Orçamento de 2021 mantém equilíbrio fiscal acima das necessidades da população

No dia 31 de agosto, o executivo enviou para o Congresso Nacional o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) 2021, com todos os gastos que o governo pretende realizar no próximo ano. Em um cenário de crise econômica, social, política e sanitária, faz-se ainda mais fundamental analisar esse instrumento sob a ótica dos direitos humanos, para entender quais os planos e prioridades do governo Bolsonaro para ano que vem, já que o documento não prevê os impactos da pandemia em 2021. O PLOA ainda será emendado pelos parlamentares (entre 1 e 20 de outubro) e precisa ser aprovado até o final do ano.

O Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO), enviado para o Congresso em abril, já foi analisado pelo Inesc. O texto coloca que o Teto de Gastos será a “âncora fiscal” de 2021, pois o governo não pretende gastar ano que vem além do delimitado pelo teto. Atitude diferente da que o governo tomou este ano, quando vem realizando gastos extraordinários além do teto para enfrentar a pandemia, ainda que estes gastos tenham apresentado graves atrasos em sua execução.

No PLOA não é diferente. Seguindo as diretrizes do PLDO, a pandemia e suas consequências se restringirão a 2020, e em 2021 voltaríamos ao normal, com prioridade para o equilíbrio fiscal e redução do déficit primário. “Não trabalhamos com extensão de calamidade para 2021”, disse Waldery Rodrigues, secretário especial de Fazenda do Ministério da Economia, ao justificar que os gastos extraordinários em função da pandemia ficaram restritos a 2020.

Mas o que é o “normal”? O país está mergulhado numa recessão econômica e vivenciando cortes de gastos sociais há anos que, como analisado pelo Inesc, deixaram o Brasil sem imunidade para o enfrentamento da Covid-19. As consequências da pandemia sequer são completamente conhecidas, que dirá superadas. Indiferente a esse cenário, o governo pretende voltar à austeridade e aos cortes aos gastos sociais.

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Veja abaixo o que isso significa em termos de garantia de alguns direitos: saúde, meio ambiente, povos indígenas, mulheres, população negra e criança e adolescente.

Saúde: governo Bolsonaro ignora a pandemia e suas consequências

A saúde foi uma das áreas que sofreu cortes com o PLOA 2021 apesar de o Brasil ser o epicentro da pandemia do novo coronavírus na América Latina. O projeto de lei, que reserva R$ 136,7 bilhões para o Ministério da Saúde, simplesmente ignora a continuidade da pandemia da Covid-19 e seus efeitos no próximo ano. O recurso previsto tem quase R$ 40 bilhões a menos que a dotação atual do programa em 2020 e é apenas 4% maior que o apresentado no PLOA 2020. O governo federal desconsidera também o aumento do desemprego resultante da crise econômica, que certamente fará com que várias famílias fiquem sem plano de saúde e passem a depender do SUS.

A principal queda em relação à verba autorizada em 2020 é observada no programa de Atenção Especializada, que tem cerca de 40% a menos de recursos. Ou seja, a gestão do Presidente Bolsonaro não pretende contribuir com a manutenção dos leitos de UTI que foram criados para o enfrentamento da pandemia. Ademais, a Atenção Básica e o Desenvolvimento Científico e Tecnológico terão perdas de 13% e 3%, respectivamente. Apesar da importância de uma vacina contra o novo coronavírus, os programas de Assistência Farmacêutica e Vigilância em Saúde, de onde sairão os custos para sua aquisição, e o programa de Vacinação terão aumentos irrisórios, por volta de 4%. Em resumo, em 2021 o governo federal pretende manter sua gestão negacionista e irresponsável da saúde pública.

Educação: ainda estamos longe de cumprir o PNE

Para a Função Educação, foram pervistos R$ 108,8 bilhões (2020) e  R$ 111,8 bilhões (2021): apenas R$ 3 bilhões a mais diante do atual quadro de crise e abandono da política de educação por parte do governo federal. Para as ações de Manutenção e Desenvolvimento da Educação (MDE) previu-se R$ 95 bilhões (2020) e R$ 98 bilhões (2021) , os mesmos R$ 3 bilhões a mais, ainda que o sistema de educação atravesse uma de suas maiores crises, advinda da pandemia: escolas públicas precisam se adaptar sem recursos financeiros ou tecnológicos, agravando desigualdades entre estudantes de escolas públicas e privadas, especialmente das periferias, zonas rurais, territórios indígenas e quilombolas. Então, em vez do poder público investir mais recursos para mitigar os efeitos da crise sanitária, que também se transformou em uma crise para a educação, há recursos de menos e maiores responsabilidades para os entes que menos arrecadam.

Há um Plano Nacional de Educação a ser cumprido, o qual registra em sua meta 20 que a partir de 2019 o financiamento da educação deveria ficar em 7% do PIB e 10% em 2024. Ao que tudo indica, o Brasil caminha no sentido contrário, não apenas com relação aos recursos, como também na busca por educação de qualidade.

Direito à cidade: orçamento não garante segurança no direito ao transporte

O PLOA 2021 propõe para a função Urbanismo R$ 1,5 bilhão: R$ 200 milhões a menos do que foi aprovado para 2020. As principais políticas que possibilitam maior acesso ao direito às cidades inserem-se nesta função orçamentária, tais como projetos de acessibilidade, reformulação de áreas centrais, urbanização de assentamentos precários, regularização fundiária, além de implementação, modernização e contribuição para o funcionamento dos sistemas coletivos de transporte urbano.

A parte que cabe à União é apoio a estas ações que são de responsabilidade dos municípios. No entanto, este ente federado é quem menos arrecada, especialmente os de menor porte. São, ainda, os que mais têm sentido os efeitos da pandemia. Aqueles que precisam de um sistema de transporte urbano e rural estão sofrendo nas mãos de empresas, que cobram caro do poder público para não fecharem as portas. O Governo Federal, portanto, tem obrigação de aportar mais recursos para contribuir com a urbanização das favelas, locais com menos acesso a água potável e saneamento básico. Os recursos propostos não atendem às necessidades mais básicas da população, como ir e vir com tarifas acessíveis e segurança contra os efeitos da pandemia, ao serem ofertados mais veículos para locomoção, evitando aglomerações.

Meio Ambiente: o desmonte orçamentário segue como projeto de governo

Entre 2019 e 2020, assistimos a sucessivas medidas infra legais de esfacelamento da capacidade institucional dos órgãos vinculados ao Ministério do Meio Ambiente (MMA), o que amplificou a dificuldade desses órgãos executarem seus poucos recursos autorizados. Em 2021 a tendência é que isto piore. O MMA, incluindo o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Instituto de Pesquisa Jardim Botânico do Rio de Janeiro (IJBRJ), perdeu 35% do orçamento se comparado ao PLOA 2020 e 40% se comparado à dotação atual.

No PLOA 2021, a previsão de corte de pessoal e encargos é de 45% se comparado com o valor autorizado para o ano em curso. A falta de pessoal tem sido motivo de alerta e denúncia, nacional e internacional.

Além disso, observa-se uma queda geral de recursos para ações finalísticas. Duas perdas chamam atenção. Primeiro, no programa “Conservação e Uso Sustentável da Biodiversidade e dos Recursos Naturais”, sob responsabilidade do ICMBIo. No PLOA de 2021 o programa perde R$ 33 milhões, se comparado ao PLOA  2020. Segundo, a extinção em 2021 do programa “Prevenção e Controle do Desmatamento e dos Incêndios nos Biomas”. Cabe lembrar, como já analisado pelo Inesc, que na tramitação do PPA 2020-2023 no Parlamento este programa havia sido inserido por meio de emenda, com uma meta de redução do desmatamento e incêndios ilegais nos biomas em 90% durante os quatro anos do PPA, com  a linha de base estabelecida em dezembro de 2019. E, ainda, que no primeiro semestre de 2020 houve um aumento de 24% no desmatamento se comparado ao primeiro semestre de 2020: foram 2.544 km² de floresta perdida. Em 2020 o orçamento atual deste programa é de R$ 173 milhões dos quais foram gastos até agosto R$ 48 milhões somente.

O Ministério da Defesa vinha há dois anos arregimentando recursos públicos para operações de Garantia da Leia e da Ordem (GLO) e intensificando a presença militar na Amazônia. Esta estratégia, do ponto de vista orçamentário, perdeu fôlego, pelo menos se analisado na perspectiva da intenção do governo expressa no PLOA 2021. De uma dotação atual de R$ 1,68 bilhão para ações vinculadas à Amazônia, restou no PLOA 2021 apenas R$ 112 milhões. Há que se notar, contudo, que ao longo do ano de 2020 os militares conseguiram aprovar créditos suplementares que inflaram ainda mais seu orçamento, movimento que tem passado desapercebido do debate público.

Indígenas: aumento do orçamento para a saúde indígena deve ser monitorado

Em uma primeira análise, a comparação entre o orçamento atribuído para a Funai pelo PLOA 2021 parece otimista: no ano que vem o órgão conta com cerca de R$ 11,5 milhões a mais do que no PLOA 2020 e R$ 6,1 milhões a mais que a dotação atual. No entanto, boa parte desses recursos está sujeita à aprovação legislativa, devido ao sufocamento orçamentário fruto da Regra de Ouro: dos R$ 648,5 milhões atribuídos para a Funai em 2021, R$ 338,5 milhões estão sujeitos à aprovação do Congresso. Além disso, o acréscimo orçamentário previsto para o ano que vem está longe de ser suficiente para recuperar a esgarçada estrutura do órgão. O valor, por exemplo, está muito distante dos R$ 870 milhões atribuídos à Fundação em 2013, o que representa uma queda de 26%.

No que tange à Saúde Indígena, o PLOA 2021 atribuiu R$ 67,9 milhões a mais para a principal ação orçamentária da área, totalizando R$ 1,4 bilhão. É possível que tal aumento seja resultado das mobilizações por ações mais efetivas no enfrentamento ao novo coronavírus nos territórios indígenas. No entanto, levando em conta que um estudo recente do Inesc demonstrou que a os recursos para a Saúde Indígena não têm chegado mesmo diante da pandemia, e que em setembro segue na taxa de 62% de execução orçamentária, resta saber se o acréscimo orçamentário na principal ação da saúde indígena implicará em melhor atendimento para indígenas por parte da SESAI.

Mulheres e População Negra: baixa execução orçamentária em 2020 não pode continuar

Os recursos para garantir direitos humanos no orçamento do governo Bolsonaro foram, em sua maior parte, aglutinados em um só programa orçamentário, executado pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH). O PLOA 2021 prevê R$ 132,3 milhões para este programa, que abriga políticas para diversos públicos: mulheres, população negra, idosos, crianças e adolescentes, pessoas com deficiência, indígenas e quilombolas. Esse recurso é 66% inferior ao PLOA 2020 (R$ 394 milhões) e 77% inferior ao autorizado em 2020 (R$ 575 milhões), que leva em consideração o incremento dos créditos extraordinários da Covid-19.

Para as políticas específicas voltadas para a promoção dos direitos das mulheres, o PLOA 2021 prevê apenas R$ 1 milhão, a ser investido na implementação de Casas da Mulher Brasileira e Centros de Atendimento à Mulher. Esta ação conta em 2020 com quase R$ 64 milhões, mas nenhum recurso foi pago até o presente momento. Outras ações orçamentárias para mulheres não foram citadas no PLOA para o ano que vem, como por exemplo, a Ação Políticas de Igualdade e Enfrentamento a Violência contra as Mulheres, que em 2020 conta com R$ 24 milhões, mas apenas R$ 1,5 milhão foram executados.

As políticas de enfrentamento ao racismo são de responsabilidade do MMFDH, que possui inclusive uma Secretaria Nacional dedicada ao tema. Todavia, assim como em 2020, não há recursos específicos para estas políticas, a não ser para o funcionamento do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial.

Sobre os quilombolas, o MMFDH também não destinou qualquer recurso para esse grupo, ainda que seja possível que verbas de ações mais genéricas possam ser alocadas ao longo de 2021. No que se refere à regularização fundiária dos territórios quilombolas, realizada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), a situação é vergonhosa: o PLOA 2021 prevê cerca de R$ 330 mil reais. Em 2020, R$ 3,2 milhões foram autorizados para esta ação, mas nada foi pago até o momento. O governo prevê R$ 80 milhões para Ações e Serviços de Saneamento Básico em Pequenas Comunidades Rurais ou Comunidades Tradicionais – entre elas, quilombos. O programa apresenta um valor significativo, considerando que em 2020 não teve dotação orçamentária. Contudo, os valores apresentados para 2021 são 20% menores que o efetivamente observado em 2019, quando a ação teve execução de R$ 100 milhões. O Programa de Segurança Alimentar e Nutricional, por sua vez, destinou R$ 18,6 milhões para a distribuição de alimentos a grupos populacionais tradicionais e específicos. Em 2020, essa política contou com R$ 7,2 milhões, mas até o momento foram pagos somente R$ 364 mil reais. Por fim, para a Fundação Cultural Palmares foram destinados apenas R$ 2,7 milhões, um corte de 35% em relação aos R$ 4,2 milhões autorizados em 2020, dos quais foram executados 50% até o momento.

Podemos aferir que a execução orçamentária das políticas para mulheres e população negra em 2020 está muito baixa e as perspectivas para 2021 não são promissoras.

Criança e adolescente: o desmonte das políticas da infância e adolescência

A política de promoção, proteção e defesa dos direitos da criança e do adolescente vem sendo progressivamente desmantelada. No PPA 2020-2023, a palavra adolescente sequer aparece e o programa voltado para o público em questão foi excluído. O único programa direcionado a esses sujeitos de direitos é o de Atenção Integral à Primeira Infância, que contém ações na área da assistência social para crianças desde a gestação até os 6 anos de idade. A proposta do orçamento do ano que vem apresenta valores inferiores aos disponíveis atualmente: o PLOA 2021 prevê R$ 448 milhões para este programa, 13% inferior ao previsto na PLOA 2020 e 7% a menos da dotação atual do programa.

Algumas outras ações direcionadas a crianças e adolescentes estão inseridas no programa Proteção à Vida, Fortalecimento da Família, Promoção e Defesa dos Direitos Humanos para Todos. A única ação orçamentária específica é a Construção, Reforma, Equipagem e Ampliação de Unidades de Atendimento Socioeducativo que tem alocação no PLOA 2021 de R$ 1,6 milhões, bem maior que a PLOA 2020, que tinha previsto apenas R$ 450 mil. Contudo, esse valor é 79% menor do que a dotação atual. Quanto ao Funcionamento do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, diferentemente do observado nas demais iniciativas, o valor previsto na PLOA 2021 é bem maior do que a PLOA 2020 e do que a dotação atual, R$450 mil, uma diferença de quase 90%.

O Projeto de Lei Orçamentária para 2021 aloca R$ 279 milhões para a Educação Infantil, 68,79% a mais do que a PLOA 2020. Deve-se garantir que esse valor seja aprovado pelo Congresso Nacional, pois o déficit de creches e de escolas de educação infantil é expressivo no Brasil. Por fim, em relação ao enfrentamento do trabalho infantil, o PLOA 2021 prevê um aumento de 60% em seus recursos. A execução dessas políticas em 2020, porém, está muito baixa. Urge, portanto, monitorar se os recursos prometidos de fato serão gastos para o combate ao trabalho infantil.

Confira o resumo dos principais pontos da análise.

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Pandemia escancara dura realidade de usuárias (os) do Transporte Público Urbano

O acesso ao transporte público – fundamental para o deslocamento de parte da população que ficou ainda mais vulnerável nesse momento de profunda crise – está entre os vários problemas sociais escancarados pela pandemia.

Os movimentos sociais por tarifa zero e pela mobilidade urbana sempre questionaram o modelo de oferta do serviço, que hoje acontece por meio da tarifa, calculada por passageiro e não pelo custo da operação, provocando superlotação e, em momentos de baixa circulação, falta de recursos para as empresas, que em tempos normais, lucram em cima da falta de qualidade.

Apenas em Brasília e São Paulo há recursos extratarifários, por meio dos orçamentos públicos locais. No entanto, como os contratos e licitações são sempre mais ao gosto das empresas do que da população, além de não haver fiscalização por parte do governo junto aos empresários, o subsídio não garante passagens acessíveis, ao contrário, Brasília tem uma das tarifas mais altas do Brasil.

Queda na utilização do TPU

Com a pandemia, houve uma queda no número de usuários do sistema, fazendo com que, em vários lugares, as empresas recorressem aos governos para terem um aporte de recursos que as permita continuarem atuando. Como o Transporte Público Urbano (TPU) é fundamental, não se espera que no pós-pandemia se tenha de enfrentar, entre tantas mazelas, a ausência desse serviço. Então, o aporte governamental é necessário, mas critérios de oferta do serviço, com qualidade e segurança para usuárias (os), precisam ser assegurados.

Além disso, tem-se que pensar em longo prazo, pois a crise instalada reforça a necessidade de repensar o sistema, fazendo dele uma política de fato pública, tal qual estabelecido no artigo 6º da Constituição Federal, que diz ser o transporte um direito social, ao lado de políticas como saúde, educação, moradia etc. E se é direito, precisa ser regulamentado para que a população o acesse com todas as premissas necessárias, como qualidade, acessibilidade, segurança, modicidade de tarifas, ou tarifa zero, como já está previsto na Política Nacional de Mobilidade Urbana.

Relevante dizer que em meio à pandemia, as frotas em várias cidades brasileiras foram reduzidas sem que fosse feito estudo para saber onde há maior demanda, que, em geral, são nas periferias, cujos moradores continuaram trabalhando e superlotando o TPU, com todos os riscos de contaminação, tanto de passageiros, quanto de motoristas. Pesquisa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) mostra que motoristas de ônibus têm 70% mais chances de se infectarem que outros trabalhadores, há registros de contágio, com alto índice de mortes, em todas as cidades brasileiras com sistema de transporte público. Entre os passageiros, a população periférica e negra é a mais afetada com a impossibilidade de cumprimento das regras impostas pela Organização Mundial de Saúde em transporte abarrotado de pessoas.

Várias pesquisas têm sido realizadas e há uma tendência da população a restringir o uso do transporte público por medo de contágio. Muitos dizem querer trocar por transporte individual motorizado. Caso a demanda por TPU reduza ainda mais, com o consequente aumento dos automóveis individuais motorizados nas vias públicas, as cidades, especialmente as maiores, ficarão inviáveis, pois muitas já estão com capacidade máxima de veículos em suas ruas.  As externalidades provocadas por tal processo vão além de tempo perdido, são mais acidentes, maior demanda para o Sistema Único de Saúde, mais poluição, maior emissão de gases de efeito estufa, agravando ainda mais o aquecimento do planeta.

Levando em consideração que nos últimos anos o TPU já vinha perdendo passageiros por inúmeras razões, como tarifas muito altas, falta de infraestrutura dedicada, superlotação, congestionamentos causados, principalmente, pelos automóveis, não é ocioso repetir que o modelo de lucro por passageiro exige, segundo a Associação Nacional de Empresa de Transportes (NTU), seis passageiros por metro quadrado. O que já era inviável em tempos normais, imagine em tempos de pandemia. Falta transparência sobre as operações, quem comanda todo o processo são os empresários, que certamente almejam as maiores taxas de lucro, a despeito do que é oferecido à população.

Fundo de financiamento do TPU

O que se propõe, então, é que o sistema seja repensado integralmente e não mais remunerado por tarifa, mas sim por fretamento de empresas, ou por empresas públicas, remunerando pelo custo da operação, com veículos suficientes para usuárias (os) trafegarem sentadas (os). Com segurança, tanto para trabalhadores, quanto para os passageiros, especialmente mulheres, que além de utilizarem transporte sem qualidade, ainda são alvo de assédios.

Para tanto, a criação de um fundo de financiamento do TPU é emergencial, a pandemia acelerou a necessidade de repensar a política e atender ao direito social por mobilidade com conforto e segurança, especialmente para a população periférica, que mais utiliza os modais públicos. E os usuários do transporte individual motorizado precisam contribuir para esse fundo, afinal, a maior parte da infraestrutura urbana, construída com recursos dos impostos de todas as pessoas, proprietárias de automóveis, ou não, é utilizada por veículos individuais. O TPU precisa disputar as vias com inúmeros carros particulares, sem que tenha infraestrutura própria, pois os corredores individuais não são regra, mas sim exceção.

O TPU é instrumento que contribui para a efetivação do direito à cidade para todas as pessoas. Sem mobilidade, esse direito não se realiza. E quando se pensa em transporte de qualidade, pensa-se em linhas para todas as localidades, com veículos suficientes, limpos e confortáveis, em todos os dias da semana e em diversos horários – não apenas para que se possa ir ao trabalho, como ocorre em vários lugares do país, em que o racismo institucional opera em todos os níveis, transformando o TPU em verdadeiros navios negreiros, citando um membro do Movimento Passe Livre- DF.

 

O ECA não opera milagres: precisamos superar o racismo

2020: Rayane Lopes, 10 anos – RJ (vítima de chacina); Otávio Miguel, 5 anos – PE (morto por frieza e desprezo da patroa da mãe); João Pedro, 14 anos – RJ (morto em operação policial na casa de parente); Luiza Gabriela, 15 anos e Brenda Weyne, 14 anos – CE (mortas por decretação); Rodrigo dos Santos, 16 anos – RJ (morto por tiros); Isaac Muniz, 1 ano – RJ (morto por bala dita perdida); Ana Carolina, 8 anos (morta em casa por bala dita perdida)… 2019:Ágatha Félix, 8 anos – RJ (morta por bala dita perdida); Rodrigo Silva Santos, 16 anos – BA (encontrado morto por tiros); Jenifer Silene, 11 anos – RJ (morta por bala dita perdida); Kauê Ribeiro, 12 anos – RJ (morto em operação policial); KauãRozário, 11 anos – RJ (morto por bala dita perdida); Kauan Peixoto, 12 anos – RJ (morto em tiroteio); Vitória C, 11 anos – RJ (morta por bala dita perdida); Athila Paixão, de 14 anos; Arthur Vinícius de Barros Silva Freitas, 14 anos; Bernardo Pisetta, 14 anos; Christian Esmério, 15 anos; Gedson Santos, 14 anos; Jorge Eduardo Santos, 15 anos; Pablo Henrique da Silva Matos, 14 anos; Rykelmo de Souza Vianna, 16 anos; Samuel Thomas Rosa, 15 anos; Vitor Isaías, 15 anos – RJ (mortos em incêndio no alojamento do Flamengo); Gustavo Xavier, 14 anos; Denys Henrique, 16 anos; Marcos Paulo Santos, 16 anos; Dennys Guilherme, 16 anos – SP (mortos em ação policial em baile funk); 2018: Guilherme Henrique Pereira, 14 anos – RJ (morto por tiros); Marcus Vinícius da Silva, 14 anos – RJ (morto em operação policial); Emily Sofia, 3 anos – RJ (morta por tiro em assalto); Marlon Andrade, 10 anos – RJ (morto por bala dita perdida); Jeremias Moraes, 13 anos – RJ (morto por bala dita perdida); Benjamin Silva, 2 anos – RJ (morto por bala dita perdida); Larissa Soeiro Maia, 14 anos – RJ (morta por bala dita perdida); Maria Eduarda, 13 anos – RJ (morta por bala dita perdida na escola)…

Não por acaso, todas as vítimas eram negras. A infância e adolescência negras seguem desumanizadas.

Segundo o relatório do Unicef“30 anos da convenção sobre os direitos da criança: avanços e desafios para meninas e meninos no Brasil” (2019), os adolescentes assassinados “são, em sua maioria, meninos negros, pobres, que vivem nas periferias e áreas metropolitanas das grandes cidades”. O número de homicídios de crianças e adolescentes no Brasil aumentou 47,3% nos últimos 10 anos. Ainda segundo o estudo, no Estado de São Paulo, adolescentes têm 85% mais chances de morrer vítimas de homicídios do que a população em geral. De acordo com o Comitê Cearense pela prevenção de homicídios na adolescência, em 2020, o número de assassinatos de adolescentes por dia naquele estado dobrou em relação a 2019.

O Brasil nasceu violento, intolerante, racista e vem promovendo exclusão e morte desde então. Nunca houve tréguas, mas houve momentos em que algum constrangimento inibiu agressões, em outros,  circunstâncias em que a violência é instituída numa normalidade perversa.Oitenta  tiros por militares no carro de um músico com a sua família é um episódio emblemático do quanto o estado é promotor da violência racista, assim como a morte de Maria Eduarda na escola “Hoje foi executada com três tiros, pela Polícia Militar, um na cabeça, um na nuca e outro nas costas, uma menina de 13 anos. Dentro da escola, em aula. Não é a primeira e não será a última. Morreu com black na cabeça, camisa e bermuda do uniforme da prefeitura do Rio de Janeiro, e um tênis rosa” – relato anônimo de um professor (2018). A morte da menina foi tratada como uma fatalidade da guerra do tráfico.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) veio como uma reação popular à inaceitável prática de assassinato de crianças pobres que se registrava no momento; muitos eram cometidos por milícias comprometidas com os comerciantes locais. Até então, o Código de Menores se incumbia de criminalizar as infâncias pobres sem compromisso com a defesa e promoção de direitos. Toda autoridade se concentrava nas mãos do Juizado de Menores que enfocava no ‘potencial criminoso’ de meninos e meninas pretas e pobres.

O que mudou?

A lei, que recentemente completou 30 anos, é democrática,tanto por conta da participação social na sua elaboração, como pelo seu conteúdo. Nenhuma criança ou adolescente fica de fora.Pela primeira vez, o país reconheceu meninos e meninas como sujeitos de direitos no momento presente.Conseguimos mudar muita coisa e celebramos isso. Com o ECA, veio a descentralização da política de atendimento, que agora é ancorada no princípio da proteção integral. Todas as políticas públicas são convocadas a abraçar todas e cada criança e adolescente assegurando-lhes condições para a vida digna.

Estranho. Assegurar, garantir, dignidade… palavras que não encontram eco nas vidas de muitas crianças e adolescentes.Colorações diferentes definem modos diversos de experimentar a vida. Privilégios e intolerâncias determinam suas vivências e direito não pode ser confundido com privilégio.Um país, ao não assegurar condições de vida e pleno desenvolvimento para crianças e adolescentes,está investindo no encarceramento e morte dessa parcela da sociedade. A lei que ampara e protege tem desafios quanto ao processo educativo para o reconhecimento das infâncias e adolescências que se desenvolvem em corpos não brancos. A cultura racista enraizada em nosso país revela que o não investimento em políticas públicas de proteção que garantam efetivação nas ações do ECA fomenta a desigualdade que mantém grande parte das crianças à margem do processo de cidadania.

A violência seletiva faz vítimas entre determinados grupos. Ainda de acordo com o Unicef, a cada dia, 32 crianças e adolescentes morrem assassinadas no Brasil, sendo a maioria negra. Meninos e meninas negras são as mais penalizadas na medida socioeducativa de restrição de liberdade. O número de internação aumentou em 57% em oito anos, em contradição com o que apregoa o ECA de excepcionalidade, em caso de maior gravidade. Na pandemia esta tendência terá que ser revista, sob o risco de contaminação em massa.

Crianças e adolescentes indígenas frágeis frente à pandemia, sem acesso à saúde, no confronto com os posseiros, têm seus pais e parentes mortos, e seus territórios roubados. Crianças e adolescentes quilombolas vivem o mesmo abandono que as indígenas e as crianças ciganas ainda carregam outras formas de exclusão, discriminação e violência.Não há infância sem suas complexas relações familiares, comunitárias e ambientais, portanto, sem direitos comunitários, não há vida digna.

O ECA não opera milagres. A grande conquista que significou o novo marco legal deixa de fazer sentido quando o poder público e a sociedade têm práticas e são estimulados a operar segundo parâmetros excludentes.

O direito não se concretiza sem políticas públicas universalizadas, e cada política depende do orçamento a ela destinado. Mas, não basta orçamento, é necessária, antes de tudo, uma concepção de proteção e promoção de direitos com premissas antirracistas que cheguem às vidas, fazendo o texto reverberar no cotidiano de cada criança e em suas respectivas comunidades.

Celebramos os 30 anos do ECA e convocamos a uma efetivação urgente que alcance a todos as infâncias e adolescência sem distinção de cor, raça, credo, religião, orientação sexual. Nesse exercício, celebrar é monitorar, cobrar que a lei seja cumprida, é cobrar orçamento público e execução desse recurso,bem como o fim das práticas das mãos racistas,que a todo tempo violam infâncias. Garantir proteção às diversidades das infâncias e adolescências é celebrar o ECA.

Sem políticas de proteção, ficar em casa é seguro?

Negligência, castigos físicos, abandono, abusos, humilhação, tortura, isolamento, racismo, violência sexual, envenenamento, chantagem, privações, tráfico de órgãos, exclusão, expulsão de lares e de escolas, censura, espancamento, silenciamento, pornografia, casamento infantil… são modalidades de violência contra crianças presentes na sociedade brasileira em diferentes graus. Muitas destas práticas culminam em morte, outras em automutilação e todas produzem sofrimento.

No dia 4 de junho de 1982 a ONU estabeleceu o Dia Mundial Contra Agressão Infantil. Certamente a data nasce com o intuito de provocar indignação, reflexão, para mudar comportamentos e culturas que vitimizam milhões de crianças no mundo a cada ano.

O que está por trás dessas violências? A desumanização da criança é um modo de relacionamento entre gerações. Não são todas as culturas que desqualificam o velho e a criança, mas as que o fazem provocam estragos muitas vezes insuperáveis. O maior problema é quando a violência não é notada, pois a sua naturalização a torna imperceptível. Ela é cotidiana e muitas crianças não conhecem outro modo de estar no mundo.

Vidas de crianças negras importam

Somada à desumanização por conta da idade, quando a criança é negra, sofre as consequências do racismo cometidas pela sociedade que privilegia as elites brancas que se recusam a compartilhar a condição humana com pessoas negras, indígenas e ciganas. Crianças negras experimentam a violência racial nas ruas, escolas, parquinhos e hospitais, ora sendo agredidas, ora sendo negligenciadas. Meninos e meninas negras são violentados diretamente a ponto de não se sentirem seguros para ir à escola ou perderem perspectivas de afeto. O adolescente negro é logo visto como delinqüente, marginal ou traficante, sendo frequentemente abordado pela polícia, muitas vezes como vítimas fatais ou mesmo submetido a terríveis castigos físicos e psicológicos, como o garoto torturado nu no Supermercado Ricoy em São Paulo (2019). A menina negra é frequentemente abordada pela sua sexualidade e tratada como pequena prostituta, como o caso em que uma juíza condenou uma adolescente de 15 anos a ficar presa em uma cela com 30 homens adultos – Abaetetuba, Pará (2007) onde sofreu obviamente as mais bárbaras violências sexuais.

Enfim, o cenário nos indica que é preocupante o quadro de violência contra crianças e adolescentes. Há uma certa naturalização da violência e culpabilização da vítima, fato que se percebe nos grupos socialmente mais excluídos que demandam proteção específica, como crianças e adolescentes  negras, indígenas e ciganas.

Sem presente, à espera do futuro

Nos discursos institucionais a infância é tratada como um ‘vir a ser’ como se não existissem hoje e a sua importância social está apenas na sua condição futura, como se suas vidas estivessem condicionadas a um inatingível depois. Falta-lhes o reconhecimento como cidadãs hoje. Desprezadas, acabam sendo alvos fáceis dos desmandos e das perversidades dos adultos.

Relatório Covid-19 Aftershocksda Visão Mundial, organização cristã de desenvolvimento e resposta às situações de emergência,estima que até 85 milhões de crianças e adolescentes no mundo estão vulneráveisa sofrer violência no período da pandemia da Covid-19. O aumento representa em torno de 20% a 32% da média atual,de acordo com as estatísticas oficiais – uma alta atribuída às medidas de isolamento social que visam frear o avanço do novo coronavírus no mundo.

Violência em casa

No Brasil, quase 70% da violência sexual contra crianças no Brasil ocorre nas casas das vítimas e 34 % em caráter de repetição, segundo o Boletim Epidemiológico 27 (2018) do Ministério da Saúde. Nota-se, portanto, que a prática é habitual na medida em que há registros da recorrência. Considerando que crianças encontram muita dificuldade em fazer uma denúncia, seja por medo, insegurança, desconhecimento ou constrangimento,sabemos que lidamos com uma realidade muito mais desafiadora do que mostram os dados.

A informação nos alerta ao fato de que ao proteger da pandemia, é provável que estejamos submetendo crianças e adolescentes a um outro perigo. Mais uma tragédia anunciada.Sabendo disso, é imperativo que se apresente urgentemente um plano de proteção, redução de riscos. Não é o caso de se abrir mão do isolamento social. A questão é assegurarproteção no sentido mais amplo, é a proteção concebida peloEstatuto da Criança e do Adolescente (ECA), sobre o direito ao respeito:

Artigo 17 – O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais.

Ainda levando em conta a legislação brasileira sobre os direitos da criança e do adolescente, o direito à saúde preconiza:

Art. 7º A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência.

Não é o caso de um direito em detrimento do outro. O isolamento social é comprovadamente a forma mais eficaz para a proteção contra a contaminação pelo novo coronavírus. Portanto, as crianças e os adolescentes devem estar duplamente protegidos.

A proteção integral, fundamento do Estatuto da Criança e do Adolescente, requer todos os direitos ao mesmo tempo. Diante do desafio, perguntamos o que o governo federal propõe para minimizar o risco da violência em casa?  A depender do orçamento público não há perspectivas.

Em 2019 apesar de ter um valor ínfimo para enfrentar violências contra crianças e adolescentes, nada foi gasto. Sem orçamento não há política pública.

O governo federal precisa apresentar, urgentemente, um programa de ações para enfrentamento das violências contra crianças e adolescentes nesse período. Esse é um momento ainda mais oportuno para realizar campanhas e formações que dialoguem sobre o que é violência e sobre prevenção, sobre como garantir a segurança de crianças e adolescentes, como e onde denunciar de forma protegida.

A educação é elemento chave para a redução da violência contra crianças que deve vir articulada com programas de suporte às famílias para redução do estresse. Defendemos uma educação que assegure adultos preparados e instituições dispostas a novas formas de relação intergeracional onde se exercite diariamente a arte do diálogo e do respeito e crianças educadas para serem plenas.

A pandemia aprofundou a exclusão dos povos amazônicos

Se está difícil pensar a conjuntura política nacional, analisar a realidade amazônica (na sua porção brasileira) apresenta o desafio particular de comunicar sobre uma região ainda desconhecida, num país que é lido a partir das suas grandes capitais no centro-sul.

Por isso, e aproveitando a metáfora do vírus como ameaça intangível, este é um texto sobre a diferença impossível. Este é um texto sobre aquilo que o desenho das políticas de massa raramente alcança, seja porque incorpora o cálculo das perdas ao seu desenho, seja porque investe na disciplina de toda diferença cultural.

Indígenas, quilombolas, ribeirinhos, camponeses, caiçaras, raizeiras, quebradeiras-de-coco, entre outros grupos, são alvos desta política de apagamento. E no contexto de um governo comandado pela aliança entre militares, conservadores e extrema-direita (ao qual se somou a complicação de uma pandemia global) não é preciso muito para que se configure uma situação de extermínio interessado.

O governo brasileiro não está paralisado em meio à pandemia. Ele tem trabalhado em favor do acirramento da exploração dos recursos da natureza e das comunidades que se relacionam mais diretamente com ela. Exemplo disso, se, por um lado, a tramitação do PL 1142, que institui o Plano Emergencial de enfrentamento da Covid-19 para Povos e Comunidades Tradicionais (PCTs), se arrasta, por outro lado, assusta a velocidade vertiginosa com que projetos de lei contrários aos direitos territoriais desses grupos, como PL 2633, são considerados.

“Só tem um povo nesse país”

Na reunião ministerial do dia 22 de março, que foi tornada pública por supostamente comprovar as tentativas de intervenção do presidente da República na Polícia Federal, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, declarou odiar o termo “povos indígenas” e “povo cigano”. Para completar, Weintraub afirmou existir apenas um povo no país.

No Brasil, a pluralidade de nacionalidades foi reconhecida constitucionalmente (capítulo VIII, art. 231 e 232) em 1988. A declaração do ministro fere, portanto, um princípio constitucional. Mas é verdade que a burocracia de governo opera, no cotidiano, esta presunção de homogeneidade. O que distingue a lógica da rotina burocrática e o enunciado do ministro é, de um lado, a potência da presunção (a dúvida), e, do outro lado, a força de uma afirmação “evidente” (a certeza, destrutiva e com tonalidade autoritária).

O problema da inclusão

A assimilação é o problema da inclusão. Políticas de inclusão, mesmo as mais bem-intencionadas, são por definição assimilacionistas. A consideração de grupos étnicos ou culturalmente diversos no âmbito das políticas assistenciais, por exemplo, de transferência de renda ou de saúde, ocorre frequentemente pelo ponto de vista (macro) da nação.

Isso significa que, para o Estado, PCTs precisam ser integrados às estatísticas de pobreza e desigualdade estrutural a fim de fazerem “sentido”. A discussão sobre se os modos de vida dos PCTs são ou não “pobreza” é longa. Porque “pobreza” é um fenômeno moderno e ocidental que não cabe na cosmologia desses povos e comunidades.

Outro elemento para discussão, a “raça” é uma ideia que organiza o exercício de separação, classificação e adequação desses grupos, “os pobres” do campo e da floresta, a políticas universais. E a geografia acaba delimitando o lugar dos corpos matáveis e morríveis. Nesse sentido, é possível falar sobre um extermínio físico e também cultural.

Construir políticas públicas para a Amazônia é, portanto, um desafio. Pois, a região norte do país é não só singular na comparação com o resto do território brasileiro, como reúne (e acolhe) culturas diversas.

O problema é justamente que essas culturas diversas nem sempre respondem ou querem viver segundo os objetivos do desenvolvimento definidos nos grandes centros urbanos e financeiros. A estratégia bolsonarista, que foi capaz de produzir o “agro-indígena”, discurso violento e civilizatório, se conecta com a percepção de que é preciso forçar uma mudança de comportamento desses grupos.

No contexto da Covid-19, a dificuldade do Estado para mapear os infectados e controlar o ritmo do contágio da doença denuncia uma falha antiga da governança das políticas públicas, a universalidade acachapante e colonialista, mas também aponta o desinteresse atual no que se refere ao cuidado e à proteção da população. Como disse Weintraub, quem não se conformar que vá embora (ame-nos ou deixe-nos).

O contexto econômico da pandemia

A pandemia causada pelo coronavírus chega no contexto de crise e atualização do regime de acumulação e das suas formas de exploração. Esse processo vem causando transformações profundas no modo de organização do Estado, bem como na sua relação com a sociedade e as corporações.

A economia verde, o desenvolvimento sustentável ou as soluções comerciais para a crise climática baseadas na natureza são, hoje, fronteiras do capitalismo, na atual fase do neoliberalismo.

Daí testemunharmos o acirramento dos processos de apropriação fundiária por interesses privados, bem como ataques reiterados a grupos para os quais a terra significa mais do que um ativo financeiro. Nova economia e velha economia sempre andam juntas, e às vezes chegam a se confundir.

Esse movimento de renovação econômica por meio de velhas práticas segue um roteiro conhecido: desmatamento, grilagem, despossessão ou apropriação ilegal e violenta de terras, expansão da fronteira agrícola, da pecuária e da mineração para áreas protegidas ou terras públicas sem destinação.

É importante lembrar, como mostrou recentemente uma declaração do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Sales, que o governo não está alheio a este processo e cumpre uma função primordial: em nome do desenvolvimento, é dever do Estado realizar o planejamento econômico setorial, organizando as oportunidades de mercado para as empresas.

Esta é uma percepção da natureza e da população como ativos econômicos/financeiros sob posse do Estado. Natureza e povo devem trabalhar para o desenvolvimento. E o Estado deve trabalhar para permitir a colonização, isto é, a “modernização”, do território, a sujeição do “outro” indomável.

As políticas de saúde

O Sistema Único de Saúde (SUS) ocupa um lugar de importância inquestionável no cuidado com a saúde dos brasileiros. No entanto, o desmonte orçamentário que o atingiu nos últimos anos, bem como a adoção de um modelo de governança fragmentado, que delega muito à iniciativa privada, faz com que ele desempenhe, hoje, um papel-chave na estratégia genocida da extrema direita que governa o país.

A ineficiência “estrutural” do sistema justifica antecipadamente as dificuldades encontradas durante a crise da Covid-19.

A saúde como política pública é resultado da luta social, mas também responde a um serviço fundamental para a reprodução do trabalho, portanto, do valor e do lucro. A compreensão da política sanitária não pode ser reduzida à promoção da felicidade e do bem-estar. Pois ela tem uma função no regime de acumulação, na medida em que se destina a “consertar” trabalhadores para devolvê-los ao mundo da produção.

Além disso, é preciso considerar, como ensina a história, que a saúde também é instrumento de política demográfica e de eugenia.

No norte do país, a estrutura do SUS não parece considerar as características demográficas e infraestruturais peculiares da região. A assistência ambulatorial básica não encontra respaldo em estruturas hospitalares mais complexas, dificultando o acesso ao atendimento e sobrecarregando o sistema das capitais na região.

Com densidade populacional menor e com maiores distâncias a percorrer até o atendimento emergencial, a desassistência é grande. No contexto da Covid-19, esse cenário contribui para elevar o nível (já alto) de subnotificações, refletindo mortes domiciliares. Quem morre as mortes evitáveis nestas condições são indígenas, quilombolas, ribeirinhos, camponeses…

E daí!?, disse o presidente

O “e daí!?” de Jair Bolsonaro substitui um dar de ombros simplório, uma lamentação rasa e distante, uma verdadeira psicopatia do poder constituído. Por outro lado, a reação do presidente não denota loucura ou má compreensão dos fatos. Sob a razão neoliberal, aqueles que foram acometidos por uma doença e morrem falharam individualmente.

O raciocínio, nu e cru, é que mortos e infectados foram incapazes de se proteger (e muitas vezes também às suas famílias), devendo assumir a responsabilidade por essa fraqueza. Não conseguir pagar pelo tratamento ou pelo remédio adequado basta para justificar o sofrimento e a morte.

O neoliberalismo funciona na base do toma lá dá cá, tal qual a rudeza bolsonarista.

A evolução ascendente da Covid-19 transformou-se num drama nacional, mas não pode ser lida apenas por este viés. Ao chegar, ela acelerou um processo de mudança que já estava em curso (ao menos desde 2008).

Esta doença atua sobre a necessária reconfiguração das sensibilidades para uma nova era histórica: a do estado corporativo, do individualismo possessivo como liberdade, da servidão como novo regime de trabalho e organização social, do endividamento como dispositivo primordial para alavancagem do valor.

Não há lugar para visões de mundo alternativas nesse neoliberalismo extremista e conservador. A pandemia, além de tudo, reforçou o vigilantismo de uma lógica de governo autoritária.

O mundo depois da pandemia será outro. Esta é a única certeza que pode ser dita agora. Mas a boa notícia é que tudo isso não chega sem enfrentamento. Iniciativas de solidariedade e resistência têm surgido em várias partes do mundo, do norte ao sul global.

Se não quisermos que as coisas sigam o velho normal, precisaremos ser capazes de conceber um Estado em que a diferença seja possível, onde todos caibam nele e possam se expressar na sua singularidade. Sem abrir espaço para esse “mundo embaralhado” nossos esforços de combate serão perdidos.

Deixar-se morrer não é uma opção

No dia 20 de março, quando os casos de covid-19 não haviam chegado ainda à casa do milhar no país, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) escreveu uma nota exigindo do Governo Federal a implementação de um Plano de Ação Emergencial para preservar as comunidades diante da chegada da pandemia. As reivindicações apontavam em duas direções: aprimoramento do Subsistema de Saúde Indígena, incluindo dotação orçamentária adicional, e proteção dos territórios para que as comunidades pudessem evitar a chegada do vírus.

Como esperado, o governo fez o oposto. À já desmontada Funai, cujo estrangulamento orçamentário analisamos em relatório recente, impôs a Instrução Normativa n. 9 que, junto ao PL2633, incentiva e regulariza a grilagem das terras indígenas. Como é fácil de prever, a invasão dos territórios por gente estranha à comunidade é uma das causas da disseminação do vírus nas aldeias, somada a habitual violência dos conflitos fundiários. Além disso, a Sesai que se depara com a pandemia é a mesma que vem sofrendo com as tentativas sistemáticas de desmantelamento do modelo de saúde diferenciada. O PL1142, que institui o Plano Emergencial de enfrentamento da Covid-19 para Povos e Comunidades Tradicionais, foi aprovado apenas no dia 21/05 na Câmara dos Deputados, e segue aguardando a tramitação no Senado. Enquanto isso, os povos indígenas insistem em viver e nos mostram a urgência de aprendermos, nós também, a adiarmos os fins de mundo.

Nova epidemia, velho pesadelo

As epidemias são parte do pacote perverso com o qual os indígenas lidam desde o começo da colonização. A contaminação por doenças de branco serviu como arma contra as populações originárias desde a invasão de suas terras pelos portugueses. Agora, 520 anos depois, o novo coronavírus reedita o pesadelo que, a bem da verdade, nunca cessou.

Ainda em abril, a Fundação Oswaldo Cruz divulgou um relatório no qual apontava as terras indígenas de maior vulnerabilidade à chegada do vírus. Segundo o documento, 34% dos indígenas residiam em municípios de alto risco de contaminação naquele mês, antes, portanto, da interiorização da doença. Já o indicador construído pelo Instituto Socioambiental, atualizado em tempo real, mostra que há territórios de alto risco em todo o país, sendo a região amazônica a principal afetada. Hoje, segundo dados coletados pela Apib, são 610 indígenas contaminados pelo novo coronavírus, 44 povos atingidos e 103 mortos.

Rondinelli Fulni-ô. Foto: Raíssa Azeredo
Feliciano Lana
Aldenor Basques Félix Gutchicü

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Os números, como a Apib faz sempre questão de frisar, são antes de tudo pessoas, com sonhos, trajetórias, histórias. São como Rondinelli Fulni-ô, 42 anos, cantor e artesão. Ou como o Tikuna Aldenor Basques Félix Gutchicü, um dos articuladores do Curso de Pedagogia Intercultural da Universidade do Estado do Amazonas. Ou ainda como o ilustrador Desana Feliciano Lana, de 83 anos.  Muitos deles, ainda que não todos, idosos. Talvez nos escape o significado das mortes dos velhos. Como povo da mercadoria, vemos no idoso aquele que já não produz, que só dá despesa. Como bem ressaltou a carta da Assembleia da Resistência Indígena, para esses povos é justo o contrário. Os anciões são pilares de saberes, seus melhores professores. As perdas são incalculáveis.

Solidariedade

Diante de um governo de política abertamente genocida e assimilacionista, a disseminação da Covid-19 entre os indígenas não é um problema, mas uma mãozinha, uma ajuda no projeto de morte. Por outro lado, como fazem há 500 anos, o que as comunidades estão nos mostrando é que deixar-se morrer não é uma opção. Contra a intencional subnotificação estatal, multiplicam-se as iniciativas de monitoramento autônomo, que se negam a enterrar parentes na invisibilidade. Contra a política assassina, a organização da vida, explícita em iniciativas como a construção de cartilhas de conscientização na língua como as feitas pela Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) distribuída em territórios como a já colapsada São Gabriel da Cachoeira (AM) ou produção de equipamentos de proteção individuais que tem sido feita pelos Fulni-ô em Aguas Belas (PE). Contra a indiferença, as dezenas de campanhas de solidariedade.

Alguns de nós talvez ainda não tivéssemos nos dado conta de como o neoliberalismo é, muito mais que um regime econômico, uma forma de produzir subjetividades. O sujeito neoliberal é esse, que faz questão de usar o corpo como vetor de contágio nas ruas, que diz que as vidas importam menos que a economia, que fala os “e daís?” que escutamos diariamente. A nossa luta passa, portanto, fundamentalmente por nos contrapor a essa forma de estar no mundo, tal como essas dezenas de iniciativas já estão fazendo no cotidiano das comunidades. Se, como declarou Djuena Tikuna, para os povos indígenas estar vivo é um ato de rebeldia, é nessa e em outras rebeldias perenes que encontraremos saída para esse buraco – da pandemia, mas também do capitalismo extrativista, do colapso climático – que estamos todos/as.

Apoie as iniciativas de solidariedade às comunidades indígenas.

Há recursos para salvar as mulheres na pandemia: Damares precisa gastar

Para além das consequências na saúde da população decorrentes da contaminação pelo novo coronavírus, há um debate amplo hoje sobre os impactos econômicos, sociais, políticos e culturais que estão postos para a sociedade.

Um resultado perverso da pandemia é o aumento da violência doméstica: obrigadas a estarem confinadas com os agressores devido ao isolamento social, e com o aprofundamento da pobreza em territórios mais vulneráveis, muitas mulheres encontram-se sem alternativas de proteção. De acordo com a Folha, o número de assassinatos quase dobrou no estado de São Paulo no período da quarentena.

Ocorre que depois de cinco anos de subfinanciamento das políticas para as mulheres, como mostrou o estudo do Inesc “O Brasil com baixa imunidade”, o governo dispõe agora de surpreendentes R$425[1] milhões alocados no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MDH). Deste montante, R$45 milhões são da Ação Orçamentária 21C0: Enfrentamento da Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional decorrente do Coronavírus.

Porém, até meados de maio de 2020, o ministério executou somente R$11,3 milhões, o equivalente a 2,6% do que está disponível. E o governo ainda não apresentou à sociedade como pretende efetivar o gasto deste recurso: a execução depende de vontade política e realização de contratos (licitações, convênios), que já foram facilitados pela Medida Provisória 926/2020.

No dia 2 de abril, a ministra Damares Alves, à frente da pasta, anunciou ações de combate à violência contra as mulheres no contexto da pandemia, e duas campanhas informativas foram lançadas nos dias subsequentes: uma com o objetivo de mobilizar os vizinhos para denúncias e outra para orientar mulheres neste período, por meio de uma cartilha que traz informações sobre os serviços de atendimento disponíveis.

No entanto, como a própria cartilha informa, a maioria dos serviços, exceto as delegacias especializadas e os ambulatórios de saúde, estão com o atendimento restrito. É o caso da Casa da Mulher Brasileira, presente em seis capitais e dos centros de referência de atendimento à mulher, ambos fechados durante a pandemia, atendendo de forma virtual.

Se aterrissarmos nosso olhar nos territórios periféricos e mais pobres do país, podemos imaginar a dificuldade para uma mulher, sem trabalho, com filhos, convivendo com o agressor, realizar uma ligação como essa no contexto de violência doméstica, o que dirá acessar um site para ter atendimento ou mesmo para leitura da cartilha.

Projetos na Câmara dos Deputados

Alguns Projetos de Lei foram apresentados na Câmara dos Deputados para o enfrentamento real à violência doméstica durante o isolamento social: o projeto da deputada Sâmia Bomfim (PSOL-SP) prevê acolhimento para mulheres e seus filhos em equipamentos seguros, com deslocamento a estes espaços garantido pelo poder público, e, na ausência de vagas, disponibilidade de pousadas e hotéis, visando que as mulheres possam de fato sair de casa e se afastarem do risco.

A deputada Talíria Petrone (PSOL-SP) também apresentou projeto para ampliação dos serviços de atendimento virtual e telefônico com garantia de gratuidade no acesso – importante, considerando que as mulheres pobres, em sua maioria negras, tem pouco ou nenhum acesso à internet. Por fim, a deputada Maria do Rosário (PT-RS) apresentou projeto para obrigatoriedade do atendimento presencial em casos de estupro e tentativa de feminicídio. Todos estes projetos precisarão de recursos, se aprovados, para se efetivarem nos estados e municípios.

Além dos R$45 milhões específicos para o combate à Covid-19, dos R$425 milhões disponíveis hoje para serem gastos pelo MDH já existem linhas orçamentárias específicas para mulheres, como R$25 milhões para “Políticas de Igualdade e Enfrentamento à Violência” (Ação 218B); R$66 milhões para a “Construção da Casa da Mulher Brasileira e de Centros de Atendimento às Mulheres em Fronteira Seca” (Ação 14XS); e R$46 milhões para os canais de atendimento, Ligue 100 e Ligue 180 (Ação 21AU/PO0003). Outras linhas podem ser alocadas para o combate à violência doméstica.

Indígenas e quilombolas

No caso das mulheres indígenas e quilombolas, grupos que o MDH também tem atribuição de atender, a violência se manifesta na invasão dos territórios, presente mesmo no período da pandemia, e na incapacidade do governo em prover serviços de saúde e proteção social – a política de saúde indígena está em frangalhos, e as quilombolas nem sequer contam com um desenho de saúde pública que atenda suas realidades culturais e territoriais específicas.

A ministra anunciou – e as redes sociais da família Bolsonaro repercutiram – R$ 4,2 bilhões para estes públicos. No entanto, esse montante é composto, em parte, pela renda básica emergencial (R$ 3,2 bi) e custeio de merenda escolar (R$ 1,5 bi), ou seja, recursos a serem executados por outros ministérios.

No que diz respeito à renda emergencial, o governo terá que dizer como superar a dificuldade de acesso ao benefício justamente pelos povos e comunidades tradicionais, seja pela exclusão digital, as restrições da regulamentação (como CPF regular), mas também pelo desenho desta política não considerar especificidades culturais, como as línguas indígenas.

No caso da alimentação escolar, o recurso autorizado para 2020 foi de R$ 4,1 bilhões, dos quais já foram executados R$ 1,4 bilhão. Em 30 de março, o Senado aprovou, em regime de urgência, que os alunos da rede pública recebam os itens alimentícios mesmo com as escolas fechadas por causa do coronavírus, mas não encontramos informações de como os municípios tem realizado a entrega destes alimentos. Destacamos, ainda, que dos R$425 milhões disponíveis no MDH, nenhum recurso foi alocado especificamente para indígenas e quilombolas. Aliás, os quilombolas foram subtraídos do Plano Plurianual do governo Bolsonaro (PPA 2020-2023), uma atitude tanto simbólica quanto expressiva do racismo institucional deliberado desta gestão.

O tempo está passando e as mulheres estão morrendo

Há recursos disponíveis para salvar a vida das mulheres. O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos não pode apenas fazer campanhas informativas que, no limite, comunicam que os serviços não estão funcionando.  Nem pode promover malabarismos com os dados orçamentários para gerar notícias, quando nos territórios indígenas e quilombolas a situação é calamitosa. É urgente que os recursos do MDH saiam de Brasília e cheguem aos rincões do Brasil, por meio dos instrumentos legais existentes, como convênios com prefeituras.  O que não podemos aceitar é o que está acontecendo, disponibilidade de recursos e baixíssima execução. Incompetência ou vidas de mulheres não importam?

[1] Fonte: Portal Siga Brasil. Acesso em 12 de maio de 2020, todos os dados corrigidos pelo IPCA.

Pandemia não é carnaval! Sem recursos, não há enfrentamento à violência sexual

A medida mais segura para deter o avanço da pandemia da Covid-19 é a quarentena. “Fica em casa” é o nosso mantra a despeito de um governo federal irresponsável que faz uma queda de braço com cientistas e médicos de todo o mundo.

A maioria das famílias das periferias vive da renda do comércio informal exercido nas ruas, do trabalho doméstico e outros não protegidos. As favelas estão enfrentando as maiores dificuldades por tudo o que já tem sido dito: falta de equipamentos públicos de saúde (leitos e respiradores) e de assistência, falta de espaço para o isolamento ideal, fornecimento de água irregular, queda drástica dos proventos e, por fim, racismo estrutural que move pessoas negras para o fim da fila.

As comunidades têm se organizado com redes de comunicação próprias, ações de solidariedade e organização política. Mas nada disso é suficiente para reverter o cenário de ameaças que recai sobre a sua população. A letalidade dos moradores de periferia é comprovadamente mais elevada num país em que o sistema de privilégios determina quais vidas devem ser salvas.

A questão fundamental é que o confinamento acentua os riscos de abuso e violência para mulheres e crianças, das mais ricas às mais pobres. O confinamento expõe a criança mais tempo à presença do agressor de modo a não haver momento de alívio, nem contato com redes de proteção, como escolas, conselhos tutelares e outros familiares.

A redução de ganhos da família por desligamento de trabalhos ou mesmo por ter suas atividades laborais suspensas temporariamente empurra crianças e adolescentes para o trabalho infantil e, na pior das instâncias, à exploração sexual.

O problema não acontece só no Brasil. Relatório de abril de 2020 da Europol, inteligência da União Europeia, revela que as organizações criminosas têm mudado suas formas de atuar. Enquanto houve redução dos crimes de tráfico e de contrabando, registrou-se aumento significativo de produção e consumo de pornografia infantil.

Maio é mês de combate à violência sexual. Dia 18 de maio traz o lema: “esquecer é permitir, lembrar é combater”. Vamos então recordar dados de anos anteriores. Segundo o Boletim Epidemiológico 27 do Ministério da Saúde (2018), entre 2011 e 2017, houve 184.524 casos notificados de violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil. Sabe-se, no entanto, que esta modalidade de violência é bastante subnotificada por motivo de constrangimento, insegurança, medo e desinformação. Das vítimas, 74,2% eram meninas enquanto 25,8% eram meninos. Segundo o referido Boletim Epidemiológico, entre as meninas, 51,2% estavam na faixa etária de  1 a5 anos e 42,9%  encontravam-se entre 6 e 9 anos. Chama a atenção o fato de 69,2% ter ocorrido dentro de casa, sendo que 33,7% com caráter de repetição, evidenciando que o lar não é necessariamente ambiente seguro. Em tempos de pandemia, ao se proteger do vírus, é possível que estejamos expondo crianças a outros riscos.

Espera-se com este cenário aterrador uma posição incisiva do governo para enfrentar com seriedade e responsabilidade uma violência tão previsível e anunciada. Por ingenuidade ou desprezo pela vida a Ministra Damares Alves do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos anunciou que vai promover um concurso para estimular o uso de máscaras com estampas lúdicas para crianças. A proposta pode ser singela, mas urgem iniciativas mais contundentes, afinal, pandemia não é carnaval! Pandemia promove uma sobreposição de riscos, ameaças e violências e requer respostas sérias, organizadas e rápidas. Esse é um momento ainda mais propício para realizar campanhas e formações que dialoguem sobre o que é violência sexual e sobre prevenção, sobre como se proteger e proteger crianças e adolescentes, como e onde denunciar de forma protegida.

Orçamento Público para enfrentamento da violência sexual

Analisando o orçamento público referente ao enfrentamento à violência sexual de 2013 a 2019 percebeu-se uma redução drástica de recursos públicos destinados especificamente ao enfrentamento da violência sexual de crianças e adolescentes, chegando ao seu desaparecimento em 2019, como pode ser visto na tabela a seguir. O que também indica despreparo do governo federal para atuar na prevenção das violências contra crianças e adolescentes nesse período de pandemia em que é necessário o isolamento social.

Desde 2017, o termo violência sexual passou a ser integrado a um Plano Orçamentário (PO) mais amplo: Enfrentamento das violências contra crianças e adolescentes, reduzindo a transparência das ações específicas. Além de o valor autorizado ser insignificante para ações complexas em um país de tamanho continental (R$ 938.637,82), em 2019 não se gastou recurso algum, como mostrou o estudo do Inesc “O Brasil com Baixa Imunidade”. Em 2018, o gasto foi maior, talvez por conta do impacto da lei 13.431 aprovada em 2017 que estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência. Mas em 2019, já com o novo governo, nada foi gasto com esta política e agora em 2020 esse PO nem aparece no orçamento do governo federal. Se tiver algum recurso para esse tipo de ação, não sabemos de qual rubrica orçamentária será retirado.

O governo federal precisa apresentar, urgentemente, um programa de ações para enfrentamento das violências contra crianças e adolescentes nesse período. Se nada for feito, com ou sem máscaras, mais e mais crianças serão marcadas irreversivelmente por uma das mais brutais violências que possa se imaginar. A responsabilidade pesará sobre os ombros dos perpetradores da violência, mas também de quem foi negligente. Não esqueceremos!

O escárnio que esconde a incompetência

Em entrevista à CNN na noite de ontem (7/5), a atriz Regina Duarte, que hoje ocupa o maior cargo público no campo da gestão de políticas de cultura, desempenhou seu pior papel à frente da Secretaria Especial da Cultura até o momento. Grosseira e autoritária, chegou a entoar um canto associado à ditadura e a diminuir as mais de nove mil mortes decorrentes do novo coronavírus no Brasil.

Regina foi cobrada ao vivo por Maitê Proença – um “contraponto” escolhido pela emissora para dialogar sobre ações no campo da cultura neste momento de crise –, mas também nas redes sociais por outros artistas, como Anitta, Bruno Gagliasso e José de Abreu, que se manifestaram após o show de horrores da “gestora”.

Mas o que ela poderia fazer para contribuir neste momento de crise? Uma rápida análise da execução orçamentária para políticas da cultura nos dá pistas.

O recurso autorizado para o Programa 5025: Cultura na Lei Orçamentária de 2020 é da ordem de R$ 1,3 bilhão. Deste montante, foram pagos somente 19 milhões[1], além de restos a pagar de anos anteriores no valor de 85 milhões[2], representando uma execução de apenas 7,6% do orçamento disponível para a Secretaria. Estamos no quinto mês do ano e ações não foram anunciadas para viabilizar a execução deste recurso tão necessário aos artistas e ao povo brasileiro neste momento.

A pandemia da Covid-19 trouxe impactos econômicos e sociais para diversos setores em nossa sociedade, entre eles, a impossibilidade de trabalho para diversas classes, como a artística. Impedidos de realizar seus espetáculos ou levar adiante projetos frente ao isolamento social, artistas de diversas áreas estão deixando de receber salários e acessar editais. Alguns governos têm criado ações para diminuir estes impactos, como os do Maranhão e Niterói, que desenvolveram editais específicos para apoiar financeiramente espetáculos virtuais.

Brasil com baixa imunidade

O relatório recém-lançado do Inesc, “O Brasil com baixa imunidade”, revelou que a cultura tem sofrido cortes orçamentários desde 2014, o que em 2019 significou menos 25% de recursos em relação a 2018. O relatório também aponta a desigualdade internalizada na concepção de cultura: a análise sobre o direito a cidade revela que os equipamentos e artistas periféricos pouco ou em nada são contemplados com os recursos públicos destinados à cultura. Soma-se a isso o racismo institucional, quando observamos que o único recurso específico para a promoção da cultura negra, a saber, o financiamento das ações da Fundação Cultural Palmares, representaram, em 2019, menos de 3% dos mais de R$ 1 bilhão disponíveis no Programa Orçamentário 2027: Cultura – Dimensão Essencial do Desenvolvimento.

Apesar dos cortes, ainda há um enorme montante em 2020 a ser gasto com empreendedorismo cultural, fortalecimento da educação cultural, preservação do patrimônio, audiovisual e infraestrutura para o setor. Enquanto a secretária especial da Cultura Regina Duarte cultua a morte com suas gargalhadas de escárnio, o Brasil segue enterrando pessoas e negligenciando seus artistas em um dos momentos mais difíceis da história. Nos resta a esperança equilibrista, pois o papel de gestora, dificilmente Regina Duarte irá interpretar.

[1] Programa 5025: Cultura (PPA 2020-2023).

[2] Programa 2027: Cultura – Dimensão essencial do Desenvolvimento (PPA 2019-2022)

Como a Covid-19 chega à Amazônia?

Quando pensamos sobre a entrada do coronavírus na Amazônia, a pergunta que precisa ser feita é sobre o contexto em que a doença atinge o território. O passado recente pode responder a algumas perguntas sobre o quão grave serão os efeitos da pandemia para a região. No Brasil, a sobreposição de um cenário político conturbado a uma realidade de vulnerabilidade social, mais o medo e a incerteza causados pela doença, vai deixando um trágico rastro de destruição.

Ao chegar à Amazônia, a Covid-19 aprofunda uma série de problemas já colocados para a região. Após eleição e posse do presidente Jair Bolsonaro, observamos o aumento da violência no campo; índices alarmantes de desmatamento; intensificação da grilagem de terras e da ação de madeireiros; o avanço dos megaempreendimentos em infraestrutura logística; e a impunidade de empresas, nacionais e estrangeiras, cuja atuação traz impactos negativos, muitas vezes irreversíveis, para a natureza e para o bem-estar da população.

Quem vive e circula pelo norte do país sente o peso do discurso oficial, que chega de Brasília e aterrissa sobre as cidades amazônicas. Um clima nervoso se instalou sobre o território, dando indícios de que as provocações bolsonaristas e os ataques sistemáticos à floresta e aos seus povos contribuem para o aumento significativo da violência. É como se aqueles que apoiam o governo se sentissem autorizados à prática da violência. Mas se sentir não for o bastante para descrever o que acontece no norte do país, um levantamento, feito pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), nos oferece os números.

Números da violência

Lançado, em abril, pela CPT, o relatório registra a série histórica dos conflitos no campo brasileiro. A edição de 2020 confirmou a tendência, já observada em anos anteriores, de que a Amazônia Legal é onde se concentram os maiores índices de conflito e violência no campo. No entanto, os dados apresentados no documento mostram que a situação se agravou muito em 2019.

>> Acesse aqui o Relatório da CPT

Naquele ano, o norte do país concentrou 84% dos assassinatos de pessoas, equivalentes a 27 de um total de 32 em todo território nacional; 73% das tentativas de assassinato (22 de 30); e 79% dos ameaçados de morte (158 de 201 pessoas). Além disso, 84% das famílias da região sofreram alguma invasão de terra ou das suas casas. O relatório aponta, ainda, para o aumento da violência contra mulheres e indígenas; denuncia a milicianização da Amazônia e chama a atenção para a intensificação dos conflitos por água e para o recrudescimento de relações de trabalho que podem ser consideradas como análogas à escravidão.

O grau de violência registrado pelo caderno da CPT deve ser considerado tão grave quanto o desmatamento, que recebe maior cobertura dos veículos de comunicação tradicionais. Frequentemente, as duas coisas estão conectadas. Na comparação com o ano anterior, observamos o aumento expressivo, superior a 50%, dos alertas de destruição florestal em 2020. Até o final de março deste ano, 796 km² haviam sido desmatados contra 526 km² no mesmo período de 2019. A sabedoria que corre os rios e igarapés amazônicos cochicha: as forças de destruição da floresta não estão em quarentena nem fazem home office.

A ação de grileiros, garimpeiros e madeireiros ajuda a explicar a intensificação do desmatamento durante a estação de chuvas na Amazônia, isto é, no primeiro trimestre do ano. Mas a isto devemos acrescentar ainda a redução drástica das ações de fiscalização pelos órgãos públicos, por um lado, consequência do isolamento social; e, por outro lado, resultado dos cortes orçamentários destes órgãos ao longo dos últimos dois anos.

Asfixia orçamentária

Aumento da violência e do desmatamento, bem como a fragilização da governança e da fiscalização socioambiental no Brasil são elementos da conjuntura que foram capturados por outro estudo, desta vez, conduzido no Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). O relatório faz um Balanço do Orçamento Geral da União, relativo ao ano de 2019. No documento, o Inesc alerta para a relação entre a restrição do orçamento de vários órgãos governamentais, a ineficácia das ações de fiscalização, o desmonte da governança socioambiental e o aumento do desmatamento, além de outros crimes ambientais.

>> Acesse aqui o Relatório do Inesc

No Balanço, lê-se que o Ministério do Meio Ambiente perdeu 8,5% do seu orçamento entre 2018 e 2019 e 20% entre 2012 e 2019. Em 2019, os recursos do órgão não ultrapassaram 0,11% do Orçamento Geral da União. Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), a taxa de crescimento do desmatamento nas unidades de conservação federais, sob responsabilidade do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), foi de 84% entre agosto de 2018 e julho de 2019. A asfixia orçamentária prejudica a execução de políticas públicas, mas também se vincula a iniciativas legislativas e disputas intraburocráticas que perturbam ainda mais a dinâmica territorial local.

Agenda legislativa e política burocrática

No Legislativo, em meio à pandemia da Covid-19, deputados da bancada ruralista, composta pela elite agropecuária e extrativista, tenta aprovar o maior roubo de terras públicas da história do Brasil, a Medida Provisória n. 910/2019. A medida prevê a legalização da ocupação irregular de terras públicas sem destinação em até 2.500 hectares e amplia o marco temporal para a regularização das propriedades. É a segunda vez, em três anos, que esse critério é alterado. Em 2017, o governo de Michel Temer já havia aprovado uma lei para flexibilização das regras sobre a regularização fundiária. Por isso, especialistas insistem, uma nova determinação nesse sentido incentiva a grilagem (ou falsificação de documentos comprobatórios de propriedade). A MP, que se encontra na Câmara dos Deputados, caduca em 19 de maio, mas os meios de comunicação relatam enorme pressão para o cumprimento dos prazos.

Nessa mesma direção, em 16 de abril, a Funai (Fundação Nacional do Índio) emitiu uma Instrução Normativa n. 9 que orienta órgãos públicos a reconhecer como terras indígenas somente aquelas com demarcação concluída. Ao fragilizar o reconhecimento costumeiro do perímetro de terras indígenas não demarcadas, a Funai põe em risco a vida dos povos indígenas e contribui para piorar uma situação de conflitualidade que já é intensa. O Cimi (Conselho Indigenista Missionário) emitiu nota exigindo a revogação da medida. Da mesma forma, o MPF recomendou ao presidente do órgão a anulação da Instrução. A Funai respondeu ao Cimi com um novo ataque, que, por sua vez, torna notória a guinada do órgão no sentido contrário do seu mandato legal.

No início de abril, o diretor do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), Eduardo Bim, suspendeu a necessidade de autorização, concedida pela agência, para a exportação de carregamentos de madeira. A decisão ignorou o parecer técnico de cinco analistas do órgão. Ela se dá na sequência de uma notificação emitida por autoridades estrangeiras, endereçada ao governo brasileiro, de que carregamentos de madeira estavam chegando em seus países sem registro de origem legal. O caso já havia sido denunciado pela agência de notícias Reuters. Embora o mercado brasileiro seja o principal destino da madeira ilegal, a Interpol estima que esse comércio movimente cerca de 150 bilhões de dólares por ano. África e América Latina são enclaves do comércio ilegal de madeira.

Investimentos e megaobras

Outra marca da política bolsonarista para a região amazônica é a retomada do projeto de ocupação territorial adotado, no passado, por governos militares. Com o lema “integrar para não entregar” (a região para “agentes estrangeiros”), essas políticas, responsáveis em parte pela criação de assentamentos agrários, deslocaram pessoas de todo o país para a Amazônia entre as décadas de 1960 e 1970. A construção de infraestrutura no coração da floresta Amazônica também foi responsável por ciclos de dizimação de povos indígenas afetados por essas megaobras, porque alteraram o uso da terra e trouxeram doenças desconhecidas pelas comunidades.  As suas consequências se arrastam até hoje.

O conflito fundiário cristalizado em torno desta história deixa inúmeras famílias sob grave insegurança jurídica quanto à posse das terras onde vivem, uma situação que piorou com o avanço do interesse especulativo sobre a região. Bolsonaro e sua equipe anunciaram um “novo ciclo de investimentos” para a Amazônia que deverão ser estruturados com base nas diretrizes do PPI (Programa de Parcerias e Investimentos) do governo federal. Com isso, o objetivo do governo é revitalizar o chamado “Arco Norte”, região de potencial logístico portuário, como eixo preferencial para a exportação de grãos e minérios ao mercado externo. Como no passado, os efeitos desse novo esforço de colonização do território amazônico têm sido graves violações de direitos humanos e predação ambiental.

Desmatamento e violência

O aumento do desmatamento em 2020, não obedece ao mesmo padrão que no ano anterior, quando os índices elevados refletiam, em boa medida, uma característica sazonal do bioma amazônico, a seca. Os novos índices alertam para o fato de que nenhuma explicação para a devastação florestal é suficiente se desconsiderarmos a presença dos povos que nela habitam, as disputas em torno do uso do solo, do desenvolvimento regional e os modos de vida conflitantes. Devemos tratar o aumento do desmatamento na Amazônia, como um problema socioambiental. Há que se dialogar com a realidade dos povos que vivenciam, na prática, toda ofensiva de degradação ambiental.

A chegada da covid-19 na região adicionou a camada da crise humanitária a outra crise já instalada e diretamente relacionada às decisões (e declarações) do atual governo, as quais vem colocando em risco a vida das pessoas, seus modos de vida e o meio ambiente. O isolamento social alargou o espaço para todo tipo de atividade ilegal na região, mas, somado às iniciativas legislativas que facilitam roubos de terras, vem favorecendo também o desmatamento e o aumento da violência no campo. Está é uma violência contra mulheres e homens que defendem um modo de vida baseado na preservação ambiental e sustentável, opondo-se à lógica da exploração predatória da floresta e dos recursos naturais.

O governo que odeia as mulheres: a inércia de Damares Alves na crise da Covid-19

O Brasil vive hoje uma crise sem precedentes gerada pela pandemia da Covid-19. Com 16.188 casos notificados e 820 mortes confirmadas[1] decorrentes do vírus em todo o país, o governo bate cabeça diariamente buscando uma linha de atuação para gerenciar a crise de saúde. O Presidente Jair Bolsonaro tem sofrido desgastes contínuos, disseminando teorias da conspiração e atuando contra do isolamento social recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Chegou ao ponto de convocar “protestos” em sua defesa, ir a uma manifestação, e realizar chamado a um jejum nacional, no último domingo 5 de abril.

A maioria dos governadores, por seu turno, optaram pelo isolamento horizontal à revelia do presidente, gerando acirramento de disputas políticas que acabam atrapalhando o traçado de um plano eficaz para contenção da doença e proteção dos cidadãos e cidadãs. Esta semana – a terceira ou quarta em isolamento para muitas famílias brasileiras –, iniciou com a notícia de demissão do Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, também por motivações políticas: estaria ele desagradando Bolsonaro em suas decisões para gestão da crise, mas acabou permanecendo no cargo, ao que parece por pressão da ala militar do governo.

Uma boa notícia foi a aprovação da renda básica emergencial, que poderá impactar diretamente a vida de milhões de mulheres brasileiras sem renda, principalmente mulheres negras que vivem nas periferias dos grandes centros urbanos. No projeto aprovado no Congresso e assinado com demora pelo presidente, autoriza-se o pagamento de R$600 reais por três meses, para até 2 adultos em uma família com renda de até 3 salários mínimos. As mães solo poderão acumular 2 benefícios. Ainda não é possível avaliar a implementação da medida, pois há dúvidas em relação à logística de movimentação nas agências bancárias e sobre o real acesso do público alvo ao aplicativo digital, lançado na terça feira, 7 de abril.

Em meio a toda esta crise e às confusões desnecessárias no campo diplomático – como os ataques racistas à China, maior parceira econômica do Brasil –, chama a atenção a inoperância do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MDH). A Ministra Damares Alves foi a público apoiar o jejum, mas demorou quase um mês para se pronunciar sobre a gestão da pasta sob sua responsabilidade na Covid-19: no último dia 2 de abril anunciou as medidas do MDH, em sua maioria ações de conscientização da população e articulação com outros órgãos. A ação mais concreta parece ser a ampliação dos serviços Ligue 100 e Ligue 180, canais de denuncia de violência, reconhecendo que a convivência intermitente com o agressor aumenta a vulnerabilidade das mulheres.

No entanto, nada foi dito sobre a execução do orçamento do MDH, que teve recursos autorizados de cerca de R$394 milhões de reais para 2020[2]. É importante salientar, como destacamos em artigo anterior, que R$25 milhões estão carimbados para “Políticas de Igualdade e Enfrentamento à Violência”; mais de R$71 milhões para a “Construção da Casa da Mulher Brasileira e de Centros de Atendimento às Mulheres em Fronteira Seca”; e mais de R$35 milhões para os dois canais de atendimento, Ligue 100 e Ligue 180 (canais para os quais uma empresa já foi contratada no ano passado, ou seja, já está em andamento). Estas três ações somam cerca de R$132 milhões em recursos do MDH voltados para o enfrentamento a violência contra as mulheres.

Passados 4 meses do início do ano orçamentário, o MDH executou somente R$536 mil reais: isso mesmo, 0,13% do recurso autorizado para o ano de 2020![3] Deste parco recurso, foram R$336.000,00 para “Despesas diversas” e o restante para o funcionamento dos conselhos da Pessoa Idosa, Pessoa com Deficiência e Juventude, além de publicidade institucional.

Com a crise da Covid-19, uma nova ação orçamentária foi criada, a Ação Orçamentária 21C0: Enfrentamento da Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional decorrente do Corona Vírus, que conta, para execução do MDH, com R$40 milhões de reais, mas ainda não sabemos como será executado. O recurso total do MDH, hoje, é de R$416 milhões de reais[4].

As questões que se colocam são: como estes recursos irão chegar aos municípios e territórios neste momento de emergência? Qual o plano do MDH para execução destes recursos, visando cumprir um objetivo bem prático, salvar a vida das mulheres? Como as mulheres periféricas, em sua maioria negras, terão acesso ao sistema de proteção social em um quadro onde os serviços de atendimento encontram-se praticamente, todos, fechados?

A maior parte do recurso autorizado do MDH foi para a Ação 21AR – Promoção e Defesa de Direitos para Todos, no valor de R$159 milhões[5], sem detalhamento de como seria gasto: o Plano Orçamentário desta ação ainda consta como “PO – 0000: Despesas Diversas. Como os planos orçamentários podem ser alterados durante o ano orçamentário, realizamos um pedido via Lei de Acesso à Informação (março/2020) para verificar a destinação destes recursos, e obtivemos como resposta que se trata de orçamento advindo de emendas individuais impositivas para o ministério. O que descobrimos?

Checando a listagem e descrição de tais emendas, podemos encontrar diversas ações que seriam de suma importância serem executadas neste momento da Covid-19, como equipamentos para instituições de longa permanência para idosos e atendimento a meninas e meninos em situação de rua. Outras, perdem o sentido, por enquanto, em uma situação de isolamento social, como equipamentos para centros de atendimento a crianças e adolescentes e conselhos tutelares, bem como projetos de educação presencial.

Diversas emendas são voltadas para o enfrentamento a violência contra as mulheres, e devem ser executadas o quantos antes, pois somam cerca de R$39 milhões de reais, para os seguintes estados: Amazonas, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Distrito Federal, Goiás, Maranhão, Sergipe, Pernambuco, Bahia, Alagoas, Ceará, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul e Santa Catarina.

O fato é que será impossível construir as casas da mulher brasileira este ano, e se estes equipamentos já estivessem prontos, provavelmente não poderiam abrir para atendimento – para não gerar uma situação de contágio –, ou mesmo poderiam ser solicitados para instalação de hospitais de emergência. Em um cenário de escassez de recursos e com os impactos da Emenda Constitucional 95 (Teto de Gastos) se fazendo sentir no Sistema Único de Saúde (SUS), todos os recursos disponíveis devem ser executados pelo bem da sociedade. O MDH precisa apresentar para a sociedade como pretende proteger, concretamente, os direitos humanos de mulheres, idosos, pessoas com deficiência, em situação de rua, quilombolas e indígenas, neste momento de Codiv-19.

É possível e necessário apoiar ações locais para acesso à renda emergencial, pois sabemos que os mais vulneráveis terão dificuldades com o acesso ao benefício, seja pela limitação em encontrar informações, seja pela exclusão digital. As mulheres em situação de violência precisam da renda básica para se proteger. Esta é uma pauta relacionada às mulheres, famílias e direitos humanos!

Há recursos autorizados disponíveis para execução. São mais de R$400 milhões de reais. A Ministra precisa arregaçar as mangas e fazer o seu trabalho, pois a fome, a violência e o vírus Sars-Cov-2 já chegaram à casa das famílias brasileiras.

[1] Fonte: https://www.worldometers.info/coronavirus/

[2] Fonte: Siga Brasil, acesso em fevereiro de 2020, dados corrigidos pelo IPCA.

[3] Fonte: Siga Brasil, acesso em 8 de abril de 2020. Dados corrigidos pelo IPCA.

[4] Fonte: Siga Brasil, acesso em 8 de abril de 2020. Dados corrigidos pelo IPCA.

[5] Fonte: Siga Brasil, acesso em fevereiro de 2020: R$159.340.917,00; e em 8 de abril de 2020: R$159.739.312,00. Dados corrigidos pelo IPCA.

Pasta de Damares tem R$ 394 mi. Como a ministra vai utilizar esse recurso?

Muito se tem publicado sobre os cortes orçamentários de políticas para as mulheres. O Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) tem monitorado a alocação de recursos para esta política desde o início do período de austeridade fiscal, intensificado com o Teto de Gastos. Em comparação com o recurso autorizado em 2015, a política de mulheres sofreu redução de 82% em 2018.

Em 2019, o recurso autorizado para o Programa 2016: Políticas para as Mulheres: Promoção da Igualdade e Enfrentamento a Violência foi de R$ 62,5 bilhões. A execução foi de R$ 46 milhões, sendo cerca de R$ 28 milhões em recursos pagos e R$ 18 milhões de restos a pagar, ou seja, recursos comprometidos com contratos de anos anteriores pagos em 2019.

 

Em 2020, o recurso autorizado para o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MDH) foi de R$394 milhões: deste recurso, R$96 milhões é alocado especificamente para as mulheres (24,43% do total). O que isso significa, na prática, para as brasileiras? O Plano Plurianual (PPA) de Bolsonaro e declarações e medidas adotadas pela ministra Damares Alves tem nos dado algumas pistas.

O novo PPA

O novo Plano PluriAnual 2020-2023, elaborado pelo Governo do presidente Jair Bolsonaro, excluiu o Programa 2016: Políticas para as Mulheres: Promoção da Igualdade e Enfrentamento a Violência, e criou o Programa 5034: Proteção à Vida, Fortalecimento da Família, Promoção e Defesa dos Direitos Humanos para Todos. Se o Programa 2016 era destinado somente às mulheres, o novo Programa 5034 é um guarda-chuva para execução de políticas do Ministério, hoje chefiado por Damares Alves, destinadas às mulheres, aos idosos, e pessoas com deficiência.

O PPA é o instrumento de planejamento e organização da ação pública e expressa as escolhas de um governo. Não é coincidência o fato de as palavras racismo, negros e quilombolas terem sido excluídas deste documento em sua versão bolsonarista, adotando uma visão “direitos humanos para humanos direitos”, tão difundida pelo grupo político da extrema direita. Enterram-se três décadas de construção das políticas de igualdade racial e promoção dos direitos dos povos e comunidades tradicionais.

Em relação às mulheres, a construção do novo PPA ignorou o II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (PNPM), construído por meio de quatro conferências nacionais, com participação de mais de 2 mil mulheres em cada edição. Não é possível visualizar as prioridades do II PNPM no PPA 2020-2023, e este tampouco apresenta metas e indicadores para monitorar o alcance dos resultados.

No PPA 2020-2023, o Programa 5034 tem o seguinte objetivo: “Objetivo: 1179 – Ampliar o acesso e o alcance das políticas de direitos, com foco no fortalecimento da família, por meio da melhoria da qualidade dos serviços de promoção e proteção da vida, desde a concepção, da mulher, da família e dos direitos humanos para todos”.

Chama a atenção a exclusão da questão da violência contra as mulheres, por um lado, e a inclusão da “proteção da vida desde a concepção”, por outro. O recado é bastante claro em relação ao tipo de política para as mulheres que será colocado em curso até 2022. Ao retirar a violência do documento que planeja a política pública para as mulheres, focando somente na família, o governo esconde o fato comprovado de que a violência doméstica é sofrida por milhares de mulheres e meninas dentro de suas próprias casas, na maioria dos casos pelos próprios maridos e parentes.

O orçamento no país do fundamentalismo religioso

A Ministra Damares Alves não esconde sua predileção pelo Estado religioso: em recente entrevista, defendeu a “ocupação da nação pelas igrejas”, e afirmou que “Temos falta de casas de abrigo para mulheres vítimas de violência. Por que essas igrejas não fazem uma parceria conosco, cedendo o seu espaço físico para abrigar essas mulheres?”. Em 2019, dos quase R$ 20 milhões autorizados para a construção das casas da mulher brasileira, nenhum recurso foi gasto. Também não houve recurso autorizado para o Disque 180 e o Disque 100, canais voltados, respectivamente, para denúncias de violência contra as mulheres e violação de direitos humanos.

Em 2020, isso muda: ainda que o PPA 2020-2023 invisibilize a questão da violência, o MDH priorizou o tema no orçamento. Dos mais de R$96 milhões autorizados em 2020, voltados especificamente para as mulheres, quase R$25 milhões estão carimbados para “Políticas de Igualdade e Enfrentamento à Violência”; mais de R$71 milhões são para a “Construção da Casa da Mulher Brasileira e de Centros de Atendimento às Mulheres em Fronteira Seca”; e mais de R$ 35 milhões para os dois canais de atendimento. Estas três ações somam cerca de R$132 milhões em recursos.

Se o problema de recursos, então, parece estar superado – pelo menos até o primeiro decreto de reprogramação orçamentária, onde o governo pode decidir contingenciar uma parte destes recursos –, a questão passa a ser: como estas políticas serão implementadas? Será respeitado o princípio de laicidade do Estado nos atendimentos, equipamentos e serviços? A pertinência do questionamento está no fato de que o governo se furtou de apresentar o desenho da política no PPA 2020-2023, embora esteja publicando decretos para regular algumas iniciativas.

É o caso da Casa da Mulher Brasileira, serviço que visa ser a porta de entrada da política pública para mulheres em situação de vulnerabilidade extrema, cujas diretrizes para os convênios estão publicadas no site do MDH, e tem regulamentação no Decreto nº10.112 de 12 de novembro de 2019, que cria o Programa Mulher Segura e Protegida.

Chama a atenção a presença de salas para reconhecimento dos agressores, presença da Polícia Militar e sala para detenção provisória.  Não está explicitado como será o funcionamento dos serviços, mas pela forma como estão organizados os espaços e equipes, trata-se de um equipamento militarizado, para atendimento tanto de mulheres (vítimas), como de homens (agressores).

Ao mesmo tempo, o PPA 2020-2023 reforça a mensagem da defesa da vida desde a concepção em um que país continua se negando a discutir o aborto como saúde pública e social, tramitando Projetos de Lei para criminalizar a interrupção de gravidez em casos de estupro, risco de vida para a mãe e anencefalia do feto, hoje permitidos. Dentro do Programa 5034, a Ação 21AQ: Proteção do Direito à Vida, teve recurso autorizado em 2020 no valor de R$41 milhões – no entanto, não há nenhum documento, até o presente momento, que apresente o desenho desta ação, ou seja, como será implementada.

A maior parte do recurso autorizado do MDH foi para a Ação 21AR – Promoção e Defesa de Direitos para Todos, no valor de R$159 milhões, sem detalhamento de como será gasto: por enquanto, o Plano Orçamentário desta ação ainda consta como “PO – 0000: Despesas Diversas”, podendo ser alterado durante o ano, mas convenhamos, é bastante recurso para ser manejado sem planejamento ou destinação específica.

Atentas e fortes!

A questão das mulheres é central na atual conjuntura política. Em 2018, principais opositoras à candidatura de Jair Bolsonaro organizaram marchas por todo o Brasil dizendo #EleNão. A motivação era baseada no fato do então deputado federal proferir falas sexistas e racistas em diversos espaços, chegando ao ponto de agredir a Deputada Maria do Rosário dizendo que não a estupraria porque ela não merecia, agressão pela qual foi condenado.

Uma vez no poder, o governo Bolsonaro, que conta com militares, olavistas e fundamentalistas religiosos, iniciou uma verdadeira cruzada para disputar a narrativa moral junto à sociedade. A Ministra Damares Alves é uma das que reza esta cartilha com maestria: se enganam os que a resumem a uma doidivanas interessada em vestir meninos de azul e meninas de rosa. Ela tem cumprido uma agenda intensa, que inclui viagens internacionais para combater a “ideologia de gênero” (como na visita à Hungria) e participação em reuniões da ONU, fortalecendo pautas conservadoras.  Sem deixar de fazer o seu trabalho no Brasil, tem ido em busca de parcerias com  estatais, setor privado e setores da igreja e campanhas para adesão aos seus programas sociais. Em 2020, ela terá 394 milhões para sua pasta, o que não é pouco, considerando o atual momento de redução do recurso para gastos sociais.

Neste 8 de março, as mulheres irão às ruas novamente levar suas pautas e demandas. Mais um compromisso se soma à nossa luta, a saber, monitorar o recurso do governo destinado às mulheres, se será executado, e por meio de que programas, ações e diretrizes. Neste cenário, o princípio da transparência e a participação da sociedade são, mais do que nunca, fundamentais.

***ERRATA***

Editamos o texto em 12/3 para corrigir uma informação. Onde se lia:

“Em 2019, o recurso foi recomposto, tendo sido autorizados quase 300 milhões para o Programa 2016: Políticas para as Mulheres: Promoção da Igualdade e Enfrentamento a Violência. No entanto, a execução foi baixíssima, menos de 10%, sendo cerca de 28 milhões em recursos pagos e 46 milhões de restos a pagar, ou seja, recursos comprometidos com contratos de anos anteriores pagos em 2019.”

O correto é:

“Em 2019, o recurso autorizado para o Programa 2016: Políticas para as Mulheres: Promoção da Igualdade e Enfrentamento a Violência foi de R$ 62,5 bilhões. A execução foi de R$ 46 milhões, sendo cerca de R$ 28 milhões em recursos pagos e R$ 18 milhões de restos a pagar, ou seja, recursos comprometidos com contratos de anos anteriores pagos em 2019.”

Carnaval também é direito à cidade.

Estava almoçando em um dos tantos shoppings de Brasília, quando me dei conta de que em cerca de 30 anos nossas cidades foram totalmente privatizadas. Os espaços públicos foram fechados com agentes de segurança nas portarias, para evitar que pobres adentrem ao recinto, perturbando o conforto de quem está ali para alimentar o capitalismo, consumindo e fazendo a roda girar.

Então, se “A praça Castro Alves já foi do povo”, não é mais, os espaços públicos estão cada vez mais gentrificados.  Todavia, há uma brecha durante o ano, que permite a democratização desses locais: o carnaval. As pessoas se fantasiam e enchem praças e ruas, misturando classes e raças em um só lugar. Pois carnaval é direito à cidade, é portal aberto para os encontros. Será?

A resposta é sim e não. Há os locais sem cordas, com mistura de linguagens e mensagens. Narrativas diversas, quebra de tabus e preconceitos. Espaços livres de racismo e homolesbotransfobia, que são raqueados, pois até mesmo o carnaval é disputado. Como podemos ver nos abadás, cordas separando a pipoca, transporte público indisponível ou reduzido.

E em Brasília ainda há outro advento, a administração local acredita que apenas o Plano Piloto tem direito à folia. Pois vários e tradicionais blocos de outras partes desse quadrado não recebem fomento para saírem, mesmo que suas histórias se confundam com a própria história da cidade, como é o caso do Asé Dudu, Galinho de Brasília ou Comboio Percussivo, que ficaram sem recursos ou com recursos muito abaixo do que foi pedido. Mesmo fazendo Carnaval na cidade há mais de dez anos e oferecendo muita cultura, aprendizado e música.

Além disso, o Governo do Distrito Federal (GDF) ainda sinalizou um Carnaval que privilegiaria grupos de fora da cidade, em detrimento das tradicionais escolas de samba, como a Aruc do Cruzeiro, que ano que vem completa 60 anos. E com as incontáveis rodas de samba que podemos saborear o ano todo nos diversos pontos do quadrado, passando por Ceilândia, Candangolândia, Taguatinga e por aí vai. E ainda que o GDF tenha desistido do carnaval gourmetizado, não significou mais recursos para os de casa.

A boa notícia é que nos últimos anos, em várias cidades, incluindo Brasília, os blocos saíram do armário, vencendo a privatização dos espaços públicos e botando o bloco na rua, gingando ao som dos tambores, cuícas e chocalhos. Se ao longo do ano as ruas são propriedade dos carros, que ocupam e se apossam do que seria de todas as pessoas, no carnaval há uma ocupação alegre, festiva, combativa, que leva para fora mensagens políticas. Então, carnaval é político, é resistência.

Como promover justiça social por meio da justiça fiscal?

Hoje, 20 de fevereiro, é celebrado no mundo inteiro o dia da justiça social. A data foi criada pela ONU em 2007 para reforçar as metas da organização em prol da erradicação da fome e promoção dos direitos humanos. Esse ano, o dia tem como tema “Fechando a lacuna de desigualdades para alcançar a justiça social” e procura enfatizar a importância da igualdade de gênero e dos direitos dos povos indígenas e migrantes para a justiça social.

O que é justiça social?O Inesc, em sua luta pela justiça social e garantia de direitos humanos, enfatiza há 40 anos a importância de ter um orçamento público e um sistema tributário que reduzam as desigualdades. Isso porque as despesas orçamentárias podem aumentar ou diminuir essas disparidades, dependendo para onde estão direcionadas. Para além do financiamento do gasto público, a tributação tem como função fundamental a redistribuição de renda, o que impacta diretamente a qualidade de vida da população. Portanto, a justiça fiscal, entendida aqui como a promoção de justiça por meio da política de gasto e de arrecadação tributária, é fundamental para a justiça social.

Nesse sentido, apontamos cinco medidas para a melhoria da justiça fiscal e social no Brasil que estão nas mãos dos governos.

 

1 – Promover um sistema tributário mais justo

Cada vez mais, a necessidade de reformar nosso sistema tributário aparece no debate público. As propostas que estão em discussão no Executivo e no Legislativo, porém, não enfrentam um dos maiores problemas do Brasil: a desigualdade. O sistema tributário vigente agrava as distâncias entre pobres e ricos porque é altamente regressivo, pesando proporcionalmente mais na renda dos mais pobres.

Esse fenômeno acontece porque temos uma carga tributária muito elevada de impostos sobre o consumo em detrimento de impostos sobre a renda e o patrimônio. A explicação sobre o que é regressividade e como ela afeta as pessoas mais pobres está nos infográficos a seguir:

O que são impostos regressivos e progressivos?

 

Infográfico O problema dos impostos regressivos

 

Você também pode ver a contribuição do seu imposto para a promoção de políticas públicas na calculadora da Oxfam Brasil, “O Valor do seu Imposto”, e o peso da carga tributária por produto que você paga (com referência nos valores de São Paulo) no aplicativo “na Real”.

 

2 – Priorizar o gasto social no orçamento público

Os gastos sociais são as despesas governamentais destinadas a realizar direitos universais e gratuitos, como a saúde e a assistência social, para atender pessoas em situação de vulnerabilidade econômica, bem como gerar oportunidades de promoção social. Esses gastos podem ser feitos de duas formas: diretamente, como, por exemplo, pelo programa Bolsa Família, ou por meio de impostos, como acontece com a desoneração da cesta básica.

Essas despesas são divididas pelo Tesouro nas áreas de Saúde, Educação, Assistência Social, Habitação e Saneamento; Cultura; Trabalho; Organização Agrária; Previdência Social. Elas nem sempre promovem justiça social – os elevados benefícios de auxilio–moradia do judiciário, por exemplo, estão nesse cálculo – mas indicam as diretrizes básicas de gastos do governo nesses setores estratégicos para a promoção de justiça social. O gráfico a seguir mostra que, entre 2015 e 2019, as despesas orçamentárias nessas áreas caíram consideravelmente, apesar de parte delas ser obrigatória. Por exemplo, os gastos com saúde perderam 11,9% em valores reais entre 2015 e 2019, enquanto despesas com cultura e a organização agrária diminuíram em cerca de 30%.

 

A promoção de justiça social passa necessariamente por gastos governamentais que corrigem as desigualdades. Isso significa que até em momentos de crise econômica, como o que estamos passando desde 2015, o gasto social deve ser protegido, o que não vem ocorrendo.

 

3 – Garantir que os mais ricos paguem seus impostos

Um método para aumentar as receitas governamentais, que normalmente não aparece no debate sobre o equilíbrio fiscal, é o combate às diversas estratégias que os ricos desenvolvem para não pagar seus impostos. A sonegação fiscal, por exemplo, custa ao Brasil R$ 71,5 milhões por hora. Um estudo publicado pelo Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional demonstra que o país vem perdendo mais de R$ 500 bilhões por ano somente com a sonegação de tributos. Ou seja: em apenas dois anos, o prejuízo aos cofres públicos ultrapassa a economia de R$ 800 bilhões prometida ao longo de uma década pela reforma da previdência.

O Estado pode lutar pelo fim da sonegação de diversas maneiras, como o combate aos paraísos fiscais e o fortalecimento das autoridades tributárias. O problema é que os mais ricos mandam parte dos seus lucros para fora do Brasil para não pagarem seus devidos impostos. É necessário, portanto, o fortalecimento da cooperação internacional em prol da regulação das práticas corporativas e dos fluxos financeiros internacionais.

 

4 – Revisar os incentivos fiscais, priorizando aqueles que combatam injustiças

Para além dos impostos sonegados, o governo fornece voluntariamente a redução do pagamento de tributos por meio dos incentivos fiscais. Todos os anos, o governo brasileiro deixa de arrecadar mais de R$ 300 bilhões, cerca de 4% do PIB, concedendo benefícios fiscais a empresas e pessoas físicas.

 

Gráfico 10 anos de reforma da previdência

 

O governo concede esses benefícios com a justificativa de que eles podem estimular investimentos e o crescimento da economia. Mas esquecem de dizer que eles diminuem o orçamento disponível para aplicar em políticas públicas. Além disso, eles podem reforçar a injustiça do sistema tributário brasileiro, pois em parte são fornecidos a grandes empresas, ou ter efeitos negativos na promoção de direitos humanos, como acontece no caso dos incentivos aos agrotóxicos.

Hoje em dia, não sabemos quem recebe esses incentivos e nem o valor, pois estão protegidos por sigilo fiscal. Sem transparência, como nós, cidadãos, podemos avaliar se esses recursos estão beneficiando a sociedade brasileira de forma justa? O Brasil precisa urgentemente passar por um processo de transparência e revisão dos incentivos fiscais em prol da justiça social.

A campanha do Inesc #SóAcreditoVendo luta pela transparência e revisão desses gastos governamentais indiretos.

 

5 – Assegurar que as populações mais vulneráveis sejam priorizadas na política fiscal

Você sabia que as mulheres negras são as mais afetadas negativamente pelo nosso sistema tributário? Isso ocorre devido a nossa regressiva tributação sobre o consumo e o fato das mulheres, em especial as negras, serem a maioria entre as pessoas mais pobres do Brasil. Além disso, um estudo recente com dados da Receita Federal mostrou que elas pagam mais imposto de renda do que homens, pois eles têm uma parcela maior de sua renda como rendimentos isentos de tributação.

A política fiscal pode, e deve, fortalecer as populações mais vulneráveis. De um lado, deve identificar essas disparidades e corrigi-las; de outro, direcionar o orçamento para essas populações por meio de políticas públicas. Um exemplo recente de esforço fiscal para o combate às desigualdades de raça e gênero foi a criação da Secretaria de Políticas para Mulheres e da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, que criaram um conjunto de políticas públicas específicas para essas populações.

O governo brasileiro precisa olhar para a política orçamentária e tributária com o foco nas desigualdades, identificando as barreiras que as pessoas enfrentam por causa de sexo, idade, raça, etnia, religião, cultura, região ou deficiência. Ignorá-las é contribuir para a perpetuação das injustiças.

Ao completar 400 dias de governo, Bolsonaro anuncia seu ataque mais duro aos povos indígenas

Apenas dois dias depois que um despacho oficial do Procurador-chefe Nacional da Funai ratificou a percepção de que, para a nova direção do órgão indigenista, os índios são considerados “invasores” em terras brasileiras, o governo deu novo passo para ofertar terras desses povos a grupos econômicos interessados na exploração mineral, na construção de hidrelétricas, na extração de óleo e gás, na exploração agrícola e pecuária.

Lamentavelmente, tudo isso ocorreu na semana que marca o Dia Nacional da Luta dos Povos Indígenas no Brasil. Datado de 7 de fevereiro, o dia é uma homenagem ao líder indígena Sepé Tiaraju, morto ainda jovem em 1756 durante uma luta sangrenta contra a dominação espanhola e portuguesa no Rio Grande do Sul. O conflito que durou três anos resultou na morte de mais 1.500 indígenas.

Passaram-se 264 anos e aqui estamos nós diante de um governo que não passou uma semana dos seus 400 dias de trabalho sem proferir ataques verbais e golpes institucionais contra os povos indígenas. Utilizando como escudo o perverso argumento de que “trata o índio como ser humano”, não só seu desrespeito e ódio são explícitos, como também são evidentes os interesses que ele representa.

Na semana desta data simbólica, o governo enviou ao Congresso Nacional um projeto de lei que busca regulamentar diversas atividades econômicas em terras indígenas. São atividades, como o mencionado, altamente impactantes do ponto de vista ambiental e social. Em terras indígenas, a abertura para estas atividades vai muito além, é parte do projeto etnocida do Estado brasileiro, que neste governo se aprofunda radicalmente, de destruição sistemática dos modos de vida e pensamento de povos diferentes daqueles que empreendem essa destruição.

A política de morte comandada pessoalmente pelo chefe de governo não responde aos interesses destes povos. Em vídeo publicado em seu Twitter, a coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB)  Sônia Guajajara destaca: “o seu sonho, senhor presidente, é o nosso pesadelo, é o nosso extermínio. Pois o garimpo provoca mortes, doenças, miséria e acaba com o futuro de toda uma geração”. A negação do direito “a qualquer centímetro de terra demarcada” é prova de que governo e povos indígenas encontram-se em lados opostos da história.

Ódio e vilania disfarçados de boas intenções em plena segunda década do século XXI e depois de tantos massacres e violência na nossa história, passada e presente, é o que os povos indígenas recebem neste dia 7 de fevereiro.

Nosso presente e futuro não precisam carregar esta tragédia como uma sina. Se o que se quer é um debate sério sobre como garantir que os povos indígenas tenham direito de escolher o que fazer com suas terras, respeitando suas culturas e seus escolhas, esse, evidentemente, não é o caminho.

A sociedade brasileira não pode se furtar a este debate. E precisa estar junto aos povos indígenas na sua luta pelo direito de existirem e viverem nas suas terras, como quiserem, com o apoio que precisarem por parte do Estado, de dizerem não e de serem respeitados como parte fundamental do que nós somos como sociedade.

Já passou da hora de rediscutirmos os sentidos do desenvolvimento nacional, incluindo a comunidade política na sua complexidade e fazendo escolhas políticas responsáveis a respeito de atividades altamente impactantes e com baixo retorno social para o país. O desenvolvimento baseado na superexploração de recursos naturais precisa, igualmente, passar pelo crivo de um debate econômico sério sobre seus reais efeitos para nós, brasileiros, e para toda a humanidade.

Produção nacional de medicamentos pode evitar desabastecimento de vacinas

Durante sete meses, pais que foram aos postos de saúde não encontraram uma vacina importante para os seus bebês. De acordo com o Ministério da Saúde, o fornecimento da vacina pentavalente foi irregular de junho a dezembro do ano passado por causa de problemas com os fornecedores. Aplicada em bebês de 2, 4 e 6 meses de vida, e com reforço aos 15 meses e aos 4 anos de idade, essa vacina protege contra cinco doenças: difteria, tétano, coqueluche, hepatite B e a bactéria Haemophilus influenza tipo B.

O Brasil compra a vacina por meio do Fundo Estratégico da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), pois não existe laboratório produtor no país. Em julho de 2019, lotes do laboratório estrangeiro que fornecia o medicamento foram reprovados no teste de qualidade do Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde (INCQS, da Fiocruz) e em análise da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Em agosto, o Ministério da Saúde solicitou reposição do produto, mas, naquele momento, não havia disponibilidade imediata no mercado mundial.

O abastecimento só foi regularizado em janeiro de 2020, quando o ministério anunciou a distribuição de 1,7 milhão de doses da vacina pentavalente para os estados

Esse caso traz várias reflexões importantes. Primeiro, sobre a importância de ter uma infraestrutura científica adequada e uma agência reguladora forte, pois elas permitem ao Brasil atuar de forma autônoma e garantir que apenas produtos de qualidade entrem no país.

Segundo, a de que a produção local de medicamentos é fundamental para evitar este tipo de problema. Caso houvesse um fornecedor nacional da vacina, o desabastecimento poderia ter sido evitado ou resolvido de forma mais rápida. O Ministério também reconhece essa solução, pois em outubro de 2019 convocou uma reunião com representantes de laboratórios públicos nacionais com objetivo de traçar estratégias para a produção nacional da vacina pentavalente, em que o secretário de vigilância em saúde afirmou que “um parque produtor forte representa um país forte. É necessário buscar medidas sustentáveis para garantir a oferta de vacinas no SUS e proteger a população contra doenças que podem ser evitadas com efetiva imunização”, e também que é necessário construir uma política de planejamento, expansão e monitoramento da cadeia produtiva brasileira de soros e vacinas.

Orçamento reduzido

Os laboratórios públicos, como o Biomanguinhos da Fiocruz ou o Instituto Butantã, são um patrimônio nacional e um recurso estratégico. Foi por conta deles que o Brasil conseguiu fornecer tratamento gratuito a todos os pacientes HIV positivo. E ter um programa nacional de imunização já erradicou ou evitou que diversas doenças infecciosas acometessem a população brasileira.

Apesar de sua importância, estes laboratórios frequentemente não recebem investimento à altura. Só para citar um exemplo, ao invés de reforçado, o orçamento da Fiocruz foi reduzido em mais de R$ 300 milhões para o ano de 2020. Enquanto isso, estima-se que a indústria farmacêutica recebeu mais de R$ 11 bilhões de incentivos fiscais em 2018.

É importante que o Brasil tenha uma política de inovação e produção de medicamentos que atenda as suas necessidades e prepare o país para evitar este tipo de problema, valorizando os recursos que já tem. Isso garante não só a sua independência do mercado externo, mas também desenvolvimento econômico e tecnológico, bem como a proteção da saúde das próximas gerações.

Ser menina é (e sempre foi) muito perigoso no Brasil

Estupro coletivo não é novidade do século 21, não é novidade no país. No Brasil colônia, o estupro era prática cotidiana compreendida como direito por senhores de escravos que violentavam diuturnamente negras e indígenas. O estupro que deu origem à mestiçagem brasileira foi ignorado por muito tempo e a mistura de raças foi amplamente difundida como  fruto de uma cordialidade do povo brasileiro. Cordialidade esta revestida com muito sangue e lágrimas.

Prática comum no cangaço, as meninas, assim como mulheres e idosas, eram alvo de uma macheza covarde, brutal e bestial. Arrancadas de casa ainda meninas (até crianças), eram violentadas até o limite que seus corpos suportavam, não raras vezes por muitos homens, como narra Adriana Negreiros no livro Maria Bonita, Sexo, Violência e Mulheres no Cangaço (2018).

Assim como o estupro coletivo não é recente, também não é fenômeno que podemos localizar somente no campo de uma direita misógina. Refazendo o caminho da Coluna Prestes, Eliana Brum, jornalista e escritora, registra histórias de estupro, saques, assassinatos e tortura – em entrevista a Antônio Abujamra em 2013.

Morte decretada via Facebook

A mais nova modalidade de violência contra meninas de que se tem notícia no Brasil é a execução de adolescentes no Ceará anunciada nas mídias sociais por meio de falsos perfis. Facções criminosas, por um motivo ou outro, decretam pelo Facebook quem deve ser eliminada. As meninas são arrancadas de casa, torturadas com requintes de crueldade e depois brutalmente assassinadas após estupros coletivos.

Percebe-se, portanto, que o estupro é uma prática aceita culturalmente desde que o Brasil é Brasil. A prática perpetua-se por gerações de tal modo que a violência chega a ser invisibilizada por sua naturalização. Há, no mínimo, uma permissão silenciosa; um encorajamento coletivo com inúmeros episódios ‘autorizados’ ou cometidos por juízes, parlamentares e outras autoridades públicas, como prefeitos, médicos e professores. Os exemplos são muitos.

Em comum, nota-se uma desqualificação das mulheres/meninas com termos que remetem à sua sexualidade e ao desejo. Hipócritas, “homens de Deus” as desejam e as desprezam e violentam-nas com suas consciências tranquilas.

A violência contra meninas ganha novos contornos e elementos como uso das redes sociais e o envolvimento do crime organizado, além da desqualificação das mulheres em discursos e pronunciamentos oficiais. “Não estupro você, porque você não merece”, disse o então deputado federal Jair Bolsonaro, hoje presidente da república, como se tal violência pudesse ser admitida em alguma circunstância.

Confusão entre Estado e religião agrava violência

Segundo a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, conhecida por exaltar o sexismo, na ilha do Marajó meninas são estupradas porque não usam calcinha. Sem qualquer preocupação em analisar a complexidade do problema, responsabiliza as próprias vítimas pelo estupro. Nesse sentido, a estratégia para enfrentar o problema pode ser reduzida ao fornecimento de peças íntimas às crianças e os agressores saem ilesos. Já na ONU, na Comissão de Direitos Humanos, o discurso da ministra se restringiu a uma fala genérica pela perspectiva moral e religiosa, se alinhando aos países mais conservadores do mundo e negando todos os tratados de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário.

A confusão entre Estado e religião sempre prioriza pautas de costumes e de controle dos corpos femininos. Evita uma abordagem direta sobre os problemas, portanto, não se age sobre as causas e a tendência é o agravamento das violências.

Pesquisas mostram que o assassinato de meninas tem crescido vertiginosamente no país. Dados do Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência (CCPHA), instituído pela Assembleia Legislativa do Estado do Ceará (AL-CE) – relatório de 2018 – revela que homicídio de meninas cresceu mais de 400% em Fortaleza.

Diante de problemas de tal gravidade é imprescindível que se reúna esforços para prevenir violências, responsabilizar agressores, acolher e cuidar das vítimas. Para isso, se faz urgente determinação política para se estudar as violências e elaborar plano de enfrentamento com um desenho complexo abarcando toda a sociedade brasileira, especialmente as políticas públicas. Todos os segmentos da sociedade devem ser envolvidos para coibir a violência do estupro e a morte por violência, em especial de crianças e adolescentes que têm tido suas vidas exterminadas pela violência. Crianças e adolescentes negras, moradoras das periferias têm suas vidas ameaçadas diariamente.

Todas as vidas importam, vidas negras importam, vidas de meninas importam. O alerta foi dado.

Ano novo, tarifa nova (mais cara, como sempre)

Hoje o Distrito Federal (DF) amanheceu com passagens do Transporte Público Urbano (TPU) 10% mais caras. A justificativa do governo é a de que “é preciso melhorar as contas e manter o sistema em pleno funcionamento”. Na argumentação, o GDF informa que em 2019 o recurso dado às empresas para subsidiar a tarifa foi de R$ 700 milhões, o que não se sustenta quando analisamos o orçamento executado.

Esse total equivale a todo o programa orçamentário mobilidade integrada e sustentável, conforme dados da tabela 1. O que o governador Ibaneis joga na conta da subvenção é, na verdade, os recursos para toda a infraestrutura do TPU, como corredores exclusivos de ônibus e manutenção dos terminais rodoviários, por exemplo.

O montante que o governo dá para as empresas de transporte como subsídio, a chamada “Manutenção do Equilíbrio do Sistema”, é uma cifra muito menor, R$ 175 milhões. Com o aumento da tarifa, o governo projeta economizar cerca de R$ 160 milhões, ou seja, estão, na prática, retirando o subsídio.

Reforma da rodoviária do Plano Piloto

Ao observar a tabela do orçamento, verificamos também que se gastou cerca de R$ 1,3 milhão com a reforma da rodoviária do Plano Piloto. Contudo, há meses as escadas rolantes e elevadores não funcionam, constrangendo e tornando inviável o deslocamento de pessoas com deficiência e idosos, que têm muita dificuldade para acessar o terminal. Limpeza e conservação é algo que não existe. Outra questão é a superlotação e a precariedade dos veículos. Argumentam que as empresas tiveram de gastar mais com ônibus com portas dos dois lados por conta da Estrada Parque Taguatinga (EPTG), algo que estão devendo à população há oito anos e para a qual as empresas não pagaram multa por não respeitarem as regras contratuais.

Embarque por direitos

Ao mesmo tempo em que aumentam a tarifa, justificando que não podem subsidiar as passagens e a própria infraestrutura, reduzem o IPVA, favorecendo e incentivando os automóveis individuais motorizados. Essa política vai na contramão de todas as tendências internacionais que, por motivos sociais e ambientais, tentam reduzir a emissão de gases de efeito estufa.

Em consonância com esse esforço mundial para incentivar o transporte coletivo,  lançamos em outubro de 2019 a campanha “Embarque por Direitos”, pela regulamentação do transporte como direito social. Apresentamos uma proposta de fundo de financiamento ao TPU, que propõe que o coletivo seja financiado pelo individual, por meio de novas alíquotas para os impostos IPTU, IPVA, ICMS da gasolina, de maneira progressiva (quem tem maior renda paga mais).  Este fundo solidário com recursos municipais, estaduais e nacionais permitiria a não tarifação, ou tarifa zero. O que pretendemos é mostrar que é viável transformar o transporte em política pública de fato, ao contrário da política desenvolvida pelo governo Ibaneis, onde o transporte individual motorizado continua sendo priorizado.

O transporte público é um dos itens que mais pesa no orçamento das famílias de baixa renda, que muitas vezes não conseguem procurar emprego por não terem condições de pagar a tarifa. Além de pesar mais nas costas dos trabalhadores informais em tempos de desemprego. Na zona rural em Brasília, por exemplo, mesmo que seja circular interno, a tarifa é a mais alta, R$ 5,50, sem fiscalização por parte do poder público, que deixa todo o sistema por conta das empresas de transporte. Não há transparência com relação à composição tarifária, o valor da tarifa técnica é dado sem que a população acompanhe ou tenha conhecimento de como é feito o seu cálculo.

O Conselho do Transporte Público Coletivo do DF existe, mas sem poder, pois o aumento foi apresentado aos conselheiros dias antes da implantação e, mesmo com voto contrário, foi imposto à população. Então, nem mesmo um conselho pouco representativo tem voz de fato. Não há espaço de participação para a população que utiliza o TPU diariamente.

Seguimos com tarifas altas, qualidade baixa, população desassistida, ampliação de vantagens para a parte da população com maiores rendas e vida dura para quem tem menos, como sempre, aprofundando ainda mais as desigualdades gritantes.

Pouco divulgada, Cúpula dos Povos chilena privilegiou o diálogo com o contexto político local

Entre os dias 2 e 8 de dezembro aconteceu, em Santiago, Chile, a Cúpula dos Povos, evento anual promovido por movimentos sociais e representantes da sociedade civil global como um contraponto à Conferência das Nações Unidas sobre o Clima (UNFCC), onde atuam os governos signatários do Tratado de Paris sobre o Clima, assinado em 2015.

Também conhecida como Conferência das Partes, ou COP, a edição de 2019 foi, desde o início, marcada por uma série de revezes e, finalmente, entrou para a história pela incapacidade das delegações presentes em fecharem acordo sobre um dos pontos mais polêmicos e centrais à arquitetura da governança climática.

Já a Cúpula chilena ficou marcada por intensos protestos e graves denúncias de violações de direitos humanos.

Idas e vindas da COP 25

A Conferência do Clima da ONU discute a crise climática e busca engajar os países no combate ao aquecimento global. Trata-se de um fórum no qual os países se reúnem para discutir medidas de adaptação e mitigação frente às ameaças trazidas pela elevação das temperaturas no planeta.

A 25ª edição da conferência teve uma execução conturbada. Em 2018, logo após as eleições, o presidente Jair Bolsonaro declarou que o Brasil não presidiria nem sediaria, como fora previsto em edições passadas, o evento. Em novembro daquele ano, o governo brasileiro iniciou negociação com o chileno para que o país vizinho assumisse a Conferência. Um mês depois, a decisão foi tornada pública, em um contexto de reconfiguração da aliança continental dos governos de direita e crise dos progressismos latino-americanos.

No entanto, em 31 de outubro de 2019, a praticamente um mês da data prevista para o início da COP, a explosão de uma revolta popular no Chile impôs novo recuo para a realização do evento. Alegando questões de segurança, o Presidente do Chile, Sebastián Piñera,declarou incapacidade para sediar a Conferência em seu país.

Considerou-se, então, momentaneamente, transferir a COP para Bonn, na Alemanha, cidade-sede do secretariado da UNFCCC e onde ocorrem as reuniões preparatórias para o encontro anual. A medida, no entanto, não foi necessária. Uma rápida movimentação do primeiro-ministro da Espanha, Pedro Sanchez, em articulação com o presidente chileno, alterou, mais uma vez o cenário. Com o aval do secretariado da UNFCCC, Madrid foi declarada cidade-sede da Conferência, porém sem reclamar a sua presidência. Esta continuou com Chile, num ato atípico para a história das COP.

O impacto da transferência para a sociedade civil

A Cúpula dos Povos reúne movimentos sociais e ONGs de distintas partes do mundo. Por isso, este pode ser considerado um momento importante para a formação política e intercâmbio de experiências entre as organizações. A sua realização mobiliza grandes esforços tanto para garantir a infraestrutura do evento quanto para assegurar a presença dos participantes no país-sede, onde se promove um conjunto variado de atividades entre debates, intervenções públicas e ações de incidência, além de uma marcha que tem o objetivo de compartilhar com a sociedade o resultado dos dias anteriores de trabalho.

Levando-se em conta o contexto político, optou-se pela realização de duas Cúpulas dos Povos: Uma no Chile, em caráter de solidariedade à mobilização social em curso no país, e outra, em Madrid, cujo objetivo seria acompanhar mais de perto as negociações oficiais e pressionar os governos no sentido da justiça socioambiental.

O resultado desta divisão foi a invisibilidade do primeiro processo, além do esvaziamento de ambas as Cúpulas, na comparação com anos anteriores. As agendas apertadas de final de ano e os altos custos para remarcação de passagens aéreas e hospedagem, reduziram a participação da sociedade civil no evento e levaram ao cancelamento de muitas das atividades previstas.

Para o que ficou de pé, foram realizados debates de alto nível, obtendo-se, ainda, avanços relevantes no que se refere à articulação da sociedade civil em nível global e, particularmente, à divulgação das denuncias relativas a conflitos por terra, ataques a etnias indígenas e a grandes empreendimentos em áreas de florestas preservadas. De modo geral, a democracia e a redução do espaço democrático para a atuação da sociedade civil também foi um assunto de destaque.

Cúpula no/do Chile

Na data de início da Cúpula, o Chile entrava na sua sétima semana de protestos, totalizando quase 50 dias de ocupação das ruas da capital Santiago. A desaprovação do presidente chegou a 84% e o apoio às mobilizações variava, a depender da empresa de pesquisas consultada, entre 70 e 90%. A cidade vivia um clima de entusiasmo, que levou a uma atmosfera amena, de gentileza, solidariedade e esperança, em que pese a força da indignação que pairava no ar.

As reivindicações dos manifestantes envolviam, concretamente, o sistema privado de aposentadorias, educação e saúde, expressando-se, ainda, de modo difuso como descrença em relação à política institucional e aos políticos profissionais. Corria as ruas o burburinho de que o modelo para um projeto neoliberal latino-americano havia ruído.

Ao longo das mobilizações, Piñera adotou medidas para contornar a insatisfação popular. As ruas não cederam. Os chilenos seguiram seu cronograma de manifestações diárias. Finalmente, o presidente abriu o sistema político chileno a uma Assembleia Constituinte. Esta agenda foi amplamente aceita pela população, que passou a se organizar para monitorar e incidir sobre o processo Constituinte.

Neste ponto incidiu a Cúpula. A intensidade do cenário local tornou impossível resistir ao enfoque no processo político chileno, embora esta já fosse uma tendência observada ao longo da preparação do encontro. Assim, a Cúpula acabou se tornando um espaço (riquíssimo) para o compartilhamento das experiências regionais, bem ou malsucedidas, em relação a constituintes recentes, como nos casos da Bolívia, do Equador e da Venezuela.

Neste sentido, um aspecto trazido pelos debates durante a Cúpula foi a responsabilidade política que, agora, cai sobre os ombros da sociedade chilena. Isto porque, o processo Constituinte deflagrado no país será o primeiro após o ciclo progressista, dos governos de centro-esquerda na região, e acontece num cenário de ascensão da extrema direita no mundo.

Como produzir uma Constituição cidadã, capaz de contemplar os direitos dos povos e da natureza, é um resumo possível para as discussões ocorridas no âmbito do encontro. Mais do que um evento que aconteceu no Chile, a Cúpula dos Povos foi plenamente apropriada pelos chilenos e posta a serviço das preocupações políticas locais.

Aqui, outro aprendizado: prevaleceu o olhar enraizado no território para o debate climático, a partir da vida e da experiência dos sujeitos políticos, o que favoreceu uma abordagem transversal dos temas debatidos do local ao global.

Ainda naquela semana, deputados chilenos, com apoio da oposição de esquerda, aprovaram um projeto de lei que criminaliza os protestos. No dia 13 de dezembro, a ONU divulgou relatório que confirmou graves denúncias sobre violações de direitos humanos – incluindo mortes, estupros e tortura de manifestantes – sob comando do governo. O relatório foi divulgado em meio a discussões dos chefes de Estado na COP 25, em Madrid.

Em Madrid, organizações brasileiras tiveram destaque

Em Madrid, organizações brasileiras organizaram evento em defesa dos povos e comunidades tradicionais da Amazônia e pelo Bem Viver. APIB, Grupo Carta de Belém, FASE, Coletivo pelos Direitos no Brasil – Madrid e Maloka denunciaram os retrocessos socioambientais promovidos pela gestão Bolsonaro. Desmonte das políticas públicas para o setor, perseguição política, intensificação dos conflitos agrários e assassinatos de indígenas foram temas do debate.

Nesta edição do evento, a sociedade civil teve o seu acesso aos espaços de negociação restringido. No passado, as organizações sociais, assim como os empresários, compunham a delegação brasileira ao lado dos diplomatas e dos representantes do Executivo. Sob esta condição, embora os representantes não-governamentais não tivessem voto nos principais espaços de discussão, havia certa liberdade para circulação dentro das instalações do evento e, consequentemente, para o acompanhamento dos debates e articulações políticas.

Em 2019, o governo brasileiro não admitiu representantes não-governamentais como membros da sua delegação, restando-lhes o status de “observadores”, com acesso bem mais reduzido no que se refere aos espaços da Conferência. Além disso, do ponto de vista da transparência e da participação democrática, o governo brasileiro não se preocupou em garantir espaços para diálogo e repasses relativos à negociação.

Contudo, este cenário não pode ser considerado surpreendente, entre outras coisas, porque segue a quebra de uma rotina estabelecida de consultas entre os negociadores brasileiros e a sociedade civil. O próprio Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas foi enfraquecido nesta gestão. O atual governo ignora que a construção de um processo doméstico, prévio à realização da Conferência, ou seja, de concertação Estado-sociedade, foi um fator de projeção internacional do país e serviu à redução dos custos de internalização dos acordos externos, contribuindo para uma ação internacional robusta da diplomacia brasileira na agenda climática global.

O encerramento da COP 25

A COP 25 será lembrada como um ponto de inflexão na história da diplomacia brasileira nas COP. Talvez seja possível dizer que esta edição marca o pior desempenho da diplomacia nacional desde o início do evento, há 25 anos. A imprensa internacional fez questão de noticiar a impostura do governo brasileiro, que obstruiu a negociação para um, quase literal, recolhimento de dízimo com base nos resultados de mitigação do país.

Mesmo diante da patente piora dos resultados de mitigação e escandaloso aumento das queimadas e desmatamento, o governo chegou a Madrid para pressionar quanto à possibilidade de legalizar e expandir os negócios com créditos de carbono. No Tratado de Paris, essa possibilidade é regulada pelo Artigo 6º, particularmente, pelos incisos 6.2 e 6.4. Essas linhas regem a introdução de mecanismos de mercado para “abordagens cooperativas”, ou seja, offset, no jargão. Isso significa que se permite a transferência dos resultados de mitigação de um país para outro.

Quando a imprensa menciona a falência do processo negociador da COP 25, refere-se, em especial, ao fechamento da regulamentação do artigo 6º. Do ponto de vista dos movimentos sociais, a dificuldade para concluir um acordo em torno desse ponto pode ser visto por um viés positivo, ainda que por linhas tortas. Pois a posição histórica do campo crítico no debate climático é de rejeição à introdução dos mecanismos de mercado para offset propostos em Paris, conforme se pode ler na nota lançada pelo Grupo Carta de Belém. Esta era a postura historicamente defendida pelo Itamaraty até então.

Embora não tenha sido possível concluir a negociação pertinente ao funcionamento do Tratado de Paris, 2020 abre o período de vigência do novo acordo do clima. Além disso, o próximo ano inaugura uma nova lógica para a implementação das medidas de mitigação climática. O Tratado de Kyoto diferenciava as responsabilidades de mitigação entre países ricos (industrializados) e pobres (extrativistas). O Tratado de Paris, que substitui o anterior, não reconhece essas diferenças. Esta é uma das explicações para que a disputa, agora, envolve a definição dos parâmetros de operação do Artigo 6º.

O modo de funcionamento dos mecanismos de mercado previstos neste capítulo do acordo pode implicar responsabilização dos países mais pobres no que tange ao aquecimento global. O desafio para frente é, portanto, evitar que isso aconteça sem que grandes países poluidores do Sul Global (como Brasil, China e Índia) passem impunes das suas próprias responsabilidades, sobretudo, no que se refere aos efeitos socioambientais destrutivos da indústria extrativista.

Orçamento 2020: quais as previsões para o ano que chega?

O Congresso Nacional aprovou na última terça (17/12), a Lei Orçamentária Anual (LOA) 2020, que estabelece a previsão de receitas e a alocação de gastos do governo federal para o ano que vem. O Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) foi primeiramente entregue em agosto pelo Executivo para o Legislativo, que o aprovou após fazer alterações na forma de emendas. A lei agora vai para a sanção presidencial.

A LOA possui caráter autorizativo, isto é, nada garante que os recursos alocados serão de fato executados, porém, todo recurso gasto precisa ter o consentimento da lei. Baseado na análise do orçamento autorizado, de R$ 3,565 trilhões, faremos aqui seis previsões para 2020:

1. Será o fim da política de valorização do salário mínimo

O documento aprovado estima uma elevação de 2,32% do PIB para 2020, um pouco maior do que o esperado pelo mercado, de 2,25%.  Esse otimismo, porém, pode não se concretizar, considerando que na LOA do ano passado a previsão era de 2,50% e hoje se avalia que será em torno de 1%, ou seja, duas vezes e meia menor do que o alardeado pelo governo.

A previsão generosa com o PIB também não foi traduzida em aumento real do salário mínimo – que corresponde à renda de metade da população brasileira. Nos últimos 20 anos, o salário mínimo cresceu 250% em termos reais, devido principalmente às medidas legais que atrelaram o aumento do soldo ao crescimento do PIB, para além da inflação. A última lei de valorização do salário mínimo foi sancionada em 2011 , renovada em 2015 e expirada em 2019. Como não houve novas renovações por parte do Legislativo, o fim da obrigatoriedade significou o fim da política de aumento do salário real.

Dessa forma, o salário mínimo proposto na LOA 2020 é de R$ 1.031,00, uma correção de apenas 3,3%, que não resulta em ganho real.  Note-se, contudo, que o valor final será estipulado pelo Executivo no início de 2020*.

2. Saúde, habitação e turismo serão valorizados, mas a educação continuará sofrendo

O orçamento de R$ 3,565 trilhões aprovado apresenta adicional de R$ 7 bilhões comparado com o projeto de lei enviado em agosto pelo Executivo. Durante a votação no Congresso, o relator afirmou que os parlamentares conseguiram aumentar os recursos para áreas como saúde e educação.

Com efeito, a análise dos números revela que a saúde foi a área mais favorecida, pois o Ministério da Saúde teve recursos adicionais da ordem de R$ 5,1 bilhões. Os aumentos beneficiam principalmente os serviços de atenção básica e assistência hospitalar e ambulatorial. Houve ainda alocação complementar considerável no Ministério do Turismo, de 379%, com as verbas direcionadas, principalmente, para obras de infraestrutura. Por fim, o Fundo de Desenvolvimento Social, que financia o programa Minha Casa Minha Vida, viu seu orçamento crescer em R$ 188,5 bilhões.

O caso da educação, porém, é menos animador. O incremento autorizado pelo Congresso em relação ao encaminhado pelo Executivo foi de apenas R$ 700 milhões para uma área considerada estratégica para o país. Além disso, o aumento orçamentário concedido pelo Legislativo não compensa o elevado corte proposto pelo Executivo para o ano que vem, quando comparamos com os gastos autorizados para este ano. Em 2018, o orçamento aprovado pelo Legislativo foi de R$ 122,9 bilhões, quase R$ 20 bilhões a mais que o orçamento de R$ 102,9 bilhões que teremos para 2020.

3. Investimento do governo vai subir, mas as estatais continuarão em apuros

No caso de investimentos dos órgãos públicos, o orçamento de 2020 aprovado pelo Congresso autoriza gastos de R$ 40,5 bilhões, maior que os R$ 22,5 bilhões previstos no PLOA encaminhado em agosto pelo Executivo. Esse aumento é considerado positivo pelos economistas, pois os investimentos públicos são gastos governamentais que possuem grandes efeitos multiplicadores, impulsionando o investimento privado e o crescimento econômico.

O cenário para os investimentos das estatais, porém, vai na direção oposta, com o processo de sucateamento proposto pelo Executivo. Não houve alteração no orçamento para as empresas controladas pelo Estado, que tiveram os  cortes de 9,6% no orçamento do BNDES, 30,5% no orçamento dos Correios e 63% no orçamento da Infraero mantidos.

4. A PEC Emergencial tem grandes chances de ser aprovada no Congresso

Como vimos anteriormente, o Congresso autorizou aumento de despesas em algumas áreas do governo, como saúde e investimentos. A LOA ampliou as chamadas despesas discricionárias (sobre as quais o governo tem liberdade para decidir) em quase todos os ministérios. Para fechar as contas, os parlamentares elevaram as estimativas de receita ao mesmo tempo em que diminuíram outras despesas. No que tange às fontes de financiamento, aumentou-se a previsão de receitas da ordem de R$ 7 bilhões, relacionadas ao pagamento de dividendos à União.

Em relação às despesas, a diminuição dos gastos deve-se à aposta na aprovação da PEC Emergencial, um dos projetos de Emenda à Constituição recentemente enviada pelo Executivo ao Senado. A referida PEC prevê medidas para reduzir despesas obrigatórias, e sua aprovação, segundo o relatório da LOA, levará a uma economia de R$ 6 bilhões aos cofres públicos. Essa PEC propõe a redução da jornada de trabalho em até 25% para os servidores públicos, com diminuição proporcional das remunerações, nos anos em que a União descumprir a Regra de Ouro – que é o cenário projetado para o ano que vem. Dada a incorporação do impacto dessa PEC na redução dos gastos com pessoal da presente LOA, é possível concluir que a maioria dos deputados está disposta a votar a favor dessa proposta de Emenda Constitucional.

5. O Bolsa Família está assegurado, mas a previdência rural continuará dependente de nova aprovação do Legislativo

Na análise realizada pelo Inesc sobre o PLOA 2020, explicamos o que é crédito suplementar e a dinâmica política que ele envolve, basicamente uma escolha entre qual recurso está garantido na LOA e qual terá que ser aprovado pelo Congresso novamente em 2020. A LOA, votada pelo Congresso esta semana, prevê despesas no montante de R$ 343,6 bilhões que estão condicionadas à aprovação de crédito suplementar, uma redução quando comparado ao valor proposto pelo Executivo no PLOA.

No projeto encaminhado pelo governo Bolsonaro em agosto, cerca de um terço do programa Bolsa Família estava enquadrado como crédito suplementar. O Legislativo, porém, mudou essa realidade, ao garantir na LOA o orçamento para todo o programa. A Previdência Rural, porém, não teve a mesma sorte: enquanto apenas 8% dos benefícios previdenciários urbanos estarão condicionados, 45% dos benefícios previdenciários rurais vão requer a aprovação do Congresso.

6. Vale a pena lutar pelo orçamento, mas será necessário monitorar sua execução

O Plano Plurianual (PPA) 2020-2023, aprovado pelo Congresso Nacional em dezembro, foi um grande retrocesso em termos de transparência do gasto governamental. Como a análise do Inesc apontou,  programas que detalhavam os gastos da União foram eliminados na proposta enviada pelo Executivo, principalmente nas áreas de direitos humanos e socioambiental.

Graças às ações de incidência da sociedade civil no Legislativo, foram introduzidos ao PPA 2020-2023 os programas “Prevenção e Controle do Desmatamento e dos Incêndios Florestais nos Biomas” e “Proteção e Promoção dos Direitos dos Povos Indígenas”. A partir desses programas, será possível acompanhar a execução orçamentária para essas duas importantes pautas nos próximos quatro anos. Serão alocados, em 2020, R$ 134,1 milhões e R$ 73,3 milhões para cada programa, respectivamente. Porém, em um cenário de desmantelamento dos órgãos públicos e de descaso do Executivo para a agenda socioambiental, a chance dos recursos previstos não serem gastos é muito grande.

Ainda que a LOA aprovada esta semana tenha autorizado aumento de despesas em áreas essenciais, como a da saúde, a execução dos gastos não está garantida. Além disso, a Lei não corrigiu problemas de fundo, relacionadas à desigualdade social brasileira e à falta de vontade do governo em priorizar no orçamento pautas importantes para a garantia de direitos humanos, como mostramos em análises anteriores. Cabe a nós, sociedade civil, monitorar e pressionar para que 2020 não seja tão desastroso quanto o ano que está acabando.

*Atualização: o presidente Jair Bolsonaro sancionou em 31/12/2019 o salário mínimo no valor de R$ 1.039, um pouco maior do que o previsto na LOA. Ainda sim, o reajuste não representa ganho real em relação ao soldo anterior, que era de R$ 998.

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