoção dos direitos humanos. Esse ano, o dia tem como tema “Fechando a lacuna de desigualdades para alcançar a justiça social” e procura enfatizar a importância da igualdade de gênero e dos direitos dos povos indígenas e migrantes para a justiça social.

O que é justiça social?O Inesc, em sua luta pela justiça social e garantia de direitos humanos, enfatiza há 40 anos a importância de ter um orçamento público e um sistema tributário que reduzam as desigualdades. Isso porque as despesas orçamentárias podem aumentar ou diminuir essas disparidades, dependendo para onde estão direcionadas. Para além do financiamento do gasto público, a tributação tem como função fundamental a redistribuição de renda, o que impacta diretamente a qualidade de vida da população. Portanto, a justiça fiscal, entendida aqui como a promoção de justiça por meio da política de gasto e de arrecadação tributária, é fundamental para a justiça social.

Nesse sentido, apontamos cinco medidas para a melhoria da justiça fiscal e social no Brasil que estão nas mãos dos governos.

 

1 – Promover um sistema tributário mais justo

Cada vez mais, a necessidade de reformar nosso sistema tributário aparece no debate público. As propostas que estão em discussão no Executivo e no Legislativo, porém, não enfrentam um dos maiores problemas do Brasil: a desigualdade. O sistema tributário vigente agrava as distâncias entre pobres e ricos porque é altamente regressivo, pesando proporcionalmente mais na renda dos mais pobres.

Esse fenômeno acontece porque temos uma carga tributária muito elevada de impostos sobre o consumo em detrimento de impostos sobre a renda e o patrimônio. A explicação sobre o que é regressividade e como ela afeta as pessoas mais pobres está nos infográficos a seguir:

O que são impostos regressivos e progressivos?

 

Infográfico O problema dos impostos regressivos

 

Você também pode ver a contribuição do seu imposto para a promoção de políticas públicas na calculadora da Oxfam Brasil, “O Valor do seu Imposto”, e o peso da carga tributária por produto que você paga (com referência nos valores de São Paulo) no aplicativo “na Real”.

 

2 – Priorizar o gasto social no orçamento público

Os gastos sociais são as despesas governamentais destinadas a realizar direitos universais e gratuitos, como a saúde e a assistência social, para atender pessoas em situação de vulnerabilidade econômica, bem como gerar oportunidades de promoção social. Esses gastos podem ser feitos de duas formas: diretamente, como, por exemplo, pelo programa Bolsa Família, ou por meio de impostos, como acontece com a desoneração da cesta básica.

Essas despesas são divididas pelo Tesouro nas áreas de Saúde, Educação, Assistência Social, Habitação e Saneamento; Cultura; Trabalho; Organização Agrária; Previdência Social. Elas nem sempre promovem justiça social – os elevados benefícios de auxilio–moradia do judiciário, por exemplo, estão nesse cálculo – mas indicam as diretrizes básicas de gastos do governo nesses setores estratégicos para a promoção de justiça social. O gráfico a seguir mostra que, entre 2015 e 2019, as despesas orçamentárias nessas áreas caíram consideravelmente, apesar de parte delas ser obrigatória. Por exemplo, os gastos com saúde perderam 11,9% em valores reais entre 2015 e 2019, enquanto despesas com cultura e a organização agrária diminuíram em cerca de 30%.

 

A promoção de justiça social passa necessariamente por gastos governamentais que corrigem as desigualdades. Isso significa que até em momentos de crise econômica, como o que estamos passando desde 2015, o gasto social deve ser protegido, o que não vem ocorrendo.

 

3 – Garantir que os mais ricos paguem seus impostos

Um método para aumentar as receitas governamentais, que normalmente não aparece no debate sobre o equilíbrio fiscal, é o combate às diversas estratégias que os ricos desenvolvem para não pagar seus impostos. A sonegação fiscal, por exemplo, custa ao Brasil R$ 71,5 milhões por hora. Um estudo publicado pelo Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional demonstra que o país vem perdendo mais de R$ 500 bilhões por ano somente com a sonegação de tributos. Ou seja: em apenas dois anos, o prejuízo aos cofres públicos ultrapassa a economia de R$ 800 bilhões prometida ao longo de uma década pela reforma da previdência.

O Estado pode lutar pelo fim da sonegação de diversas maneiras, como o combate aos paraísos fiscais e o fortalecimento das autoridades tributárias. O problema é que os mais ricos mandam parte dos seus lucros para fora do Brasil para não pagarem seus devidos impostos. É necessário, portanto, o fortalecimento da cooperação internacional em prol da regulação das práticas corporativas e dos fluxos financeiros internacionais.

 

4 – Revisar os incentivos fiscais, priorizando aqueles que combatam injustiças

Para além dos impostos sonegados, o governo fornece voluntariamente a redução do pagamento de tributos por meio dos incentivos fiscais. Todos os anos, o governo brasileiro deixa de arrecadar mais de R$ 300 bilhões, cerca de 4% do PIB, concedendo benefícios fiscais a empresas e pessoas físicas.

 

Gráfico 10 anos de reforma da previdência

 

O governo concede esses benefícios com a justificativa de que eles podem estimular investimentos e o crescimento da economia. Mas esquecem de dizer que eles diminuem o orçamento disponível para aplicar em políticas públicas. Além disso, eles podem reforçar a injustiça do sistema tributário brasileiro, pois em parte são fornecidos a grandes empresas, ou ter efeitos negativos na promoção de direitos humanos, como acontece no caso dos incentivos aos agrotóxicos.

Hoje em dia, não sabemos quem recebe esses incentivos e nem o valor, pois estão protegidos por sigilo fiscal. Sem transparência, como nós, cidadãos, podemos avaliar se esses recursos estão beneficiando a sociedade brasileira de forma justa? O Brasil precisa urgentemente passar por um processo de transparência e revisão dos incentivos fiscais em prol da justiça social.

A campanha do Inesc #SóAcreditoVendo luta pela transparência e revisão desses gastos governamentais indiretos.

 

5 – Assegurar que as populações mais vulneráveis sejam priorizadas na política fiscal

Você sabia que as mulheres negras são as mais afetadas negativamente pelo nosso sistema tributário? Isso ocorre devido a nossa regressiva tributação sobre o consumo e o fato das mulheres, em especial as negras, serem a maioria entre as pessoas mais pobres do Brasil. Além disso, um estudo recente com dados da Receita Federal mostrou que elas pagam mais imposto de renda do que homens, pois eles têm uma parcela maior de sua renda como rendimentos isentos de tributação.

A política fiscal pode, e deve, fortalecer as populações mais vulneráveis. De um lado, deve identificar essas disparidades e corrigi-las; de outro, direcionar o orçamento para essas populações por meio de políticas públicas. Um exemplo recente de esforço fiscal para o combate às desigualdades de raça e gênero foi a criação da Secretaria de Políticas para Mulheres e da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, que criaram um conjunto de políticas públicas específicas para essas populações.

O governo brasileiro precisa olhar para a política orçamentária e tributária com o foco nas desigualdades, identificando as barreiras que as pessoas enfrentam por causa de sexo, idade, raça, etnia, religião, cultura, região ou deficiência. Ignorá-las é contribuir para a perpetuação das injustiças.

Ao completar 400 dias de governo, Bolsonaro anuncia seu ataque mais duro aos povos indígenas

Apenas dois dias depois que um despacho oficial do Procurador-chefe Nacional da Funai ratificou a percepção de que, para a nova direção do órgão indigenista, os índios são considerados “invasores” em terras brasileiras, o governo deu novo passo para ofertar terras desses povos a grupos econômicos interessados na exploração mineral, na construção de hidrelétricas, na extração de óleo e gás, na exploração agrícola e pecuária.

Lamentavelmente, tudo isso ocorreu na semana que marca o Dia Nacional da Luta dos Povos Indígenas no Brasil. Datado de 7 de fevereiro, o dia é uma homenagem ao líder indígena Sepé Tiaraju, morto ainda jovem em 1756 durante uma luta sangrenta contra a dominação espanhola e portuguesa no Rio Grande do Sul. O conflito que durou três anos resultou na morte de mais 1.500 indígenas.

Passaram-se 264 anos e aqui estamos nós diante de um governo que não passou uma semana dos seus 400 dias de trabalho sem proferir ataques verbais e golpes institucionais contra os povos indígenas. Utilizando como escudo o perverso argumento de que “trata o índio como ser humano”, não só seu desrespeito e ódio são explícitos, como também são evidentes os interesses que ele representa.

Na semana desta data simbólica, o governo enviou ao Congresso Nacional um projeto de lei que busca regulamentar diversas atividades econômicas em terras indígenas. São atividades, como o mencionado, altamente impactantes do ponto de vista ambiental e social. Em terras indígenas, a abertura para estas atividades vai muito além, é parte do projeto etnocida do Estado brasileiro, que neste governo se aprofunda radicalmente, de destruição sistemática dos modos de vida e pensamento de povos diferentes daqueles que empreendem essa destruição.

A política de morte comandada pessoalmente pelo chefe de governo não responde aos interesses destes povos. Em vídeo publicado em seu Twitter, a coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB)  Sônia Guajajara destaca: “o seu sonho, senhor presidente, é o nosso pesadelo, é o nosso extermínio. Pois o garimpo provoca mortes, doenças, miséria e acaba com o futuro de toda uma geração”. A negação do direito “a qualquer centímetro de terra demarcada” é prova de que governo e povos indígenas encontram-se em lados opostos da história.

Ódio e vilania disfarçados de boas intenções em plena segunda década do século XXI e depois de tantos massacres e violência na nossa história, passada e presente, é o que os povos indígenas recebem neste dia 7 de fevereiro.

Nosso presente e futuro não precisam carregar esta tragédia como uma sina. Se o que se quer é um debate sério sobre como garantir que os povos indígenas tenham direito de escolher o que fazer com suas terras, respeitando suas culturas e seus escolhas, esse, evidentemente, não é o caminho.

A sociedade brasileira não pode se furtar a este debate. E precisa estar junto aos povos indígenas na sua luta pelo direito de existirem e viverem nas suas terras, como quiserem, com o apoio que precisarem por parte do Estado, de dizerem não e de serem respeitados como parte fundamental do que nós somos como sociedade.

Já passou da hora de rediscutirmos os sentidos do desenvolvimento nacional, incluindo a comunidade política na sua complexidade e fazendo escolhas políticas responsáveis a respeito de atividades altamente impactantes e com baixo retorno social para o país. O desenvolvimento baseado na superexploração de recursos naturais precisa, igualmente, passar pelo crivo de um debate econômico sério sobre seus reais efeitos para nós, brasileiros, e para toda a humanidade.

Produção nacional de medicamentos pode evitar desabastecimento de vacinas

Durante sete meses, pais que foram aos postos de saúde não encontraram uma vacina importante para os seus bebês. De acordo com o Ministério da Saúde, o fornecimento da vacina pentavalente foi irregular de junho a dezembro do ano passado por causa de problemas com os fornecedores. Aplicada em bebês de 2, 4 e 6 meses de vida, e com reforço aos 15 meses e aos 4 anos de idade, essa vacina protege contra cinco doenças: difteria, tétano, coqueluche, hepatite B e a bactéria Haemophilus influenza tipo B.

O Brasil compra a vacina por meio do Fundo Estratégico da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), pois não existe laboratório produtor no país. Em julho de 2019, lotes do laboratório estrangeiro que fornecia o medicamento foram reprovados no teste de qualidade do Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde (INCQS, da Fiocruz) e em análise da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Em agosto, o Ministério da Saúde solicitou reposição do produto, mas, naquele momento, não havia disponibilidade imediata no mercado mundial.

O abastecimento só foi regularizado em janeiro de 2020, quando o ministério anunciou a distribuição de 1,7 milhão de doses da vacina pentavalente para os estados

Esse caso traz várias reflexões importantes. Primeiro, sobre a importância de ter uma infraestrutura científica adequada e uma agência reguladora forte, pois elas permitem ao Brasil atuar de forma autônoma e garantir que apenas produtos de qualidade entrem no país.

Segundo, a de que a produção local de medicamentos é fundamental para evitar este tipo de problema. Caso houvesse um fornecedor nacional da vacina, o desabastecimento poderia ter sido evitado ou resolvido de forma mais rápida. O Ministério também reconhece essa solução, pois em outubro de 2019 convocou uma reunião com representantes de laboratórios públicos nacionais com objetivo de traçar estratégias para a produção nacional da vacina pentavalente, em que o secretário de vigilância em saúde afirmou que “um parque produtor forte representa um país forte. É necessário buscar medidas sustentáveis para garantir a oferta de vacinas no SUS e proteger a população contra doenças que podem ser evitadas com efetiva imunização”, e também que é necessário construir uma política de planejamento, expansão e monitoramento da cadeia produtiva brasileira de soros e vacinas.

Orçamento reduzido

Os laboratórios públicos, como o Biomanguinhos da Fiocruz ou o Instituto Butantã, são um patrimônio nacional e um recurso estratégico. Foi por conta deles que o Brasil conseguiu fornecer tratamento gratuito a todos os pacientes HIV positivo. E ter um programa nacional de imunização já erradicou ou evitou que diversas doenças infecciosas acometessem a população brasileira.

Apesar de sua importância, estes laboratórios frequentemente não recebem investimento à altura. Só para citar um exemplo, ao invés de reforçado, o orçamento da Fiocruz foi reduzido em mais de R$ 300 milhões para o ano de 2020. Enquanto isso, estima-se que a indústria farmacêutica recebeu mais de R$ 11 bilhões de incentivos fiscais em 2018.

É importante que o Brasil tenha uma política de inovação e produção de medicamentos que atenda as suas necessidades e prepare o país para evitar este tipo de problema, valorizando os recursos que já tem. Isso garante não só a sua independência do mercado externo, mas também desenvolvimento econômico e tecnológico, bem como a proteção da saúde das próximas gerações.

Ser menina é (e sempre foi) muito perigoso no Brasil

Estupro coletivo não é novidade do século 21, não é novidade no país. No Brasil colônia, o estupro era prática cotidiana compreendida como direito por senhores de escravos que violentavam diuturnamente negras e indígenas. O estupro que deu origem à mestiçagem brasileira foi ignorado por muito tempo e a mistura de raças foi amplamente difundida como  fruto de uma cordialidade do povo brasileiro. Cordialidade esta revestida com muito sangue e lágrimas.

Prática comum no cangaço, as meninas, assim como mulheres e idosas, eram alvo de uma macheza covarde, brutal e bestial. Arrancadas de casa ainda meninas (até crianças), eram violentadas até o limite que seus corpos suportavam, não raras vezes por muitos homens, como narra Adriana Negreiros no livro Maria Bonita, Sexo, Violência e Mulheres no Cangaço (2018).

Assim como o estupro coletivo não é recente, também não é fenômeno que podemos localizar somente no campo de uma direita misógina. Refazendo o caminho da Coluna Prestes, Eliana Brum, jornalista e escritora, registra histórias de estupro, saques, assassinatos e tortura – em entrevista a Antônio Abujamra em 2013.

Morte decretada via Facebook

A mais nova modalidade de violência contra meninas de que se tem notícia no Brasil é a execução de adolescentes no Ceará anunciada nas mídias sociais por meio de falsos perfis. Facções criminosas, por um motivo ou outro, decretam pelo Facebook quem deve ser eliminada. As meninas são arrancadas de casa, torturadas com requintes de crueldade e depois brutalmente assassinadas após estupros coletivos.

Percebe-se, portanto, que o estupro é uma prática aceita culturalmente desde que o Brasil é Brasil. A prática perpetua-se por gerações de tal modo que a violência chega a ser invisibilizada por sua naturalização. Há, no mínimo, uma permissão silenciosa; um encorajamento coletivo com inúmeros episódios ‘autorizados’ ou cometidos por juízes, parlamentares e outras autoridades públicas, como prefeitos, médicos e professores. Os exemplos são muitos.

Em comum, nota-se uma desqualificação das mulheres/meninas com termos que remetem à sua sexualidade e ao desejo. Hipócritas, “homens de Deus” as desejam e as desprezam e violentam-nas com suas consciências tranquilas.

A violência contra meninas ganha novos contornos e elementos como uso das redes sociais e o envolvimento do crime organizado, além da desqualificação das mulheres em discursos e pronunciamentos oficiais. “Não estupro você, porque você não merece”, disse o então deputado federal Jair Bolsonaro, hoje presidente da república, como se tal violência pudesse ser admitida em alguma circunstância.

Confusão entre Estado e religião agrava violência

Segundo a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, conhecida por exaltar o sexismo, na ilha do Marajó meninas são estupradas porque não usam calcinha. Sem qualquer preocupação em analisar a complexidade do problema, responsabiliza as próprias vítimas pelo estupro. Nesse sentido, a estratégia para enfrentar o problema pode ser reduzida ao fornecimento de peças íntimas às crianças e os agressores saem ilesos. Já na ONU, na Comissão de Direitos Humanos, o discurso da ministra se restringiu a uma fala genérica pela perspectiva moral e religiosa, se alinhando aos países mais conservadores do mundo e negando todos os tratados de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário.

A confusão entre Estado e religião sempre prioriza pautas de costumes e de controle dos corpos femininos. Evita uma abordagem direta sobre os problemas, portanto, não se age sobre as causas e a tendência é o agravamento das violências.

Pesquisas mostram que o assassinato de meninas tem crescido vertiginosamente no país. Dados do Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência (CCPHA), instituído pela Assembleia Legislativa do Estado do Ceará (AL-CE) – relatório de 2018 – revela que homicídio de meninas cresceu mais de 400% em Fortaleza.

Diante de problemas de tal gravidade é imprescindível que se reúna esforços para prevenir violências, responsabilizar agressores, acolher e cuidar das vítimas. Para isso, se faz urgente determinação política para se estudar as violências e elaborar plano de enfrentamento com um desenho complexo abarcando toda a sociedade brasileira, especialmente as políticas públicas. Todos os segmentos da sociedade devem ser envolvidos para coibir a violência do estupro e a morte por violência, em especial de crianças e adolescentes que têm tido suas vidas exterminadas pela violência. Crianças e adolescentes negras, moradoras das periferias têm suas vidas ameaçadas diariamente.

Todas as vidas importam, vidas negras importam, vidas de meninas importam. O alerta foi dado.

Ano novo, tarifa nova (mais cara, como sempre)

Hoje o Distrito Federal (DF) amanheceu com passagens do Transporte Público Urbano (TPU) 10% mais caras. A justificativa do governo é a de que “é preciso melhorar as contas e manter o sistema em pleno funcionamento”. Na argumentação, o GDF informa que em 2019 o recurso dado às empresas para subsidiar a tarifa foi de R$ 700 milhões, o que não se sustenta quando analisamos o orçamento executado.

Esse total equivale a todo o programa orçamentário mobilidade integrada e sustentável, conforme dados da tabela 1. O que o governador Ibaneis joga na conta da subvenção é, na verdade, os recursos para toda a infraestrutura do TPU, como corredores exclusivos de ônibus e manutenção dos terminais rodoviários, por exemplo.

O montante que o governo dá para as empresas de transporte como subsídio, a chamada “Manutenção do Equilíbrio do Sistema”, é uma cifra muito menor, R$ 175 milhões. Com o aumento da tarifa, o governo projeta economizar cerca de R$ 160 milhões, ou seja, estão, na prática, retirando o subsídio.

Reforma da rodoviária do Plano Piloto

Ao observar a tabela do orçamento, verificamos também que se gastou cerca de R$ 1,3 milhão com a reforma da rodoviária do Plano Piloto. Contudo, há meses as escadas rolantes e elevadores não funcionam, constrangendo e tornando inviável o deslocamento de pessoas com deficiência e idosos, que têm muita dificuldade para acessar o terminal. Limpeza e conservação é algo que não existe. Outra questão é a superlotação e a precariedade dos veículos. Argumentam que as empresas tiveram de gastar mais com ônibus com portas dos dois lados por conta da Estrada Parque Taguatinga (EPTG), algo que estão devendo à população há oito anos e para a qual as empresas não pagaram multa por não respeitarem as regras contratuais.

Embarque por direitos

Ao mesmo tempo em que aumentam a tarifa, justificando que não podem subsidiar as passagens e a própria infraestrutura, reduzem o IPVA, favorecendo e incentivando os automóveis individuais motorizados. Essa política vai na contramão de todas as tendências internacionais que, por motivos sociais e ambientais, tentam reduzir a emissão de gases de efeito estufa.

Em consonância com esse esforço mundial para incentivar o transporte coletivo,  lançamos em outubro de 2019 a campanha “Embarque por Direitos”, pela regulamentação do transporte como direito social. Apresentamos uma proposta de fundo de financiamento ao TPU, que propõe que o coletivo seja financiado pelo individual, por meio de novas alíquotas para os impostos IPTU, IPVA, ICMS da gasolina, de maneira progressiva (quem tem maior renda paga mais).  Este fundo solidário com recursos municipais, estaduais e nacionais permitiria a não tarifação, ou tarifa zero. O que pretendemos é mostrar que é viável transformar o transporte em política pública de fato, ao contrário da política desenvolvida pelo governo Ibaneis, onde o transporte individual motorizado continua sendo priorizado.

O transporte público é um dos itens que mais pesa no orçamento das famílias de baixa renda, que muitas vezes não conseguem procurar emprego por não terem condições de pagar a tarifa. Além de pesar mais nas costas dos trabalhadores informais em tempos de desemprego. Na zona rural em Brasília, por exemplo, mesmo que seja circular interno, a tarifa é a mais alta, R$ 5,50, sem fiscalização por parte do poder público, que deixa todo o sistema por conta das empresas de transporte. Não há transparência com relação à composição tarifária, o valor da tarifa técnica é dado sem que a população acompanhe ou tenha conhecimento de como é feito o seu cálculo.

O Conselho do Transporte Público Coletivo do DF existe, mas sem poder, pois o aumento foi apresentado aos conselheiros dias antes da implantação e, mesmo com voto contrário, foi imposto à população. Então, nem mesmo um conselho pouco representativo tem voz de fato. Não há espaço de participação para a população que utiliza o TPU diariamente.

Seguimos com tarifas altas, qualidade baixa, população desassistida, ampliação de vantagens para a parte da população com maiores rendas e vida dura para quem tem menos, como sempre, aprofundando ainda mais as desigualdades gritantes.

Pouco divulgada, Cúpula dos Povos chilena privilegiou o diálogo com o contexto político local

Entre os dias 2 e 8 de dezembro aconteceu, em Santiago, Chile, a Cúpula dos Povos, evento anual promovido por movimentos sociais e representantes da sociedade civil global como um contraponto à Conferência das Nações Unidas sobre o Clima (UNFCC), onde atuam os governos signatários do Tratado de Paris sobre o Clima, assinado em 2015.

Também conhecida como Conferência das Partes, ou COP, a edição de 2019 foi, desde o início, marcada por uma série de revezes e, finalmente, entrou para a história pela incapacidade das delegações presentes em fecharem acordo sobre um dos pontos mais polêmicos e centrais à arquitetura da governança climática.

Já a Cúpula chilena ficou marcada por intensos protestos e graves denúncias de violações de direitos humanos.

Idas e vindas da COP 25

A Conferência do Clima da ONU discute a crise climática e busca engajar os países no combate ao aquecimento global. Trata-se de um fórum no qual os países se reúnem para discutir medidas de adaptação e mitigação frente às ameaças trazidas pela elevação das temperaturas no planeta.

A 25ª edição da conferência teve uma execução conturbada. Em 2018, logo após as eleições, o presidente Jair Bolsonaro declarou que o Brasil não presidiria nem sediaria, como fora previsto em edições passadas, o evento. Em novembro daquele ano, o governo brasileiro iniciou negociação com o chileno para que o país vizinho assumisse a Conferência. Um mês depois, a decisão foi tornada pública, em um contexto de reconfiguração da aliança continental dos governos de direita e crise dos progressismos latino-americanos.

No entanto, em 31 de outubro de 2019, a praticamente um mês da data prevista para o início da COP, a explosão de uma revolta popular no Chile impôs novo recuo para a realização do evento. Alegando questões de segurança, o Presidente do Chile, Sebastián Piñera,declarou incapacidade para sediar a Conferência em seu país.

Considerou-se, então, momentaneamente, transferir a COP para Bonn, na Alemanha, cidade-sede do secretariado da UNFCCC e onde ocorrem as reuniões preparatórias para o encontro anual. A medida, no entanto, não foi necessária. Uma rápida movimentação do primeiro-ministro da Espanha, Pedro Sanchez, em articulação com o presidente chileno, alterou, mais uma vez o cenário. Com o aval do secretariado da UNFCCC, Madrid foi declarada cidade-sede da Conferência, porém sem reclamar a sua presidência. Esta continuou com Chile, num ato atípico para a história das COP.

O impacto da transferência para a sociedade civil

A Cúpula dos Povos reúne movimentos sociais e ONGs de distintas partes do mundo. Por isso, este pode ser considerado um momento importante para a formação política e intercâmbio de experiências entre as organizações. A sua realização mobiliza grandes esforços tanto para garantir a infraestrutura do evento quanto para assegurar a presença dos participantes no país-sede, onde se promove um conjunto variado de atividades entre debates, intervenções públicas e ações de incidência, além de uma marcha que tem o objetivo de compartilhar com a sociedade o resultado dos dias anteriores de trabalho.

Levando-se em conta o contexto político, optou-se pela realização de duas Cúpulas dos Povos: Uma no Chile, em caráter de solidariedade à mobilização social em curso no país, e outra, em Madrid, cujo objetivo seria acompanhar mais de perto as negociações oficiais e pressionar os governos no sentido da justiça socioambiental.

O resultado desta divisão foi a invisibilidade do primeiro processo, além do esvaziamento de ambas as Cúpulas, na comparação com anos anteriores. As agendas apertadas de final de ano e os altos custos para remarcação de passagens aéreas e hospedagem, reduziram a participação da sociedade civil no evento e levaram ao cancelamento de muitas das atividades previstas.

Para o que ficou de pé, foram realizados debates de alto nível, obtendo-se, ainda, avanços relevantes no que se refere à articulação da sociedade civil em nível global e, particularmente, à divulgação das denuncias relativas a conflitos por terra, ataques a etnias indígenas e a grandes empreendimentos em áreas de florestas preservadas. De modo geral, a democracia e a redução do espaço democrático para a atuação da sociedade civil também foi um assunto de destaque.

Cúpula no/do Chile

Na data de início da Cúpula, o Chile entrava na sua sétima semana de protestos, totalizando quase 50 dias de ocupação das ruas da capital Santiago. A desaprovação do presidente chegou a 84% e o apoio às mobilizações variava, a depender da empresa de pesquisas consultada, entre 70 e 90%. A cidade vivia um clima de entusiasmo, que levou a uma atmosfera amena, de gentileza, solidariedade e esperança, em que pese a força da indignação que pairava no ar.

As reivindicações dos manifestantes envolviam, concretamente, o sistema privado de aposentadorias, educação e saúde, expressando-se, ainda, de modo difuso como descrença em relação à política institucional e aos políticos profissionais. Corria as ruas o burburinho de que o modelo para um projeto neoliberal latino-americano havia ruído.

Ao longo das mobilizações, Piñera adotou medidas para contornar a insatisfação popular. As ruas não cederam. Os chilenos seguiram seu cronograma de manifestações diárias. Finalmente, o presidente abriu o sistema político chileno a uma Assembleia Constituinte. Esta agenda foi amplamente aceita pela população, que passou a se organizar para monitorar e incidir sobre o processo Constituinte.

Neste ponto incidiu a Cúpula. A intensidade do cenário local tornou impossível resistir ao enfoque no processo político chileno, embora esta já fosse uma tendência observada ao longo da preparação do encontro. Assim, a Cúpula acabou se tornando um espaço (riquíssimo) para o compartilhamento das experiências regionais, bem ou malsucedidas, em relação a constituintes recentes, como nos casos da Bolívia, do Equador e da Venezuela.

Neste sentido, um aspecto trazido pelos debates durante a Cúpula foi a responsabilidade política que, agora, cai sobre os ombros da sociedade chilena. Isto porque, o processo Constituinte deflagrado no país será o primeiro após o ciclo progressista, dos governos de centro-esquerda na região, e acontece num cenário de ascensão da extrema direita no mundo.

Como produzir uma Constituição cidadã, capaz de contemplar os direitos dos povos e da natureza, é um resumo possível para as discussões ocorridas no âmbito do encontro. Mais do que um evento que aconteceu no Chile, a Cúpula dos Povos foi plenamente apropriada pelos chilenos e posta a serviço das preocupações políticas locais.

Aqui, outro aprendizado: prevaleceu o olhar enraizado no território para o debate climático, a partir da vida e da experiência dos sujeitos políticos, o que favoreceu uma abordagem transversal dos temas debatidos do local ao global.

Ainda naquela semana, deputados chilenos, com apoio da oposição de esquerda, aprovaram um projeto de lei que criminaliza os protestos. No dia 13 de dezembro, a ONU divulgou relatório que confirmou graves denúncias sobre violações de direitos humanos – incluindo mortes, estupros e tortura de manifestantes – sob comando do governo. O relatório foi divulgado em meio a discussões dos chefes de Estado na COP 25, em Madrid.

Em Madrid, organizações brasileiras tiveram destaque

Em Madrid, organizações brasileiras organizaram evento em defesa dos povos e comunidades tradicionais da Amazônia e pelo Bem Viver. APIB, Grupo Carta de Belém, FASE, Coletivo pelos Direitos no Brasil – Madrid e Maloka denunciaram os retrocessos socioambientais promovidos pela gestão Bolsonaro. Desmonte das políticas públicas para o setor, perseguição política, intensificação dos conflitos agrários e assassinatos de indígenas foram temas do debate.

Nesta edição do evento, a sociedade civil teve o seu acesso aos espaços de negociação restringido. No passado, as organizações sociais, assim como os empresários, compunham a delegação brasileira ao lado dos diplomatas e dos representantes do Executivo. Sob esta condição, embora os representantes não-governamentais não tivessem voto nos principais espaços de discussão, havia certa liberdade para circulação dentro das instalações do evento e, consequentemente, para o acompanhamento dos debates e articulações políticas.

Em 2019, o governo brasileiro não admitiu representantes não-governamentais como membros da sua delegação, restando-lhes o status de “observadores”, com acesso bem mais reduzido no que se refere aos espaços da Conferência. Além disso, do ponto de vista da transparência e da participação democrática, o governo brasileiro não se preocupou em garantir espaços para diálogo e repasses relativos à negociação.

Contudo, este cenário não pode ser considerado surpreendente, entre outras coisas, porque segue a quebra de uma rotina estabelecida de consultas entre os negociadores brasileiros e a sociedade civil. O próprio Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas foi enfraquecido nesta gestão. O atual governo ignora que a construção de um processo doméstico, prévio à realização da Conferência, ou seja, de concertação Estado-sociedade, foi um fator de projeção internacional do país e serviu à redução dos custos de internalização dos acordos externos, contribuindo para uma ação internacional robusta da diplomacia brasileira na agenda climática global.

O encerramento da COP 25

A COP 25 será lembrada como um ponto de inflexão na história da diplomacia brasileira nas COP. Talvez seja possível dizer que esta edição marca o pior desempenho da diplomacia nacional desde o início do evento, há 25 anos. A imprensa internacional fez questão de noticiar a impostura do governo brasileiro, que obstruiu a negociação para um, quase literal, recolhimento de dízimo com base nos resultados de mitigação do país.

Mesmo diante da patente piora dos resultados de mitigação e escandaloso aumento das queimadas e desmatamento, o governo chegou a Madrid para pressionar quanto à possibilidade de legalizar e expandir os negócios com créditos de carbono. No Tratado de Paris, essa possibilidade é regulada pelo Artigo 6º, particularmente, pelos incisos 6.2 e 6.4. Essas linhas regem a introdução de mecanismos de mercado para “abordagens cooperativas”, ou seja, offset, no jargão. Isso significa que se permite a transferência dos resultados de mitigação de um país para outro.

Quando a imprensa menciona a falência do processo negociador da COP 25, refere-se, em especial, ao fechamento da regulamentação do artigo 6º. Do ponto de vista dos movimentos sociais, a dificuldade para concluir um acordo em torno desse ponto pode ser visto por um viés positivo, ainda que por linhas tortas. Pois a posição histórica do campo crítico no debate climático é de rejeição à introdução dos mecanismos de mercado para offset propostos em Paris, conforme se pode ler na nota lançada pelo Grupo Carta de Belém. Esta era a postura historicamente defendida pelo Itamaraty até então.

Embora não tenha sido possível concluir a negociação pertinente ao funcionamento do Tratado de Paris, 2020 abre o período de vigência do novo acordo do clima. Além disso, o próximo ano inaugura uma nova lógica para a implementação das medidas de mitigação climática. O Tratado de Kyoto diferenciava as responsabilidades de mitigação entre países ricos (industrializados) e pobres (extrativistas). O Tratado de Paris, que substitui o anterior, não reconhece essas diferenças. Esta é uma das explicações para que a disputa, agora, envolve a definição dos parâmetros de operação do Artigo 6º.

O modo de funcionamento dos mecanismos de mercado previstos neste capítulo do acordo pode implicar responsabilização dos países mais pobres no que tange ao aquecimento global. O desafio para frente é, portanto, evitar que isso aconteça sem que grandes países poluidores do Sul Global (como Brasil, China e Índia) passem impunes das suas próprias responsabilidades, sobretudo, no que se refere aos efeitos socioambientais destrutivos da indústria extrativista.

Orçamento 2020: quais as previsões para o ano que chega?

O Congresso Nacional aprovou na última terça (17/12), a Lei Orçamentária Anual (LOA) 2020, que estabelece a previsão de receitas e a alocação de gastos do governo federal para o ano que vem. O Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) foi primeiramente entregue em agosto pelo Executivo para o Legislativo, que o aprovou após fazer alterações na forma de emendas. A lei agora vai para a sanção presidencial.

A LOA possui caráter autorizativo, isto é, nada garante que os recursos alocados serão de fato executados, porém, todo recurso gasto precisa ter o consentimento da lei. Baseado na análise do orçamento autorizado, de R$ 3,565 trilhões, faremos aqui seis previsões para 2020:

1. Será o fim da política de valorização do salário mínimo

O documento aprovado estima uma elevação de 2,32% do PIB para 2020, um pouco maior do que o esperado pelo mercado, de 2,25%.  Esse otimismo, porém, pode não se concretizar, considerando que na LOA do ano passado a previsão era de 2,50% e hoje se avalia que será em torno de 1%, ou seja, duas vezes e meia menor do que o alardeado pelo governo.

A previsão generosa com o PIB também não foi traduzida em aumento real do salário mínimo – que corresponde à renda de metade da população brasileira. Nos últimos 20 anos, o salário mínimo cresceu 250% em termos reais, devido principalmente às medidas legais que atrelaram o aumento do soldo ao crescimento do PIB, para além da inflação. A última lei de valorização do salário mínimo foi sancionada em 2011 , renovada em 2015 e expirada em 2019. Como não houve novas renovações por parte do Legislativo, o fim da obrigatoriedade significou o fim da política de aumento do salário real.

Dessa forma, o salário mínimo proposto na LOA 2020 é de R$ 1.031,00, uma correção de apenas 3,3%, que não resulta em ganho real.  Note-se, contudo, que o valor final será estipulado pelo Executivo no início de 2020*.

2. Saúde, habitação e turismo serão valorizados, mas a educação continuará sofrendo

O orçamento de R$ 3,565 trilhões aprovado apresenta adicional de R$ 7 bilhões comparado com o projeto de lei enviado em agosto pelo Executivo. Durante a votação no Congresso, o relator afirmou que os parlamentares conseguiram aumentar os recursos para áreas como saúde e educação.

Com efeito, a análise dos números revela que a saúde foi a área mais favorecida, pois o Ministério da Saúde teve recursos adicionais da ordem de R$ 5,1 bilhões. Os aumentos beneficiam principalmente os serviços de atenção básica e assistência hospitalar e ambulatorial. Houve ainda alocação complementar considerável no Ministério do Turismo, de 379%, com as verbas direcionadas, principalmente, para obras de infraestrutura. Por fim, o Fundo de Desenvolvimento Social, que financia o programa Minha Casa Minha Vida, viu seu orçamento crescer em R$ 188,5 bilhões.

O caso da educação, porém, é menos animador. O incremento autorizado pelo Congresso em relação ao encaminhado pelo Executivo foi de apenas R$ 700 milhões para uma área considerada estratégica para o país. Além disso, o aumento orçamentário concedido pelo Legislativo não compensa o elevado corte proposto pelo Executivo para o ano que vem, quando comparamos com os gastos autorizados para este ano. Em 2018, o orçamento aprovado pelo Legislativo foi de R$ 122,9 bilhões, quase R$ 20 bilhões a mais que o orçamento de R$ 102,9 bilhões que teremos para 2020.

3. Investimento do governo vai subir, mas as estatais continuarão em apuros

No caso de investimentos dos órgãos públicos, o orçamento de 2020 aprovado pelo Congresso autoriza gastos de R$ 40,5 bilhões, maior que os R$ 22,5 bilhões previstos no PLOA encaminhado em agosto pelo Executivo. Esse aumento é considerado positivo pelos economistas, pois os investimentos públicos são gastos governamentais que possuem grandes efeitos multiplicadores, impulsionando o investimento privado e o crescimento econômico.

O cenário para os investimentos das estatais, porém, vai na direção oposta, com o processo de sucateamento proposto pelo Executivo. Não houve alteração no orçamento para as empresas controladas pelo Estado, que tiveram os  cortes de 9,6% no orçamento do BNDES, 30,5% no orçamento dos Correios e 63% no orçamento da Infraero mantidos.

4. A PEC Emergencial tem grandes chances de ser aprovada no Congresso

Como vimos anteriormente, o Congresso autorizou aumento de despesas em algumas áreas do governo, como saúde e investimentos. A LOA ampliou as chamadas despesas discricionárias (sobre as quais o governo tem liberdade para decidir) em quase todos os ministérios. Para fechar as contas, os parlamentares elevaram as estimativas de receita ao mesmo tempo em que diminuíram outras despesas. No que tange às fontes de financiamento, aumentou-se a previsão de receitas da ordem de R$ 7 bilhões, relacionadas ao pagamento de dividendos à União.

Em relação às despesas, a diminuição dos gastos deve-se à aposta na aprovação da PEC Emergencial, um dos projetos de Emenda à Constituição recentemente enviada pelo Executivo ao Senado. A referida PEC prevê medidas para reduzir despesas obrigatórias, e sua aprovação, segundo o relatório da LOA, levará a uma economia de R$ 6 bilhões aos cofres públicos. Essa PEC propõe a redução da jornada de trabalho em até 25% para os servidores públicos, com diminuição proporcional das remunerações, nos anos em que a União descumprir a Regra de Ouro – que é o cenário projetado para o ano que vem. Dada a incorporação do impacto dessa PEC na redução dos gastos com pessoal da presente LOA, é possível concluir que a maioria dos deputados está disposta a votar a favor dessa proposta de Emenda Constitucional.

5. O Bolsa Família está assegurado, mas a previdência rural continuará dependente de nova aprovação do Legislativo

Na análise realizada pelo Inesc sobre o PLOA 2020, explicamos o que é crédito suplementar e a dinâmica política que ele envolve, basicamente uma escolha entre qual recurso está garantido na LOA e qual terá que ser aprovado pelo Congresso novamente em 2020. A LOA, votada pelo Congresso esta semana, prevê despesas no montante de R$ 343,6 bilhões que estão condicionadas à aprovação de crédito suplementar, uma redução quando comparado ao valor proposto pelo Executivo no PLOA.

No projeto encaminhado pelo governo Bolsonaro em agosto, cerca de um terço do programa Bolsa Família estava enquadrado como crédito suplementar. O Legislativo, porém, mudou essa realidade, ao garantir na LOA o orçamento para todo o programa. A Previdência Rural, porém, não teve a mesma sorte: enquanto apenas 8% dos benefícios previdenciários urbanos estarão condicionados, 45% dos benefícios previdenciários rurais vão requer a aprovação do Congresso.

6. Vale a pena lutar pelo orçamento, mas será necessário monitorar sua execução

O Plano Plurianual (PPA) 2020-2023, aprovado pelo Congresso Nacional em dezembro, foi um grande retrocesso em termos de transparência do gasto governamental. Como a análise do Inesc apontou,  programas que detalhavam os gastos da União foram eliminados na proposta enviada pelo Executivo, principalmente nas áreas de direitos humanos e socioambiental.

Graças às ações de incidência da sociedade civil no Legislativo, foram introduzidos ao PPA 2020-2023 os programas “Prevenção e Controle do Desmatamento e dos Incêndios Florestais nos Biomas” e “Proteção e Promoção dos Direitos dos Povos Indígenas”. A partir desses programas, será possível acompanhar a execução orçamentária para essas duas importantes pautas nos próximos quatro anos. Serão alocados, em 2020, R$ 134,1 milhões e R$ 73,3 milhões para cada programa, respectivamente. Porém, em um cenário de desmantelamento dos órgãos públicos e de descaso do Executivo para a agenda socioambiental, a chance dos recursos previstos não serem gastos é muito grande.

Ainda que a LOA aprovada esta semana tenha autorizado aumento de despesas em áreas essenciais, como a da saúde, a execução dos gastos não está garantida. Além disso, a Lei não corrigiu problemas de fundo, relacionadas à desigualdade social brasileira e à falta de vontade do governo em priorizar no orçamento pautas importantes para a garantia de direitos humanos, como mostramos em análises anteriores. Cabe a nós, sociedade civil, monitorar e pressionar para que 2020 não seja tão desastroso quanto o ano que está acabando.

*Atualização: o presidente Jair Bolsonaro sancionou em 31/12/2019 o salário mínimo no valor de R$ 1.039, um pouco maior do que o previsto na LOA. Ainda sim, o reajuste não representa ganho real em relação ao soldo anterior, que era de R$ 998.

Falta de transparência e prestação de contas dos benefícios fiscais: um problema latino-americano

A América Latina gasta, em média, entre 10% e 20% da sua arrecadação e 4% do PIB por ano na concessão de benefícios fiscais. Eles são isenções, incentivos, deduções e créditos tributários que reduzem a quantidade de impostos pagos por pessoas físicas ou jurídicas ao governo.

Conhecidos na literatura especializada como gastos tributários por serem de fato gastos indiretos do governo realizados pela política tributária, os benefícios podem ser ferramentas para promoção de investimentos, empregos e crescimento econômico. Porém, o mais recente estudo publicado pelo International Budget Partnership (IBP) chega à conclusão de que hoje, apesar dos países gastarem bilhões de dólares com essa política, a sociedade não tem como saber se os ganhos socioeconômicos prometidos estão se efetivando na região, devido à falta de transparência e prestação de contas dos gastos tributários.

Projeto Lateral

Nos últimos anos, um grupo de organizações da sociedade civil latino-americana representando oito países da região, facilitado pelo IBP, desenvolveu  um projeto para promover pesquisa, incidência e aprender sobre gastos tributárias na América Latina. O grupo, intitulado Lateral, publicou estudos sobre os efeitos dos gastos sobre a desigualdade, além de um manual para ajudar a sociedade civil a pesquisar sobre gastos tributários.

Em seu último estudo, “Contabilizados, mas não responsabilizados: transparência nos gastos tributários na América Latina”, de autoria de Paolo de Renzio, as organizações compararam a transparência e prestação de contas nos informes sobre gastos tributários dos países da região, com objetivo de descobrir e comparar o que é possível saber sobre os incentivos outorgados pelos governos latino-americanos.

As principais conclusões do estudo foram sistematizadas nos infográficos que estão neste texto, como este:

Do ponto de vista contábil, a apresentação de informações sobre despesas tributárias na América Latina é razoável, pois quase todos os governos publicam um relatório anual que inclui dados sobre quais os gastos tributárias existentes e quanto eles representam. A cobertura dos relatórios e o nível de detalhes que eles incluem, porém, variam muito na região. Os países com relatórios mais completos, de acordo com uma série de critérios estabelecidos no estudo, são o Brasil e a Bolívia, enquanto países como Colômbia e Costa Rica ainda possuem um caminho maior a percorrer.

Contudo, do ponto de vista da prestação de contas, todos os países da região deixam a desejar. Os relatórios permanecem, em grande parte, silenciosos sobre vários aspectos-chave dos gastos tributários, incluindo objetivos políticos e medições de desempenho, e não incluem informações sobre os beneficiários e o impacto. Além disso, possuem poucos detalhes sobre os processos por meio dos quais são tomadas decisões em relação à introdução, revisão e avaliação dos gastos tributários.

Vamos, por exemplo, pensar num incentivo fiscal para o setor de construção civil. O incentivo pode impulsionar a construção de infraestrutura no país e, assim, gerar desenvolvimento econômico. Em todos os países comparados nesse estudo, porém, não podemos saber quais são as empresas de construção civil que estão se beneficiando e quanto estão deixando de pagar de impostos. Não existe uma avaliação desse incentivo com o objetivo de entender se houve de fato o incremento na infraestrutura do país. Também não sabemos qual foi o processo de decisão sobre a criação desse incentivo e se não haveriam medidas mais eficazes para gerar o resultado esperado, como o investimento direto do governo em infraestrutura. Na maioria dos países da região, também não sabemos o prazo de vigência do incentivo, podendo ficar décadas sem um processo de revisão desse gasto indireto.

Essa falta de transparência e prestação de contas se configura como um privilégio, pois os gastos governamentais diretos, as despesas orçamentárias, possuem processo de revisão, participação e divulgação de informações muito mais completo e transparente.

E o Brasil?

Como destacado anteriormente, o Brasil possui um dos melhores relatórios de gastos tributários da região, o Demonstrativo de Gastos Tributários, divulgado anualmente pela Receita Federal. A cada ano, a União gasta cerca de 20% de sua arrecadação e 4% do seu PIB com Gastos Tributários. A estimativa de gasto para 2020 é de R$ 326 bilhões de reais, um valor muito próximo ao chamado “rombo da previdência social”. Os benefícios abrangem diversos setores, desde produtores de bebidas açucaradas, como os refrigerantes, até a produção de combustíveis fósseis, privilegiando grandes multinacionais que atuam no país.

Apesar de dispor de relativamente bons relatórios de gastos tributários, o Brasil possui alguns dos mesmos problemas do resto da região no que diz respeito à transparência e à prestação de contas. O governo concede incentivos fiscais com a justificativa de que eles podem estimular investimentos, gerar empregos e contribuir com o crescimento da economia. Porém, não avalia se os benefícios estão realmente promovendo o desenvolvimento econômico e os ganhos sociais que prometem. Além disso, não sabemos quem recebe esses incentivos e nem o valor, pois estão protegidos por sigilo fiscal.

Diante disso, o Inesc, além de participar do projeto Lateral, anima a campanha #SóAcreditoVendo, pela transparência dos Gastos Tributários, além de apoiar a aprovação do PLP 162/2019, que permitirá a divulgação das empresas beneficiárias dos incentivos fiscais e os montantes de impostos que cada beneficiário está deixando de pagar. Sem transparência, como nós, cidadãos, podemos avaliar se esse dinheiro está beneficiando a sociedade brasileira de forma justa e democrática?

A educação para os direitos humanos desapareceu

A Câmara dos Deputados vota amanhã (10/12) o relatório da Comissão Externa criada para acompanhar o trabalho de gestão e planejamento do Ministério da Educação (MEC). O documento é uma extensa e importante análise, que vai desde a execução orçamentária, até os cargos de direção (DAS 5 e 6), apresentando questões graves sobre o descaso com a política de educação por parte do atual governo, e proporcionando informações que o próprio Poder Executivo não disponibiliza.

Ao apresentar o relatório, o Poder Legislativo realiza um dos seus compromissos de fiscalização das ações governamentais.

Nos debruçamos sobre o documento e destacamos, a seguir, alguns pontos que merecem atenção por serem ilustrativos da ineficiência e retrocesso da atual gestão da pasta, comandado pelo ministro Abraham Weintraub.

Fim da educação para a diversidade

O fechamento da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi), substituída pela Secretaria de Alfabetização (Sealf) é um exemplo, pois a nova secretaria não assumiu todas as ações da antiga e não realizou o que anunciou, que era a tal “alfabetização acima de tudo”, já que as metas do Plano Nacional de Educação (PNE) para alfabetização total e alfabetização funcional não se moveram.

Além de não combater o analfabetismo tal qual a promessa feita, a Sealf não atuou nas áreas de educação indígena, quilombola, jovens e adultos, ribeirinhos, e educação do campo como a Secadi atuava. Essas pautas foram diluídas entre várias secretarias, que ao serem pulverizadas, enfraqueceram. A educação para direitos humanos simplesmente desapareceu.

As duas únicas dotações orçamentárias dedicadas à Educação de Jovens e Adultos tiveram execução de menos de 1% até novembro de 2019, o que indica a descontinuidade das políticas destinadas para este fim. A Política Nacional de Alfabetização proposta por esta gestão estabelece a prioridade da alfabetização indígena por língua portuguesa, contradizendo frontalmente o Estatuto do Índio que determina que ―a alfabetização dos índios far-se-á na língua do grupo a que pertençam e em português, salvaguardado o uso da primeira.

A Secretaria de Articulação com os Sistemas de Ensino (Sase), criada em 2011 depois da Conferência Nacional de Educação (Conae), para ser a guardiã do PNE, também foi extinta. Além do PNE, a Sase lideraria o acompanhamento de estados e municípios, proporcionando a efetivação do Sistema Nacional de Educação, preconizado na Constituição Federal e reforçado pelo PNE, que indicava que até 2016 o sistema precisava ser criado. Ele não foi criado a tempo e agora, provavelmente, não será criado na vigência desse atual Plano, especialmente com o fim da Sase.

Escolas cívico-militares

Ao mesmo tempo em que não está cumprindo com os próprios compromissos com relação à alfabetização, o Ministério já ampliou várias vezes o número de escolas que poderão se tornar “cívico-militares”, no entanto, sem critério algum, ou evidências de que os resultados poderão ser efetivos. E, principalmente, sem participação das comunidades escolares neste processo.

A proposta não é transparente e não diz de fato a que veio, já que separa o pedagógico do disciplinar, criando uma aberração. Além disso, como o relatório reforça, o projeto não está no Plano Nacional de Educação, ao qual a política educacional deveria estar submetida.

No que tange ao planejamento desta gestão até o presente momento nada foi feito e está adiado para fevereiro de 2020, de acordo com os relatores, por estar totalmente submetido ao calendário do Ministério da Economia. Há apenas alguns planos de trabalho pouco consistentes, sem metas, distribuição de responsabilidades, prazos etc. Até porque, houve danças de cargos ao longo de todo ano, com pouca qualidade nas escolhas, muita gente sem experiência na área.

PNE

O PNE possui 20 metas, destas, apenas 4 foram atendidas parcialmente, e desde a sua vigência (2014), 4 não foram descumpridas. Mais grave é a política de austeridade, com o teto dos gastos e agora a PEC do Pacto Federativo, que tornarão impossível o alcance da meta de financiamento ampliado e de criação do Custo Aluno Qualidade (CAQ), que lista os insumos necessários para o cálculo do valor aluno/ano para o Fundeb.

Outra questão relevante destacada no relatório é a dificuldade de mensurar algumas metas do PNE, pois não há dados para vários indicadores, tais como: porcentagem de redes municipais e estaduais com planos de carreira aprovados; porcentagens de docentes do ensino médio com curso superior etc. Metas relacionadas à educação infantil, ensino médio, alfabetização, educação superior, educação integral, dentre outras, ficaram bem distantes do previsto até 2019. No entanto, os projetos apresentados pela atual gestão, nada tem a ver com estas metas do PNE, mostrando total desinteresse por uma Lei aprovada pelo Congresso e respaldada pela população.

Orçamento

Com relação ao previsto no Plano Plurianual 2020/2023 em tramitação no Congresso e prestes a ser votado, não há indícios sobre a correlação do que está proposto com o PNE, que deveria ser o norteador da política, já que vigora até 2024. Além disso, metas e indicadores são insuficientes para um monitoramento verdadeiro da política, seja por parte do Legislativo, seja por parte da população.

A Educação foi a área mais afetada pelo contingenciamento orçamentário. E mesmo que tenha acontecido a liberação de recursos, as políticas foram prejudicadas, atrasadas, descontinuadas. As universidades, por exemplo, foram bastante lesadas, pois o ensino superior detém a maior parte dos recursos discricionários do MEC, sujeitos ao bloqueio.

Mesmo com o desbloqueio, cerca de R$ 1bilhão de reais foram cortados definitivamente, conforme aventado em artigo publicado pelo Inesc em outubro. E além do contingenciamento, em várias áreas e programas a execução foi bastante lenta. O relatório informa que o Pronatec teve apenas 1% do orçamento empenhado e o Programa Dinheiro Direito na Escola 24%. Das 4 mil creches prometidas até 2022, praticamente nada foi realizado no primeiro ano.

O relatório da Câmara dos Deputados é um importante documento de denúncia da não política de educação executada por esta atual gestão, que tem atacado cotidianamente todas as áreas, especialmente, as universidades, alvos de declarações esdrúxulas, falsas e de tentativa de desmonte por parte do ministro totalmente inábil para o cargo que ocupa.

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O que muda com o novo financiamento da atenção básica à saúde?

Primeiro, o que é atenção básica?

A atenção básica à Saúde (ABS) ou atenção primária é conhecida como a porta de entrada dos sistemas de saúde. Ou seja, é o atendimento inicial, o primeiro nível de atenção. Ela oferece desde a promoção da saúde (por exemplo, orientações para uma melhor alimentação) e prevenção (como vacinação e planejamento familiar) até o tratamento de doenças agudas e infecciosas, bem como controle de doenças crônicas, cuidados paliativos e reabilitação. A ABS organiza o fluxo dos serviços nas redes de atenção à saúde, dos mais simples aos mais complexos.

Na sua essência, a atenção básica cuida das pessoas, em vez de apenas tratar doenças ou condições específicas. Ela é baseada na comunidade, ou seja, considera outros determinantes da saúde, como o território e as condições de moradia e trabalho. É o famoso postinho de saúde do bairro, a Unidade Básica de Saúde (UBS). Ela pode atender mais de 80% das necessidades de saúde de um indivíduo ao longo de sua vida.

Como ela era financiada?

O financiamento era composto por um valor fixo (PAB Fixo), corrigido por alguns parâmetros (PIB per capita, percentual da população com plano de saúde, percentual da população com Bolsa Família, percentual da população em extrema pobreza e densidade demográfica), multiplicado por toda a população do município. Além dele, era pago um valor variável (PAB Variável) para estimular a implementação e expansão da Estratégia de Saúde da Família e outros programas, por exemplo, as Equipes de Saúde da Família, Saúde Bucal e Consultório na Rua, Agentes Comunitários de Saúde, dentre outros.

O que muda com a nova portaria?

O novo modelo publicado na portaria 2.979/19, que começa a valer a partir de 2020, busca estimular o alcance de resultados e é composto por capitação ponderada, pagamento por desempenho e incentivo para ações estratégicas. Ou seja, o financiamento será feito a partir do número de usuários cadastrados nas equipes de saúde, com foco nas pessoas em situação de vulnerabilidade social (ao exemplo das que recebem auxílio financeiro do Programa Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada ou benefício previdenciário no valor máximo de dois salários mínimos), pagamento baseado no alcance de indicadores e adesão a projetos do governo federal, como Saúde na Hora, de informatização, dentre outros.

Quais os problemas do novo modelo?

Considerar o conjunto da população é importante para se planejar e implementar estratégias que beneficiam a todas as pessoas. Limitar o financiamento às pessoas cadastradas pode na verdade diminuir a ação do SUS e sufocar ainda mais um sistema que já conta com menos recursos que o necessário, o chamado subfinanciamento crônico.

A restrição de recursos pode prejudicar a ação comunitária, o planejamento territorial e a vigilância em saúde, ações que valem para a população como um todo e vão muito além só das pessoas cadastradas. Como a maior parte das pessoas que usa o SUS é de baixa renda, a proposta é de um SUS para os pobres, ao invés de um SUS para todos.

Com a nova portaria, algumas cidades vão ficar sem mais da metade dos recursos, uma soma que ultrapassa R$ 400 mil. Elas irão perder a única transferência governamental em saúde de base populacional atualmente existente e que pode ser aplicada com autonomia – e isso certamente é um risco para a sustentabilidade financeira do SUS municipal.

E isto é ruim, pois em vez de priorizar estas pessoas, na verdade o que está sendo feito, pouco a pouco, é o desmonte do sistema, considerando que existem diversas medidas em curso que vem asfixiando o SUS. Por exemplo, a Emenda Constitucional 95 de 2016, conhecida como Teto dos Gatos, estabeleceu um limite nas despesas do governo federal, inclusive com saúde. Agora está em discussão no Congresso a Proposta de Emenda Constitucional do Pacto Federativo que prevê a junção dos mínimos a serem aplicados em saúde e educação pelos municípios, gerando uma queda de braços entre estes dois direitos, ao invés de ampliar o recurso para ambos.

Além de outras mudanças na atenção básica: a Medida Provisória 890 ( 2019), aprovada na última semana, que cria o Médicos pelo Brasil, institui uma agência de direito privado, a Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (Adaps), para realizar serviços de responsabilidade do Estado com orçamento público e pode realizar parcerias com a iniciativa privada. Ela teria em seu conselho deliberativo um representante das empresas privadas da saúde, e não do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que conta com a participação dos usuários e dos trabalhadores do setor. É o governo implementando cada vez mais uma lógica de privatização, ao invés do fortalecimento do serviço público. Quer dizer, é dinheiro indo para empresários e não para população, sem a comprovação de que o serviço privado tem melhor desempenho que o público.

O programa Médicos pelo Brasil, substituto do Mais Médicos, prevê ainda contratar médicos em regime CLT, abrindo mão da exigência de residência médica, e focando a estratégia apenas neste profissional e não em uma equipe multidisciplinar. Tampouco prevê a melhoria e construção de UBS. Ainda, o Ministério lançou uma consulta pública para estipular uma carteira de serviços da atenção primária, que, apesar de poder padronizar os serviços entre as diferentes UBS e aumentar a transparência para população, neste cenário de corte de recursos, pode na verdade restringir o serviço, ao invés de ampliá-lo.

Adotar a lógica do desempenho e produtividade, também importada da iniciativa privada, é complicado, pois a saúde não é – ou não deveria ser – mercadoria. Por exemplo, um maior número de atendimentos, mas feitos às pressas, não significa um melhor cuidado aos pacientes. Da mesma forma, cadastrar um número grande de pessoas sem se preocupar com suas reais necessidades em saúde pode comprometer a efetividade da estratégia adotada para aquele território.

Outro problema é a falta de transparência e de participação popular. A apresentação do novo modelo foi feita por slides, sem um documento robusto de embasamento, ou sem detalhar pontos importantes, como quais indicadores serão considerados. Além disto, apesar de ter sido aprovado na Comissão Intergestores Tripartite (CIT), composta por representantes do Ministério da Saúde e de secretários de saúde estaduais e municipais, não passou pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS). A proposta foi apresentada em julho, a portaria publicada em novembro e passa a valer em janeiro de 2020.

Em suma, os princípios do SUS, em especial a universalidade e a participação popular, e sua própria existência enquanto sistema público, são colocados em risco nesse novo modelo.

E por que defender o SUS e seus princípios é importante?

O SUS tem vários problemas, pois não é tarefa fácil criar um sistema gratuito e para todos em um país grande e diverso como é o Brasil. Mas nenhum provedor privado de saúde fornece tantos serviços quanto o SUS, que vai desde a vigilância sanitária, para garantir que a comida do restaurante seja feita com higiene, até cirurgias complexas, como transplantes cardíacos, passando pela produção de medicamentos, gestão de hospitais e unidades de pronto atendimento (UPAs) e oferta de tratamentos de alto custo.

Certamente, há muito a ser melhorado, mas mesmo com uma histórica falta de recursos, o SUS conseguiu resultados importantes, como redução da mortalidade infantil ou o controle e a eliminação de doenças por meio da vacinação. Além disso, por mais que tenha problemas como filas ou demora no atendimento ou marcação de exames e consultas, ele é um sistema ao qual todos os brasileiros podem recorrer, sejam eles pobres ou não, ao contrário do que acontece em outros países, em que os gastos com saúde levam famílias a falência.

O melhor caminho, então, seria aprimorar o SUS – e não limitar ainda mais seu financiamento. A ideia de uma cesta mínima de serviços apenas para populações mais vulneráveis é o que prega a Cobertura Universal de Saúde. Essa corrente é apoiada por organismos internacionais como a Organização Mundial da Saúde e o Banco Mundial. Mas, para nós brasileiros, na prática, essa cobertura restrita significa um retrocesso em relação ao sistema público universal, e em relação ao pacto social na saúde que acordamos na Constituição Federal de 1988.

Usa-se mais uma vez o argumento da escassez de recursos e a lógica da privatização, em vez de se promover o uso máximo de recursos e a realização progressiva de direitos bem como a participação popular, pilares importantes para o uso do orçamento público, registrados na metodologia Orçamento & Direitos do Inesc.

Essa lógica levanta soluções como os planos de saúde acessíveis ou populares. Eles podem até seduzir pela marcação de consulta imediata ou seu preço baixo. Mas se o paciente precisar de respostas mais complexas, por exemplo, uma cirurgia ou um exame mais elaborado, ele fica sem assistência. E com um SUS pequeno e limitado, no fundo, quem não tiver dinheiro não terá para onde correr.

O que muda no financiamento da educação com o novo pacto federativo?

Está ocorrendo o desmonte das políticas públicas garantidoras de direitos, em um ataque neoliberal ao Estado, como se pode constatar desde a aprovação da Emenda Constitucional 95, conhecida como “teto dos gastos” e, mais recentemente, com a Proposta de Emenda Constitucional nomeada de PEC do Pacto Federativo.  Além de cotidianas manifestações públicas de gestores governamentais contra os direitos humanos, a ciência e o pensamento crítico.

Com relação à política de educação é notória a intensidade do ataque: propostas como “escola sem partido”, em reação ao que chamam de “ideologia de gênero” e imposição de militarização de escolas são alguns dos exemplos mais famosos. No âmbito orçamentário, vieram ataques por meio dos contingenciamentos e retirada de recursos, como propõe o projeto Future-se, apresentado às universidades como panaceia, mas que é uma forma de permitir que organizações sociais passem a gerir universidades públicas, com recursos vindos do mercado. Outra evidência do desmonte na educação é a proposta de junção das agências de fomento Capes e CNPQ, que ficariam sob a responsabilidade direta da Presidência da República e não mais do MEC ou Ministério da Ciência e Tecnologia, criando uma enorme anomalia para o sistema.

O ataque mais recente veio da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 188/2019, chamada de PEC do pacto federativo, que, entre outras coisas, propõe a unificação dos orçamentos da saúde e da educação. Hoje, os estados destinam para a saúde pelo menos 12% da receita corrente líquida (soma de receitas tributárias, contribuições patrimoniais, industriais, agropecuárias e de serviços, transferências correntes, entre outras — menos o que fica para estados e municípios por determinação constitucional), e 25% para educação. No caso dos municípios, os percentuais são 15% e 25%, respectivamente. A PEC agrega os percentuais (40%) de forma que um prefeito poderá, por exemplo, aplicar 20% em saúde e os outros 20% em educação. A proposta provocará uma disputa de recursos entre as áreas, enfraquecendo-as.

Antes de analisar as consequências disso, vamos relembrar como chegamos ao atual quadro de políticas públicas na área da educação:

Linha do tempo da educação

Com a Constituição de 1988, a educação passou a ser um direito de todas as pessoas e dever do Estado, que foi obrigado a oferecer vagas desde a educação infantil, até o ensino médio, ou educação básica. Direito incorporado de forma progressiva, em 1988, no texto constitucional, ampliado com a Lei de Diretrizes de Bases da Educação em 1996 e, mais tarde, com a Emenda Constitucional 59 de 2009.

Para se ter a medida da importância do texto constitucional, que está sofrendo o maior ataque desde a sua aprovação, siga o fio abaixo sobre o direito à educação ao longo da história do Brasil.

1) Até 1930 o ensino que ia além da alfabetização era para poucos. A maior parte da população recebia aprendizagens apenas para o trabalho nas fábricas e no campo.

2) A partir de 1930, o que era responsabilidade apenas dos estados, passa a ter uma centralidade maior no governo federal, que criou o Ministério da Educação e Saúde Pública, com verbas específicas para essas áreas. Apesar do avanço, o ensino público e gratuito não atinge as massas trabalhadoras, que fica bem distante do que é oferecido às elites.

3) Na década de 1950, quase metade da população acima de 15 anos se declarava analfabeta e apenas 15% dos matriculados concluíam a 1ª série.

4) Durante a ditadura militar a educação foi voltada para a profissionalização e o produtivismo, sendo a escola um aparelho de cerceamento do pensamento e reforço das concepções dos militares no poder. O ensino de filosofia foi proibido e em seu lugar nasce a “moral e cívica”. Do mesmo modo, geografia e história foram substituídas por “estudos sociais”. A obrigatoriedade de repasse de verbas do âmbito federal para estados não é perene e os recursos vão escasseando, indo de 7,6% em 1970 para 5% em 1978.

5) A Constituição de 1988 (CF/88) trouxe a educação como direito social, não mais como assistencialismo do Estado. E, por pressão popular, especialmente dos movimentos feministas, a etapa da educação infantil (creche e pré-escola) foi reconhecida.

6) A CF/88, em suas disposições transitórias, obrigava que o Estado universalizasse o ensino e erradicasse o analfabetismo em 10 anos.

7) A partir daí vieram as leis infraconstitucionais que mudaram a realidade da educação brasileira: o Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação em 1996.

8) Na década de 1980, a taxa de analfabetismo (de acordo com o IBGE) era de 25,9%, hoje é de 6,8%.

Como se pode constatar, a partir da vigência da CF/1988, em termos educacionais, o país caminhou bastante, mesmo que com várias lacunas de qualidade ou de acesso com relação a raça e região, especialmente campo/cidade. Foi a partir daquele momento que se reconheceu até mesmo  as diferenças, como a importância da educação indígena, por exemplo, garantindo uma maior reflexão sobre a oferta de educação multifacetada.

Contudo, esse caminho nunca havia sofrido risco tão grande como agora, em seu conjunto, seja com relação aos modelos educacionais propostos, como aos recursos orçamentários destinados à política.

PEC do Pacto Federativo e disputa de orçamentos entre educação e saúde

A PEC do Pacto Federativo, além de propor a junção dos orçamentos, o que promoverá uma disputa entre áreas essenciais para a população, como são a saúde e a educação, abre flanco para a desvinculação dos recursos, ao flexibilizar a sua utilização.

Vejamos o exemplo do Salário-Educação

Hoje recolhido pela União e repassado para estados e municípios, de acordo com a proposta, o Salário-educação poderá ser integralmente repassado, não ficando nada na União, ou melhor, para o Fundo Nacional de Desenvolvimento do Ensino (FNDE). O Fundo é essencial para amenizar as desigualdades regionais, por meio de programas que são, em parte, financiados com recursos do salário-educação.

A saber, o Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), até 2018 distribuído para todos os municípios; o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), garantindo alimentação escolar balanceada e de boa qualidade; o Programa Nacional de Transporte Escolar (PNATE), que entra como complementar para os municípios que o acessam, com padrões mínimos de segurança e conforto para crianças e adolescentes; e o Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE), que visa ajudar escolas a resolver problemas estruturais, ou mesmo construírem quadras ou bibliotecas com esse recurso, sem burocracias, além de serem fiscalizados pelos conselhos escolares, garantindo participação na forma de utilização.

Até o final da primeira quinzena de novembro de 2019, o que havia sido executado, incluindo os restos a pagar, era um montante de R$ 6,07 bilhões, conforme mostra a tabela 1, que traz o orçamento desses programas administrados pelo FNDE, de maneira centralizada, garantindo tratamento equitativo entre os diferentes entes federados.

A promessa do Ministério da Economia com o pacto federativo é a de que estados e municípios teriam cerca de R$ 9 bilhões a mais em seus orçamentos. No entanto, quando se olha para a arrecadação dessa contribuição, os números não batem, conforme mostra o infográfico abaixo, pois o que ficou na União foi um total de R$ 6,9 bilhões. E o que se precisa é acabar com o teto dos gastos, não com o FNDE e suas importantes políticas para amenização das desigualdades regionais.

Uma das inovações da Constituição de 1988 foi prever que o orçamento público teria a função  de redução das desigualdades, princípio este que a PEC do Pacto Federativo quer extinguir. Com relação à educação básica, desde os primeiros meses desse governo os repasses complementares para políticas tais como ensino integral vêm minguando. E agora deixam clara a intenção de não mais contribuir financeiramente para garantir equidade. A proposta retira, ainda, a obrigatoriedade de o governo gerar vagas em escolas onde houver falta. O que diz a CF/88: que o governo é obrigado a investir prioritariamente na expansão de sua rede de ensino quando houver falta de vagas e cursos regulares da rede pública em uma localidade. No entanto, se a proposta vingar, essa obrigação será retirada, o que passa a ideia de que em caso de falta de vagas, os estudantes precisam resolver por conta própria. O governo alega que há possibilidade de acessar bolsas de estudo na rede privada. E talvez o que esteja por trás da medida seja o favorecimento da educação privada em detrimento da pública.

Outro agravante é que o relator da matéria, senador Márcio Bittar (MDB/AC) quer aprofundar ainda mais o desmonte orçamentário, pois diz que, por ser um “super liberal”, acrescentará ao orçamento da saúde e educação os gastos com aposentados e pensionistas, reduzindo significativamente os montantes destinados a estas políticas e aprofundando a crise que já está instalada.

Portanto, o que se avizinha é um retrocesso de mais de 30 anos nas políticas públicas garantidoras de direitos no país. A reforma da previdência e as alterações na CLT já foram aprovadas e, se confirmada a PEC do Pacto Federativo, será ladeira abaixo. É preciso muita mobilização para dificultar e impedir essa perda de direitos.

Leia também: Entenda como funciona o financiamento da Educação Básica no Brasil

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Como Roraima planeja enfrentar crise financeira e social?

Roraima tem estado cada vez mais nos holofotes, seja devido à imigração dos venezuelanos ou à intervenção federal que aconteceu no final de 2018. Mas como será que o atual governo do estado está se preparando para enfrentar os desafios?

O Inesc, em parceria com o Núcleo de Mulheres (Numur – RR) e o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), realizou um ciclo de três oficinas de formação, chamado Uma cidade com políticas públicas acolhe bem a todos/as! Orçamento Público & Direitos dos/as migrantes. A partir da metodologia Orçamento & Direitos, estimulamos a aliança entre lideranças migrantes e organizações da sociedade civil de Boa Vista, visando a incidência no orçamento público para a efetivação de políticas que acolham os/as migrantes – ao mesmo tempo em que se consolidem como um legado para a população roraimense.

Plano Plurianual, o PPA

Assim como o governo federal, os estados também estão discutindo seu Planos Plurianuais (PPA). O PPA define os programas e ações que o governo pretende desenvolver nos próximos quatro anos, neste caso, de 2020 a 2023. No âmbito federal, o PPA apresentado prioriza ricos, ignora racismo e sexismo, e não promove ações de combate às desigualdades sociais.

Ao contrário do seu aliado na presidência, a gestão do atual governador Antônio Denarium (PSL) não esvaziou completamente o PPA e manteve a imagem de participação social em sua construção. Mesmo assim, há muitas concepções parecidas nas duas esferas: o tom do PPA de RR é o da gestão eficiente, da ideia de um governo que funciona como empresa e de Roraima como “terra de investimentos”. Da mesma forma, embora a participação tenha acontecido por meio das audiências públicas e da consulta virtual, sendo inclusive muito exaltada nos documentos, ela parece ter sido meramente proforma, mantendo um verniz democrático que não se traduziu na inclusão das demandas populares no programa.

A dimensão de inclusão social no PPA 2020-2023 tem um orçamento previsto de mais de R$ 5 bilhões, o que representa um aumento de mais de 40% em relação ao anterior. As outras dimensões, de eficiência e transparência na gestão pública e de crescimento sustentável, contam com R$ 6 bilhões e R$ 900 milhões, respectivamente. O aumento de recurso para programas sociais significa uma priorização, na prática, da inclusão social? Selecionamos algumas políticas para um olhar mais aprofundado sobre o tema:

Migração venezuelana

No que tange à questão migratória, há várias menções no PPA à chegada dos venezuelanos/as, mas todas apontam para as dificuldades criadas pela situação. Porém, os migrantes venezuelanos também contribuem economicamente para o estado, por meio do seu trabalho – muitas vezes super explorado e precarizado – ou pelo aumento do consumo e, consequentemente, pagamento de impostos indiretos. Além disso, o estado aumentou sua arrecadação devido à migração:  recebeu mais recursos do Fundo de Participação dos Estados (FPE) e mostrou superávit do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS).

A despeito disso, no PPA existe apenas uma ação que cita os migrantes, a “Execução de Atividades na Área de Defesa dos Direitos dos Migrantes e Refugiados”, com previsão de R$ 66 mil e, destes, apenas R$ 1 mil são para 2020. Não há outra menção ou inclusão dos/as migrantes como público alvo de nenhuma outra política do novo PPA de Roraima

Essa ação está inclusa no programa Proteção Social Especial. Ele teve um grande aumento na previsão de recursos, de R$ 9 para R$ 14 milhões, concentrados em três ações: além da sobre os migrantes, de cofinanciamento de ações em parcerias com outros órgãos (não especifica quais) e de fortalecimento dos serviços de proteção especial. No PPA anterior, o programa era composto por cinco ações, sendo que três delas eram destinadas à construção, reforma e aparelhamento de unidades de atendimento. Essas três ações foram retiradas do novo PPA e é preciso saber se o recurso foi de fato investido, bem como o atual funcionamento e condições das Unidades em questão.

Já o Programa de Proteção Social Básica teve sua previsão orçamentária diminuída, saindo de pouco mais de R$ 7 milhões para R$ 4 milhões. Foram retiradas duas ações, de implementação de ações desportivas comunitárias e de inclusão produtiva de famílias em vulnerabilidade social. Esta última recebeu grande destaque em nossas oficinas, por sua especial importância no contexto do grande fluxo migratório. É importante frisar que a diminuição do orçamento previsto torna-se ainda mais grave já que novas ações foram incluídas, de forma que há mais demandas para uma quantia menor de recurso. As novas ações tratam do apoio à gestão de programas federais, como o Bolsa Família e o Criança Feliz.

Restaurantes Comunitários

Foi extinto do PPA o programa de segurança alimentar e nutricional. Duas ações deste programa foram incorporadas no programa de desenvolvimento social, com muito menos recurso previsto do que no PPA anterior. Nas oficinas do Inesc,  a demanda pela ativação dos restaurantes populares foi bastante levantada e registrada pelos participantes – migrantes e roraimenses – sendo solenemente ignorada, não estando prevista no novo PPA.

No programa de desenvolvimento social está inclusa também uma ação de promoção da igualdade e enfrentamento à violencia contra a mulher, que conta com quase R$ 660 mil no PPA 2020 -2023. Está previsto também mais de R$ 18 milhões para o gerenciamento da Casa da Mulher Brasileira. No PPA anterior, a política para mulheres constava do programa de gestão, e teve cerca de R$ 1 milhão de recursos. Bom sinal, caso as ações sejam de fato implementadas.

Governo prioriza encarceramento

No entanto, a ação que teve um aumento de R$ 86 milhões de reais foi a gestão do sistema penitenciário, mais que dobrando o valor previsto anteriormente, chegando a R$ 145 milhões de reais no PPA 2020-2023. Nas ações para a juventude, o fortalecimento da política para esse público tem previsto R$ 32 mil. Para o fortalecimento do sistema socioeducativo há previsão de mais de R$ 5 milhões. Ou seja, prioriza-se no orçamento o encarceramento, e menos ainda a proteção dos jovens.

Apesar de citar longamente a necessidade de investimento no desenvolvimento econômico de Roraima e a importância do estímulo ao mercado de trabalho, o programa de governo sobre emprego teve sua previsão orçamentária para os próximos anos drasticamente reduzida, caindo de cerca de R$37 milhões para R$3,5 milhões.

Assim, mesmo com o aumento do orçamento para programas sociais, grupos altamente vulneráveis continuam deixados de lado na programação orçamentária do estado para os próximos anos. Fruto das oficinas do Inesc sobre orçamento público, a sociedade civil roraimense se organizou para entregar suas demandas e proposições para a câmara legislativa.

Como o PPA tramita até o final do ano, esperamos que a participação popular seja respeitada, não só na construção do Plano, mas também na sua fase mais importante, que é a de aprovação.

Líderes do Brics ignoram desigualdade de gênero

A foto oficial dos presidentes dos Brics para a 11ª Cúpula do bloco, realizada em Brasília nos dias 13 e 14 de novembro, é emblemática do machismo que predomina em nossos países. Não que seja muito melhor no resto do mundo. Segundo a ONU Mulheres, em junho de 2019, somente 11 mulheres eram Chefe de Estado e 12, Chefe de Governo.

Anualmente o Fórum Econômico Mundial lança o Índice de Desigualdade de Gênero. Este instrumento é construído a partir de 14 indicadores agrupados em quatro categorias: participação econômica e oportunidades, educação, saúde e empoderamento político. Para a edição de 2018, a última disponível, foram analisados 149 países. O índice varia de 0 – desigualdade total – a 1 – igualdade total.

Conforme pode ser observado nas tabelas 1 e 2, no geral, os países do Brics não estão entre os mais iguais do mundo em termos de gênero. A melhor posição é da África do Sul, que ocupa o 19º lugar. Isso se deve essencialmente aos quesitos de saúde e de empoderamento político, pois, em geral, as mulheres estão presentes no Executivo e no Legislativo. Ainda é preciso melhorar as dimensões de mercado de trabalho e de educação.

Em seguida vem a Rússia, situada no 75º lugar, dentre os 149 países pesquisados. O país apresenta péssimo desempenho, o pior do bloco, no que diz respeito ao empoderamento político das mulheres: elas são poucas no Parlamento e na liderança de ministérios. Mas está bem situado na área de saúde e relativamente bem nas áreas de educação e mercado de trabalho.

O Brasil, apesar de apresentar resultados positivos nos campos da saúde e da educação, não vai bem no que diz respeito ao mercado de trabalho e nos envergonha no tocante ao empoderamento das mulheres, ocupando posição próxima da Rússia. Em estudos sobre o perfil dos congressistas federais, o Inesc mostrou que menos de 15% são parlamentares mulheres.

Índia e China estão na rabeira, especialmente devido aos itens de saúde, educação e mercado de trabalho. No caso da China, o pior desempenho é o de saúde, posicionando o país no último lugar do ranking nesse quesito. Isso se deve essencialmente ao fato de haver mais homens vivendo mais tempo, pois nascem mais numerosos e estão menos submetidos à violência, doenças e desnutrição, entre outros fatores. Em termos educacionais, a China também não vai bem, em decorrência do maior analfabetismo entre mulheres do que homens.

Quanto à Índia, os principais problemas são os de saúde e mercado de trabalho. Nessas duas áreas, as diferenças entre homens e mulheres são abissais, posicionando o país no fim da fila.

Trabalho não remunerado

Informações de organizações internacionais corroboram as enormes desigualdades de gênero que prevalecem nos Brics. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), em todos os países do bloco, as mulheres que vivem com crianças com menos de seis anos têm as menores taxas de emprego, em comparação não apenas com pais na mesma situação, mas também com homens e mulheres sem filhos ou com mais de seis anos.

E mais: de uma maneira geral, as mulheres gastam, no mínimo, duas vezes e meia mais horas do que os homens em trabalhos domésticos e de cuidados não remunerados. Estimativas das Nações Unidas revelam que o valor total dos cuidados não remunerados e do trabalho doméstico no mundo alcança patamares da ordem de 10 e 39 por cento do PIB. Isso representa uma enorme transferência de recursos de mulheres para outros setores da economia, uma vez que são as mulheres que carregam o fardo dos trabalhos domesticos e de cuidado.

As desigualdades de gênero bloqueiam o desenvolvimento: relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) mostra que reduzir as desigualdades de gênero no mercado de trabalho a um patamar de 25% até 2025 poderia adicionar US$ 5,8 trilhões para a economia global e aumentar as receitas fiscais.

Independentemente do aporte de recursos para a economia que traz o fechamento da brecha existente entre homens e mulheres, é inaceitável que no século XXI as mulheres ocupem espaços de subalternidade, sendo sistematicamente oprimidas e violentadas em todas as partes do mundo – em maior ou menor grau.

Contudo, as lideranças políticas do Brics não consideram esse tema prioritário. Poderia ser diferente. O bloco tem todas as condições para conduzir desde o Sul Global um movimento amplo e profundo de enfrentamento das enormes brechas que separam mulheres de homens. Mas aí seria desencadear um processo revolucionário e não tem nada mais conservador do que os dirigentes desses cinco países. Muitas lutas continuam nos aguardando!

Nathalie Beghin é coordenadora da assessoria política do Inesc, integrante da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip) e do BRICS Feminist Watch

 

Plano de Guedes constitucionaliza drenagem de recursos dos pobres para os ricos

O ministro da Economia Paulo Guedes entregou ao Congresso Nacional na última terça (5) três propostas de emenda à Constituição: a PEC do Pacto Federativo, a PEC dos Fundos Públicos e a PEC Emergencial. O nome dado a esse conjunto de propostas é Plano Mais Brasil.

Nossa avaliação inicial é muito preocupante: o Plano Mais Brasil constitucionaliza a drenagem de recursos públicos dos mais pobres para os mais ricos.

Em resumo, a PEC do Pacto Federativo altera regras que determinam a forma como serão gastos recursos dos estados, municípios e da União. A PEC dos Fundos Públicos prevê que recursos acumulados em fundos que tem destinação específica, como o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), que aloca recursos para o seguro-desemprego e o abono salarial, sejam usados para pagamento da dívida pública. Por fim, a PEC Emergencial prevê medidas para reduzir despesas obrigatórias, como pagamento de salários integrais a servidores públicos.

Apresentamos aqui primeiras impressões, a partir da análise da apresentação do ministro Paulo Guedes.

Diagnóstico propositalmente parcial

Toda a culpa da crise fiscal é atribuída aos gastos públicos. Portanto, a solução para o mal, de acordo com esse raciocínio, é cortar as despesas. Não há no Plano qualquer proposta para aumentar as receitas por intermédio, por exemplo, (i) de uma reforma tributária progressiva (aumentar as alíquotas de imposto de renda, taxar lucros e dividendos, cobrar impostos de barcos e helicópteros, entre outras possibilidades); (ii) da cobrança das dívidas dos grandes devedores ou, ainda, (iii) da emissão de dívida pública, especialmente para investimentos.

Evitar pôr as receitas no páreo não é mero esquecimento. É mecanismo deliberado para proteger os que mais têm, pois significaria mexer no bolso dos nossos super-ricos. Bolsonaro e Paulo Guedes são seus fieis representantes, daí que, para preservá-los, propõem apresentar a conta aos que pouco ou nada possuem. Concentrar todos os esforços nos gastos é o caminho mais fácil, pois os pobres e miseráveis não têm voz: não são escutados pela grande mídia e estão sub-representados no Congresso Nacional.

As sugestões para aumentar receitas dizem respeito a privatizações de patrimônio público. Contudo, essas entradas teriam por destino principal o pagamento da dívida fiscal, que contribui para o enriquecimento dos rentistas.

Desconhecimento do déficit social

O único déficit que interessa ao governo é o fiscal. Não há qualquer preocupação com o déficit social. O IBGE acabou de divulgar a Síntese dos Indicadores Sociais (SIS) para o ano de 2018, cujos dados são assustadores: um quarto da população brasileira é pobre. São mais de 52 milhões de pessoas com rendimentos inferiores a R$ 420 por mês, menos da metade de um salário mínimo. Dessas, 13 milhões são extremamente pobres (renda mensal per capita inferior a R$ 145).

A pobreza também implica em menor acesso aos serviços básicos: 56,2% das pessoas abaixo da linha de pobreza moram em domicílios sem esgoto sanitário, enquanto a média da população sem acesso a esse serviço é de 37,2%.

O racismo persiste abissal e vergonhoso: 73% dos pobres são negros. O rendimento médio domiciliar per capita das pessoas pretas ou pardas (R$ 934) é quase metade do rendimento das pessoas brancas (R$ 1.846). O valor dos rendimentos cresceu para toda a população de 2018 em relação a 2017, só que foi maior para os 10% mais ricos, que se apropriaram de uma parcela maior do que os 40% com menores rendimentos, ampliando as desigualdades. E mais: o percentual de jovens brancos cursando o ensino superior ou que já havia concluído esse nível (36,1%) ainda era quase duas vezes o de pretos ou pardos (18,3%).

Mas, aos olhos de Guedes e sua equipe, nada disso importa. Se o controle dos gastos merece a criação de um Conselho Fiscal da República, que deverá se reunir regularmente para avaliar a sustentabilidade financeira da Federação, a questão social não exige tratamento semelhante, pois pobreza, miséria, fome e desesperança são problemas irrelevantes aos olhos do titular da economia.

Entrega do patrimônio público aos interesses privatistas

As propostas de Desobrigar, Desindexar e Desvincular, batizadas de três Ds, associadas ao fim do Plano Plurianual (PPA), significam acabar com o planejamento de longo prazo e entregar a administração dos recursos públicos aos governantes de plantão. Sem uma visão de país projetada no tempo nem parâmetros que orientem estrategicamente a alocação de recursos públicos, não há qualquer possibilidade de assegurar um desenvolvimento sustentável para o Brasil.

Os 3 Ds significam privatizar os ativos federais, deixar que os valores dos benefícios sociais sejam arbitrariamente decididos ano a ano, desobrigar o Estado de cumprir com seu dever de realização progressiva dos direitos constitucionais, comprometer a qualidade dos serviços públicos decorrente de enxugamento do quadro de funcionários federais, estaduais e municipais. Diferentemente do que se alardeia, o Brasil tem déficit de funcionários e não excesso: os empregados no setor público brasileiro, nos três níveis da federação, somam 12,1% da população ocupada contra uma média de 21,3% na OCDE.

As vinculações e indexações hoje existentes em todo o ciclo orçamentário são conquistas históricas dos movimentos sociais. Sem elas, o Congresso Nacional composto majoritariamente por homens, brancos e ricos, defensores de interesses privatistas, dificilmente aprovaria uma alocação de recursos justa, inclusiva e sustentável ao longo do tempo.

As PECs do Guedes equivalem à entrega do galinheiro para as raposas, à constitucionalização da pobreza e das desigualdades. Podemos afirmar que os 3 Ds do Plano Mais Brasil na realidade querem dizer Diagnóstico enviesado, Desconhecimento da dívida social e Drenagem de recursos dos pobres para os ricos.

O ministro pouco ou nada lê do que se passa no resto do mundo, de povos cansados de serem escrachados, sugados e explorados, que vão às ruas manifestar sua indignação e revolta, do Equador ao Chile, da França ao Líbano, do Iraque à nova onda da Primavera Árabe. Esperamos que nossos parlamentares, em princípio um pouco mais sensíveis às demandas da sociedade, ponham um freio à sede destrutiva da trupe Bolsonaro. Esperamos que lampejos de lucidez e, mesmo de autoproteção, os iluminem para o arquivamento dessas PECs, que muito nos assustam.

 

O óleo nas praias do nordeste é um caso de racismo ambiental

Ganhou destaque no debate público das últimas semanas o engajamento de voluntários na limpeza das praias do Nordeste. Estamos no final de outubro. O óleo mancha o litoral nordestino brasileiro desde o dia 30 de agosto.

A origem da contaminação é desconhecida. Não sabemos quando ela teve início, onde, nem qual foi o seu principal agente. Não sabemos quais países ou quais empresas, públicas ou privadas, estão envolvidas, nem se o crime aconteceu em mar territorial nacional ou no espaço marítimo internacional.

As implicações geopolíticas do caso são gigantescas. A academia (cumprindo o seu papel social) entrou na disputa e os especialistas discordam sobre a afirmação supostamente inequívoca de que o óleo seria venezuelano, entre outras questões.

A inação do governo – ou melhor, a sua ação “temerária” – provocou uma coluna constrangedora, em jornal nacional de grande circulação e de perfil nada comunista, que afirma o óbvio: A fragilidade deste governo é do tamanho de uma burocracia que não conhece os instrumentos legais de que dispõe para governar.

No texto, a constatação: o Plano Nacional de Contingência para vazamentos no mar não foi acionado senão no dia 11 de outubro, isto é, mais de um mês após o conhecimento do crime.

Vocês conhecem agente público que só se manifeste sobre um crime passados mais de trinta dias do seu conhecimento? Quando um agente público é omisso frente a um crime, ele também não comete um crime? Como vamos localizar o ministro Ricardo Salles neste imbróglio?

O fato é um só: o  atraso do governo em agir causou, segundo levantamento do Ibama, a contaminação de 238 praias em 89 cidades do Nordeste. São milhares de vidas afetadas.

No entanto, a meu ver, o argumento da ignorância não dá conta do governo Bolsonaro. É preciso entender de que maneira a ausência, o silêncio, o esquecimento, a inação, a violência e a destruição explicam o seu projeto.

Porque é próprio de uma mentalidade necrófila de governo que se ponha ênfase na potência da morte, não da vida, como metodologia para a gestão econômica da vida.

O impacto é ambiental, mas também é social

Uma agenda do movimento ecologista global é que o impacto humano e social das ameaças aos ecossistemas e à biodiversidade deve ser levado em consideração na avaliação dos crimes ambientais. Esses assuntos devem caminhar juntos.

Reveja comigo as fotos do Léo Malafaia, colaborador da AFP e Folha de Pernambuco. Enquanto seus olhos percorrem as imagens, tente responder à pergunta: quem são os afetados pela contaminação? Quem está se arriscando para combatê-la? A vida marinha, claro. A natureza. E também as pessoas que inventaram uma vida que se encaixa nas marés e dança com elas. Insisto. Veja mais fotos na página do fotógrafo no Instagram.

Essas fotos foram tiradas na praia de Itapuama, em Cabo de Santo Agostinho, Pernambuco, em 21 de outubro. Por óbvio, elas contam apenas uma parte da história. Mas são fortes. E nos ajudam a configurar a estética do desastre que nos assombra.

Os atingidos pela contaminação da água no litoral nordestino do país são pescadores, são pretos, são crianças e pais e mães que já não têm o peixe para vender, cozinhar e comer.

Os atingidos pela contaminação da água no litoral nordestino do país são pessoas que movimentam toda uma economia popular local e vivem do turismo e do artesanato. De uma hora para outra, essas pessoas se viram sem renda.

Em relação a esta complexa trama que conta a história das vidas por trás do mar de óleo, o governo se isola e se exime da sua responsabilidade. Mas há, ainda, as soluções estapafúrdias.

Na Praia da Barra da Jangada, onde está a foz do Rio Jaboatão, também em Pernambuco, presos em regime semiaberto participam do esforço de contenção da contaminação.

Como nos EUA, onde os presos têm o seu trabalho explorado pelo governo e grandes corporações em troca da redução das suas penas, o governo brasileiro os expõe, agora, a alto risco de contaminação e problemas de saúde.

Carne barata, vidas precárias, mão de obra a custo zero. Quem são os presos no Brasil?

Um país que não tem política ou instalações carcerárias dignas, não faz política penal, mas usa o argumento penal para provocar a morte (física ou social) de quem passa pelo sistema.

Um país cujo sistema de saúde, embora universal, não é capaz de atender às demandas da população, não pode provocar a doença que é incapaz de curar.

Racismo ambiental é racismo

Isto é: uma forma de violência e uma certa configuração do poder que age na direção da superexploração e da desumanização de corpos não-brancos que foram racializados.

Trata-se de um poder que se endereça ao extermínio, muitas vezes descarado, e opera um impulso destruidor da natureza, deslocando-a como fonte de vida e terreno para a produção subjetiva, afetiva e cultural.

O efeito do racismo ambiental é a miséria e a morte da vida natural-humana. Deveríamos estar falando mais sobre isso.

Leia também: Ministério do Meio Ambiente executou apenas 15% dos recursos para oceanos e zona costeira nesta década

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Será que estão mesmo liberando todo o recurso contingenciado da educação superior?

Ao anunciar que o governo liberaria todo o recurso contingenciado do MEC para o ensino superior, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, se julgou “lacrador”. Sem entrar na questão da falta de maturidade que o cargo ocupado por Weintraub exige, há ainda dois problemas. Primeiro, ninguém “lacra” anunciando o que é obrigação do governo, ou seja, liberar o recurso que as instituições federais precisam para fechar o ano com as contas pagas.

Segundo, a liberação de R$ 1,1 bilhão anunciada corresponde a cerca de metade do total de recursos contingenciados destinados às universidades e institutos federais – e não 100%, como alardeou o ministro. A tabela abaixo, com dados extraídos do Siga Brasil, atualizado pela última vez no dia 17 de outubro, mostra que na data do anúncio constavam R$ 2,1 bilhões de recursos ainda congelados.

contingenciamento da educação

A liberação do recurso prova ainda que o governo vinha fazendo terrorismo com as universidades, quando afirmava que havia “gordura para queimar”, e que o orçamento era superestimado. Ficou comprovado que o orçamento é apenas suficiente para manter as atuais estruturas, não havendo gordura.

Não há, por exemplo, recurso para as obras de expansão já iniciadas, como as da Universidade Federal do Sul da Bahia, que estava com os campus em construção, pois funciona em locais precários e improvisados. A descontinuidade provoca desperdício de dinheiro público, pois deteriora o que já está feito, e obriga a universidade a gastar com aluguéis para funcionar.

Além disso, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), um dos principais órgãos de fomento à pesquisa, está morrendo de inanição, com R$ 540 milhões ainda contingenciados, segundo o Siga Brasil. Muitas bolsas foram cortadas, prejudicando pesquisas em andamento. O desenvolvimento científico e tecnológico do país está em risco.

Esperamos do ministro “lacrador” menos piadas e mais seriedade para com a educação, que não é só responsabilidade da família, como querem nos fazer acreditar – é responsabilidade do Estado e direito garantido na Constituição de 1988, que insistem em jogar lixo.

 

Crianças e adolescentes são prioridade absoluta no orçamento público?

Gabi[1] tem 14 anos, conviveu pouco com o pai, preso quando ela ainda era criança. Ela, a mãe e seus três irmãos vivem em situação de pobreza, sustentados com o dinheiro que a mãe consegue arrecadar das unhas que arruma. No Itapoã, onde mora, não tem creche pública para que a mãe possa deixar os filhos mais novos e procurar emprego fora da cidade. Recebem Bolsa Família, dá pra comprar uma cesta básica. Gabi vê todos os dias o tráfico de drogas na cidade, já foi convidada a experimentar. Também já viu muitos colegas do seu bairro serem mortos pela polícia e pelas guerras locais por conta do tráfico.

Acredita que, se estudar, o caminho pode ser diferente para ela e seus irmãos, então se esforça, mas sofre muito com o racismo na escola. Não aguenta mais as piadas sobre seu cabelo e os professores que não acreditam em seu potencial. Ela prefere estudar no canto da sala sozinha. A menina gosta de música, de arte, mas não é motivada a desenhar, a cantar e nem a compor. Tem pensado em parar de estudar para trabalhar.

Kevin[2] cumpre medida socioeducativa em uma unidade de internação. Ele tem 15 anos. Ao contrário de Gabi, não resistiu às drogas, começou a usar aos 9 anos, junto com os amigos da rua, quando seu pai morreu. O adolescente nunca se sentiu estimulado pela escola, lá sempre era “o neguinho”. Nada além disso! Mas na rua ele é o companheiro, o corajoso, o malandro, o inteligente, o veloz, ele é quem faz o corre acontecer. Isso com 12 anos de idade. Ele aprende a vender drogas para ser reconhecido socialmente.

Ele sempre gostou de música: rap e funk principalmente. Gosta de festas, de assistir filmes, de rir. Kevin queria ser visto: ter tênis da Mizuno, óculos Juliet da Oskley, roupas da Cyclone. Pra ele, a felicidade estava em poder ostentar junto com seus “parceiros de quebrada”. Em casa, tinha a situação financeira difícil da mãe, ele tentava ajudar, mas ela não aceitava o dinheiro que vinha do tráfico. Ele sofria ao vê-la assim, mas não abria mão da trajetória ilusória que estava construindo. Aos 14 anos recebeu uma medida socioeducativa de internação por tráfico e roubo: pode ficar até 3 anos em privação de liberdade. Na rua onde Kevin morava não tinha cinema, não tinha teatro, sua escola não falava de rap, nem dos grandes líderes de periferia com quem ele poderia se identificar. Na rua ele não viu muitas cores, brincou pouco, viu seus amigos morrendo, sendo presos, ele se viu.

Orçamento público: importante ferramenta para efetivar direitos

Essas histórias convergem em muitos aspectos: os dois são adolescentes, moradores de periferia, estudantes de escola pública, pobres e negros. Os dois vivenciam negligências e violências. Histórias que, infelizmente, não são exceção no Brasil. Como o país pode avançar social, econômico e politicamente mantendo suas crianças e adolescentes nessa situação de violação de direitos, de violência?

De acordo com a Fundação Abrinq, no relatório Cenário da Infância e Adolescência no Brasil 2018, há no país 9,4 milhões de crianças e adolescentes vivendo em situação domiciliar de extrema pobreza e 10,6 milhões em situação de pobreza, considerando apenas a faixa etária de 0 a 14 anos. A pesquisa não disponibiliza as informações por raça/cor, idade e situação financeira, mas não é difícil imaginar que cor essas crianças têm. Afinal, nos dados gerais que correlacionam raça/cor e situação financeira, os pretos e pardos ainda estão entre os mais pobres, e os brancos, entre os mais ricos. A Síntese de Indicadores Sociais de 2018, elaborada pelo IBGE, denunciou que, dos 7,6 milhões de moradores de domicílios onde vivem mulheres pretas ou pardas sem cônjuge com filhos até 14 anos, 64,4% estavam abaixo da faixa de renda de até R$ 406,00 mensais, ou seja, abaixo da linha de pobreza.

Mesmo diante dessa realidade, os governos não têm priorizado a alocação de recursos públicos para as crianças e adolescentes, principalmente as mais pobres, que são as que mais dependem de políticas sociais. O descaso se estende às mulheres negras, mães e avós dessas milhões de crianças em situação de extrema pobreza e pobreza. No que diz respeito ao orçamento destinado às crianças e adolescentes, conhecido como OCA, é importante ressaltar que a Constituição Federal de 1988 representa um avanço político e social em relação aos direitos da infância e adolescência no Brasil, pois inclui em seu texto que crianças e adolescentes têm prioridade absoluta na efetivação dos seus direitos.

Art. 227 É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

E para efetivar esses direitos é preciso haver orçamento público exclusivo para essa política. É preciso, ainda, que os recursos sejam executados na sua totalidade. Essas têm sido as bandeiras do movimento pela infância no Brasil desde a aprovação da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A seguir serão analisadas algumas ações orçamentárias voltadas para esse público no orçamento da União, avaliando quanto foi previsto e quanto de fato foi executado no período do PPA (Plano Plurianual) vigente: 2016 a 2019. Os dados foram extraídos do Portal Siga Brasil em outubro de 2019.

Orçamento da criança e do adolescente: assistência social

A tabela 1 mostra o gasto com a ação: Desenvolvimento Integral na Primeira Infância – Criança Feliz, que está dentro do Programa Orçamentário: Consolidação do Sistema Único de Assistência Social, programa 2037 do PPA 2016-2019:

Percebe-se que o valor autorizado aumentou de 2017 para 2019. Mas o que conta é o gasto efetivo, o que foi pago. Em 2017, o valor pago (o que significa o gasto efetivado em relação ao orçamento do ano em referência) foi de R$ 187,5 milhões; porém faltou gastar 28,9% do que estava previsto para o ano, o que corresponde a R$ 76 milhões. Em 2018 deixou-se de gastar 27,7% do autorizado para o ano. Em relação ao ano vigente, foram autorizados R$ 375,7 milhões, mas ainda faltam ser gastos 49,74% desse valor até o fim do ano..

Ainda dentro desse mesmo programa (2037), a ação: ‘Concessão de bolsa para famílias com crianças e adolescentes’ teve recurso previsto de R$ 6,05 milhões em 2016, dos quais apenas R$ 3,29 milhões foram gastos. A situação piora nos anos de 2017 e 2018, quando nada foi gasto, apesar da previsão orçamentária, como é possível ver na tabela 2. E em 2019, a ação desaparece em termos de previsão de recursos.

O Plano Orçamentário (PO) desta ação era o Programa Brasil Sem Miséria, que foi extinto, e se resumia basicamente em auxílio financeiro para estudantes. Pode ser que esta ação esteja diluída em outras, mas seria muito importante saber qual o público beneficiado. Isso facilita a transparência e o controle social, principalmente no que diz respeito aos direitos de crianças e adolescentes, público prioritário das políticas públicas conforme mencionado anteriormente.

Orçamento Público e Educação

Enquanto isso, temos uma realidade de 2,8 milhões de crianças e adolescentes, na faixa etária de 4 a 17 anos, fora da escola, conforme os dados do Censo Escolar divulgados no ano passado. Em relação à Educação Infantil, na faixa etária de 4 e 5 anos, 93,8% das crianças estavam na escola em 2018, mas em compensação, para as crianças de até 3 anos o atendimento público era de somente 35,6% da população nesta faixa etária.

Dados do Siga Brasil revelam como o investimento em educação infantil tem diminuído nos últimos anos. O orçamento autorizado, em nenhum dos anos do PPA vigente, foi gasto integralmente, o que demonstra o descaso do governo com essa pauta, principalmente de 2017 para cá:

A tabela 3 também revela que apesar de ter apresentado a pior execução orçamentária, 2016 foi o ano no qual mais foram alocados recursos para a Educação Infantil: R$ 764 milhões. O baixo desempenho se deve a uma previsão inicial mais elevada, bem acima dos demais anos da série. Nos anos seguintes, tanto a previsão quanto a execução diminuíram mais que a metade dos valores de 2016, como pode ser visto no gráfico 1:

 

Gráfico 1: Execução orçamentária dos recursos destinados à Educação Infantil elaboração Inesc

Os gastos com a educação básica não foram diferentes no que tange à execução do orçamento previsto para o ano: a tabela 4 mostra a porcentagem que ainda faltou para o gasto completo do recurso previsto para essa subfunção dentro do Programa Orçamentário 2080 (Educação de Qualidade para Todos)[3].

 

Trabalho infantil

Um dado relevante para a problemática de se ter milhões de crianças e adolescentes fora da escola é o investimento do Governo Federal com o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil. São cerca de 1,8 milhão de crianças e adolescentes (5 a 17 anos) em situação de trabalho infantil, segundo a PNAD Contínua de 2016 e parte desse grupo populacional não frequenta a escola: 377.083 mil crianças e adolescentes de acordo com o III Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Adolescente Trabalhador – 2019-2020.

É possível visualizar na tabela 5 que o investimento com a ação de fiscalização do trabalho infantil tem sido irrisório. É sabido que não se combate o trabalho infantil apenas com a fiscalização. Contudo, a baixa alocação de recursos é reveladora da incapacidade do Estado de proteger os direitos de suas crianças. Muitos meninos e meninas trabalham para contribuir no sustento da família, sendo muitas vezes, explorados e, consequentemente, prejudicados no rendimento escolar. Sem contar que estão expostos a outros tipos de violência.

Como pode ser observado na tabela 5, em 2018 e 2019 a ação que contempla em seu plano orçamentário a fiscalização para erradicação do trabalho infantil simplesmente sumiu em termos de recurso do planejamento do governo.

Orçamento para promoção, Proteção e Defesa dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes

No que diz respeito ao programa 2062 do PPA: Promoção, Proteção e Defesa dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes verifica-se que o orçamento executado foi muito baixo. Em 2016 e em 2017 não se executou nem 2% do que tinha sido previsto para o ano. Em 2018, tanto a previsão quanto a execução foram maiores do que nos anos anteriores, mas faltando ainda 44,18% para gastar. Em 2019, em relação ao previsto para o ano, foram gastos um pouco mais de 15%.

O programa 2062 tem como desafio consolidar a Política Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente promovendo e articulando a implementação de políticas, programas, ações e serviços de atendimento a crianças e adolescentes com direitos violados, envolvendo: o Sistema de Garantia de Direitos, Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente, Sistemas de Informação (SIPIA), Conselho Tutelar, Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, Atendimento a crianças e adolescentes em situação de violência sexual, Enfrentamento da violência letal – PPCAM, Direito à convivência familiar e comunitária, Atendimento a crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade e com direitos violados, ameaçados ou restritos e a Erradicação do trabalho infantil e Proteção ao adolescente trabalhador. É um programa que atua mais com os eixos da proteção e defesa do que com o eixo da promoção dos direitos como pode ser visto na tabela 7:

É importante ressaltar que quanto menos se investe na promoção dos direitos da criança e do adolescente (nas áreas de cultura, lazer, esporte, saúde, educação, prevenção às violências, fortalecimento de vínculos familiares e qualificação profissional, tanto para o adolescente quanto para as famílias, entre outras), mais demandas teremos para políticas de proteção e defesa de direitos. A vulnerabilidade desse grupo populacional se manifesta de diversas formas, podendo-se destacar como consequências, além de exemplos citados anteriormente, crianças e adolescentes fora da escola, em situação de trabalho infantil ou em situação de extrema pobreza. Vejamos alguns dados a respeito:

– Em 2016, 9.517 crianças e adolescentes entre 0 e 19 anos morreram por arma de fogo no Brasil (incluindo homicídio e suicídio) de acordo com estudo da Sociedade Brasileira de Pediatria a partir dos dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM). A maior parte dessas mortes se dá por homicídio e suas vítimas são, em maioria: meninos negros que vivem em periferias das grandes cidades, estão fora da escola e vêm de famílias com baixo poder aquisitivo.

– Em 2018, o Disque 100[4] registrou 152.178 violações contra crianças e adolescentes compreendendo que em uma única denúncia pode ter notificação de várias violências. Entre as denúncias 72,66% foram de negligência, 48,76% de violência psicológica, 40,62% de violência física e 22,40% de violência sexual;

– Em 2015, 26.868 adolescentes no Brasil encontravam-se em privação ou restrição de liberdade, conforme o último Relatório Anual do Sistema Socioeducativo (SINASE) divulgado pelo Ministério dos Direitos Humanos em 2018. Desses, 61,03% eram negros e 96% se identificavam com o sexo masculino. Meninos que tiveram sua trajetória marcada por violações de direitos, afinal 46% deles estavam cumprindo medida socioeducativa porque cometeram roubo e 24% por tráfico de drogas. Os dados revelam que não são os adolescentes que estão sendo violentos, como a mídia hegemônica alardeia, eles estão sendo violentados pelo Estado, pela sociedade e, muitas vezes, pela família, mas esta também tem um histórico de acesso precário às políticas públicas, o que impacta a relação com as crianças e adolescentes.

Mesmo com esses dados alarmantes, o que se percebe é que não se tem, por parte do governo, interesse real no combate a essas violências, já que a execução do orçamento destinado a esta política tem sido irrisória.

É preciso garantir a execução do orçamento

O que buscamos mostrar é que há no Brasil uma infância e adolescência sendo prejudicada com a falta e a insuficiência de políticas públicas e, consequentemente, do orçamento público. Meninos e meninas pobres e negras que têm sofrido mais as consequências da não ou pouca realização de direitos. Não basta prever recursos para educação, saúde, assistência, segurança pública, segurança alimentar, entre outros; é preciso, ainda, garantir que a previsão e a execução sejam suficientes para universalizar os direitos.

E mais: faz-se necessário que as políticas e seus orçamentos deem conta das especificidades de cada infância: quilombola, indígena, periférica, rural, com deficiência, entre outras. Geralmente, são essas infâncias as mais esquecidas, por falta de recursos, mas também porque o poder público não dá conta de suas particularidades.

Daí a importância do diálogo com a população, e da participação popular, inclusive das próprias crianças e adolescentes, para a elaboração e planejamento de uma política pública eficiente. Por fim, é necessário que o recurso seja executado em sua totalidade, diferentemente do que os governos têm praticado. Isso diz de um planejamento mal elaborado ou, de fato, de uma estratégia de manter as desigualdades sociais e o não entendimento de que crianças e adolescentes são sujeitos de direitos e que têm prioridade absoluta no que tange à destinação e execução dos recursos públicos.

Considerando que o artigo 4º do ECA prevê prioridade absoluta nos seguintes termos:

Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:

a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;

b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública;

c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas;

d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.

É necessário que se faça a defesa de que o gasto dos recursos voltados para crianças e adolescentes, o OCA, seja obrigatório, o que por lei não é. Enquanto não priorizarmos orçamento para a infância, adolescência e juventude este público continuará sendo violentado e com poucas ou nenhuma perspectiva de uma vida saudável, plena e alegre. Investir em políticas que atendam às necessidades de meninos e meninas como Kevin e Gabi, por exemplo, significa ampliar o leque de direitos para eles e elas, expandido as possibilidades de vivenciar o mundo no lugar de sujeito com dignidade e humanidade.

A manutenção das desigualdades, reforçada pelas políticas públicas excludentes e pelo orçamento público que não prioriza os grupos que mais precisam de atenção do Estado, desumaniza meninos e meninas que vivem nas periferias do país. Não podemos achar normal que ainda existam milhões de crianças fora da escola, em situação de pobreza e milhares em situação de violência, em situação de rua ou em privação de liberdade. Um governo e uma sociedade que objetiva se desenvolver social, política e economicamente precisa garantir orçamento público para infância, adolescência e juventude a fim de efetivar políticas que diminuam as desigualdades sociais, raciais, de gênero e de território.

[1] Nome fictício

[2] Nome fictício

[3] Para esta análise considerou-se as rubricas orçamentárias: educação básica e transferências para a educação básica.

[4] Disque Direitos Humanos, ou Disque 100, é um serviço de proteção de crianças e adolescentes com foco em violência sexual, vinculado ao Programa Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, da SPDCA/SDH. É um serviço telefônico de recebimento, encaminhamento e monitoramento de denúncias de violações de direitos humanos.

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