Educação precisa de investimento, não de mitos

Será que todas as pessoas entendem a diferença entre universidade, centro universitário e faculdade? As universidades, obrigatoriamente, precisam ter o tripé de ensino, pesquisa e extensão; os centros universitários podem ter, mas não obrigatoriamente; as faculdades também estão dispensadas do tripé e, em geral, não fazem pesquisa nem extensão. Outra particularidade das universidades é que elas devem ter programas de mestrado e doutorado, além de uma qualificação mais rigorosa de seu corpo docente, com maior número de mestras (es), doutoras (es) e pós-doutoras (es). Dos centros universitários também é exigido mais pós-graduadas (os). Já as faculdades podem ter mais especialistas na composição do quadro de docentes.

Só com essa explicação inicial, fica nítido que quem faz pesquisa são as universidades. E no Brasil, a maioria delas é pública. De acordo com o Censo Escolar produzido pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), 87,9% do total da rede de ensino superior é composta por instituições privadas. No entanto, 53% das universidades são públicas, onde se produz a maior parte das pesquisas e das atividades de extensão, que resultam, dentre outras coisas, em políticas públicas como o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid).

Pibid sem verbas

O Pibid é uma ação, dentro da Política Nacional de Formação de Professores do Ministério da Educação (MEC), que pretende (ou pretendia) oferecer aos discentes, na primeira metade do curso de licenciatura, uma aproximação prática com o cotidiano das escolas públicas de educação básica e com o contexto em que elas estão inseridas.

O programa concede (concedia) bolsas a alunos de licenciatura participantes de projetos de iniciação à docência desenvolvidos por Instituições de Educação Superior (IES) em parceria com as redes de ensino.

Os projetos devem (deveriam) promover a iniciação do licenciando no ambiente escolar ainda na primeira metade do curso, visando estimular, desde o início, a observação e a reflexão sobre a prática profissional no cotidiano das escolas públicas de educação básica. O que pode desenvolver uma outra forma de ver o cotidiano das escolas e formar profissionais mais maduras (os) e cientes dos desafios que enfrentarão. Os estudantes bolsistas precisam (precisavam) ser acompanhados por um professor da escola e por um docente de uma das instituições de educação superior participantes do programa.

Essa inciativa foi uma das melhores propostas para pesquisa e extensão voltadas para as licenciaturas, pois colocava as futuras (os) educadoras (es) dentro das escolas, com formação prática aliada à formação teórica, promovendo o desenvolvimento de laços acadêmicos e de afeto com as futuras profissões.

E o que aconteceu com este projeto? Veja na tabela abaixo, retirada do Siga Brasil, com dados da Lei Orçamentária Anual (LOA) para 2019:

 

Ou seja, esse programa não existe mais, o que é bastante contraditório com o discurso do governo de valorização da educação básica. Sem licenciados e pedagogos bem preparados não existe educação básica fortalecida.

Cortes afetam também a educação básica

E quando dizem que o ensino superior está retirando dinheiro da educação básica, sugerindo uma falsa dicotomia entre as esferas da educação, deve-se dizer que o que retirou recursos de toda a educação, incluindo a básica, é a Emenda Constitucional 95 de 2016, que estabeleceu o teto dos gastos. De 2014 para 2018, e medida retirou 8%, em valores reais, da educação básica. Em valores absolutos, atualizados pelo IPCA, foi de R$ 84,1 bilhões, para R$ 76,7 bilhões. Isso considerando que a maior parte do recurso da educação básica é obrigatória e garantida pelo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb).

Além disso, números da tabela abaixo, com dados da LOA de 2019, mostram algumas ações referentes à educação básica que estão com o total ou parte de seus recursos indisponíveis, afetadas que estão pelo corte de recursos que, repito, não é só no ensino superior.

Com apenas alguns exemplos de onde estão incidindo os cortes, a saber, no transporte escolar; na implantação de escolas de educação infantil, que o governo diz valorizar tanto e priorizar; no funcionamento de escolas de educação básica federais, etc, é possível verificar que o discurso do governo não se alinha a prática. Com especial atenção aos livros didáticos, onde houve um corte de mais de mais de 85%, o que inviabilizará a política de distribuição dos livros, afetando enormemente a população mais pobre.

Outro dado relevante é o corte de 60%, conforme tabela abaixo, de bolsas permanência, que seriam para as (os) estudantes mais pobres, além dos indígenas e quilombolas, para que consigam permanecer em seus cursos até o final. Então, é perceptível, olhando para os cortes, dizer que a opção desse governo é pelos ricos e privilegiados, diferente do discurso público.

A cultura e a memória também estão sem valor nas priorizações governamentais, pois já era pouco o que haviam reservado para restauração do Museu Nacional, e virou menos ainda, conforme se constata na tabela abaixo.

A educação resiste

A defesa da educação pública, gratuita e de qualidade sempre esteve no horizonte de lutas da população brasileira, e foram muitos os resultados. De acordo com dados do Inep, o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) dos anos iniciais do ensino fundamental saiu de 3,8 em 2005 para 5,5 em 2015; e dos anos finais de 3,4 para 4,5. Desde a Conferência Nacional da Educação, em 2010, nos manifestamos pedindo 10% do PIB para a Educação. Com esta luta, o movimento social garantiu este índice no Plano Nacional de Educação (PNE), que agora está sendo rasgado junto com a Constituição.

Ainda precisamos avançar muito, mas, infelizmente, estamos primeiro lutando para manter o que já conquistamos e ainda remando contra a maré de desinformação e fake news sobre educação disseminada pelo próprio governo.

>>> Leia também: Em defesa da educação, contra o desperdício da experiência

Contra a cultura da violência, empatia e políticas públicas

Quando um presidente da república afirma que “quem quiser vir fazer sexo com mulher, fique à vontade” e ainda diz que o país não é um paraíso gay, legitima com palavras proferidas e outras não ditas que mulheres estão à disposição das vontades alheias. Simultaneamente, deixa evidente o quanto teme que o Brasil seja referência para a homossexualidade, como se fosse um demérito.

Ao tratar de violência sexual, que afeta crianças e adolescentes, não podemos nos deter somente ao ato da conjunção carnal e considerar que a violência teve origem no momento da agressão. A violência é uma construção processual fundamentada por uma cultura que permite que ela aconteça. O ato do agressor não é solitário, por trás de seu gesto há terreno propício respaldado no comportamento de muita gente. A trama é tão bem tecida que, para muitos, a violência não é percebida como tal.

Assim, embora extremamente brutais, os estupros coletivos, para homens e meninos que a praticam, não passam de uma diversão. A violência pressupõe a ausência de empatia. A fala que disponibiliza sexo com mulheres (leia-se também meninas) legitima o desprezo por suas vidas, desejos, vontades e dignidades. Em uma sociedade centrada no adulto, e que é racista, machista e homofóbica, a cultura que impera exclui a percepção de inúmeras pessoas da categoria humana.

Crianças e adolescentes são as principais vítimas

O Atlas da Violência 2018, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), revela que do total de 22.918 casos de estupro registrados pelo sistema de saúde em 2016, 50,9% foram cometidos contra crianças de até 13 anos. As adolescentes de 14 a 17 são 17% das vítimas e 32,1% eram adultas. As pessoas com algum tipo de deficiência também representam 12,2% do total de casos de estupros coletivos.

Observa-se que todos os dados relativos à violência sexual são subestimados. Ainda segundo a pesquisa, “os estudos mais conservadores estimam que o número de registros equivale a, no máximo, 10% da quantidade real de estupros de cada ano, ou seja, esse número é muito pior”. Atribui-se às campanhas feministas o aumento de denúncias, possibilitando conhecer o problema em uma dimensão um pouco mais realista, o que é essencial para a elaboração de políticas públicas que produzam efeitos na redução na violência sexual.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) diz em seu artigo 5º que “nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais”.

Portanto, é papel de todas as políticas públicas desvendar as raízes da violência sexual e atuar para proteger crianças e adolescentes, para responsabilizar os agressores, mas sobretudo prevenir, criar um mundo seguro para a vida transcorrer em patamares dignos e felizes. A tarefa é hercúlea no momento de desmonte do Estado e com os cortes e censura na educação.

Educar para construir novas sensibilidades

Na revista Descolad@s nº 6, produzida por adolescentes do projeto Onda do Inesc, a matéria intitulada “Educação de Gênero: construção de novas sensibilidades”, de Maria Castanho, 17 anos, dá dicas do que fazer. Para ela, a educação de gênero tem o objetivo de estimular o desenvolvimento da percepção sensível sobre todos os gêneros; motivar a convivência e o respeito entre os diferentes gêneros; desnaturalizar os papéis de gênero; fortalecer a ideia de que o corpo é nosso e de que a nossa sexualidade é determinada pelos nossos desejos; combater a educação sexista, que atribui a meninos mais oportunidades e controle sobre suas vidas e para as meninas, a noção do corpo como objeto sexual e do qual elas não têm controle nem poder de decisão; enfrentar a violência contra mulheres combatendo as raízes do feminicídio; enfrentar relacionamentos abusivos; e por fim, superar a cultura do estupro.

Em tempos em que a voz da autoridade máxima celebra mais as armas do que educação, que a educação sexista é defendida com radicalidade e, ainda, que o debate de gênero é censurado nas escolas, as perspectivas não são boas. Ainda assim, é hora de confiar nas vozes das ruas e acreditar que crianças e adolescentes podem inaugurar uma nova ordem social em que prevaleça a ética e o respeito em suas relações.

Em defesa da educação, contra o desperdício da experiência

*Título parafraseando Boaventura de Sousa Santos.

Há um mantra que diz ser a educação o caminho para a transformação das sociedades, com a redução de desigualdades e a possibilidade de se ter mobilidade social. Apesar de acreditar que este não é o único fator atuante, é certo que sem ela não há solução viável. No entanto, o governo atual está demonizando o avanço educacional.

O discurso oficial é o de que não há pesquisa nas universidades públicas, apenas nas privadas. Afirmação sem dados da realidade, que indicam o contrário: são as universidades públicas que produzem ciência no país. De acordo como relatório intitulado Research in Brazil (2011-2016), encomendado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), alcançamos a 13° posição do ranking de países que mais produzem artigos científicos. O relatório aponta ainda que, devido ao aumento do investimento em pesquisa a partir da década de 1990, o Brasil passou a ser mais citado em estudos de outros países, e a tendência até 2016 era de crescimento.

O  portal do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) explica o impacto da colaboração internacional na pesquisa, revelado pelo relatório:

Globalmente, a ciência torna-se cada vez mais colaborativa, cada país colaborando com cerca de 200 outros países. O impacto da citação parece correlacionar-se fortemente com as taxas de colaboração internacional. Portanto, os 80.291 documentos produzidos por autores brasileiros em co-autoria internacional alcançaram o impacto médio mundial de 1,31 pontos, ultrapassando o índice nacional de 0,86 (2016), e representam em torno de 32,03% do total de publicações científicas produzidas pelo Brasil no período. De acordo com o Relatório, é encorajador ver que, ao comparar os países que compõem o BRICS, o Brasil teve aumentos anuais no número de documentos produzidos em colaboração internacional, com impacto médio maior.

Outra informação importante que consta no relatório é a de que 95% da produção científica e publicações de artigos acadêmicos vêm das universidades públicas, desmentindo cientificamente a fala do presidente de que são as universidades privadas que mais produzem.

Teto de gastos na educação

Uma das razões que elevaram o status brasileiro nos meios acadêmicos e de pesquisa mundiais foi a ampliação do investimento estatal, especialmente a partir dos anos 1990 e incrementados significativamente na primeira década do século XXI. Cenário este que está mudando drasticamente desde 2015. Para verificar, basta comparar o que foi autorizado para o orçamento do ensino superior de 2015 para cá. Com números corrigidos pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), o Portal Siga Brasil mostra que, entre 2015 e 2018, houve redução do orçamento autorizado, que passou de R$ 43,1 bilhões para R$ 36,4 bilhões, representando uma queda de 18%. Com relação ao pago, no mesmo intervalo, a diferença se confirmou, ou seja, a política de austeridade cortou 18% do valor real aplicado na educação superior em três anos.

E em 2019, o valor autorizado é ainda menor, de R$ 35,7 bilhões, fora os cortes prometidos, o que aponta para um cenário ainda mais austero, até porque, conforme verificado, o que é autorizado não é executado na íntegra, tendendo à redução. O que o Ministério da Educação está prometendo, então, é um corte de 30% em cima de um orçamento que vem caindo ano a ano por conta da Emenda do Teto dos gastos (EC95).

Como o Inesc mostrou em recente levantamento, a política de austeridade só atinge as políticas sociais voltadas para a população, mantendo os privilégios daqueles que são donos do capital. A Proposta de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) para 2020, enviada pelo governo ao Congresso Nacional, prevê as isenções tributárias que beneficiam os de sempre e significam um rombo no orçamento maior que o propalado déficit da Previdência, de R$ 326, 16 bilhões.

UnB > Google > Pesquisar

Uma das universidades citadas como realizadora de “balbúrdia!” – portanto, merecedora do corte, segundo a justificativa do governo – é a Universidade de Brasília (UnB).  Em 2014, a instituição teve um orçamento executado de apenas R$ 2,2 bilhões e o autorizado para 2019, cinco anos depois, é de R$ 1,8 bilhão, sem contar os prometidos cortes orçamentários e de bolsas de pesquisa. Pergunta-se, como a UnB dará conta dos seus custos?

A despeito do baixo orçamento, a UnB é a 8° melhor universidade do país, de acordo com o ranking Times Higher Education, consultoria britânica responsável por avaliações em todo o mundo. E alguns de seus cursos estão entre os melhores, segundo outra pesquisa realizada pelo jornal Folha de São Paulo. O Ranking Universitário Folha (RUF) coloca 27 cursos da UnB ocupando as dez primeiras posições: Relações Internacionais (2°), Serviço Social (4°), Arquitetura e Urbanismo (5º), Fisioterapia (5º), Matemática (5º), Nutrição (5º), Biologia (6º), Ciências Contábeis (6º), Propaganda e Marketing (6º), Psicologia (6º), Engenharia Civil (7º), Farmácia (7º), Geografia (7º), História (7º), Odontologia (7º), Design e Artes Visuais (8º), Direito (8º), Letras (8º), Turismo (8º), Administração (9º), Economia (9º), Educação Física (9º), Medicina (9º), Pedagogia (9º), Computação (10º), Enfermagem (10º) e Engenharia Elétrica (10º).

Então, presidente e ministro da educação, antes de anunciar cortes e dizer que as universidades públicas não produzem pesquisa, que são locais de balbúrdia, façam uma busca simples no Google e vejam que senso comum não é ciência. Para planejar políticas públicas, além de ouvir os seus prováveis usuários (as), é importante verificar números, dados anteriores e séries históricas para não ficar vomitando tanta bobagem – que pode ser derrubada por uma simples pesquisa rápida na internet.

Incentivos fiscais e gastos tributários: perspectivas para o novo governo

O Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) 2020, entregue ao Congresso Nacional em 15 de abril, reflete as escolhas da política econômica do atual governo por austeridade fiscal e corte de gastos sociais. Por exemplo, o salário mínimo não terá aumento real pela primeira vez desde 2006, somente sendo corrigido pela inflação.

Quando avaliamos a Renúncia de Receita Administrada pela RFB e Previdência para 2020 observamos, porém, que os gastos tributários ficaram imunes à austeridade. Os R$ 326,16 bilhões em gastos projetados pelo governo federal representam um rombo no orçamento equivalente a 21,16% do total de arrecadação e 4,14% do PIB. A título de comparação, a estimativa do Tesouro Nacional para o déficit da Previdência em 2019 é de R$ 309 bilhões.

Apesar do governo Bolsonaro defender, desde a campanha eleitoral, a diminuição das isenções e benefícios fiscais, 2019 iniciou com aumento desses gastos, por meio da sanção da Lei 13.799/2019 e da decisão do STF do dia 25/4, ambas medidas referentes ao aumento dos incentivos fiscais para as regiões norte e nordeste do país.

Ainda que uma das propostas de reforma tributária que está na mesa hoje aponte para a diminuição dos incentivos fiscais, discussões acerca do impacto desses gastos para o orçamento e para a sociedade de maneira geral, até agora, estão longe de ocorrer.

O que são gastos tributários

Os gastos tributários, como o nome já diz, funcionam praticamente como um gasto público, embora teoricamente sejam uma renúncia de receita. Em tese, são criados com algum objetivo específico, que pode ser, por exemplo, equalização de renda entre regiões, incentivo a setores econômicos ou mesmo uma vantagem tributária que vise atacar questões distributivas. Eles fazem parte do bolo de desonerações fiscais do governo e podem ser isenções, deduções ou outros benefícios de natureza tributária que reduzem a arrecadação potencial. Isenções ou benefícios fiscais podem, ou não, ser classificados pela Receita Federal como gastos tributários a partir de mecanismos legais, o que significa que esses são apenas uma parte do total de incentivos fiscais governamentais.

 O Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), por meio da campanha #SóAcreditoVendo, questiona os gastos tributários, especialmente aqueles concedidos a pessoas jurídicas. Isto porque não há transparência a respeito de quem são os beneficiários e quanto eles estão recebendo, o que impede análises acerca de qual o propósito de cada gasto. Além disso, os gastos tributários não são avaliados enquanto políticas públicas, ou seja, não se sabe se a promessa de resultados socioeconômicos advindos dessas renúncias fiscais é cumprida.

Impacto na Previdência

Os gastos tributários atingem as receitas que alimentam a Previdência. Quatro tributos que financiam a seguridade social – constituída por Previdência, Assistência Social e Saúde – são o Programa de Integração Social (PIS), a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS), a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CLSS) e a Contribuição para a Previdência Social. Somados, eles representam 51,6% do total de gastos tributários projetados para 2020 – com o último sozinho representando 21,03%. Cria-se, assim, parte do déficit que hoje em dia é utilizado como justificativa para o fim da previdência enquanto política social redistributiva.

O primeiro passo de 2019: prolongamento dos subsídios para Sudene e Sudam

Durante a campanha eleitoral, Guedes prometeu cortar de 10% a 20% dos benefícios fiscais e, com isso, recuperar de R$ 30 a R$ 60 bilhões para os cofres federais. Todavia, no terceiro dia do novo governo, Bolsonaro sancionou a Lei nº 13.799/2019, que mantém até 2023 a redução de 75% do Imposto de Renda de Pessoa Jurídica (IRPJ) de empresas operando nas áreas de atuação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) e da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam).

Dos 25% restantes, as empresas ainda podem pleitear, até 50% para aquisição de máquinas e equipamento novos, o que significa até 82,5% de isenção do Imposto de Renda. Pela estimativa de gastos tributários da Receita Federal para 2020, a Sudam e a Sudene representam 2,41% do total de gastos tributários.

Em matéria que analisou esse projeto de lei, o Inesc questionou a ausência de transparência acerca dos beneficiários dessas isenções, além da falta de avaliação de resultados de uma política que ocorre há mais de 50 anos. Somente na Sudam, os valores agregados dos incentivos entre 2007 e 2015 alcançaram R$ 16,5 bilhões.

Estudos do Inesc apontam também que parte dos gastos tributários é aplicada em empresas transnacionais de energia, agronegócio e mineração, que, além de não precisarem de incentivos fiscais, trazem impactos socioambientais negativos para a região. A Vale S/A, responsável pelas tragédias de Mariana e de Brumadinho, é uma dessas empresas.

Vale ressaltar que o Tribunal de Contas da União (TCU) publicou relatório no qual exige que o governo apure o impacto fiscal decorrente da prorrogação dos benefícios fiscais, além de apontar qual será a compensação, isto é, como irá impedir que tal isenção leve à queda na arrecadação. Essas exigências estão de acordo com a Lei de Responsabilidade Fiscal, que obriga a compensação por meio da criação de uma fonte de custeio permanente, além da realização de avaliações periódicas dos incentivos concedidos.

Primeiramente, Bolsonaro anunciou que a compensação aconteceria por intermédio do aumento no Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), mas acabou sendo desmentido pelo ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, que postergou decisões acerca da compensação. O TCU ressaltou que, apesar de mais de 50 anos de incentivos, a região norte ainda está abaixo da média nacional nos indicadores econômicos.

Promessas da reforma tributária

Os primeiros movimentos do governo em relação à reforma tributária estão conturbados, com diferentes propostas sendo discutidas concomitantemente. Na formulação liderada pelo Secretário da Receita Federal, Marcos Cintra, consta a eliminação dos impostos previdenciários que incidem sobre os salários e, para os substituir, a criação de um imposto sobre transações financeiras, chamado de Contribuição Previdenciária (CP). A CP afetaria todas as transações financeiras da economia, sejam elas realizadas virtualmente ou em espécie, resultando inclusive na tributação da economia informal. A proposta virou polêmica, pois também significaria o recolhimento de tributos das igrejas – o que levou Bolsonaro a se manifestar contrário à criação de novos impostos e Silas Malafaia a pedir a demissão do secretário.

Apesar do seu futuro incerto, vale ressaltar que, segundo entrevistas concedidas pelo secretário, a proposta também ataca os gastos tributários. Cintra declara à Folha de São Paulo que “Precisamos acabar com os gastos tributários, que já bateram em R$ 400 bilhões por ano. Oferecemos um terço de nossa arrecadação”. Quando perguntado pelo Estadão sobre as desonerações advindas da reforma, ele enfatiza que o PIS e o COFINS possuem centenas de casos especiais que acabam criando privilégios tributários.

Contudo, ainda se sabe muito pouco sobre os impactos dos gastos tributários na sociedade. Quem de fato se beneficia com essas isenções e com que valores são perguntas que permanecem sem respostas.

O aumento de subsídios para a Zona Franca de Manaus pelo STF

Outra notícia relacionada a benefícios fiscais foi a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no último dia 25 de abril. A corte entendeu que há direito de creditamento do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) a empresas que comprarem insumos e matérias primas da Zona Franca de Manaus. Normalmente, o processo de creditamento é um desconto que empresas têm direito a receber para evitar a dupla taxação. Nesse caso, porém, não houve um imposto anterior cobrado, devido à Zona Franca ser livre de impostos. Dessa forma, criou-se uma exceção, que pode representar, segundo estimativas da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, R$ 16 bilhões por ano de incentivo fiscal.

A tese final do STF arrola que há direito ao creditamento de IPI na entrada de insumos, matéria prima e material de embalagem adquiridos junto à Zona Franca de Manaus, sob o regime da isenção, considerada a previsão de incentivos regionais constante na Constituição. Paulo Guedes manifestou-se contra a decisão do STF e a Procuradoria-Geral da República pediu acesso aos processos judiciais relacionados à decisão para análise, o que demonstra que pode no futuro pressionar por uma revisão do julgamento.

De acordo com o Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias 2020, os gastos tributários com a Zona Franca de Manaus e Áreas de Livre Comércio são estimados em R$ 28,6 bilhões, ou 8,81% do total da estimativa de gastos para 2020. Por um lado, iniciativas para o desenvolvimento da Zona Franca de Manaus podem representar  um estímulo a regiões brasileiras com indicadores socioeconômicos piores. Tanto o aumento dos incentivos fiscais relacionados à Zona Franca de Manaus quanto os referentes à Sudam e à Sudene estão alinhados aos Princípios Fundamentais da Constituição Federal – que, no Artigo 3º, enfatiza a importância da redução das desigualdades sociais e regionais. Por outro lado, o fomento à compra de insumos e matérias primas pode favorecer a reprimarização da região e a exploração de recursos naturais.

 Como não existem estudos aprofundados sobre os efeitos das concessões fiscais oferecidas pelo governo, a sociedade brasileira continua sem saber se elas são efetivas ou se reforçam as desigualdades, beneficiando os mais ricos em detrimento das pessoas menos favorecidas. Urge, pois, aprovar medidas que tornem esses gastos transparentes, assim como empreender avaliações que evidenciem seus efeitos, diretos e indiretos.

Extinção de conselhos reforça ideia de Estado autoritário e não público

Conselhos, comitês, fóruns e conferências têm prestado, principalmente ao longo das três últimas décadas, um papel fundamental na esfera pública. Contudo, decreto de Bolsonaro determina fim de colegiados ligados à administração federal. Artigo de José Antônio Moroni, publicado hoje (3/5) na Folha de S.Paulo, mostra que sem esses espaços de participação, resta o “balcão de negócios”, que reforça o poder das velhas e novas oligarquias.

José Antônio Moroni é integrante do colegiado de gestão do Inesc e da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político.

Extinção de conselhos reforça ideia de Estado autoritário e não público

Decreto de Bolsonaro determina fim de colegiados ligados à administração federal

Os desejos de participar da esfera pública, assim como os de liberdade e igualdade, sempre estiveram presentes nas lutas sociais nos diferentes períodos da história e de diversas formas.

Participar significa incidir nas questões que dizem respeito à vida concreta das pessoas, mas também nos processos de tomada de decisão do Estado e dos governos. Fruto desse processo é que hoje culturas e países diversos reconhecem a participação como um direito humano fundamental.

Para dar concretude a esse direito, reconstruíram a sua institucionalidade, incorporando os espaços institucionais de participação no arcabouço das instituições democráticas. É um novo desenho democrático, que reconhece outras formas legítimas de participação na esfera pública que não apenas a via da representação eleitoral.

Vivemos numa sociedade diversa, plural e complexa, onde o exercício do poder (tomar decisões) deve refletir essa diversidade e, para isso, é necessário ampliar o que se entende por instituições democráticas.

A democracia não pode ser reduzida apenas aos procedimentos eleitorais, que, na maioria das vezes, reproduzem as relações de poder estabelecidas na sociedade.

Precisamos construir instituições democráticas e, ao mesmo tempo, essas instituições precisam ser plurais para incorporar as diferentes demandas, sujeitos e vozes de uma sociedade complexa.

Somente esse mosaico democrático é capaz de processar as transformações que tanto queremos. Em outras palavras, superar essa crise de perspectiva que a humanidade vive somente com a “democratização da democracia”.

A concepção minimalista de democracia onde a participação não tem lugar, aliada a uma igualdade estabelecida apenas do ponto de vista formal, gera uma sociedade baseada no privilégio (que é para poucos) e não no direito (que é para todos).

A base política desta concepção é um Estado autoritário, opaco, patrimonialista e fomentador da desigualdade. Um Estado a serviço da manutenção deste “status quo”.

>>> Leia a íntegra do artigo.

Educação pública numa democracia moribunda

O afeto não pode ser arrogante, o diálogo é uma das dimensões mais fundamentais do processo educativo.

Paulo Freire

Em uma sociedade democrática é de se esperar que a política de educação reflita seus princípios e que as escolas dialoguem com os anseios da população a quem elas se destinam. É o que vemos acontecer hoje?

Para Paulo Freire, a educação é um exercício constante de reciprocidade. Aprender e ensinar são atitudes inseparáveis que devem focar na superação das opressões e na realização plena da nossa humanidade. O caráter libertador, segundo Freire, se conquista a partir da leitura do mundo e de uma interpretação crítica e sensível permanente da vida, construção que se dá na interação entre os sujeitos e suas realidades. Ele ainda mostra que a cultura e a ética são centrais no processo dinâmico que é a educação.

Em consonância com essa linha de pensamento, o educador e filósofo Anísio Teixeira, trouxe uma importante contribuição para a educação brasileira, defendendo ‘ensinar a viver com mais inteligência, mais tolerância e mais felicidade’. Ele apostou na educação pública, universal e de qualidade como lugar para o exercício do pensamento crítico e da solidariedade e, para isso, a liberdade e a expressividade são condições essenciais.

Ambos evidenciam que a escolha de uma diretriz pedagógica é uma escolha política e que a educação desemboca na ação transformadora. A educação humanista exige que se pense na sociedade em busca de se contribuir para um mundo melhor, justo e solidário. Paulo Freire e Anísio Teixeira acreditavam que o elo entre o sujeito e a sua realidade é a essência da educação.

Escola: espaço de cidadania

Sendo a nossa democracia imperfeita e cada vez mais ameaçada e fragilizada, as escolas públicas brasileiras também vivem sérias contradições. Ainda estão mais ancoradas em estruturas conservadoras, com brechas maiores ou menores para experiências diferenciadas. Muitas estão mergulhadas em si, dialogando pouco com as respectivas comunidades. Ainda assim, a escola é o mais precioso espaço de cidadania que agrega a diversidade humana movimentando conhecimentos, histórias e afetividades. Trabalho digno e participação democrática são conquistas que se dão a partir de construções processuais iniciadas na escola.

Não é de hoje que se criou uma expectativa, propagada principalmente por instituições privadas, sobre a educação como a possibilidade de ‘escalada para o sucesso’, resultando em um campo de disputas mais do que uma construção coletiva de um projeto comum. Nesse caso, o que interessa é o desenvolvimento de habilidades e competências, como se pudessem ser isoladas da complexa existência em sociedade. A educação elitista, em última instância, forma para competir, para promover melhores performances em concursos e vestibulares ou para uma colocação no mercado de trabalho.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) defende uma concepção mais ampla do direito à educação, que vai além da formação técnica.  No seu Art. 53 diz que “A criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho, assegurando-se-lhes: I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II – direito de ser respeitado por seus educadores; III – direito de contestar critérios avaliativos, podendo recorrer às instâncias escolares superiores; IV – direito de organização e participação em entidades estudantis; V – acesso à escola pública e gratuita próxima de sua residência. Parágrafo único. É direito dos pais ou responsáveis ter ciência do processo pedagógico, bem como participar da definição das propostas educacionais.

 Do mesmo modo, o Art. 58 conclui que “No processo educacional respeitar-se-ão os valores culturais, artísticos e históricos próprios do contexto social da criança e do adolescente, garantindo-se a estes a liberdade da criação e o acesso às fontes de cultura”.

tirinha Armandinho
Tirinha do Armandinho cedida por Alexandre Beck para publicação no site do Inesc

Em resumo, o direito proclamado na Constituição brasileira, assim como no ECA e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) é o direito à educação de qualidade, calcada no respeito às culturas locais e à participação da comunidade na construção da escola pública.

Os riscos da educação domiciliar

A defesa injustificável pela educação domiciliar, proposta do atual governo, restringe a experiência das crianças e priva-as do convívio com outras. É na interação com as pessoas que se aprende a escutar, a associar ideias, a criticar, a apreciar, a fazer escolhas, a discernir o ético do não ético e, com isso, construir um pensamento autônomo. O mais importante é conhecer pessoas e crescer com o exercício da empatia. O risco de se criar sujeitos autocentrados e insensíveis ao outro é grande.

A escola militarizada é outro problema, pois traz na prática uma educação autoritária, arbitrária que, com normas e ritos rígidos, contraria o direito à livre expressão e à participação asseguradas nas leis brasileiras. A censura às universidades públicas e os cortes de verbas, com destaque para a pesquisa, ameaçam o desenvolvimento da ciência e da criação de soluções para problemas importantes do país em todas as áreas como saúde, tecnologia, meio ambiente, questões sociais.

A Emenda Constitucional do Teto de Gastos Públicos, que congela por vinte anos os investimentos nas áreas sociais, aponta para um péssimo cenário de precarização do que já não estava perfeito. Além disso, o decreto 9.741, publicado em março deste ano em edição extra do Diário Oficial da União, contingencia R$ 29,582 bilhões do orçamento federal de 2019. A Educação perdeu R$ 5,839 bilhões, cerca de 25% do previsto.

Considerando o princípio da universalização do direito, é inconcebível haver um ‘bom’ direito para poucos e um ‘precário’ para muitos. Com estes cenários, escolas privadas destinadas a seletas famílias terão acesso a boas estruturas com laboratórios, espaços para teatro, esportes, boas metodologias e práticas pedagógicas inovadoras, professores qualificados. Já as escolas públicas terão que sobreviver à custa do sangue e suor dos trabalhadores e trabalhadoras da educação com salários baixos e péssimas condições para o exercício da profissão. Sem fôlego e sem recursos, a tendência óbvia é a educação pública definhar.

>>> Leia também o primeiro texto da parceria com as tirinhas do Armandinho

Direitos Humanos para Humanos Direitos? A construção de inimigos e a legitimação da violência estatal

Jair Bolsonaro, em sua campanha política para a presidência da República, recorreu amplamente ao discurso anticorrupção e ao da necessária implementação de novas medidas de segurança pública. No seu plano de governo se encontra a demarcação do que entende ser o inimigo a ser combatido: o Partido dos Trabalhadores (PT), mas também de forma mais ampla a esquerda, o “marxismo cultural e suas derivações como o gramscismo, (que) se uniu às oligarquias corruptas para minar os valores da Nação e da família brasileira” (Plano de Governo Bolsonaro 2018).

Podemos identificar a demarcação de uma distinção binária no escopo da sociedade: direita versus esquerda. Ainda, tais distinções entre segmentos da sociedade justificariam a adoção de medidas estatais específicas diante da qualidade distintiva dos sujeitos, mas não na perspectiva da equidade. A distinção aqui opera como linha de demarcação entre quem é sujeito beneficiário das políticas, e quem é objeto da coerção do Estado.

Direito Penal do Inimigo

No campo do Direito, tais prerrogativas remetem a uma controversa teoria penalista denominada Direito Penal do Inimigo. Criada em 1985 pelo alemão Günther Jakobs, tal teoria serviria para justificar a suspensão de garantias jurídicas para sujeitos identificados como ameaça ao Estado e à sociedade, legitimando um Estado de exceção parcializado sob a justificativa de que, diante de inimigos, a justiça deveria operar de modo mais veemente. Outro termo que tem sido adotado para se referir a perseguições políticas é o de lawfare, quando se usa os mecanismos legais e institucionais para atingir um suposto inimigo.

Um exemplo recente da aplicação desta lógica do inimigo seria a condenação sem provas do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A condenação midiática prévia e a construção de sua figura política como inimigo político a ser combatido teria decorrido na aplicação da sanção da privação de liberdade, a despeito da ausência de provas materiais que respaldassem tal decisão jurídica.

De um modo mais abrangente, podemos também afirmar que o Direito Penal do Inimigo funciona no Brasil na lógica do encarceramento massivo da população negra, construída inimiga pública por meio da estigmatização de pessoas negras como criminosas em si. Foi assim que Rafael Braga foi detido e encarcerado: bode expiatório na condenação de ativistas que tomaram as ruas no levante de Junho de 2013. Um homem negro, pobre, portando uma garrafa de Pinho Sol e outra de água sanitária, nas redondezas do território em que os protestos ganharam lugar: foi condenado por ser quem é, e não por provas que o ligassem a um ataque a bombas contra o patrimônio público e privado que, no fim das contas, nunca ocorrera.

De maior gravidade ainda é a condenação sumária na forma da execução homicida, impondo a determinados sujeitos penas nunca tramitadas pelo sistema de justiça e que não se justificariam em nosso ordenamento penal. A pena de morte é realidade recorrente para homens negros no país, levados ao óbito por ações policiais que os executam, sob a justificativa da necessidade do punho firme do Estado no combate ao tráfico de drogas e ao crime organizado. Foi o que ocorreu com Evaldo dos Santos Rosa, alvejado por militares junto à sua família, quando confundido com um assaltante. Ocorre que a família estava se dirigindo a uma confraternização, mas caso o carro atingido estivesse em uso por reais assaltantes a opinião pública sobre o caso teria sido diferente? Teria alguma legitimidade moral a ação letal dos militares?

Criminalização da pobreza e do povo negro

Esta lógica de exceção não é exatamente uma novidade no contexto brasileiro, remetendo à história de manutenção do racismo e do genocídio contra populações negras e indígenas, mesmo durante o regime republicano. É de se notar, no entanto, que a retórica adotada por Jair Bolsonaro endossa a lógica do Direito Penal do Inimigo, com implicações graves em nosso ordenamento normativo, mas também nas representações coletivas sobre diversidade social.

O pacote anticrimes apresentado pelo atual ministro da justiça Sérgio Moro na gestão Jair Bolsonaro, por exemplo, além de acirrar penalidades (com perspectiva de agravar o já excessivo contingente carcerário brasileiro), propõe a exclusão do ilícito diante de agravos e assassinatos realizados por agentes de segurança em situação de legítima defesa de si ou de outrem, ou, nos termos do projeto, em situações de “medo, surpresa ou violenta emoção”.

Em uma perspectiva ampliada, Jair Bolsonaro prometeu, em seu Plano de Governo apresentado em campanha, enfrentar “os grupos de interesses escusos que quase destruíram o país”, na sequência mencionando “a esquerda”. Vivemos um momento histórico em que está em curso a construção discursiva e política de “inimigos a serem combatidos”. Para além da criminalização da pobreza e do povo negro, também são entoadas narrativas de identificação de variados movimentos sociais como inimigos do Estado.

O Movimento dos Trabalhadores sem Teto e o Movimento dos Sem Terra enfrentam investidas legislativas para a tipificado de suas estratégias de protesto como crime terrorista. Feministas contam com ampla difamação como sujeitos escusos, cuja política afrontaria os interesses da nação, da família e da Igreja. No dia 27 de Março de 2019 ocorreu, promovido pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, o Seminário “O Protagonismo da Mulher Jovem no Brasil”, em que a Deputada Estadual Ana Caroline Campagnolo (PSL/SC) apresentou suas ideias sobre “as armadilhas do feminismo”, supostamente desmascarando os danos decorrentes da luta feminista. Estamos falando de uma ação governamental para deslegitimar as reivindicações de um movimento social organizado, bem como de um campo interdisciplinar de conhecimento; estamos diante da ação deliberada do Estado na deslegitimação de determinadas lutas políticas de segmentos específicos da população, como se possível fosse lhes destituir, ideologicamente, os direitos políticos.

 Quem é humano direito?

Jair Bolsonaro, em sua costura entre os interesses da Bala e da Bíblia, estaria inaugurando uma era de explícita exclusão de parcelas da sociedade brasileira do escopo da cidadania? O que podemos verificar, nesses três primeiros meses de gestão, é a decisão pela demarcação de uma fronteira simbólica entre cidadãos que mereceriam a proteção do Estado e aqueles diante dos quais só restaria o enfrentamento governamental na lógica da destituição de sua legitimidade cidadã. Como costumava entoar Jair Bolsonaro, os direitos humanos seriam para humanos direitos, pregando um deslocamento de perspectiva que destrói o fundamento da Declaração Universal dos Direitos Humanos, reafirmado em nossa própria Constituição democrática de 1988: o de que todos seriam iguais perante a lei, com igual proteção da lei, sem qualquer distinção.

Ao sedimentar a ideia de que nem todos os seres humanos seriam humanos direitos, o que Jair Bolsonaro dissemina é a ampliação da lógica do Direito Penal do Inimigo para a ampla consideração do status social e político de sujeitos específicos, que passariam a dispor do estatuto da inimizade diante do atual governo federal. Diante de inimigos, a violência estatal (seja esta homicida, ou omissiva diante de necessidades prementes, ou difamatória) se justificaria moralmente como medida legítima. Caso os movimentos sociais, opositores políticos, e mesmo funções públicas como a docência, sejam compreendidos pelo senso comum e pela retórica governamental como inimigos a serem combatidos, poderíamos ainda assim afirmar que dispomos de uma condição democrática?

A retórica da inimizade, partindo de um sujeito que ocupa o cargo de Presidente da República, sinaliza para o caráter não democrático da atual gestão. Ainda que busque justificar moralmente seu afã pelo uso da força para a manutenção da ordem social, o que tal retórica impulsiona é uma condição de guerra moral, de sedimentação das estigmatizações não apenas contra sujeitos e movimentos sociais, mas a suspensão, para tais sujeitos, de seus direitos humanos, sociais e políticos.

Seria Jair Bolsonaro um inimigo para nós, ativistas feministas e ativistas pelos direitos humanos? Prefiro argumentar que é um político despreparado para a ocupação do cargo, um mau gestor que descumpre preceitos constitucionais, que carece de recursos emocionais e políticos para lidar com o contraditório, com a oposição a seus próprios posicionamentos, e que precisa investir na destruição das alteridades para afirmar a si mesmo. Nós somos diferentes e podemos fazer melhor: podemos nos manter firmes sem o abuso da força, podemos seguir argumentando nossa diferença de perspectiva ainda que tenham buscado nos destruir moralmente. Não é tão fácil assim nos silenciar e nos reduzir ao inimigo a ser combatido. Nossa dignidade se mantém invicta, disputando imaginários. Nossa potência é a esperança, e não a destruição.

 

*Tatiana Lionço é doutora em Psicologia, professora da UnB e ativista feminista

O que esperar do novo ministro de Meio Ambiente

O que esperar do novo ministro de Meio Ambiente

 

           Ricardo Verdum

 

 

O pedido de demissão da ex-ministra Marina Silva no último dia 13 de maio já era esperado. Anunciado em outras ocasiões — como quando da polêmica em torno da liberação do cultivo de soja transgênica, ou quando foram desqualificados pela própria presidência da República os dados apresentados pelo INPE e MMA (abrir essas siglas) sobre a inflexão ascendente no nível de desmatamento na Amazônia no segundo semestre de 2007, num ato de sutil solidariedade com os reclamos da base de apoio ruralista do governo federal —, a renúncia de fato não deixou de causar espanto e clima de “fim de mundo”. A saída do governo de um símbolo de luta e compromisso com a causa socioambiental, representado pela ex-ministra, acendeu a luz amarela em relação aos riscos de retrocesso, particularmente entre atores que, individual e coletivamente, têm levado a sério o desafio de promover desenvolvimento econômico associado com sustentabilidade ambiental e promoção e defesa de direitos das populações, povos e comunidades.

Passado o período de especulações e de análises em torno do sentido de seu ato e das razões que teriam levado a ex-ministra Marina Silva a pedir demissão, é chegada à hora de focar nos desafios e oportunidades que a nós, movimentos e organizações da sociedade civil, somos apresentados. Demanda revisar alguns pressupostos (para não dizer ilusões) alimentados ao longo dos últimos cinco anos; demanda aprofundar e aprimorar nossa capacidade de análise e percepção das transformações políticas, econômicas e sociais em curso no Brasil, e sua relação com as profundas mudanças igualmente observadas na América latina.

A partir dos anos 1990, e num ritmo mais acelerado nos últimos anos, acentuou-se a inserção dos países da região no contexto global como exportadores de commodities. No caso do Brasil, o atual modelo de desenvolvimento tem provocado relevante impacto sobre o meio ambiente, em decorrência das demandas crescentes por recursos naturais. As regiões Norte e Centro–Oeste ocupam papel fundamental no atual modelo nacional de desenvolvimento. O complexo do agronegócio e da mineração estão hoje na linha de frente das transformações em curso na forma de ocupação e de exploração das potencialidades do patrimônio ambiental nestas regiões. Estão também orientando a oferta de infra-estrutura de transporte e de geração de energia a ser reforçada pelo Plano de Aceleração do Crescimento (PAC).

Juntos (agronegócio, mineração e infra-estrutura econômica) orientam o planejamento estratégico do governo federal para os próximos quatro anos (PPA 2008-2011) e os objetivos de desenvolvimento de médio e longo prazo, tratados na pasta coordenada pelo ministro Mangabeira Unger (Assuntos Estratégicos), atual coordenador do Plano Amazônia Sustentável (PAS).

A força tarefa montada pelo governo e pelo setor mineral, visando aprovar no Congresso Nacional uma legislação específica destinada a viabilizar a exploração de recursos minerais nos territórios indígenas; e a pressão exercida sobre o governo federal pelos governadores dos estados de Rondônia e Mato Grosso, Ivo Cassol e Blairo Maggi respectivamente, contrários à resolução aprovada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), que vincula a concessão de crédito rural a comprovação de regularidade ambiental e fundiária a partir de 1º de julho (principal ponto de pauta da reunião do Fórum dos Governadores da Amazônia, a ser realizada com a presença do presidente Lula da Silva na próxima sexta-feira, dia 30, na cidade de Belém), são na prática manifestações empíricas e simbólicas deste modelo de desenvolvimento econômico.

Vamos ver como se comportará o setor de licenciamento ambiental do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) na análise das grandes obras de infra-estrutura do PAC e as do setor privado; vamos ver que medidas serão tomadas para superar os gargalos que provocaram, no período 2004/2007, o baixo desempenho do Plano de Ação para a Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PAPCDAL) em termos orçamentários e metas alcançadas.

Estes são a nosso ver, se não o maiores, os principais desafios a serem enfrentados pelo novo Ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, que assumiu o posto numa singela cerimônia na terça-feira (27). Se ele terá condições de dar um jeito na própria casa e se impor junto a seus pares, isto só o tempo dirá. Pelo andar da carruagem, isto não demorará muito para sabermos. 

Orçamento: o cobertor ficou mais curto

A novela da prorrogação da CPMF teve seu desfecho na madrugada do último dia 13 quando o Senado Federal rejeitou a proposta feita pelo governo de estender o seu prazo de vigência até 2011. Nesta mesma Proposta de Emenda à Constituição estava também a prorrogação da DRU. Ao enterrar a CPMF e aprovar a DRU os/as parlamentares mostraram de que lado estão. Acabaram com os recursos direcionados às políticas sociais, como saúde, assistência social e outras, e mantiveram a desvinculação das receitas da União que permite que se retire 20% do que é arrecadado e que tem destino certo e se aplique livremente aonde o governo desejar. Nos últimos anos esses recursos desvinculados tem tido destino certo: engordar o superávit primário para pagar juros da dívida pública.

Ficou clara a posição do Senado em favor da manutenção dos ganhos dos bancos e de algumas famílias que faturam alto com a negociação de títulos da dívida pública no mercado financeiro. Asseguraram o dinheiro da banca financeira e acabaram com os quase 40 bilhões destinados às políticas sociais.

Além de explicitar sua posição, a decisão dos senadores e senadoras trouxe alguns problemas de solução bastante complicada tanto para o governo federal quanto para o próprio Congresso Nacional. A diminuição da receita afeta substancialmente o Projeto de Lei Orçamentária (PLOA 2008) em discussão avançada na Comissão Mista de Orçamento. Está instalada uma polêmica entre governo e Legislativo.

Passados o susto e a ressaca da decisão do Senado, o governo federal, por meio de vários ministros, tem dito que vai retirar o projeto enviado para o Congresso Nacional para poder redimensionar as receitas e adequar as despesas previstas. O presidente da Comissão Mista e o relator geral do PLOA 2008 alegam não ser mais possível a retirada, que ela seria inconstitucional. Que o certo seria o próprio Legislativo promover as alterações de comum acordo com o governo.

Ainda não se sabe quem vai ganhar com esta queda de braço, mas o que se tem como certeza é que a sociedade brasileira só irá conhecer o orçamento da União para 2008 em março, isto se tudo correr bem, pois, os parlamentares só retomarão as discussões em fevereiro de 2008. Eles entrarão de recesso sem entregar à Nação o orçamento aprovado.

Outra polêmica que já está instalada é a localização dos cortes de despesa que necessariamente serão feitos.  Vai se cortar nos recursos para a saúde e outras áreas sociais e nos investimentos? Ou vai se diminuir o superávit primário e os vultosos recursos para pagar os serviços da dívida? Será bastante revelador do nível de prioridades que tem o governo federal e o Legislativo quando se apresentar a lei orçamentária com os devidos cortes.

A maioria da população terá que continuar a pagar a conta para sustentar o ganho dos rentistas, ou se terá coragem de manter as propostas de gastos nos programas sociais e de investimentos e diminuir o que se paga de juros da dívida pública?

O discurso das autoridades até agora tem sido cauteloso. É preciso manter os programas sociais, mas também é fundamental preservar a responsabilidade fiscal. O ministro da fazenda já disse que as metas fiscais serão cumpridas. O cobertor ficou mais curto sem os quase 40 bilhões da CPMF.  Vai se cobrir os pés e deixar a cabeça de fora. A julgar pelo que tem sido os últimos anos, o país continuará pagando religiosamente os encargos da dívida, mantendo os privilégios e deixando ao relento a maioria da população.  Quem é prioridade, o “mercado” ou os direitos dos cidadãos e cidadãs?

           

             

 

Orçamento Público

O acompanhamento, monitoramento e decodificação do processo orçamentário federal, sua execução financeira e a permanente busca pela ampliação de transparência e publicização das informações de planos e gastos públicos são metas permanentes do Inesc. Para além de ser um tema de intervenção política, a questão orçamentária também se constitui em eixo da intervenção, formação e construção de conhecimento pela instituição.

O tempo das cobras que voam

A atitude do governo em relação às políticas para a reforma agrária indica que há uma avaliação interna cristalizada. Setores estratégicos entendem que o ritmo dos assentamentos deve ser ditado pelo governo e não pelas organizações rurais. Ocorre que o ritmo imprimido pelo governo está aquém ao de tartaruga. E o papel dos movimentos sociais tem sido, até agora, o de apressar esse passo.

Esses setores entendem que esses coletivos devem servir aos interesses políticos do Estado. Assim, aos poucos, foram cooptando as organizações, facilitando a entrada nos cargos de último escalão, ensinando como elaborar os projetos e como acessar os recursos públicos.

 

Com esse ilusório fortalecimento, as organizações foram perdendo o poder de ação e reação. Foram desaprendendo a arrecadar fundos para suas atividades de forma independente – coisa que era normal nos governos anteriores. Os governos neoliberais obrigavam os movimentos sociais a desenvolverem sua criatividade. As organizações patronais obrigavam as entidades de trabalhadores e trabalhadoras rurais a recriarem as articulações políticas e a consolidar pactos de classe.

 

O atual governo, esquerdo-liberal, foi se imiscuindo na vida dos movimentos como uma aragem de esperança. As lideranças abraçaram essa possibilidade, pois se reconheciam como construtoras do Partido dos Trabalhadores, de onde vinha o Lula – líder metalúrgico. Havia um entrelaçamento de avalistas: o partido e o homem.

 

Lula, assim que assumiu o Executivo, prometeu aos movimentos que a reforma agrária seria resolvida com uma canetada. Com uma canetada também seria resolvida a questão do índice de produtividade, que serve para mensurar o grau de utilização econômica da terra, que é a base do processo desapropriatório. Seria extinto o decreto que proibia a ocupação dos imóveis improdutivos e criminalizava os movimentos sociais. Os transgênicos jamais seriam liberados. Essas e outras promessas não foram cumpridas. As organizações pressionaram o governo, mas sempre havia uma desculpa de Estado.

 

A essa desculpa, se associava uma chantagem: o governo se mostrava sempre ameaçado pelas elites; sempre sua governabilidade estava em jogo; sempre havia uma conspiração pronta para ser desencadeada. Mas as lideranças foram percebendo que as políticas estavam sendo implementadas em favor das elites econômicas, políticas e sociais. Como elas poderiam ameaçar aquele que sustentava sua acumulação de riqueza?

 

Assim, foram entendendo que a reforma agrária não era parte do modelo de desenvolvimento do governo esquerdo-liberal. Os formadores de opinião do governo passaram a declarar que a reforma agrária não era mais necessária; que o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) não têm sentido na estrutura do Estado; que esses órgãos anacrônicos são perfeitamente dispensáveis. Reagindo a esses pronunciamentos, os movimentos sociais do campo se mobilizaram e saíram às ruas, pressionaram o Congresso Nacional, o Executivo e garantiram uma sobrevida ao MDA e ao Incra.

 

Porém, os tempos são de cobras que voam. A palavra não-dita afeta o discurso. O governo foi minando a força das organizações do campo. Os projetos de assentamentos foram sendo questionados. Os números foram sumindo dos sites oficiais. As metas não se realizavam. Os percentuais foram se reduzindo. Os recursos minguaram. As verbas para a reforma agrária crescem nas mesmas proporções que aumentam os acampamentos na beira das estradas. Um paradoxo que só pode ser resolvido por meio do compartilhamento na busca das soluções.

 

As lideranças sociais se desdobram em audiências para manter um número mínimo de assentamentos para suas bases. Batem à porta do MDA/Incra, são bem recebidas, mas os processos continuam engavetados. As reuniões se multiplicam como se inimigos travassem uma disputa feroz. Os gestores esperam vencer os movimentos sociais pelo cansaço. A fraternidade foi minada pela desconfiança ou pela falsa confiança.

 

O governo que, de início, financiava as mobilizações das organizações sociais, em um dado momento começou a recuar. As mobilizações auxiliavam o governo esquerdo-liberal a projetar políticas que, sem apoio social, teriam dificuldades de ser implementadas. As elites agrárias sempre se opuseram à realização de uma reforma agrária ampla e massiva. Bastava o governo aventar a possibilidade de executá-la que a memória de Jango ressurgia nas manchetes do dia. Políticas como as da terra não foram realizadas no primeiro mandato e dificilmente serão recuperadas no segundo mandato. Naquele contexto, os financiamentos não eram gastos inúteis, eram um investimento do governo para conseguir um aval para suas boas intenções.

 

No início do segundo mandato, as bases começaram a perceber que a terra foi ficando cada vez mais distante dos seus sonhos. A realidade passou a ser o acampamento. As explicações das lideranças começaram a ser contestadas. As bases avançam na sua compreensão da realidade política no mesmo compasso latino-americano.

 

Com o Projeto de Aceleração do Desenvolvimento (PAC), o governo deixa claro o modelo no qual acredita. Não será a reforma agrária um dos motores do desenvolvimento. Não será a reforma agrária do século XXI que vai liberar as forças produtivas do campo, tal como no século XIX. Aliás, a reforma agrária brasileira inverte esse conceito: concentrar a mão-de-obra produtiva no campo para produzir mais com agregação de valor. É o retorno do campesinato moderno e não a sua fuga para a cidade.

 

Para garantir a execução do seu modelo, o Executivo faz uma opção: prefere perder o apoio dos movimentos sociais do que perder o apoio da base de sustentação parlamentar. O governo precisa desesperadamente desse apoio para aprovar os projetos do PAC. Assim, ele rifa os antigos companheiros e companheiras de jornada no momento em que percebe que seus interesses são distintos.

 

Essa opção sangra as bases dos movimentos; desatina as lideranças; obriga-as a recuperar a memória esquecida das antigas práticas. Os movimentos estão despertando e buscam reconquistar a opinião pública. Perceberam, a tempo, que ficar dependente do governo não ajuda a avançar a luta. Cada qual desempenha uma função específica na vida da sociedade.

 

Por isso, o Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça no Campo (FNRA) vai relançar a campanha pelo limite da propriedade. Essa campanha foi suspensa para atender um pedido do então candidato a presidente da República, Luis Ignácio Lula da Silva, em 2003. Para não provocar constrangimentos eleitorais à elite rural e urbana, o FNRA aceitou. Ao se submeter a esse pedido, rebaixou a política da reforma agrária e apostou na identidade ideológica do candidato. Assim, colocou em risco a confiança das bases. Agora, busca recuperar o campo perdido.

Em tempos de cobras voadoras, os sapos aprendem a fazer gaiola.

 

 

 

O peso político das Comissões no Parlamento do MERCOSUL

O peso político das Comissões no Parlamento do MERCOSUL

Edélcio Vigna, assessor do INESC

As dez Comissões Permanentes criadas pelo Parlamento do MERCOSUL (ParlaSur) têm como função debater de forma especializada os assuntos e preparar as proposições que serão encaminhadas ao plenário para apreciação dos parlamentares. Não me parece necessário repetir a importância dos trabalhos das comissões e que estas são as primeiras portas para o trabalho da sociedade civil.

Como em todo trabalho político a confiança é a base do relacionamento e é necessário que representantes da sociedade civil estejam freqüentemente participando das reuniões legislativas. Como as organizações brasileiras não têm condições financeiras para estar presente uma vez por mês, quando as comissões se reúnem, em Montevidéu/Uruguai, o Inesc está dialogando com o Observatório do MERCOSUL, de Montevidéus, para que exerça o papel de interlocutor.

Avaliamos que se o Inesc estivesse presente, pelo menos, duas vezes por semestre nas reuniões do Parlamento as informações e a incidência política seria muito mais efetiva. Além de poder estruturar com o Observatório critérios para avaliar os temas e as proposições em discussão nas comissões, a postura política dos membros e traçar estratégias comuns.

Enquanto isso não ocorrer, o Instituto pode apenas analisar de forma fria a composição das comissões. As comissões estão compostas de sete a onze membros distribuídos entre os representantes de todos os países. Em todas as comissões há pelo menos um parlamentar do Brasil e de outros países. A escolha para participar desta ou daquela comissão depende, hoje, menos da estratégia da Representação brasileira e mais do interesse do parlamentar. Pode-se inferir, também, que a quantidade de parlamentares indicados para uma comissão está proporcionalmente relacionada a importância desta comissão.

De acordo com Regimento Interno o número de membros das comissões permanentes será estabelecido por ato da Mesa Diretora na primeira sessão, para um mandato de dois anos. A designação dos Parlamentares que integrarão as comissões permanentes ou especiais se fará, tanto quanto possível, refletindo de forma proporcional a presença dos grupos políticos.

A representação brasileira nas comissões

Conforme discorremos, as comissões não têm ou não lhes é dado uma densidade política uniforme. As representações dos diversos países, em geral, escolhem as comissões de acordo com as temáticas que estão em destaque nos seus países. Dessa forma, podem-se inferir os interesses e os temas que estão sendo debatidos com maior intensidade em cada país. Essa correlação não é tão linear, mas indicativa.

Partindo dessa premissa, seguem as comissões permanentes e o número de parlamentares que cada país, em especial o Brasil, indicou.

Na Comissão de Assuntos Jurídicos e Institucionais o Brasil possui um representante (Geraldo Mesquita Jr) e os outros países (Argentina, Paraguai e Uruguai), dois.

Na de Assuntos Econômicos, Financeiros, Comerciais, Fiscais e Monetários, o Uruguai e o Brasil indicaram três representantes (Pedro Simon, Cezar Schirmer e Aloizio Mercadante), o Paraguai e a Argentina indicaram dois parlamentares.

Na comissão de Assuntos Internacionais, Inter-regionais e de Planejamento Estratégico o Paraguai e o Uruguai indicaram três representantes, a Argentina e o Brasil dois (Sergio Zambiasi e Max Rosenmann).

Na Comissão de Educação, Cultura, Ciência, Tecnologia e Desporte, todos os países indicaram dois parlamentares. Os representantes brasileiros são a senadora Marisa Serrano e o senador Cristovam Buarque.

Na comissão de Trabalho, Políticas de Emprego, Seguridade Social e Economia Social, só a há um parlamentar brasileiro, o deputado George Hilton. Os demais países indicaram dois representantes.

Na comissão de Desenvolvimento Regional Sustentável, Ordenamento Territorial, Habitação, Saúde, Meio Ambiente e Turismo – a comissão mais concorrida com onze membros – a Argentina, Uruguai e o Paraguai indicaram três representantes e o Brasil, dois (Germano Bonow e Paulo Tóffano).

Na comissão de Cidadania e Diretos Humanos os países indicaram dois representantes cada e o Brasil, apenas o deputado Geraldo Thadeu.

Na comissão de Assuntos Interiores, Seguridade e Defesa, igualmente, os países indicaram dois representantes cada e o Brasil, apenas o senador Romeu Tuma.

Na comissão de Infra-estrutura, Transportes, Recursos Energéticos, Agricultura, Pecuária e Pesca, a Argentina indicou dois representantes e os demais países três parlamentares. O Brasil indicou o senador Inácio Arruda e os deputados Efraín Morais e Beto Albuquerque.

Na comissão de Orçamento e Assuntos Internos todos os países indicaram dois representantes. Os do Brasil foram os deputados Dr. Rosinha e Claudio Diaz.

Para a formação das comissões permanentes é necessário uma discussão política entre os parlamentares, para que coloquem na mesa de negociação suas preferências e temas onde apresentam maior acúmulo e massa crítica. É necessário sempre fazer uma escolha estratégica e, a representação fez a sua escolha a partir dos interesses conjunturais brasileiros e regionais.  

A partir de um critério comum, a representação brasileira jogou força na Comissão de Assuntos Econômicos, Financeiros, Comerciais, Fiscais e Monetários e na Comissão de Infra-estrutura, Transportes, Recursos Energéticos, Agricultura, Pecuária e Pesca, indicando três parlamentares. Por outro lado, indicou somente um representante para a Comissão de Assuntos Jurídicos e Institucionais, Trabalho, Políticas de Emprego, Seguridade Social e para a Comissão de Economia Social e Cidadania e Diretos Humanos.

De acordo com nossa avaliação a representação brasileira está com seus interesses colados no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e com a Iniciativa para a Integração da Infra-Estrutura Regional Sul Americana (IRSA). Por isso, apostou nas comissões cujas temáticas lhe servem como referências para os debates e interesses internos. Por outro lado, minimizou a temática social. Essa postura assemelha-se a política que o Executivo vem conduzindo no âmbito interno. Priorizando o comercial-econômico e secundarizando o social.

Já foi exaustivamente demonstrado que há uma ambigüidade nos discursos oficiais. Estes falam do social e alocam recursos nos programas econômicos e de infra-estrutura. O que se destaca não é uma contraposição entre social e econômico, mas a prática unilateral do governo que conduz a um aprofundamento da desigualdade. Espera-se que esta prática não se reproduza no âmbito do Parlamento do MERCOSUL. 

Como este é o primeiro mandato do Parlamento do Mercosul é necessário observar como os trabalhos das comissões vão transcorrer para depois fazermos uma análise mais aprimorada. Uma coisa é certa, os parlamentares que ficaram sozinhos nas comissões poderão necessitar um maior apoio por parte da representação brasileira e das organizações da sociedade civil organizada. E, as organizações sociais do campo democrático estão dispostas a cooperar.

 

Edélcio Vigna

Assessor para Políticas de Reforma Agrária e Soberania Alimentar

INESC – Instituto de Estudos Socioeconômicos

+55 (61) 3212-0230

www.inesc.org.br

 

Fórum Social Mundial: Rompendo os limites do possível

O Fórum Social Mundial realiza neste final de semana a sua oitava edição, demonstrando que é possível manter viva e pulsante a energia trazida pelo processo desde a primeira edição do evento em 2001, em Porto Alegre. Ao longo desse período, o processo FSM ganhou densidade política, espalhou-se pelo mundo e revelou a tremenda capacidade inovadora contida no chamado movimento por uma outra globalização. Os eventos anuais, os fóruns regionais, nacionais e temáticos, milhares de ações, lutas e campanhas — algumas locais e nacionais e outras efetivamente globais —, realizadas sob o guarda-chuva do FSM, legitimaram o processo como expressão da diversidade dos movimentos que se contrapõem à globalização neoliberal.

 

Os primeiros três anos em Porto Alegre surpreenderam por sua novidade, pela capacidade de mobilizar milhares de pessoas e pelo impacto político no confronto com a globalização econômico-financeira. Depois ganhou raízes na Índia, em 2004, quando realizou o primeiro evento mundial fora do Brasil, na cidade de Mumbai. A Índia foi um choque cultural de grandes proporções que contribuiu imensamente para expandir o universo de pertencimentos do FSM. A presença massiva dos movimentos de pobres e excluídos, dos discriminados e submetidos, cores e sabores de um país pouco conhecido do resto do mundo, reforçou em muitos a convicção de que o destino do FSM era mesmo se espalhar pelo mundo, aceitar a diversidade das lutas e dos movimentos, sem abdicar dos preceitos expressos na sua Carta de Princípios.

 

Após um retorno a Porto Alegre, em 2005, o FSM parte para a reinvenção de novos léxicos organizativos e se propõe, em 2006, como evento policêntrico, realizando fóruns mundiais em Caracas, na Venezuela, em Bamako, no Mali, e em Karachi, no Paquistão. Em 2007, o evento mundial volta a se concentrar em apenas um país, desta vez no Quênia, na África. Em Nairóbi, o FSM não apenas realiza o que pode ser considerado o maior evento da sociedade civil mundial jamais organizado na África, mas — ainda mais importante do que isso — resgata o continente e as suas lutas para a linha de frente das lutas sociais por um outro mundo.

 

Este ano, mais uma vez, o FSM inovou em seu formato e radicalizou a aposta na descentralização, na capacidade de iniciativa das organizações das sociedades civis nacionais e na mundialização da ação política, sem sacrifício das diversidades locais.  Ao convocar para esta semana uma Jornada de Ação e Mobilização Global e escolher o dia 26 de janeiro com o Dia de Ação Global, o conselho internacional do FSM confirma a sua aposta em uma outra maneira de fazer política em tempos de globalização. Pelo mundo inteiro serão centenas, talvez milhares, de eventos, manifestações, concertos, debates — todos conectados e mobilizados em torno da idéia de que é preciso expressar o descontentamento e explorar as alternativas que brotam da vivência e das lutas sociais.

 

Finalmente, gostaria de ressaltar algumas das características do processo FSM e dos desafios que estão colocados, na minha perspectiva, diante de todas que se identificam com o que Boaventura Santos chama de “movimentos contra-hegemônicos”:

 

        Processo/evento em estado permanente de mudança. Muda-se tudo o tempo inteiro no processo FSM desde o primeiro evento. Com isso, o Fórum se reconhece e quer ser reconhecido como espaço de invenção permanente de novas formas de fazer política e experimentação. Contra o velho mundo da política e da ideologia neoliberal não se trata de erguer outro dogma, mas sim reconhecer a diversidade e disputar os conceitos de justiça social, direitos e democracia;

 

        Aposta deliberada na mundialização das lutas por outra globalização. As lutas sociais modernas são potencialmente mundiais, mesmo quando localizadas, o que renova o conceito de solidariedade internacional a partir de processos de conhecimento e auto-reconhecimento, entre atores sociais distintos, que criam novas identidades políticas, plurais e multiculturais;

 

        Catalisador da revolta e do protesto. O processo fórum demonstrou ser capaz de catalisar um sentimento de revolta e protesto que se expressa desde a década de 1980 nas diferentes lutas contra as políticas neoliberais e a militarização. O exemplo mais impressionante disso foi a mobilização mundial contra a guerra do Iraque no dia 15 de fevereiro de 2003, quando cerca de 11 milhões de pessoas se mobilizaram em cerca de 800 cidades do mundo. Na ocasião, o New York Times descreveu a sociedade civil global como sendo o “a segunda superpotência” no mundo;

 

        Ampliou o campo do possível e fortaleceu o sentido utópico da ação política. O FSM faz parte de um processo — expresso nas manifestações de Seattle e em muitas outras manifestações da revolta global — de ruptura com o mantra da falta de alternativas, do modelo único, do fim da história e todas as teorias paralisantes e conformistas difundidas pelas mídias dominantes. Ao dar visibilidade às lutas e propostas nascidas de mobilizações e lutas de resistência em diferentes partes do mundo, o processo FSM amplia o campo do possível e resgata e alimenta as utopias;

 

        Incorporou à esfera pública global setores e movimentos antes excluídos ou marginalizados, ampliando e diversificando os circuitos de conversação política da chamada “sociedade civil global”. A diversidade afirmada como princípio é também encontrada entre os atores que participam do FSM. A mundialização permitiu a conexão entre lutas sociais que tinham o seu campo de expressão reduzido aos territórios ou temáticas específicas;

 

        “Woodstock de esquerda”. O FMS é sim uma festa, um lugar de celebração e trocas multiculturais, surpresas e descobertas de novas formas de expressão políticas, artísticas, religiosas, comportamentais, entre outras. O FSM é antes de tudo provocação simbólica, espanto com o novo, reconhecimento (auto-reconhecimento) do velho, revolução cultural no sentido pleno;

 

        Protagonismo do Sul. O FSM trouxe para o centro do debate político global uma perspectiva de luta social nascida nos países localizados no Sul político do mundo, nos países submetidos à hegemonia do Norte, dos países ricos. O fato de uma iniciativa deste porte nascer no Brasil — e a partir de Porto Alegre chegar a Mumbai, Karachi, Bamako, Caracas, Nairóbi, apenas para citar os lugares que receberam os eventos mundiais — é por si só um acontecimento político de grandes proporções. Mas o FSM também mobilizou o chamado “Sul” que vive no Norte — as lutas sociais dos excluídos da Europa e dos Estados Unidos —, elevando o patamar das relações políticas do tipo Norte-Sul. Os eventos do FSM na Europa e, mais recentemente, nos Estados Unidos, revelam o potencial do “processo FSM” para renovar a vida política nos países ricos.

 

Enquanto isso, em meio à neve, os participantes do Fórum de Davos mal conseguem domar os próprios demônios e prometem passar os próximos dias falando da crise financeira que, mais uma vez, “assusta o mercado”, esse animal sem rosto ou coração que se presta aos mais puros jogos do poder hegemônico.

 

Por tudo isso, eu acredito que o FSM já cumpriu a sua missão inicial. Reduziu o Fórum Econômico de Davos a sua pequenez simbólica, expressão de um auto-contentamento neoliberal incapaz de escapar do círculo de giz conceitual, que um dia almejou o fim da história e a vitória absoluta do mercado.

 

Agora é preciso continuar a acreditar que a mudança e as revoluções precisam ser inventadas a cada dia através das lutas sociais e do conflito. O mundo não se encontra dividido entre anjos e demônios. Deuses e diabos, sejam lá os nomes que tenham, convivem faceiros entre nós, às vezes até esquecidos deles mesmos. Apenas a participação plena de todas as pessoas, com suas contradições, erros e acertos, cores música, inquietações e sonhos, será capaz de destilar as escolhas que vão delinear o mundo em que os nossos filhos e netos viverão. Um mundo que, espero, seja colorido e diverso como Porto Alegre, Mumbai e Nairóbi. Um mundo que o processo do FSM tem sido capaz de mostrar que é possível.

 

 

24/01/2008

O PAC da Mineração nas Terras Indígenas

O Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) da mineração em terras indígenas segue a passos largos. Atualmente circula (in off) no Congresso Nacional uma nova versão do anteprojeto que pretende regulamentar o parágrafo primeiro do artigo 176 e o parágrafo terceiro do artigo 231 da Constituição Federal. A dúvida do governo federal é se ele será apresentado como um novo projeto de lei (PL) ou como um substitutivo ao projeto de lei nº 1.610/96 do senador Romero Jucá (PMDB/RR).

Ao contrário da versão anterior, comentada em Nota Técnica lançada pelo Inesc em outubro de 2006 (https://inesc.org.br/publicacoes/notas-tecnicas/NT%20112%20-%20MA.pdf), nessa foi eliminada a referência nominal aos ministérios e órgão, sendo substituída por “órgão federal competente”. Um problema que pode ser apontado sobre está “técnica de persuasão” – a de não mencionar órgãos com o “filme queimado” no meio indígena e indigenista, como é o caso da Fundação Nacional do Índio (Funai) – é que em alguns artigos e parágrafos fica pouco claro a qual órgão o texto remete.

Outro ponto que chama a atenção na versão atual é a eliminação da Funai como gestor do denominado Fundo de Compartilhamento de Receitas sobre a mineração em Terras Indígenas. Ficamos sem saber quem ficará responsável pela gestão do Fundo. Será o “órgão federal competente”? Sob que condições? Como fica o direito a autodeterminação dos povos indígenas sobre seus territórios, os recursos naturais existentes e os benefícios derivados do seu uso econômico?

O Inesc entende que a questão da mineração, assim como o tema do aproveitamento dos recursos hídricos, deve ser tratada no marco das discussões e encaminhamentos relacionados com a regulamentação da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Daí a importância da refundação da Frente Parlamentar de Defesa dos Direitos Indígenas (FPDDI) e a instalação imediata da comissão parlamentar com a incumbência de tratar, de forma organizada e participativa, dos processos legislativos que tramitam na Casa, em particular o Estatuto dos Povos Indígenas.

Ricardo Verdum
Assessor de Políticas Indígena e Socioambiental
Instituto de Estudos Socioeconômicos – Inesc

Uma questão de ética e justiça social

 

19/12/2006

Por Eliana Graça, assessora política do Inesc

O Supremo Tribunal Federal acaba de criar as condições para a derrubada do o aumento de 90,7% que os parlamentares generosamente concederam aos seus próprios vencimentos. A decisão do STF se deve ao fato de que o processo utilizado pelas mesas diretoras das duas Casas  é contrário ao que prevê a Constituição Federal. A decisão não é pelo mérito do aumento em si. Tanto é que se os parlamentares tiverem coragem de votar no Plenário do Congresso Nacional o mesmo aumento, o Supremo não poderá cancelá-lo, pois estarão cumprindo o ritual previsto.

O STF não julga a ética nem a moral, ele julga se fere ou não os preceitos constitucionais. Como a Constituição prevê que a cada quatro anos, ao final de cada legislatura, os parlamentares revejam seus vencimentos e estabeleçam o aumento a que terão direito os membros do novo Congresso que assumirá em fevereiro, nada de errado no mérito. No caso atual, o que foi errado foi o processo, o fato de o aumento ter sido concedido por uma resolução conjunta  das mesas das duas Casas, baseada em um decreto legislativo, que no entender do Supremo teve sua validade cancelada com a edição da emenda constitucional  41, de 2003.

Quem julga a ética e a moral somos nós, a sociedade brasileira, que tem o direito de se indignar frente a tamanho absurdo. Enquanto se discute, na tramitação do Orçamento da União para 2007, a firula de 8 reais de aumento no salário mínimo, os mesmos parlamentares se concedem um aumento de mais de 12 mil reais. É isso que escandaliza. É isso que nos deixa indignados.

Aliás, ultimamente temos tido vários e muitos motivos para isso. Para ficar só nos exemplos mais recentes, há duas semanas ouvimos a presidente da suprema corte justificar o aumento de seus vencimentos em 6 mil reais como forma de não trabalhar de graça para o Estado. Como pode uma Juíza que já recebe mais de 24 mil reais por mês dizer que precisa de remuneração a mais para participar de duas reuniões mensais do Conselho Nacional de Justiça?

O que se percebe é que os parâmetros da ética, da moral e da solidariedade foram para o espaço. O que esperar dessas autoridades máximas da Nação quando o interesse particular de cada vez mais engordar seus próprios bolsos se sobrepõe ao interesse público. Como pensar em combater as desigualdades sociais que assolam historicamente a nossa sociedade se o Estado continua sendo usado para atender os interesses particulares de alguns?

 
Ainda bem que nós da sociedade civil estamos aprendendo a não aceitar esses absurdos calados. As manifestações contra esse estado de coisas são muitas. E é nelas que temos que confiar para que a decisão do Supremo não seja só um round perdido. Mas, que os parlamentares tenham vergonha de votar em Plenário tal aumento. Somente a nossa pressão poderá segurar a falta de ética, moral e solidariedade que assola os detentores de poder no nosso País.

Velhas e nocivas práticas

 

A luta de setores progressistas da sociedade civil para regular a radiodifusão brasileira e construir, de forma democrática e participativa, uma Lei Geral de Comunicação Eletrônica de Massa, ganhou mais motivos para inspirar uma forte mobilização coletiva.

 O novo Congresso Nacional, eleito em 2006, repete as velhas e nocivas práticas no que se refere ao setor de comunicação. Nada menos que 20% dos deputados da Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI), encarregada de rever as regras de outorga e renovação de concessões, estão ligados a veículos de comunicação, segundo informa o site Congresso em Foco.

 Esse cenário é histórico, embora represente um flagrante desrespeito à Constituição Federal, que, no seu artigo 54, proíbe parlamentares de manterem ligação com empresas concessionárias de serviço público, sob pena de perda do mandato.

 Não apenas na CCTCI, mas em todo o Congresso, há parlamentares vinculados a empresas de radiodifusão. Estima-se que esse número possa chegar a 100 parlamentares. Na última legislatura, o Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo (Projor) entrou com representação no Ministério Público Federal cobrando medidas judiciais: à época, em 2005, apurou-se que pelo menos 51 dos 513 deputados eram concessionários diretos de rádio e TV.

 Diante dessa situação, fica a pergunta: como construir uma Lei Geral de Comunicação efetivamente democrática, capaz de assegurar direitos a todos e todas, se o projeto de lei será discutido num ambiente onde parlamentares das duas Casas – Câmara e Senado – têm interesse direto no assunto?

 A subcomissão da CCTCI destinada a rever regras de outorga e renovação de concessões é presidida pela deputada Luiza Erundina (PSB-SP), que promete empreender uma investigação e não descarta a criação de CPI para apurar possíveis irregularidades. Para a sociedade civil, é uma oportunidade de fortalecer as iniciativas que visem à transparência dos processos relacionados à radiodifusão. Esse é o primeiro passo para assegurar o respeito à lei e a construção de uma comunicação verdadeiramente democrática.

 

* Assessora de Comunicação do Inesc

 

 

 

 

O Estatuto é um só, as infâncias são muitas

A infância é quando ainda não é demasiado tarde. É quando estamos disponíveis para nos surpreendermos, para nos deixarmos encantar.

Mia Couto

Tratar de infância significa falar de um colorido sem fim que cobre o mundo. Não se trata de um único modo de ser, mas de infinitos, tanto quanto crianças há sobre a terra. A diversidade é o que caracteriza a natureza humana.

Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA):

Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.

A infância poética e querida, tal como a conhecemos no mundo moderno, além de ter sido fruto de uma longa construção histórica e antropológica, não é – e nunca foi – igual para todas as crianças. Nem todas que habitam um mesmo território, ou fazem parte da mesma família desfrutam de modo igual de suas condições de existência.

As desigualdades e a pobreza impulsionam crianças a um amadurecimento precoce, forjam um lapso da vida subtraindo delas o direito humano de brincar. O trabalho precoce agride seus corpos e tortura suas mentes. A atividade laboral as impede de se desenvolver na interação permanente com outras crianças. O trabalho de crianças representa o esmagamento do direito de serem protegidas.

Desigualdade na infância

Há infâncias cujos povos não são reconhecidos. Esta forma de opressão intenciona provocar o silenciamento ou até o desaparecimento de coletividades. Sem voz não há plenitude. Crianças expulsas de suas terras e, privadas de seus territórios, perdem contato com as suas referências e ancestralidades. Corta-se o fio que as conecta a outras gerações.

Há crianças amadas e outras não queridas, determinando ora preferências, ora descasos e negligências na própria família ou na escola. Outras são treinadas para o sucesso e se privam de experiências lúdicas com uma sobrecarga de compromissos.Crianças de cores diferentes experimentam a vida de formas diferentes. Privilégios e intolerâncias determinam suas vivências.

Nos discursos institucionais, a infância costuma ser tratada como um ‘vir a ser’ de um futuro distante como se a sua condição presente estivesse presa ao fardo de se responsabilizar pela construção de um ‘depois feliz’ para o país e, quiçá, para o mundo. O papel da criança, neste caso, estaria vinculado unicamente à sua futura participação na vida adulta. Portanto, falar de infâncias também exige um olhar sobre seus territórios e suas comunidades. Não há infância sem suas complexas relações familiares, comunitárias e ambientais.

Outra concepção usual de infância a considera propriedade dos adultos (herança do Código de Menores, lei que antecede o ECA), perspectiva que permite uma infinidade de violências e de abusos.

Fundamentado na doutrina da Situação Irregular o Código de Menores permitia às autoridades recolherem crianças que estivessem desprotegidas nas ruas como se elas mesmas fossem responsáveis pelo próprio abandono. Nesta concepção o espaço público é hierarquizado e as crianças indesejáveis (negras e pobres) eram tidas como ‘sujeira’. Ao poder público cabia ‘higienizar’ as ruas livrando-as dos sujeitos considerados incômodos.

ECA: paradigma da proteção integral

O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90) nasce pelos movimentos populares para inaugurar uma nova lógica. Pela primeira vez, se reconhece no Brasil a criança e o adolescente como sujeitos de direitos. O ECA nomeia a família, a sociedade e o poder público como responsáveis pela proteção e pelo desenvolvimento de todas e de cada criança e de cada adolescente. Entre a universalidade e a particularidade, o ECA acolhe a todas no princípio da prioridade absoluta.

Em vez de se recolher crianças, o ECA obriga um conjunto de instituições a promover direitos. O paradigma da Proteção Integral constitui um abraço simbólico em cada criança por todas as políticas públicas e por toda a sociedade de tal maneira que, se a família estiver fragilizada e não der conta de seu papel, outro setor estará presente enquanto o núcleo familiar também é amparado.

Em tempos de retrocessos e exacerbação das intolerâncias e violências, crianças e adolescentes são alvos fáceis. O PSL, partido do presidente Bolsonaro, move uma ação contra os dispositivos do ECA que impedem a detenção de crianças e adolescentes para averiguação por motivo de perambulação nas ruas. O objetivo é ressuscitar a lógica seletiva, elitista e perversa que fundamentava o antigo Código de Menores. Recolher seria a palavra de ordem, restrição da liberdade, nada mais.

A liberação de armas de fogo, por exemplo, representa um perigo objetivo: o de morrer ou ver morrer um familiar. As armas têm uma mira precisa. Apontam para as cabeças de moradores das favelas, população negra. Não há bala perdida, há bala que faz vítimas. A bala encontra corpos. Corpos negros com endereço certo. Estudo do Unicef (2017) revela dados sobre a raça/cor das vítimas de homicídio no Brasil: 75% dos mortos são negros ou multirraciais, 18% brancos, 7% das vítimas não possuem raça/cor declarada.

O desafio posto é fazer com que o Estatuto da Criança e do Adolescente se concretize nas diversas comunidades e contextos, assegurando o mesmo acesso a direitos, ainda que as condições sejam múltiplas. O importante é que o ECA garanta a dignidade e o pleno desenvolvimento, respeitadas as diferenças étnicas, culturais e pessoais, entre outras. Só com a convergência de todas as políticas públicas, com maior atenção aos que mais necessitam, é possível assegurar o pleno desenvolvimento e o direito de ser feliz de um conjunto tão diverso de crianças que compõe o que chamamos de infância.

O Estatuto é um só, as infâncias são muitas

A infância é quando ainda não é demasiado tarde. É quando estamos disponíveis para nos surpreendermos, para nos deixarmos encantar.

Mia Couto

Tratar de infância significa falar de um colorido sem fim que cobre o mundo. Não se trata de um único modo de ser, mas de infinitos, tanto quanto crianças há sobre a terra. A diversidade é o que caracteriza a natureza humana.

Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA):

Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.

A infância poética e querida, tal como a conhecemos no mundo moderno, além de ter sido fruto de uma longa construção histórica e antropológica, não é – e nunca foi – igual para todas as crianças. Nem todas que habitam um mesmo território, ou fazem parte da mesma família desfrutam de modo igual de suas condições de existência.

As desigualdades e a pobreza impulsionam crianças a um amadurecimento precoce, forjam um lapso da vida subtraindo delas o direito humano de brincar. O trabalho precoce agride seus corpos e tortura suas mentes. A atividade laboral as impede de se desenvolver na interação permanente com outras crianças. O trabalho de crianças representa o esmagamento do direito de serem protegidas.

Desigualdade na infância

Há infâncias cujos povos não são reconhecidos. Esta forma de opressão intenciona provocar o silenciamento ou até o desaparecimento de coletividades. Sem voz não há plenitude. Crianças expulsas de suas terras e, privadas de seus territórios, perdem contato com as suas referências e ancestralidades. Corta-se o fio que as conecta a outras gerações.

Há crianças amadas e outras não queridas, determinando ora preferências, ora descasos e negligências na própria família ou na escola. Outras são treinadas para o sucesso e se privam de experiências lúdicas com uma sobrecarga de compromissos.Crianças de cores diferentes experimentam a vida de formas diferentes. Privilégios e intolerâncias determinam suas vivências.

Nos discursos institucionais, a infância costuma ser tratada como um ‘vir a ser’ de um futuro distante como se a sua condição presente estivesse presa ao fardo de se responsabilizar pela construção de um ‘depois feliz’ para o país e, quiçá, para o mundo. O papel da criança, neste caso, estaria vinculado unicamente à sua futura participação na vida adulta. Portanto, falar de infâncias também exige um olhar sobre seus territórios e suas comunidades. Não há infância sem suas complexas relações familiares, comunitárias e ambientais.

Outra concepção usual de infância a considera propriedade dos adultos (herança do Código de Menores, lei que antecede o ECA), perspectiva que permite uma infinidade de violências e de abusos.

Fundamentado na doutrina da Situação Irregular o Código de Menores permitia às autoridades recolherem crianças que estivessem desprotegidas nas ruas como se elas mesmas fossem responsáveis pelo próprio abandono. Nesta concepção o espaço público é hierarquizado e as crianças indesejáveis (negras e pobres) eram tidas como ‘sujeira’. Ao poder público cabia ‘higienizar’ as ruas livrando-as dos sujeitos considerados incômodos.

ECA: paradigma da proteção integral

O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90) nasce pelos movimentos populares para inaugurar uma nova lógica. Pela primeira vez, se reconhece no Brasil a criança e o adolescente como sujeitos de direitos. O ECA nomeia a família, a sociedade e o poder público como responsáveis pela proteção e pelo desenvolvimento de todas e de cada criança e de cada adolescente. Entre a universalidade e a particularidade, o ECA acolhe a todas no princípio da prioridade absoluta.

Em vez de se recolher crianças, o ECA obriga um conjunto de instituições a promover direitos. O paradigma da Proteção Integral constitui um abraço simbólico em cada criança por todas as políticas públicas e por toda a sociedade de tal maneira que, se a família estiver fragilizada e não der conta de seu papel, outro setor estará presente enquanto o núcleo familiar também é amparado.

Em tempos de retrocessos e exacerbação das intolerâncias e violências, crianças e adolescentes são alvos fáceis. O PSL, partido do presidente Bolsonaro, move uma ação contra os dispositivos do ECA que impedem a detenção de crianças e adolescentes para averiguação por motivo de perambulação nas ruas. O objetivo é ressuscitar a lógica seletiva, elitista e perversa que fundamentava o antigo Código de Menores. Recolher seria a palavra de ordem, restrição da liberdade, nada mais.

A liberação de armas de fogo, por exemplo, representa um perigo objetivo: o de morrer ou ver morrer um familiar. As armas têm uma mira precisa. Apontam para as cabeças de moradores das favelas, população negra. Não há bala perdida, há bala que faz vítimas. A bala encontra corpos. Corpos negros com endereço certo. Estudo do Unicef (2017) revela dados sobre a raça/cor das vítimas de homicídio no Brasil: 75% dos mortos são negros ou multirraciais, 18% brancos, 7% das vítimas não possuem raça/cor declarada.

O desafio posto é fazer com que o Estatuto da Criança e do Adolescente se concretize nas diversas comunidades e contextos, assegurando o mesmo acesso a direitos, ainda que as condições sejam múltiplas. O importante é que o ECA garanta a dignidade e o pleno desenvolvimento, respeitadas as diferenças étnicas, culturais e pessoais, entre outras. Só com a convergência de todas as políticas públicas, com maior atenção aos que mais necessitam, é possível assegurar o pleno desenvolvimento e o direito de ser feliz de um conjunto tão diverso de crianças que compõe o que chamamos de infância.

Eu conheci a Marielle

Muito se tem falado sobre o adoecimento de defensores de direitos humanos nos tempos mais recentes. De fato, nossa mente, nosso corpo e nossa alma suportam realidades que nem sempre damos conta, nós que estamos em luta permanente contra a violência e pelo direito a uma existência humana plena.

Ontem minha mente/corpo/alma me pregaram uma peça. Eu acordei sem memória. Fui para o trabalho de manhã, para uma roda de conversa sobre racismo religioso, mas não lembrava de estar vivendo o dia 14 de março, um ano da execução da vereadora, socióloga e ativista Marielle Franco. Cheguei ao evento e um colega me perguntou se queria iniciar a atividade com palavras sobre ela, e eu respondi que não. Me dei conta naquele momento que havia um vazio em mim, e que eu não tinha me preparado para viver este dia. Mãe Bahiana e outras ativistas do movimento de mulheres negras fizeram as falas, um pai de santo cantou pra Oxalá. Ali começou a cair a ficha.

A notícia: soco e falta de ar

Há um ano, eu estava no Fórum Social Mundial em Salvador (BA), com companheiras de organizações de diversas partes do Brasil responsáveis pelo projeto Mulheres Jovens Negras na Luta contra o Racismo e o Sexismo[i], conhecido como Hub das Pretas, além de colegas da organização em que trabalho, o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).

Viajamos cheias de esperança para participar do Fórum, renovar as energias para o ano de agendas políticas pesadas, e viabilizar a participação de jovens negras em um espaço histórico de propostas para “um outro mundo possível”. No dia 14 de março, após uma jornada de intenso trabalho, paramos para comer um acarajé em Rio Vermelho, fechar o dia com dendê, que alegria. Caminhando de volta para o hotel, nos encontramos com outros companheiros de luta, e um deles me chamou de lado: “Mataram a Marielle.” Dali pra frente, nem sei por onde fomos e o que fizemos, só sei que eu estava com amigas do Rio de Janeiro e a prioridade era cuidá-las e viabilizar a volta delas pra casa.

A dor e a empatia

O dia seguinte foi dia de marcha, pelo menos para as pessoas negras que se encontravam no Fórum. E para mim. Não sei nem como descrever aquele momento de luto, revolta, tristeza, estar ali caminhando e pensando que enterrar os seus, que morreram de forma violenta e prematura, é o cotidiano de todas as periferias e favelas do Brasil, de tantas famílias destruídas pela guerra ao tráfico, que na verdade é uma guerra contra o povo negro desse país.

A partir de então, uma música passou a tocar na minha mente e ficou por meses tocando e tocando: Zé do Caroço, na voz de Leci Brandão. O recado estava dado: vocês podem trabalhar, construir lideranças, podem até vencer no voto, mas nós vamos matar vocês. A esperança que eu sempre senti ouvindo sobre o nascimento do novo líder na favela estava abafada. O luto permanente, estratégia de desmobilização dos pobres neste duro Brasil, estava amplificado. Mulher, negra, mãe, favelada, bissexual: o corpo que expressava tanto e de tantas formas, tombava diante de nós, estarrecidas, perdidas.

A semente

Meses depois, tive a oportunidade de ouvir Leci Brandão ao vivo, ao lado de Luedji Luna, na comemoração dos 30 anos do Geledés – Instituto da Mulher Negra, em São Paulo. Ali o Zé do Caroço ganhou outro sentido: elas dançavam e cantavam, grandes nomes como Sueli Carneiro, Jurema Wernek, Nilza Iraci, e tantas outras. Era a memória viva que dançava e cantava celebrando décadas de resistência. É sobre força, estratégia, coletividade e beleza na luta.

Este texto nasce do processo de viver este dia 14 de março de 2019, um dos dias mais longos da minha vida, em que pouco ou nada controlei de mim. Dia de falar de racismo no trabalho, de ir ao ato na Praça Zumbi dos Palmares, onde se multiplicaram as placas azuis inscritas com Marielle Franco. Dia de estar com amigas, de enviar mensagens àquelas que estão longe, que estiveram comigo um ano atrás (e de ter dor de cabeça). Dia de conectar-me a estas mulheres que seguiram buscando respirar e lembrar que há 519 anos se luta nesse território por liberdade, justiça e diversidade. Amigas que estão no Rio, Recife, São Paulo, aqui no DF, e outra lá na Finlândia. Mulheres negras, ativistas, de diferentes idades e histórias, que ensinam, acolhem, produzem conhecimento.

Quando vi o belíssimo vídeo de homenagem da Mídia Ninja, eu só queria gritar: eu conheci a Marielle! Não, nós não fomos amigas. Mas eu conheci o seu trabalho, eu acompanhei sua trajetória e torci por ela, e em uma noite de roda de conversa sobre mobilidade urbana no Teatro Dulcina, promovida pelo Movimento Nossa Brasília, nós conversamos. O sorriso, a energia, a inteligência, um momento fugaz, que me faz sentir “abençonhada”, palavra inventada por Mia Couto que junta sonho e benção, o que está dentro e a magia que vem de fora, do coletivo. Marielle é semente, ensinam sua companheira e aqueles que estiveram ao seu lado. Ela transcendeu a pessoa. Se multiplicou. Eu a conheço porque há muitas como ela, de geração em geração. Porque é um presente da vida contar com esta referência, e neste sentido, presente é presença.

Eles latem, nós carnavalizamos

Foto: Rodrigo Gorosito/G1

O carnaval provou que política de rua incomoda, e a Mangueira causou alvoroço com seu samba enredo de 2019: lembrou Leci, Jamelão, Dandara e Zumbi. Tornou verde e rosa a multidão quando interpelou: “Brasil, chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês”. Lavou a alma de tantas nós, que saímos para os blocos para escrachar a política, os laranjas, as milícias e o fundamentalismo religioso. Carnaval é festa política desde sempre, ora pois. E foi ali, na avenida, que Marielle Franco se juntou às pessoas que viveram para a transformação social, e que nunca serão esquecidas, ainda que os livros de história tentem apagar.

Eles dizem que não conheciam Marielle. Que ela teria ficado conhecida após sua morte. Eles mentem. Ao (literalmente) latir no Parlamento, os donos do poder comprovaram que são títeres do espetáculo das eleições do golpe, do caixa dois e notícias falsas, do racismo, homofobia. O nosso palco é outro. Da alegria, da afetividade. E com nossa força seguiremos interpelando: Quem mandou matar Marielle Franco?

*Dedico este texto a Lucia Xavier, Silvana Bahia, Rachel Barros e Marina Ribeiro, que me ajudaram respirar em momentos de muita dor.

[i] Oxfam Brasil, Fase Recife, Fase Rio, Ibase, Criola, Instituto Pólis.

Eu conheci a Marielle

Muito se tem falado sobre o adoecimento de defensores de direitos humanos nos tempos mais recentes. De fato, nossa mente, nosso corpo e nossa alma suportam realidades que nem sempre damos conta, nós que estamos em luta permanente contra a violência e pelo direito a uma existência humana plena.

Ontem minha mente/corpo/alma me pregaram uma peça. Eu acordei sem memória. Fui para o trabalho de manhã, para uma roda de conversa sobre racismo religioso, mas não lembrava de estar vivendo o dia 14 de março, um ano da execução da vereadora, socióloga e ativista Marielle Franco. Cheguei ao evento e um colega me perguntou se queria iniciar a atividade com palavras sobre ela, e eu respondi que não. Me dei conta naquele momento que havia um vazio em mim, e que eu não tinha me preparado para viver este dia. Mãe Bahiana e outras ativistas do movimento de mulheres negras fizeram as falas, um pai de santo cantou pra Oxalá. Ali começou a cair a ficha.

A notícia: soco e falta de ar

Há um ano, eu estava no Fórum Social Mundial em Salvador (BA), com companheiras de organizações de diversas partes do Brasil responsáveis pelo projeto Mulheres Jovens Negras na Luta contra o Racismo e o Sexismo[i], conhecido como Hub das Pretas, além de colegas da organização em que trabalho, o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).

Viajamos cheias de esperança para participar do Fórum, renovar as energias para o ano de agendas políticas pesadas, e viabilizar a participação de jovens negras em um espaço histórico de propostas para “um outro mundo possível”. No dia 14 de março, após uma jornada de intenso trabalho, paramos para comer um acarajé em Rio Vermelho, fechar o dia com dendê, que alegria. Caminhando de volta para o hotel, nos encontramos com outros companheiros de luta, e um deles me chamou de lado: “Mataram a Marielle.” Dali pra frente, nem sei por onde fomos e o que fizemos, só sei que eu estava com amigas do Rio de Janeiro e a prioridade era cuidá-las e viabilizar a volta delas pra casa.

A dor e a empatia

O dia seguinte foi dia de marcha, pelo menos para as pessoas negras que se encontravam no Fórum. E para mim. Não sei nem como descrever aquele momento de luto, revolta, tristeza, estar ali caminhando e pensando que enterrar os seus, que morreram de forma violenta e prematura, é o cotidiano de todas as periferias e favelas do Brasil, de tantas famílias destruídas pela guerra ao tráfico, que na verdade é uma guerra contra o povo negro desse país.

A partir de então, uma música passou a tocar na minha mente e ficou por meses tocando e tocando: Zé do Caroço, na voz de Leci Brandão. O recado estava dado: vocês podem trabalhar, construir lideranças, podem até vencer no voto, mas nós vamos matar vocês. A esperança que eu sempre senti ouvindo sobre o nascimento do novo líder na favela estava abafada. O luto permanente, estratégia de desmobilização dos pobres neste duro Brasil, estava amplificado. Mulher, negra, mãe, favelada, bissexual: o corpo que expressava tanto e de tantas formas, tombava diante de nós, estarrecidas, perdidas.

A semente

Meses depois, tive a oportunidade de ouvir Leci Brandão ao vivo, ao lado de Luedji Luna, na comemoração dos 30 anos do Geledés – Instituto da Mulher Negra, em São Paulo. Ali o Zé do Caroço ganhou outro sentido: elas dançavam e cantavam, grandes nomes como Sueli Carneiro, Jurema Wernek, Nilza Iraci, e tantas outras. Era a memória viva que dançava e cantava celebrando décadas de resistência. É sobre força, estratégia, coletividade e beleza na luta.

Este texto nasce do processo de viver este dia 14 de março de 2019, um dos dias mais longos da minha vida, em que pouco ou nada controlei de mim. Dia de falar de racismo no trabalho, de ir ao ato na Praça Zumbi dos Palmares, onde se multiplicaram as placas azuis inscritas com Marielle Franco. Dia de estar com amigas, de enviar mensagens àquelas que estão longe, que estiveram comigo um ano atrás (e de ter dor de cabeça). Dia de conectar-me a estas mulheres que seguiram buscando respirar e lembrar que há 519 anos se luta nesse território por liberdade, justiça e diversidade. Amigas que estão no Rio, Recife, São Paulo, aqui no DF, e outra lá na Finlândia. Mulheres negras, ativistas, de diferentes idades e histórias, que ensinam, acolhem, produzem conhecimento.

Quando vi o belíssimo vídeo de homenagem da Mídia Ninja, eu só queria gritar: eu conheci a Marielle! Não, nós não fomos amigas. Mas eu conheci o seu trabalho, eu acompanhei sua trajetória e torci por ela, e em uma noite de roda de conversa sobre mobilidade urbana no Teatro Dulcina, promovida pelo Movimento Nossa Brasília, nós conversamos. O sorriso, a energia, a inteligência, um momento fugaz, que me faz sentir “abençonhada”, palavra inventada por Mia Couto que junta sonho e benção, o que está dentro e a magia que vem de fora, do coletivo. Marielle é semente, ensinam sua companheira e aqueles que estiveram ao seu lado. Ela transcendeu a pessoa. Se multiplicou. Eu a conheço porque há muitas como ela, de geração em geração. Porque é um presente da vida contar com esta referência, e neste sentido, presente é presença.

Eles latem, nós carnavalizamos

Foto: Rodrigo Gorosito/G1

O carnaval provou que política de rua incomoda, e a Mangueira causou alvoroço com seu samba enredo de 2019: lembrou Leci, Jamelão, Dandara e Zumbi. Tornou verde e rosa a multidão quando interpelou: “Brasil, chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês”. Lavou a alma de tantas nós, que saímos para os blocos para escrachar a política, os laranjas, as milícias e o fundamentalismo religioso. Carnaval é festa política desde sempre, ora pois. E foi ali, na avenida, que Marielle Franco se juntou às pessoas que viveram para a transformação social, e que nunca serão esquecidas, ainda que os livros de história tentem apagar.

Eles dizem que não conheciam Marielle. Que ela teria ficado conhecida após sua morte. Eles mentem. Ao (literalmente) latir no Parlamento, os donos do poder comprovaram que são títeres do espetáculo das eleições do golpe, do caixa dois e notícias falsas, do racismo, homofobia. O nosso palco é outro. Da alegria, da afetividade. E com nossa força seguiremos interpelando: Quem mandou matar Marielle Franco?

*Dedico este texto a Lucia Xavier, Silvana Bahia, Rachel Barros e Marina Ribeiro, que me ajudaram respirar em momentos de muita dor.

[i] Oxfam Brasil, Fase Recife, Fase Rio, Ibase, Criola, Instituto Pólis.

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