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Ele só queria um chocolate

Saiu na rádio. Um adolescente de 17 anos foi amordaçado, torturado e chicoteado nu pela tentativa, TENTATIVA de roubar um chocolate no Supermercado Ricoy em São Paulo. Não precisou ser anunciado, o adolescente é negro, todos sabíamos.

As cenas vazaram pelas redes sociais e causaram consternação e revolta. Mais dor a todos os jovens que, como ele, sofrem diariamente na pele violências múltiplas e impensáveis para um mundo dito civilizado. A brutalidade nos evidenciou, mais uma vez, que nos porões das casas grandes ainda existem muitas senzalas e a crueldade está autorizada por uma cultura impregnada pelo racismo. O fato não é isolado e os perpetuadores da violência encontram, de alguma forma, ecos em outros casos. Nós ainda não esquecemos dos 80 tiros que mataram o músico no Rio de Janeiro e as inúmeras chacinas que exterminam jovens negros e negras todos os dias. Causa espanto os pronunciamentos que relativizam a violência. A desumanização no discurso oficial cultiva um campo propício para tais barbaridades.

Eu fui num quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas (arroba é uma medida usada para pesar gado; cada uma equivale a 15 kg). Não fazem nada. Eu acho que nem para procriador ele serve mais. Mais de R$ 1 bilhão por ano é gasto com eles”

(Jair Bolsonaro, 2017)

Enquanto isso, as unidades de internação estão lotadas com meninos e meninas que “só queriam um chocolate”; viver a infância com as suas possibilidades: com doces, com brincadeiras, com afeto, convivência familiar e comunitária, educação de qualidade, cultura, saúde e segurança.

Segundo o Levantamento Anual do Sinase, publicado em 2018, referente ao ano de 2016, 50% dos atos infracionais cometidos por adolescentes em cumprimento de alguma medida são roubo (47%) e furto (3%) e o tráfico corresponde a 22%. A maioria dos atos infracionais (77%) está relacionada a estratégias de sobrevivência ou de busca por acesso a bens de consumo.

As populações moradoras de periferia sempre foram alvo do sistema que privilegia as elites brancas, que nunca aceitaram compartilhar a condição humana com pessoas negras. Populações indígenas, ciganas e negras padecem da negação de suas existências; ou mesmo, têm suas vidas usurpadas por exploradores insaciáveis. Tudo o que se refere às culturas afro-brasileiras é atacado ostensivamente, até mesmo em nome de um “deus branco”. No início de 2019 registrou-se um aumento em 47% de denúncias de racismo religioso no Brasil. De acordo com o levantamento realizado pelo Disque 100, canal do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos foram feitas 213 notificações de intolerância religiosa a matrizes africanas, de janeiro a novembro de 2018.

Em tempos de recrudescimento da ação repressora, censura, liberação de armas, aumento de desemprego e corte de gastos na educação, não dá para esperar a redução da violência urbana, até porque o primeiro tiro foi dado por um Estado que despreza vidas. Tempos difíceis…

O Estado brasileiro sempre violou direitos e nunca pagou a conta por isso. A violência historicamente recai nas costas da juventude negra desde sempre.

Neste contexto, acredito que o governo deveria garantir boas condições e oportunidades em geral. Num Brasil que milhares de famílias ainda passam fome, as crianças são as que mais sofrem e, infelizmente, acumulam situações de trabalho infantil e até exploração sexual. Este mesmo Brasil que violenta a infância, discrimina pela raça, pelo sotaque ou orientação sexual, deveria também ser sentenciado como eu fui.”

 

(jovem do projeto Onda, promovido pelo Inesc, que cumpria a medida de internação em Brasília)

É preciso urgentemente pensar sobre quem é de fato violento, sobre as raízes da violência, sobre educação e novas possibilidades para recuperar um mínimo de civilidade no país tomado pelos horrores da desumanidade em grau máximo. A população das quebradas não se cala. A resistência se dá no campo político, nas ruas, mas também na cultura que celebra o encontro e exala a força coletiva, alegria e afeto. Cabe à educação não deixar fatos como esses serem banalizados, cultivar a indignação que permite a sobrevivência de uma ética tão ameaçada em tempos sombrios.

O PPA do governo Bolsonaro: 4 anos de miséria

O governo enviou sua proposta de Plano Plurianual (PPA) para o Congresso no dia 30 de agosto. O Plano, que é um preceito constitucional, representa a primeira etapa do ciclo orçamentário e prevê os programas e ações que o governo pretende desenvolver nos próximos quatro anos (2020 a 2023), definindo estratégias, diretrizes e metas.

Muito pode ser dito do PPA do governo Bolsonaro no que se refere ao cenário macroeconômico proposto, aos investimentos planejados, à (ausência) de uma análise da inserção do Brasil no cenário internacional ou, ainda, em relação à metodologia adotada, que além de demasiado simplificada, deixa muito a desejar em termos de concepção e de participação social, entre outras questões.

Contudo, para este exercício, propomos uma análise na perspectiva dos direitos humanos e do combate às desigualdades.

Com o título “Planejar, Priorizar, Alcançar”, o PPA do Bolsonaro contém 6 eixos, 13 diretrizes, 15 temas e 72 programas, sendo 66 finalísticos e 6 de gestão, conforme resumido no Quadro 1.

A prioridade é a área econômica

A alocação de recursos do PPA por eixo revela que a grande prioridade, de longe a principal, é a econômica: 66% dos cerca de R$ 7 trilhões alocados para o período de 2020 a 2023 se destinam ao eixo econômico (ver Tabela 1). Em um distante segundo lugar, encontra-se o eixo social com 26% do total de recursos previstos. A vertente econômica é tão forte que até a política externa é considerada como integrante dessa dimensão, limitando, pois, os objetivos do Estado brasileiro no âmbito internacional aos assuntos econômicos e comerciais.

*Ver a tabela anexa com detalhamento dos 66 programas finalísticos por eixo

Os principais beneficiários são os mais ricos

As mudanças estruturais previstas têm por objetivo facilitar a vida dos empresários. Assim, por exemplo, os propósitos da reforma tributária não são os de combater as desigualdades e de aumentar a cobertura dos programas sociais e ambientais de modo a promover a inclusão socioambiental, são única e exclusivamente os de simplificar os tributos para reduzir custos associados ao pagamento de impostos por parte do setor privado. Os objetivos das privatizações e da reforma administrativa do Estado são os de diminuir o papel do poder público para entregar novos mercados (energia, estradas, saúde, educação, entre outros) para o setor privado.

O esvaziamento dos direitos

A narrativa do Plano não se estrutura em torno dos direitos, base da nossa Constituição. Não há qualquer menção ao necessário fortalecimento da nossa democracia. A tônica é a da eficiência, da criação de um ambiente propício aos negócios, à concorrência e à inovação. Uma ode à “simplificação” e ao “realismo fiscal”, termos muito utilizados no documento, como condições para o crescimento. A previdência social, a moradia e o transporte público são percebidos como alavancadores da economia e não como direitos que o Estado deve assegurar. Por isso, os programas referentes a essas áreas estão inseridos no eixo econômico.

Os direitos associados ao trabalho, que correspondem à formalização dos empregos, não são considerados. Ao contrário, os programas propostos são de modernização trabalhista e empregabilidade, na linha da desregulação do mercado de trabalho que, mais uma vez, premia os mais ricos e penaliza os trabalhadores, cada vez mais desprotegidos.

A dimensão social, cujos valores alocados correspondem a menos de 40% daqueles destinados à dimensão econômica, engloba educação, saúde, assistência social, esporte e segurança alimentar e nutricional (ver Anexo 1). O PPA de Bolsonaro considera ainda a cultura apenas como um programa social, esvaziando-a completamente de seu papel central para a construção de uma sociedade democrática e inclusiva.

O foco é na família, percebida como agente econômico que consome, mas também que provê serviços cada vez menos ofertados pelo Estado, como os de cuidados das crianças, dos doentes e dos idosos. Tais ações deveriam ser providas pelas políticas públicas de educação infantil, saúde e assistência social, respectivamente.

A invisibilidade das mulheres, das pessoas negras e indígenas

Não há qualquer menção às desigualdades de gênero e de raça/etnia, que estão na base das nossas abissais desigualdades sociais. Palavras como discriminação, negros e negras, terra e território nem sequer constam da Mensagem Presidencial que acompanha o Plano. Povos e comunidades tradicionais aparecem apenas como beneficiários de políticas de educação básica.

O “foco na família”, associado à omissão do machismo e do sexismo, são reveladores do lugar que a mulher ocupa na visão de sociedade do governo Bolsonaro. Esse lugar é basicamente o lar, onde ela deve desempenhar o papel de esposa e mãe, a maternidade é um dever patriótico, atendendo e servindo a sua família assim como transmitindo valores da cultura. Para ela, a vida deveria se limitar à esfera privada, porque não tem talento para a vida pública. Tanto é assim que são muito poucas as mulheres que ocupam cargos de destaque no governo que tomou posse em janeiro de 2019.

O meio ambiente e o clima se resumem ao agronegócio

No eixo ambiental, 96% dos recursos vão para um único programa, que é o de Agropecuária Sustentável, do Ministério da Agricultura, Agropecuária e Abastecimento (Mapa). As principais metas dos programas desse eixo são as de elevar o índice de Sustentabilidade da Agropecuária Brasileira e de aumentar o impacto econômico das soluções tecnológicas agropecuárias. Vê-se, pois, que questões como desmatamento, proteção dos biomas e dos povos das águas e das florestas, diminuição dos gases de efeito estufa passam ao largo das prioridades do governo Bolsonaro para os próximos quatro anos.

Em resumo, o PPA 2020-2023 é racista, sexista, promotor de desigualdades sociais e de aquecimento global. Seu título deveria ser Privatizar o Estado, Privilegiar os ricos e Acabar com a solidariedade, em âmbitos nacional e internacional.

 

 

 

“Bicho enjaulado são eles, que estão presos no dinheiro!”

Desde o dia 9 de agosto, acontece em Brasília a I Marcha das Mulheres Indígenas, cujo lema, “Território: nosso corpo, nosso espírito”, sintetiza as principais bandeiras dos povos originários do país, a partir da perspectiva das mulheres. A marcha conta com a participação de cerca de 2 mil mulheres de todo Brasil, e é resultado de um longo processo de articulação e mobilização das indígenas dentro de suas comunidades e do movimento.

Se a luta pelo reconhecimento enfrenta desafios no âmbito das próprias organizações e comunidades, as mulheres que essa semana tomam Brasília têm também enfrentado os crescentes índices de violência infligidos às terras indígenas. Ataques às comunidades vem se multiplicado, guiados pela sanha de quem vê nos territórios não corpos e espíritos, mas mercadoria. O rastro de morte do capital se espalha com a anuência, estímulo e aprovação do governo brasileiro – que põe em dúvida assassinatos, desdenha pesquisas, incentiva a violação de direitos conquistados, e ofende a autonomia dos povos originários em nome de um projeto econômico desastroso não apenas para os indígenas, mas para todas nós e para o próprio planeta.

Da mesma forma, também as mulheres estão na mira do Brasil do bolsonarismo: a negação do debate de gênero é uma das plataformas políticas do governo, no mesmo país em que 67 % das agressões físicas acontecem contra mulheres.

Mais do que “cortinas de fumaça”, tais discursos estão bem casados com os desmontes das políticas públicas, em curso há alguns anos e agravado nos últimos oito meses. Como escrevemos em outro artigo, as políticas de garantia de direitos sofreram especialmente com os contingenciamentos do governo federal. Por exemplo, as políticas da área de “Direitos da Cidadania” tiveram 27% dos seus recursos contingenciados – área que abrange, entre outras, políticas relacionadas à garantia dos direitos das mulheres e dos povos indígenas.

Cortes na política indigenista

Se entendemos os cortes orçamentários dentro do contexto das políticas indigenistas, o quadro se torna ainda mais grave. Segundo o Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento (SIOP), há apenas um Plano Orçamentário (PO) que prioriza explicitamente a dimensão de gênero e da garantia dos direitos das mulheres indígenas dentro do Programa 2065 (Promoção e Proteção dos Direitos dos Povos Indígenas). Isso demonstra a invisibilidade da pauta enfrentada há longa data nas próprias instâncias indigenistas.

Além disso, esse mesmo Programa vem sofrendo há anos com a falta de investimentos (gráfico a seguir): com as dotações iniciais e orçamentos autorizados já em queda desde 2014, a execução orçamentária permanece baixa desde então, oscilando entre os 5 e 6 milhões de reais, salvo pequena exceção em 2016.  Os cortes orçamentários atuais, assim, vêm para terminar de sufocar os parcos esforços de incluir a luta das mulheres indígenas nas políticas públicas federais.

Enquanto o Estado revela sua incapacidade de garantir direitos, a I Marcha das Mulheres Indígenas mostra sua urgência nas ruas de Brasília, desafiando ao mesmo tempo às instância de poder e ao próprio movimento indígena. Em evento histórico, explicita que não há contradição entre lutar pelos direitos específicos das mulheres e lutar pelos direitos dos povos indígenas. Desmonta a narrativa que trata os indígenas em seus territórios como animais enjaulados, explicitando a prisão que o capital nos impõe em um modelo perverso de destruição. Acende, por fim, as faíscas de esperança diante da necropolítica de nossos tempos, quando ecoam as vozes alertas na Esplanada: tem gente que chegou há pouco tempo e tem data marcada para sair. Os povos indígenas, esses estão aqui há muito mais de 500 anos.

Diálogo com o tsunami da educação: números nada animadores

O novo contingenciamento do orçamento federal afeta a educação frontalmente. Com a suspensão de R$ 348 milhões, novamente, os livros didáticos ficaram em último plano. Considera-se dentro desta ação, de acordo como o SIOP/Ministério da Educação, os seguintes insumos: obras didáticas e literárias, de uso individual ou coletivo, acervos para bibliotecas, obras pedagógicas, softwares e jogos educacionais, materiais de reforço e correção de fluxo, materiais de formação e materiais destinados à gestão escolar, entre outros materiais de apoio à prática educativa, inclusive em formatos acessíveis.

Outra ação que sofreu contingenciamento grande foi a destinada a todos os processos de avaliação da aprendizagem, com corte de R$ 35 milhões este último mês. Aqui estão o ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio), o Encceja (Exame Nacional de Certificação de Competências de Jovens e Adultos), necessário para a certificação de estudantes da Educação de Jovens e Adultos; a aplicação do PISA (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes) para citar alguns.

Também estão contingenciados outros R$ 9,4 milhões da assistência ao estudante do ensino superior, que junto com a bolsa permanência, cujo orçamento está com mais de R$ 13 milhões bloqueados, tem como objetivo reduzir desigualdades, facilitando a permanência de estudantes de baixa renda ou oriundos da rede pública de educação básica, matriculados em cursos de graduação presencial ofertados por instituições federais e estaduais de ensino superior, inclusive estrangeiro.

Total bloqueado

Somando todos os decretos de contingenciamento, a educação já perdeu R$5,8 bilhões em 2019. Só a Coordenação de aperfeiçoamento de pessoal de nível superior (CAPES) teve este ano 18,69% de seu orçamento autorizado contingenciado, de acordo com o SIGA Brasil/Senado Federal, ou R$ 4,1 bilhões. Já o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) para a ação de fomento à pesquisa voltada para a geração de conhecimento, novas tecnologias, produtos e processos inovadores teve contingenciado 60% dos R$ 127 milhões autorizados para o ano.

Já a ação de apoio a projetos e eventos de educação, divulgação e popularização da ciência, tecnologia e inovação, do mesmo órgão, para a qual foi destinado R$ 12 milhões, teve R$ 8,9 milhões bloqueados, ou seja, 70% do total.

Não é segredo para alguém que este governo não valoriza o conhecimento e a educação, contudo, quando traduzimos os números orçamentários isso fica bem nítido: não há recursos para insumos pedagógicos destinados à educação básica, não há recursos para auxílio a estudantes de baixa renda, e não há incentivo para a produção científica ou mesmo para sua popularização. Seguimos ladeira a baixo.

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Por que o licenciamento ambiental no Brasil é um campo de batalha?

Apesar do tema ser desconhecido para a maioria das pessoas, faz pelo menos quatro anos que a revisão do Licenciamento Ambiental no Brasil se impõe como um campo de batalha.

De um lado do campo, se aliam o setor do agronegócio, interessado em ocupar mais terras; as grandes mineradoras, interessadas em abrir novas minas; e investidores interessados em leilões de energia e infraestrutura, em especial portos, ferrovias e rodovias, cuja demanda potencial está fortemente associada a estes mesmos setores do agronegócio e mineração. Não por acaso, todos estes atores têm seus interesses especialmente posicionados na Amazônia, onde também contam com o apoio de grupos políticos locais e regionais. No plano federal, possuem notório poder de influência no Congresso Nacional e junto ao governo, onde não só contam com incondicional apoio e incentivo como, na prática, representam a cabeça pensante de um planejamento refém dos seus interesses.

Também não por acaso, as obras mais polêmicas no Brasil, que alimentaram o discurso do licenciamento como “entrave ao desenvolvimento”, foram as grandes hidrelétricas na região: Jirau, Santo Antônio, Belo Monte. Em tempos de crise econômica profunda e de crise fiscal generalizada, a flexibilização e simplificação do licenciamento ambiental adere bem ao discurso fácil de que este é um passo necessário para a retomada de investimentos no Brasil.

Do outro lado do campo, com argumentos sólidos, mas desvantagem no jogo de forças político, estão as organizações socioambientalistas[1], especialistas no tema[2] e muitos gestores públicos do Ibama e de outros órgãos como a Funai, a ICMBio, a Fundação Palmares, e o IPHAM[3]. Para este conjunto de atores, as Leis e normas administrativas que norteiam o procedimento de licenciamento ambiental têm funcionado como o principal instrumento da Política Nacional do Meio Ambiente. Graças a ele, e apesar dos seus limites e fragilidades, o Estado brasileiro foi legal e institucionalmente munido de condições para que impactos fossem avaliados e para que medidas para evita-los, minimizá-los e compensá-los fossem tomadas pelo empreendedor. Em síntese, desta perspectiva, o licenciamento não é um entrave ao desenvolvimento. Ele é uma forma de garantir que o meio ambiente e as populações impactadas sejam considerados e que medidas sejam tomadas pelo empreendedor e também pelo Estado brasileiro[4].

Por isso, o debate sobre a necessidade de aperfeiçoar e até mesmo agilizar o licenciamento não deveria ser travado em campo de batalha, ao contrário, deveria ser encarado como um problema real que precisa ser reconhecido pela sociedade e enfrentado pelo governo e pelo empreendedor.

Mas ninguém quer pagar a conta

O setor privado alega que o licenciamento ambiental coloca no seu colo o papel que é do governo, de executar políticas públicas cujas demandas se acirram no contexto da implantação de grandes obras, que por sinal serão ainda mais dramáticos no atual quadro de crise econômica e social estrutural que estamos mergulhados. O governo, por sua vez, sem projeto e sob regime de servidão a um dos lados do campo, repete como um mantra que a solução é “menos Estado e mais investimento privado”.

É neste contexto que está prestes a ser votado no plenário da Câmara dos Deputados o relatório do Deputado Kim Kataguiri (DEM/SP), e MBL, criando uma Lei Geral do Licenciamento (Projeto de Lei N.º 3.729/2004).  A proposta, síntese das demandas do minero-agronegócio e sua infraestrutura associada, tenta desaparecer magicamente com o problema, por meio de dois artifícios combinados.

Um primeiro, endereçado ao empreendedor, que limita as condicionantes ambientais – que são as medidas, condições ou restrições sob responsabilidade do empreendedor – somente à área que sofre os impactos ambientais diretos da construção, instalação, ampliação e operação de atividade ou empreendimento[5]. Assim, muitos dos impactos indiretos que claramente serão atribuídos à obra estarão de fora das condicionantes e, logo, da conta do empreendedor. Para tentar garantir que esta fatura será mesmo reduzida, o relatório ainda constrói, como anexo, uma zona de delimitação que serve ao propósito de reduzir a contabilização dos impactos, mas que de fato, como já disseram especialistas no tema, não passa de uma “inserção ‘tosca’ de falsa objetividade, que na prática tem grande chance de desencadear judicialização, tendo em vista que os valores apresentados são absolutamente arbitrários e desprovidos de qualquer embasamento técnico” (Sánchez, L; Fonseca, A; Montaño, M. 2019).

Um segundo, endereçado ao governo, reduz a participação e estabelece prazos rígidos de manifestação por parte dos órgãos envolvidos que têm a atribuição de proteger os direitos dos povos indígenas (Funai), dos quilombolas (FCP), responsáveis pelas Unidades de Conservação (ICMBio) e pelo patrimônio histórico e cultural (IPHAM). O PL limita a manifestação destes órgãos: i) no caso de Terras Indígenas, somente àquelas com “portaria de declaração de limite publicada” e “portaria de interdição em razão da localização de índios isolados”; ii) no caso de terras quilombolas, somente quando estiverem tituladas; iii) no caso de Unidades de Conservação, somente àquelas de Proteção Integral.

Conforme levantamento do Instituto Socioambiental (ISA), a Funai deixaria de se manifestar sobre os impactos em 163 terras indígenas que se encontram hoje em processos de demarcação em fase de identificação. No caso dos territórios de remanescentes de quilombos, 87% em processo de reconhecimento, também seriam sumariamente desconsiderados. Além disto, os impactos em 523 Unidades de Conservação de Uso Sustentável também seriam desconsiderados, já que o PL somente considera a manifestação dos órgãos quando se trata de Unidades de Proteção Integral.

Ao corte sumário na competência dos órgãos envolvidos se adiciona a definição de prazos apertados para que se manifestem no processo de licenciamento, componente que adicionado à pressão política para celeridade dos processos, resultará em licenças por WO.

Rumos do desenvolvimento em disputa

Na visão oportunista, disfarçada de idílica, dos defensores da proposta, isso reduzirá o custo e o tempo de execução do projeto, atraindo novos investimentos. Mas na vida real a conta estará lá e a fatura será cobrada judicialmente, como hoje já ocorre e tende a se ampliar exponencialmente.

Em outras palavras, frente às jurisprudências consolidadas no Supremo Tribunal Federal e a Constituição Federal, os impactos ambientais continuarão a ser endereçados aos seus responsáveis, o que inevitavelmente se traduzirá em paralizações, atrasos e mais custos. Adicionalmente, as tensões e os conflitos provocados por obras com elevados impactos serão ainda mais amplificados em função da combinação destes mesmos dois artifícios – a limitação da área de impacto e a tentativa de expurgar territórios e grupos sociais do processo de licenciamento – amplificada por pressões sociais e por múltiplos impactos advindos do descontrole de processos migratórios, em face de uma população cada vez mais empobrecida e desesperada pela falta de alternativas econômicas.

Não existe caminho fácil para a desmobilização deste campo de batalha, pois ele é também uma síntese da disputa pelos rumos do desenvolvimento no país. Muitos dos potenciais investimentos que implicariam em significativos impactos ambientais, a exemplo da Ferrogrão, estão localizados em áreas e territórios frágeis ambiental e socialmente e, também, onde a presença do Estado já é reduzida e será cada vez mais pálida.

Colocar os diversos e elevados impactos de muitos destes investimentos na conta, de fato, pode significar um preço alto demais a ser pago. Não colocá-los tampouco fará com que eles desapareçam e não sejam cobrados.

[1] – Para uma visão aprofundada dos equívocos e riscos do atual relatório, apresentado pelo Deputado Kim Kataguiri, ver ISA. NOTA TÉCNICO-JURÍDICA: 3.ª VERSÃO DO TEXTO-BASE PROJETO DE LEI N.º 3.729/2004.

[2]  – Para um posicionamento de pesquisadores e cientistas sobre o tema ver Projeto de Lei Geral do Licenciamento Ambiental: análise crítica e propositiva da terceira versão do projeto de lei à luz das boas práticas internacionais e da literatura científica. Sánchez, L; Fonseca, A; Montaño, M. 2019

[3] – Para o posicionamento do IPHAM referente à proposta em tramitação de Lei Geral do Licenciamento ver NOTA TÉCNICA nº 3/2019/CNL/GAB PRESI.

[4] – Embora as medidas mitigadoras e de compensação no âmbito do Licenciamento sejam endereçadas ao empreendedor, é necessário considerar que a presença do Estado em áreas a serem impactadas deveria ser um desafio de planejamento do desenvolvimento regional e local, anterior à própria obra e ao longo do processo de licenciamento.

[5] – Um exemplo conhecido é o barramento de um rio para geração de energia hidrelétrica. Seus efeitos se espraiam para além da área de influência direta em função, entre outras coisas, da redução do fluxo de água, afetando comunidades que vivem da pesca ao longo deste rio.

 

A quem interessa sabotar os laboratórios públicos

O ministério da Saúde (MS) suspendeu, nas últimas três semanas, contratos relativos a Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs) para a produção de 19 medicamentos, muitos dos quais de alto custo, distribuídos gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A notícia é preocupante, uma vez que coloca em risco o acesso gratuito e universal a esses medicamentos pela população.

Também é inquietante a possibilidade de desmonte de uma política pública que visa aumentar a capacidade produtiva e tecnológica dos laboratórios públicos brasileiros para atender demandas estratégicas do SUS. As PDPs representam potencial de grande economia e de independência com relação às flutuações do mercado farmacêutico e ao preço estabelecido pelas empresas privadas multinacionais.

O jornal O Estado de S.Paulo relata que o ministério da Saúde é categórico ao informar o encerramento das parcerias. A Associação dos Laboratórios Oficiais do Brasil (Alfob), que representa um dos protagonistas das PDPs ao lado do setor privado, assegura que a decisão ocorreu de modo unilateral e os laboratórios foram pegos de surpresa.

Remédio mais caro

Contudo, em sua “nota de esclarecimento”, o ministério da Saúde afirmou que, para garantir o abastecimento da rede, vem realizando compras de medicamentos por outros meios previstos na legislação. A medida, portanto, não afetaria o atendimento à população. Além disso, a maior parcela das PDPs suspensas não chegou à fase de fornecimento do produto.

A questão é que o impacto da suspensão dos contratos se dará, principalmente, no longo prazo. O Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) estimou, com dados obtidos via Lei de Acesso a Informação (LAI), o gasto do ministério em 2018 com alguns medicamentos objeto das PDPs suspensas, seja por compra centralizada ou judicialização. Somados, eles representam cerca de R$ 2,1 bilhões, como mostra a tabela a seguir:

Os dados mostram que estes medicamentos já são adquiridos pelo ministério da Saúde e disponibilizados pelo SUS, mas com um custo alto. Caso as PDPs envolvendo estes produtos sejam bem-sucedidas, é possível conter custos e diminuir a dependência de produtores estrangeiros. O mercado farmacêutico, especialmente para este tipo de produto, é dominado por grandes empresas multinacionais.

Nas palavras do próprio ministério da Saúde, a redução da vulnerabilidade do SUS e o cumprimento dos seus princípios exigem, necessariamente, o aproveitamento do potencial econômico e social do complexo econômico industrial da saúde. Isto se viabiliza, dentre outras estratégias, pela utilização do poder de compra do Estado na área. Sendo assim, é importante a manutenção e constante avaliação de um programa que garante esta política de forma prática, como é o caso das PDPs. Cabe notar que o Departamento do Complexo Industrial e Inovação em Saúde foi extinto na reformulação do MS realizada em 2019, mas suas atribuições continuam na Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde (SCTIE).

As PDPs têm uma finalidade louvável de atrelar a política de desenvolvimento industrial ao bem- estar social, ao usar o poder de compra do Estado para fomentar o desenvolvimento e a fabricação em território nacional de produtos estratégicos para o SUS, bem como a sua sustentabilidade tecnológica e econômica a curto, médio e longo prazos.

Como toda política pública, deve ser realizada de forma transparente e sob controle social, para que se verifique se esta finalidade está de fato sendo alcançada. O ministério pode e deve suspender contratos que não atendam aos objetivos e prazos firmados, seguindo as recomendações dos órgãos de controle público. No entanto, é importante que trabalhe de forma harmônica e transparente com os laboratórios públicos nacionais, que têm papel fundamental para garantir a independência produtiva e tecnológica do país.

Como funcionam as PDPs?

As Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo visam a transferência de tecnologia de laboratórios privados para laboratórios públicos nacionais. Em troca, o ministério da Saúde oferece parcela (que pode chegar a até 100%) do mercado público de um medicamento específico, durante um período determinado. Este processo de transferência de tecnologia e produção nacional pode se estender por um prazo de 10 anos.

Após a submissão da proposta, a PDP passa por quatro fases. A fase I, de apresentação e análise da viabilidade da proposta e celebração do termo de compromisso entre o MS e a instituição pública, é chamada de “Proposta de projeto de PDP”. Na etapa seguinte, chamada de “Projeto de PDP”, ocorre a implementação, e nela ainda não há fornecimento direto do produto ao MS. Na fase III, chamada de “PDP”, ocorre a execução do desenvolvimento do produto, transferência e absorção de tecnologia de forma efetiva e celebração do contrato de aquisição do produto estratégico entre o MS e a instituição pública. E a fase IV, “Internalização de tecnologia”, é a de conclusão da transferência e absorção da tecnologia, quando há plenas condições para produzir o medicamento em laboratórios públicos.

De acordo com o ministério, existem 87 PDPs vigentes. Elas foram iniciadas em 2010, mas foi em 2014 que seu funcionamento foi consolidado com a Portaria/MS 2531/2014. Em 2017, a Portaria de Consolidação de 2017 amalgamou a legislação que rege as parcerias. Trata-se, portanto, de política recente e não há qualquer razão técnica de conhecimento público que justifique a sua abrupta interrupção. Fica a pergunta: a quem interessa o fim das PDPs?

Mortes no trânsito: governo não prioriza mobilidade no orçamento federal

Relatório da Organização Mundial de Saúde (OMS) noticia que o Brasil ocupa o quinto lugar entre os países com mais mortes no trânsito, atrás apenas da índia, China, Estados Unidos e Rússia. Estamos também entre as 10 nações onde ocorrem 62% das 1,2 milhão de mortes por acidente de trânsito, além de outras 50 milhões de pessoas feridas.

Na maioria das vezes, o “acidente” é causado pela ausência de fiscalização e pela falta de ações de educação, ou seja, uma responsabilidade compartilhada entre Estado e cidadãos usuários de automóveis que desrespeitam o Código de Trânsito. O orçamento federal deveria prever recursos para ajudar a melhorar esses índices trágicos, que afetam também a economia.

Segundo o Observatório Nacional de Segurança Viária, em 2016 (último ano com dados disponíveis), o Brasil perdeu 37 mil pessoas no trânsito e outras 600 mil ficaram com sequelas. Além de onerar o Sistema Único de Saúde (SUS), há consequências para a economia de maneira geral, pois a maior parte das pessoas que perdem a vida ou ficam com sequelas permanentes estão na idade economicamente ativa, são jovens. O mesmo Observatório, utilizando de dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), diz que o Brasil gasta cerca de R$ 52 bilhões por ano com os acidentes, isso com dados conservadores, pois se considerar mortes e invalidez, pagamento de leito hospitalar, previdência, seguro, pode-se chegar tranquilamente a R$ 100 bilhões. E, ainda, 60% dos leitos hospitalares do SUS são ocupados com os acidentes.

Por compromisso com a Década da Segurança Viária (2011-2020), o Brasil teria de reduzir em 50% o número de mortes no trânsito até 2020. No entanto, a um ano do prazo estamos bem longe do cumprimento do compromisso, pois pelos dados disponíveis, entre 2011 e 2016 os acidentes reduziram cerca de 15% apenas. Além disso, ao invés de aprofundarmos medidas de segurança, fiscalização, humanização e educação, o governo atual caminha em sentido contrário, dizendo que o mais importante é o “prazer em dirigir”, e para isso pode-se trafegar em velocidades mais altas, sem o risco de cair na “indústria da multa”. Até a obrigatoriedade de cadeirinha especial para crianças foi questionada pelo presidente da república.

Orçamento em queda

Diante deste quadro, além da proposta estapafúrdia de flexibilização das regras de trânsito propostas pelo governo, há tempos a União vem desmantelando o Ministério das Cidades, especialmente após a aprovação da Emenda do Teto dos Gastos (EC 95) em 2016. Ação que congelou o orçamento, principalmente a parte não obrigatória, ou discricionária, que era a totalidade das ações desse Ministério. E em 2019, o governo o extinguiu, incorporando suas secretarias no atual Ministério do Desenvolvimento Regional e Ministério da Infraestrutura.

Para se ter uma ideia da falta de priorização das ações voltadas para as cidades, dentre elas mobilidade e trânsito, além de saneamento, habitação e demais ações da pauta urbana, o orçamento executado pelo MCidades em 2018, incluindo Pago e Restos à pagar pagos, foi 3,5 vezes menor do que em 2015: caiu de 1,58% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2015 para apenas 0,45% do PIB em 2018.

O Programa Mobilidade Urbana e Trânsito, que compõe parte desse orçamento e hoje está ligado à Secretaria de Mobilidade e Serviços Urbanos do Ministério do Desenvolvimento Regional, é o que traz, ou deveria trazer recursos para educação e fiscalização, além de moderadores de tráfego dentre outros. Vejamos a evolução da dotação inicial orçamentária, entre 2015 e 2019, que mostra uma redução de recursos de 7,6% nesse período:

Se formos ao nível das ações, separando apenas aquelas que se relacionam com educação, fomento à pesquisa para qualificação, moderação de tráfego, prevenção de acidentes e fiscalização veremos que, mesmo com orçamento mais robusto em anos anteriores, poucas eram executadas. E hoje não possuem orçamento, praticamente.

Vejamos na tabela abaixo por ação, de 2015 a 2019. Apesar de terem dotações iniciais, em 2015, apenas 10% foi executado, e somente em educação (Ação 4414), nas demais, nada foi feito. Em 2016, a ação Educação para a cidadania no trânsito nem sequer apareceu e nada foi executado; em 2017, com baixíssimo orçamento e mesmo assim, a ação destinada à educação teve sua execução em menos da metade dos parcos recursos. Em 2018 e 2019 não há nada. Então, podemos ver, por esta pequena amostra, que as ações de educação, moderação, modernização e fiscalização não são prioridades. E não é apenas para o governo federal, pois estas ações também poderiam ser realizadas de forma descentralizada, por projetos, mas os estados e municípios também não se interessam.

No entanto, há inúmeras ações não orçamentárias, financiadas pela Caixa Econômica Federal e BNDES, para obras de infraestrutura novas, que são sempre acionadas. Nossas cidades estão sempre em obra, mas não obras de manutenção, porque estas também são insuficientes, veja-se os casos de queda dos viadutos em Brasília e em São Paulo e a interdição de toda a plataforma da rodoviária do Plano Piloto em Brasília, por não receber manutenção.

Os gestores estão sempre atrás de novas e grandiosas obras rodoviaristas, para mais carros, sem pensar em formas de humanização das cidades, no meio ambiente, ou mais espaços para pedestres, ciclistas, pessoas com mobilidade reduzida. Querem pontes, viadutos, carros. Este é o tal caminho do desenvolvimento sem pensar no mundo que estamos a construir.

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Contingenciamento: quais setores sofreram cortes de orçamento?

R$ 31 bilhões. Este é o valor contingenciado pelo governo Bolsonaro até agora. Mas para onde foram direcionados os cortes exatamente? O Portal de Orçamento do Senado (Siga Brasil) mudou recentemente a forma de divulgar os contingenciamentos, o que permite responder a essa pergunta.

Contingenciamento é prática costumeira dos governos e corresponde ao ajuste das despesas ao volume de receitas arrecadado pelo Tesouro. O encontro de contas acontece por meio dos Decretos de Programação Orçamentária. Até o momento, três decretos foram emitidos pelo governo, nos meses de fevereiro, março e maio.

O problema é que esses decretos contêm informações somente referentes aos cortes por órgão, ou seja, por Ministério, o que torna a transparência “opaca”, na medida em que não é possível visualizar em quais  políticas públicas os ajustes foram feitos.

Desde junho isso mudou. O Siga Brasil passou a divulgar os dados do contingenciamento a partir das classificações orçamentárias (programa, ação, plano orçamentário etc.), tornando possível maior controle social. Na presente nota, todos os dados foram extraídos desse portal, no dia 12 de junho de 2019, com seus valores indexados pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).

É possível agora saber, por exemplo, quais programas foram atingidos com os cortes na Educação e os valores exatos. O levantamento do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) revela que o programa de Bolsa Permanência no Ensino Superior e o de Apoio à Infraestrutura da Educação Básica tiveram 100% de seus recursos congelados. O programa Minha Casa Minha Vida e as políticas de proteção aos direitos indígenas também estão entre os que mais sofreram com os cortes, como veremos a seguir.

Analisando de maneira ampla, os contingenciamentos pouparam áreas governamentais que historicamente possuem muitos privilégios, com o Legislativo e o Judiciário, e atingiram fortemente áreas relacionadas com a garantia de direitos humanos, que já vinham sofrendo com a diminuição de recursos nos últimos anos. Com as atuais prioridades do governo e o Teto de Gastos vigente, poucos serão os recursos para a garantia de direitos das minorias brasileiras.

Contingenciamentos por Função: uma visão abrangente dos cortes governamentais

O contingenciamento afetou praticamente todas as áreas de atuação da União (chamadas de Funções), com exceção das funções Legislativo, Judiciário, Saúde e Reserva de Contingência, como pode ser observado na Tabela 1. Contudo, alguns setores foram mais afetados do que outros.

Quando analisamos as funções que mais contribuíram para o total contingenciado (ver a coluna P2 da Tabela 1), observamos que cerca de um terço foi direcionado a políticas sociais (educação, trabalho, assistência social, direitos da cidadania, segurança pública, habitação, saneamento e organização agrária, entre outras). Entre essas, o maior corte foi na Educação, que sozinha representou 18% do total contingenciando, evidenciando o pouco caso desse governo em relação à realização dos direitos constitucionais.

Outra função atingida foi a de Encargos Especiais, que perdeu cerca de R$ 8,1 bilhões, equivalentes a 27% do total contingenciado. Os maiores cortes nessa função, que aglutina gastos governamentais não-finalísticos, ocorreram na participação acionária do governo em empresas. As empresas atingidas foram a Infraero, a Eletrobrás, a Emegepron, a Telebrás, a Pré-Sal Petróleo, as Companhias Docas do Rio Grande do Norte e de São Paulo e os Correios.

O maior contingenciamento de participação da União no capital de empresas foi o da Eletrobrás, contabilizando R$ 3,5 bilhões de reais, 11,27% do total contingenciado pelo governo em 2019.

E, finalmente, a Defesa também viu seu orçamento encolher em R$ 5,8 bilhões, ou seja, 19% do total contingenciado. Essa área teve aumento de gastos governamentais entre 2014 e 2018, principalmente no que se refere a despesas com pessoal. O contingenciamento da Defesa Nacional, porém, não focou no gasto com pessoal, e sim em investimentos de material bélico, como detalha reportagem do site DefesaNet.

Quando se analisa o que a redução do orçamento representa em relação ao que havia sido inicialmente previsto (ver coluna P1 na Tabela 1), vê-se que a função mais afetada pelos cortes foi a Habitação: o contingenciamento levou mais de 90% dos seus recursos. Tal medida significou, na prática, o desaparecimento do Programa Minha Casa Minha Vida, que está passando por um processo de revisão e foi noticiado que só dispõe de recursos até julho.

A segunda área mais atingida é a dos Direitos da Cidadania, que viu seu orçamento encurtar em 27%. Neste setor estão as políticas relacionadas com defesa dos direitos de minorias e setores vulneráveis da sociedade, como mulheres, população indígena e negra, migrantes, consumidores e pessoas com deficiência. Os programas que mais sofreram com cortes nessa função foram “Justiça, Cidadania e Segurança Pública”, e “Proteção e Promoção dos Direitos dos Povos Indígenas”, que tiveram seus orçamentos contingenciados em 44,9% e 32,86%, respectivamente.

Vamos analisar mais profundamente três áreas relacionas com a garantia de direitos que sofreram com os cortes: educação, políticas para mulheres e políticas para os povos indígenas.

Educação: ações tiveram 100% de recursos contingenciados

A execução orçamentária da educação vem caindo em tempos recentes. Entre 2014 e 2018, a queda foi de 13,5% em termos reais, como pode ser observado no Gráfico 1. No primeiro semestre de 2019, o contingenciamento retirou 5% do que foi autorizado inicialmente.

Quando da aprovação da Emenda 95, conhecida como Teto dos Gastos, houve a promessa de que os setores de Saúde e de Educação não seriam afetados. Mas não é o que os números dizem no caso do MEC.

No âmbito da Função Educação, algumas ações foram zeradas, sendo 100% contingenciadas. Se tal medida não for indicador de que não realizarão as políticas, que outros sinais precisarão dar para que se entenda quais as intenções do governo? Vejamos alguns exemplos.

A ação “Apoio à Infraestrutura da Educação Básica”, direcionada para implantação e adequação de estruturas esportivas escolares, é um exemplo de contingenciamento total dos recursos autorizados. De acordo com o IBGE, em apenas 27% das cidades brasileiras escolas possuem campo de futebol, ginásio, pista de atletismo ou piscina. O Brasil sediou as Olimpíadas com apenas 43 pistas de atletismo e 265 piscinas em escolas, em todo o país. Além disso, as desigualdades regionais ficam explícitas, visto que a maior parte dos equipamentos se concentra nos estados de Santa Catarina, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Ceará e Paraná. Nos estados de Rondônia, Amapá, Pernambuco e Mato Grosso do Sul, não há escolas estaduais com equipamentos esportivos. Apesar disso 100% dos recursos estão contingenciados.

Outra ação com 100% de corte é a “Concessão de Bolsa Permanência no Ensino Superior”. O governo já havia enviado orçamento zerado para esta ação, contudo, houve um esforço no Congresso de se fazer emenda do relator e de comissão para garantir a permanência de indígenas, quilombolas e estudantes de baixa renda nas universidades, que teve todo o recurso suspenso. Como este é um gasto necessário todos os meses, na prática estas bolsas não atenderão ao seu público. O próprio portal do MEC diz que o programa foi instituído para minimizar as desigualdades sociais, étnico-raciais e contribuir com a permanência e diplomação de estudantes em situação de vulnerabilidade socioeconômica. O fato de não se destinar recursos para a ação é um sinal de que as desigualdades vão se ampliar e isso não é preocupação dessa gestão.

As demais ações com 100% de corte relacionam-se com os exames de avaliação da educação básica, Educação de Jovens e Adultos (EJA), educação profissional, dentre outras. Ou seja, nem aquilo que o governo diz priorizar está isento de cortes, como educação profissional, por exemplo. Além disso, cortar recursos da EJA, que é a parte mais fragilizada da educação, é vulnerabilizar ainda mais os vulneráveis, pois sem conclusão da educação básica, a maioria entra para as estatísticas do desemprego.

Casa da Mulher Brasileira teve 54% dos recursos contingenciados

O Inesc vem denunciando há algum tempo o progressivo desmonte das políticas para as mulheres em função de diversas medidas de austeridade, como contingenciamentos e a Emenda Constitucional 95, que congelou as despesas da União por 20 anos. Assim, entre 2015 e 2018, os gastos da Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres (SPM) caíram 65% em termos reais.

Em 2019, foram autorizados R$ 48,2 milhões para o Programa “Políticas para as Mulheres: Promoção da Igualdade e Enfrentamento à Violência”, praticamente metade do que foi alocado em 2017. Destes, R$ 21,5 milhões seriam para o Disque 180, mas foram cortados R$ 4,5 milhões. Esse programa – que é a principal porta de entrada da política de enfrentamento a violência, o número para o qual todas as brasileiras podem ligar em caso de sentir-se ameaçada ou de ser agredida – teve uma redução de 20,7%.

Para se ter uma ideia comparativa, em 2017 o recurso autorizado para o Disque 180 foi de R$ 36,4 milhões e o executado de R$ 31,7 milhões, o que corresponde a 87% de execução. Em 2017 foi autorizado o montante de R$ 39,4 milhões e executado R$ 30,8 milhões (78% de execução). Em 2018 nada foi autorizado, nem gasto.

O Inesc também divulgou que o Relatório Balanço Disque 180, elaborado pelo Governo, não está mais disponível ao público. Na pesquisa que realizamos em 2017, onde citamos o Balanço de 2016, observamos que, em 10 anos, foram 5 milhões de acessos ao serviço, com uma média anual de 500 mil ligações. Tais dados revelam a importância do programa para combater a violência contra as mulheres.

Em relação à Casa da Mulher Brasileira, equipamento fundamental para abrigar mulheres em situação de risco, foram contingenciados 54% dos recursos, já insuficientes, de R$ 1,3 milhão: hoje, são sete unidades construídas que necessitam de verbas para manutenção, e apenas duas em funcionamento, de uma promessa de 27 casas, uma por Estado, presente no PPA – Plano Pluri Anual 2016-2019.

Orçamento Indígena

No que tange aos povos indígenas, as principais ações do programa “Proteção e Promoção dos Direitos dos Povos Indígenas” também sofreram com os contingenciamentos, à exceção da ação destinada à promoção da saúde indígena – que, no entanto, tem passado por outra ordem de desmontes. Tais cortes orçamentários compõem o quadro de etnocídio em curso no país: eles atingem tanto a garantia aos direitos territoriais indígenas como esvaziam políticas de participação, de incentivo à autonomia econômica das comunidades, preservação do patrimônio cultural indígena, além de políticas elaboradas para grupos específicos como os grupos indígenas de recente contato.

Nesse contexto, uma política que sofreu com o contingenciamento foi a “Preservação Cultural dos Povos Indígenas”, destinada a salvaguardar o patrimônio cultural indígena por meio de pesquisas, divulgação e documentação. O corte atingiu 34% de seu orçamento autorizado. Essa política vem apresentando queda constante de seus gastos desde 2016 (ver Gráfico 3). Na ação “Direitos Sociais e Culturais e a Cidadania”, relacionada a instâncias de monitoramento, acompanhamento e participação nas políticas voltadas aos povos indígenas, o corte foi de 31%.

Nessa ação, chama atenção a retirada de R$ 161 mil dos parcos R$ 475 mil autorizados para o Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI), principal órgão consultivo das políticas públicas para os povos indígenas, cujas reuniões estão suspensas desde 2016. Junto com as demais instâncias participativas, o conselho sofreu recentemente o ataque do governo Bolsonaro por meio do Decreto 9.759/19, que extinguiu os órgãos colegiados da esfera pública. A liminar concedida pelo STF no dia 13 de junho suspendeu o efeito da lei para instâncias citadas por lei, como é o caso CNPI, porém  seu esvaziamento segue em curso com o minguar de recursos.

A ação “Gestão Ambiental e Etnodesenvolvimento” sofreu contingenciamento de 35%. Trata-se de ação relacionada à concretização da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI), alicerçada nas reivindicações indígenas e que promove autonomia produtiva para as comunidades em consonância com suas tradições culturais. É também com recursos desta ação que a FUNAI deve fazer o acompanhamento do componente indígena no licenciamento ambiental. O Plano Orçamentário destinado a esse acompanhamento teve 47% de seus recursos contingenciados.

Os cortes de recursos não surpreendem, pois o atual governo advoga sem pudores a expansão do agronegócio e da mineração em terras indígenas. A fragilização de projetos econômicos alternativos como os promovidos pela PNGATI e dos procedimentos de licenciamento de empreendimentos são imprescindíveis para esse projeto.

Ações importantes para as garantias territoriais indígenas também sofreram cortes. A ação “Proteção aos povos indígenas de recente contato” foi contingenciada em 34%, consolidando o desmantelamento da antes admirada política brasileira de proteção aos povos de recente contato e em isolamento voluntário. A falta de investimento em tais políticas tem aumentado as invasões de garimpeiros e madeireiros a esses territórios, muitas vezes resultando em mortes por doenças e assassinatos de grupos indígenas.

Da mesma forma, é preocupante o corte de 38% na ação “Regularização, Demarcação e Fiscalização de Terras Indígenas” em um momento em que os conflitos fundiários e os ataques aos territórios indígenas atingem níveis alarmantes. Os cortes orçamentários caminham junto com as iniciativas em curso de desmontar a demarcação e fiscalização das Terras Indígenas, tentando transferi-las para órgão com interesses claramente opostos à sua realização, o MAPA. Tais iniciativas ocorreram primeiramente por meio da MP 870 e, depois de sua derrota no congresso, pela edição de nova medida provisória. Além disso, se olharmos a execução financeira das ações agora contingenciadas, vemos que há necessidade de recomposição orçamentária para que elas saiam do papel e que, apesar do breve respiro de 2018, a opção pelo contingenciamento prejudicará ainda mais a necessária recuperação da Funai.

 

Uma lei que protege a infância, protege a sociedade inteira

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completa 29 anos neste dia 13 de julho e muito pouco se conhece dele. Embora a sociedade se divida entre os que o defendam e os que o condenam, uma parcela ínfima da população leu este marco jurídico tão importante para o Brasil, grande referência para o mundo.

Elaborado a muitas mãos, o ECA é uma lei que nasce com uma essência democrática, levando em consideração perspectivas de especialistas de diversas áreas (direito, educação, sociologia, antropologia, psicologia…) e, fundamentalmente, contou com a participação de crianças e adolescentes de todo o Brasil. O Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) também participou ativamente na mobilização da população, unindo esforços ao Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR) e incidindo na redação de propostas.

Nasce com o ECA o princípio da proteção integral. A ideia é garantir que crianças e adolescentes tenham um desenvolvimento pleno e feliz, com reais chances para que suas potencialidades encontrem ecos na vida.

O Estatuto cria e estrutura o Sistema de Garantia de Direitos com o princípio da articulação entre as políticas públicas para assegurar o que está escrito na lei, prevenir as suas violações e garantir a responsabilização dos violadores. Fiscalizar o poder público torna-se uma tarefa obrigatória para quem quer garantir a efetivação do que está preconizado no ECA.

ECA sob ataques

Em tempos de recrudescimento da violência do Estado, seus efeitos são, não apenas o embotamento de talentos, mas a morte física e simbólica de humanidades. Não se trata apenas de uma afronta às pessoas, a violência do Estado é nitidamente o desprezo deliberado pela lei. Exemplos temos de sobra.

Estamos entre os países que mais mata adolescentes no mundo. Segundo o Unicef, morrem 31 crianças e adolescentes assassinados por dia no Brasil, sendo que a grande maioria das vítimas são meninos negros, moradores de periferia e que se encontram fora das escolas. Muitas destas mortes são provocadas pela ação violenta de uma polícia racista e despreparada.

O estímulo ilimitado ao porte de armas é, sem dúvida, um perigo real às vidas de populações já desprotegidas.

No campo da educação, por sua vez, ao se proibir ou inibir o trato de temas como sexualidade e identidade de gênero na escola impede-se a realização de uma das estratégias mais importantes para o enfrentamento à violência sexual, um fenômeno que tem promovido estragos irreversíveis a uma população imensa de crianças e adolescentes. A educação de gênero tem o objetivo de educar para a compreensão sobre diferenças e construir uma cultura na qual o respeito seja a tônica principal.

Ainda na área da educação, o atual governo defende disciplina e hierarquia em detrimento do livre debate como se o exercício da troca de ideias fosse doutrinação. Ledo engano. A doutrinação se dá no silenciamento das vozes e na imposição de uma verdade única.

Quanto aos adolescentes envolvidos com atos infracionais, encontramos uma realidade estarrecedora. O governador do Rio de Janeiro Wilson Witzel, por exemplo, declarou que ao serem liberados da medida socioeducativa de privação de liberdade, 400 adolescentes “não poderão frequentar escolas” por serem ‘problemáticos’. Tal pronunciamento contradiz os preceitos do ECA e do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo que apontam a educação como o eixo mais importante para melhorar a relação adolescente/sociedade e determina que todas as políticas públicas devem se articular para acolher os egressos do sistema. Problemático é um governo que não cumpre o seu papel e trata com descaso uma juventude abandonada várias vezes pelo poder público.

Trabalho infantil

O ECA é incisivo quanto à proteção contra o trabalho infantil, e defende a profissionalização como direito. Ignorando o Estatuto, o presidente da república afirma ser a favor do trabalho infantil, talvez uma das mais graves violações de direitos. É no trabalho precoce que crianças perdem a infância, são mutiladas, exploradas, ficam expostas a doenças laborais, muitas trabalham em condições análogas a de escravos. Mesmo o trabalho glamoroso traz estresse e prejuízos à saúde física e mental. O trabalho infantil interessa principalmente a quem lucra com ele. Crianças que trabalham perdem o tempo de brincar, de ir para a escola, praticar esportes, fazer teatro, ler, soltar pipa, fazer palavras cruzadas, correr e se relacionar com seus pares.

Uma lei que protege a infância em sua plenitude protege a sociedade inteira. Vivemos em comunidade e uma parcela não pode ser violentada sem que o conjunto sofra. Sem lei estamos entregues à barbárie, sem referências para a construção de uma sociedade ética e para a dignidade humana.

Finalizo com as palavras do Jonhatan (Itapoã, 11 anos), “o ECA veio igualar ricos e pobres, pretos e brancos e garantir que todos nós tenhamos os mesmos direitos. O ECA é uma conquista nossa!”. Lutemos por ele.

Johnatan Alves do Nascimento, 11 anos, estudante do 6º ano, fala sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em oficina no Centro de Ensino Fundamental Dra. Zilda Arns (Cef Zilda Arns) no Itapoã, Brasília.

>>> Leia os outros textos da parceria Inesc e Armandinho:

A infância não pode esperar: criança não trabalha!

Educação pública numa democracia moribunda

O Estatuto é um só, as infâncias são muitas

 

 

Assassinato de reputação: sigamos em busca de dissensos democráticos

Não há consenso no debate acadêmico sobre a liberdade de expressão e seus limites. Há relativo consenso, no entanto, de que este debate se organiza em torno de duas proposições distintas, protagonizadas por Ronald Dworkin, por um lado, e Jeremy Waldron, por outro. Dworkin defende que a liberdade de expressão deve ser garantida de modo amplo, não devendo ser cerceada pois todo argumento pode ser combatido por meio de argumentos contrários. Seria próprio ao regime democrático o dissenso e, portanto, a liberdade na expressão seria fundamental inclusive para que a coletividade disponha de referências sobre a multiplicidade de visões de mundo. Nesta perspectiva, caso se limitem certos discursos, qualificando-os como odiosos, perder-se-ia a oportunidade de argumentar contrariamente a eles, carecendo assim da possibilidade de justificação da recusa de certos modos de agir e de se relacionar dos quais se discorda em princípios morais.

Contrariamente, a proposição de Waldron é a de que o discurso de ódio, por exemplo, não deve ser entendido como livre expressão do pensamento, já  que carregaria em si potencial danoso e decorreria em efeitos materiais lesivos a seus destinatários, devendo, portanto, ser evitado por meio de cerceamentos à liberdade de expressão.

Ainda que não seja fácil dirimir tais controvérsias acadêmicas e na interpretação do Direito, fato é que o Código Penal estabelece limites para a liberdade de expressão, incidindo sobre a tipificação de enunciados como ilícitos passíveis de julgamento e de reparação na forma da lei. É o caso dos crimes contra a honra, que violariam o direito à dignidade. São três os tipos penais em nosso ordenamento jurídico: a calúnia (atribuição de crime sem provas); a difamação (disseminação de representações desqualificadoras sobre alguém, violando assim sua integridade moral ou reputação), e a injúria (violação da reputação de um sujeito decorrente da anunciação direta de uma ofensa dirigida à sua pessoa). A existência destes tipos penais, contudo, não resolve a controvérsia sobre os limites na liberdade de expressão, já que pressupõe o julgamento da expressão sobre alguém após sua  enunciação.

 O discurso de ódio, o governo Bolsonaro e o assassinato de reputação

O discurso de ódio não é de fácil tipificação. A fronteira entre o direito à expressão de opinião e o direito a não ser ofendido pela opinião de outra pessoa, ou seja, o caráter subjetivo da injúria, recai também sobre a tipificação do discurso de ódio contra grupos sociais. Existem divergências epistemológicas sobre a pertinência ou não da limitação do direito à expressão, em tempo em que também se faz necessário refletir sobre os efeitos decorrentes das palavras dirigidas com intencionalidade de provocar danos.

Exemplo de tipificação do discurso de ódio é a injúria racial, pois por meio das palavras se coloca em ato o racismo, discriminando por meio da violação dos direitos associados à honra e à dignidade. Importante mencionar que o discurso de ódio, a difamação, a calúnia e a injúria racista podem decorrer, inclusive, em outras formas de discriminação, tais como perda de emprego por demissão ou mesmo abandono do cargo por assédio, rompimento de vínculos com pessoas, grupos e/ou instituições decorrentes da deterioração da reputação, entre outros. Recentemente, o entendimento jurídico dos limites da liberdade de expressão foi estendida, na lógica da tipificação do racismo e os modos como pode se praticar por meio da fala, para a população LGBT, em importante decisão da suprema corte brasileira. No geral, no entanto, o discurso de ódio se mantém como de difícil tipificação, e contamos com uma proposição legislativa que tramita no Congresso Nacional, apresentada pela Deputada Federal Maria do Rosário.

Podemos refletir sobre este dissenso no entendimento do discurso de ódio a partir da prática do assassinato de caráter ou de reputação. No contexto estadunidense, a expressão “assassinato de caráter” tem sido acionada para se referir a expressões de difamação agravadas, que consistiriam em tentativa de destruir a representação moral de um sujeito ou de grupos sociais por meio de narrativas depreciativas ao seu respeito. O assassinato do caráter é praticado por meio de uma campanha de difamação dirigida a uma pessoa, instituição ou a um grupo social. Trata-se de ação deliberada, ou seja, premeditada e intencionada, visando o prejuízo do objeto da difamação.

O assassinato de reputação envolve a disseminação de informações inverídicas, e/ou distorcidas, visando consequências na lógica da perda de outros direitos, tais como trabalho, participação política, liberdade de associação, entre outros. A pessoa, grupo ou instituição que se torna objeto de uma campanha para que seu caráter seja destruído pode perder imediatamente direitos, sem que haja tempo hábil para a verificação do caráter ilícito das expressões que a condenaram ao descrédito público. Isso significa que estamos diante de uma prática organizada para o agenciamento da precarização do gozo de outros direitos, tendo como consequências discriminações não passíveis de reparação por meio indenizatório senão como medidas paliativas diante dos agravos decorrentes da campanha difamatória. Como reparar a destruição de reputação de uma pessoa, por exemplo, que decorreu na impossibilidade de inserção no mercado de trabalho, ou que se materializa em conteúdos que permanecerão durante muitos anos no ciberespaço?

Como efeitos das campanhas de difamação voltadas para o assassinato de caráter ou de reputação, podemos citar o rompimento de vínculos sociais, a privação do direito à participação em condição isonômica em organizações e agravos à saúde mental, no caso de sujeitos e grupos sociais. O assassinato de caráter de uma pessoa ou de um grupo social, no limite, pode decorrer na perda do direito à vida. No caso de instituições, consequências decorrentes das campanhas de difamação podem se traduzir na perda de oportunidades que colocam em risco a manutenção da organização, levando à sua liquidação, ou no caso de instituições públicas, à supressão da manutenção de setores, programas e projetos.

Podemos identificar que o governo Bolsonaro adota a estratégia do assassinato de reputações como forma de legitimar seus próprios posicionamentos políticos. A campanha política fora organizada em torno da destruição da reputação não apenas do ex-presidente Lula e da ex-presidenta Dilma, mas também do candidato Fernando Haddad. Em uma perspectiva mais ampla, o bolsonarismo tem apostado no assassinato de reputação de ativismos políticos, no geral, e mais especificamente daqueles voltados à defesa dos direitos relativos à terra, à preservação de culturas e saberes de povos tradicionais, da preservação do meio ambiente, dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos.

Para tanto, organiza junto a seus aliados e apoiadores uma campanha permanente de destruição da reputação de movimentos sociais tais como Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), movimentos sociais dos povos indígenas, movimentos feministas, movimentos negros, movimentos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais. Para tanto, deturpa informações para acusá-los de criminosos, conspiradores contra a pátria, terroristas, oportunistas que visariam regalias em benefício próprio, invertendo perversamente a lógica dos privilégios de sua cultura branca, patriarcal, racista e misógina, ávida por explorar e manter as desigualdades econômicas que também são tão profundamente marcadas por determinações sociais da iniquidade.

Em busca de consensos sobre a manutenção dos dissensos democrático

Em tempos de ódio disseminado como o que nos encontramos, faz-se urgente a reflexão coletiva sobre ponderações éticas no uso da palavra enunciada para expressar dissenso. Faz-se imprescindível que possamos pactuar coletivamente, por meio do debate público permanente, as responsabilidades éticas no uso da palavra diante das posições contrárias, promovendo responsavelmente a permanência dos dissensos democráticos. A ruína da democracia é também passível de imaginação em uma sociedade em que, legitimamente e sem amplo debate crítico, se apela para o extermínio do direito à dignidade de pessoas, grupos ou instituições.

Precisamos nos preocupar com a questão de que o assassinato de reputação ou de caráter não é uma estratégia que tem sido apenas usada pelo governo Bolsonaro, consistindo em uma prática que tem se tornado relativamente comum entre movimentos sociais e ativistas, mesmo à esquerda. Exemplo disso são os escrachos públicos como estratégia para a exposição de denúncia ou afirmação de divergência política e de princípios.

Podemos pensar que o escracho sistemático e organizado é uma forma de assassinato de reputação que tende a se assemelhar a uma perspectiva punitivista diante de injustiças. Por outro lado, precisamos defender o Estado democrático de direitos, interpelar as instituições públicas para que cumpram sua função investigativa e judicial, reservando à coletividade amplo direito à participação política nos mais diversos espaços, o que implica direito à liberdade de expressão para todas as pessoas, diante dos mais variados conflitos e dissensos, inclusive entre movimentos e grupos sociais.

Tendemos a polarizar de modo binário as divergências políticas, mas a democracia exige que abramos vetores para multiplicidades, requerendo, assim, que vozes possam circular em jogos permanentes de interpelação recíprocas. Acusações sumárias, muitas vezes organizadas em campanhas para a destruição do caráter de uma pessoa, grupo ou instituição, não coaduna com uma perspectiva de justiça em que se garante amplo direito de defesa, de associação e de participação paritária. Finalizo esta reflexão fazendo um apelo para que, especialmente ativistas de direitos humanos, renunciem ao escracho e às campanhas de escracho como estratégia de afirmação do dissenso, procurando caminhos de interpelação junto às pessoas, grupos e instituições das quais discordam, ou mesmo diante das quais haveria necessidade de expor insatisfação, entendimento de violação ou prejuízo sofrido, de modo a promover reflexão e mover resposta, diante da qual acordos se estabelecem nos termos de limites e possibilidades a criar conjuntamente.

Não precisamos adotar as mesmas estratégias daqueles dos quais discordamos em princípios. Isso também significa que não precisamos destruir quando nos sentimos de algum modo destruídas, que não precisamos ferir como resposta ao nosso próprio ferimento. O que poderia mover transformação é romper o ciclo estabelecido da violência e, mesmo que não possamos evitá-la absolutamente, podemos decidir não praticá-la como estratégia política.

 

*Tatiana Lionço é doutora em Psicologia e professora da UnB.

 

Pedido global por mais transparência em saúde

Dentre os vários tópicos debatidos durante a 72ª Assembleia Mundial da Saúde (AMS), que aconteceu em maio, em Genebra, um dos mais controversos foi sobre transparência. Apesar de toda a polêmica, uma resolução que pedia mais clareza no mercado de medicamentos, vacinas e outras tecnologias em saúde foi aprovada e considerada um avanço pelas organizações da sociedade civil.

A resolução foi proposta inicialmente por Itália, Grécia, Malásia, Portugal, Sérvia, Eslovênia, África do Sul, Espanha, Turquia e Uganda, e outros países somaram seu apoio ao longo das negociações, incluindo o Brasil. Realizada anualmente, a AMS é o órgão decisório da Organização Mundial da Saúde (OMS) e conta com a participação de delegações de todos os países que integram a Organização das Nações Unidas (ONU).

A decisão inédita dos países surge devido a um dos principais problemas globais em saúde atualmente: o alto preço dos medicamentos. Os gastos com saúde são centrais em qualquer país, devido a seu grande volume e ao vasto número de necessidades que precisam ser atendidas. Os medicamentos são um componente significativo deste gasto, e o preço elevado vem colocando os orçamentos, inclusive dos países de renda mais alta, em situação crítica.

Nem sempre os preços pagos pelos ministérios da Saúde e os praticados pela indústria são disponibilizados de forma clara. Além disso, a indústria adota diferentes preços entre os países, sendo criticada por não considerar a discrepância de renda entre eles. Ademais, o preço varia na medida em que o produto passa pelas etapas da cadeia produtiva, da empresa produtora até chegar ao paciente, passando por distribuidoras e farmácias. A transparência com relação aos diferentes preços, e a disponibilidade de informação que permita realizar comparações entre as etapas e países, pode facilitar o acesso aos produtos em saúde, ao estimular mercados globais funcionais e competitivos.

Negociação complicada

O processo de negociação da resolução foi longo e conturbado. O texto inicial foi proposto pelo ministro da Saúde italiano em fevereiro e, em abril, recebeu apoio de diversos países para entrar na pauta da AMS. Inicialmente, ele incluía medidas concretas e avançadas para maior transparência relativa a quatro pontos: custos de pesquisa e desenvolvimento (P&D), resultados de ensaios clínicos, patentes de medicamentos e preços.

No entanto, recebeu grande oposição de países com forte presença da indústria farmacêutica, em especial Alemanha e Reino Unido, que propuseram diversas alterações visando diluir seu conteúdo.  A discussão em plenário da resolução foi adiada até o último dia da Assembleia, em 28 de maio, e quase foi transferida para 2020.

As organizações do movimento por acesso a medicamentos acompanharam o processo de perto, lançando no início de maio uma carta aberta que alertava para a tentativa de alguns países de desandar os avanços para maior transparência. No documento, os delegados eram convocados “a defender uma resolução que seja eficaz em capacitar os governos e o público a ter maior transparência e acesso mais igualitário à informação, a fim de ter maior poder em lidar com a crise no preço das tecnologias médicas”. As assinaturas de mais de cem grupos e indivíduos mostram a importância do tema e do apoio existente. A sociedade civil desempenhou papel importante nas negociações.

Um dos principais avanços da resolução foi a concordância de que os Estados membros devem tomar medidas apropriadas para compartilhar publicamente informações sobre preços. Todavia, em relação à divulgação de custos e resultados de ensaios clínicos, foi adotada uma linguagem que reforça sua natureza voluntária.

De acordo com declaração do Médicos Sem Fronteiras, a resolução é um primeiro passo bem-vindo para corrigir o desequilíbrio de poder que existe hoje durante as negociações entre os compradores e vendedores de medicamentos, dando aos governos as informações de que precisam para negociar de maneira justa e responsável pela saúde de seus povos. No entanto, apesar de ser o resultado de uma mobilização histórica, a resolução não é suficiente. É necessário saber a margem de lucro das empresas, os custos de produção e dos testes clínicos, quanto investimento é realmente aplicado pelas empresas e quanto é financiado pelos contribuintes e grupos sem fins lucrativos, que não são abordados.

A mobilização da sociedade civil e o engajamento nas redes foi tão intensa que incomodou alguns países, que solicitaram que a OMS revise suas regras para o envolvimento de ONGs e de outros “atores não-estatais” em reuniões públicas.

Transparência também a nível nacional

A transparência é fundamental para maior eficiência e responsabilidade (accountability) na execução das políticas públicas. Assim, a discussão sobre este tema nos fóruns globais reverbera também à nível nacional. Por exemplo, o estudo do Inesc sobre a execução orçamentária do Ministério da Saúde brasileiro mostrou um crescimento contínuo dos gastos com medicamentos nos últimos anos.

De acordo com o estudo, entre 2008 e 2015, o Orçamento Federal do Acesso a Medicamentos no Brasil (OTMED) aumentou 64,9% em termos reais, uma elevação muito superior à observada no orçamento da Saúde, de 36,7% no mesmo período. Assim, a participação percentual do OTMED no orçamento do Ministério da Saúde, que passou de 11,6% para 14,6% no mesmo período, se aproximava da média calculada para os países de renda média-alta, que é da ordem de 15%.

Além disto, os gastos tributários com medicamentos e produtos químicos e farmacêuticos passaram, em termos reais, de R$ 6,17 bilhões em 2014 para R$ 7,63 bilhões em 2015, um aumento real da ordem de 23,5%.

Transparência é o ponto central para saber se esses incentivos se convertem em benefícios para a população.  Jogar luz sobre o mercado de medicamentos e dos preços praticados em compras públicas também é imprescindível para garantir a eficiência e controle social destes gastos.

A infância não pode esperar: criança não trabalha!

É provável que no dia 12 de junho, Dia Mundial de Combate ao Trabalho Infantil, uma criança lhe ofereça flores ou chocolates no bar, e que um adolescente vigie seu carro enquanto você sai para celebrar o também dia dos namorados. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad Contínua), de 2016, o Brasil tem cerca de 1,8 milhão de crianças e adolescentes (5 a 17 anos) em situação de trabalho infantil – o que mostra que nós estamos em descumprimento da lei e naturalizando um problema que deveria ser prioridade absoluta de luta.

A Constituição Federal de 1988 afirma que é dever da família, da sociedade e do Estado “assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” (art. 227).

Assim, somos todos responsáveis por garantir que a infância e adolescência sejam resguardadas, assegurando proteção e espaços favoráveis ao seu pleno desenvolvimento. O não enfrentamento e a não erradicação do trabalho infantil são crimes. Compreende-se por trabalho infantil toda forma de trabalho realizado por crianças e adolescentes abaixo de 14 anos.  Dos 14 aos 16, é permitido trabalhar apenas na condição de aprendiz.

Perfil socioeconômico do trabalho infantil

Historicamente, o Brasil tem um legado de violências à infância. Desde os tempos de colônia, um recorte social foi feito, tolerando que crianças indígenas e negras fossem levadas ao trabalho, escancarando uma estrutura classista vergonhosa. O trabalho infantil constitui-se como mecanismo de sobrevivência às desigualdades sociais, ora como alternativa para garantir a renda familiar, ora para alcançar condições de consumo de itens que se estabelecem como elementos de inclusão social em determinados grupos, como roupas de marca, celulares e outros.

Essa realidade, em si, é um indicador latente de que o país falhou em políticas de inclusão socioeconômicas, pois as crianças e adolescentes hoje em situação de trabalho infantil são filhos de pais que estiveram na mesma condição, uma herança de violação à infância e exclusão de direitos.

De acordo com o Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e proteção ao Adolescente trabalhador, o perfil socioeconômico das famílias das crianças e adolescentes, entre 5 a 17 anos, em situação de trabalho infantil, revela que 49,83% têm rendimento mensal per capita menor que 1/2 salário mínimo e 27,80% inferior a 1 salário mínimo, o que prova que o trabalho infantil tem relação direta com a pobreza. Portanto, a partir desses dados, é possível concluir que 77,63% das crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil são de famílias vulneráveis, com renda per capita inferior a 1 salário mínimo.

E se a pobreza no Brasil tem cor, o trabalho infantil também. Segundo dados da PNAD/IBGE Contínua 2016, entre as crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil, 64,1% são negras.  Isso é uma das comprovações da formação sócio histórica estruturada nas relações de poder racista, classista que seleciona os corpos, as cores que terão oportunidade de vivenciar a infância.

“Vai trabalhar, vagabundo!”

Uma narrativa assimilada pela cultura do país é que: “é melhor estar trabalhando do que vagabundando na rua”, o que se apresenta como elemento para justificar o trabalho infantil. Pois bem, a questão é que essa narrativa se aplica apenas aos menos favorecidos economicamente, em sua maioria crianças e adolescentes negras. Tal conduta ignora de forma violenta a condição do corpo infantil e adolescente, compromete seu pleno desenvolvimento, cria e estabelece mecanismos contínuos de uma vida de exclusão.

Se o trabalho enobrece e “dignifica o homem”, no que se refere às crianças, ele mortifica suas possibilidades de uma vida digna, visto que essa situação limita, restringe ou até impede o acesso a direitos como saúde, educação, profissionalização, convivência familiar e comunitária. Ademais, o corpo infantil e adolescente, se estiver trabalhando, não desfruta de espaço e tempo oportuno para se desenvolver em suas dimensões “físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade” (art. 3 ECA).

Crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil pagam um alto preço, tanto com seus corpos, quanto com suas mentes. Suas capacidades de criar, imaginar, experienciar e ter perspectivas ficam prejudicadas, rompendo com possibilidades de construções cognitivas e psicopedagógicas. Essa ruptura impactará esses sujeitos durante a vida adulta.

Romper o ciclo das desigualdades para erradicar o trabalho infantil

O Brasil assumiu o compromisso de erradicar o trabalho infantil até 2025. No que se refere a nossa legislação, temos leis que colocam a infância e adolescência na centralidade das políticas públicas e sociais e favorece o respeito às diversas infâncias e adolescências. No entanto, os retrocessos que estamos testemunhando ao longo do ano de 2019 impactam essas políticas.

Cortes nos recursos destinados à educação, assistência social e à fiscalização do trabalho escravo, são ações que contribuem para a invisibilização das crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil, violando direitos fundamentais.

Por que trabalha uma criança? Se a conclusão é que seja para garantir sua sobrevivência, tem-se aqui a ausência da responsabilidade como sociedade. Há, portanto, urgência em cumprir a legislação e exigir que a infância seja prioridade na execução e planejamento do orçamento público. Um esforço sério ao enfrentamento do trabalho infantil exige uma dinâmica de políticas integradas, com enfoque na redução das desigualdades sociais e combate à pobreza, visto que o trabalho infantil segue como uma herança na família de baixa renda. Segue também lado a lado com a baixa escolaridade.

Cada criança e adolescente em situação de trabalho infantil é um indicador vivo que falhamos em assegurar direitos, comprova que o Estado não conseguiu romper com o ciclo de desigualdades, tão pouco garantiu condições de inclusão desses sujeitos.

A infância não pode esperar, ela tem urgência em viver, ocupar cidades, campos, aldeias, e quilombos, tecer, descobrir e experienciar sua identidade real, que são o riso, o brincar, o aprender e ensinar, com as cores, o afeto, a convivência familiar. Ela está em todo lugar nos provocando e nos inspirando a tecer dias melhores. O futuro da infância não é a vida adulta, o futuro da infância é o presente, é presença.  A nós, cabe a responsabilidade de garantir a presença de seus direitos de forma a respeitar seu tempo, seu desenvolvimento. Criança não trabalha!

De igual modo, cabe atenção e reflexão sobre como nosso país tem concordado com a criminalização da adolescência, sem, contudo, observar o grupo alvo desse discurso, pois mesmo o termo adolescente é negado aos adolescentes periféricos, eles seguem nas narrativas como “de menor”. Adolescência não é crime, adolescência pede proteção, estímulos, incentivos, educação, cultura, arte, direito à saúde, à cidade, à sua identidade sociocultural e profissionalização.

Aos adultos desse país está dada a responsabilidade em monitorar e cobrar pela efetivação dos direitos das crianças e adolescentes, que não podem esperar. A eles e elas nenhum direito a menos, proteção integral.

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Educação pública numa democracia moribunda

O Estatuto é um só, as infâncias são muitas

Entenda como funciona o financiamento da educação básica no Brasil

Com sinal vermelho ligado no que diz respeito ao financiamento da Educação, é importante entender de onde vêm os recursos que mantém a política de ensino no país. O Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), por exemplo, é um dos mais importantes instrumentos de sustentação da educação básica. Aprovado em 2006, fruto da luta do movimento social, a validade do Fundeb é somente até dezembro de 2020, o que precisa ser revisto com urgência.

Neste momento, há propostas em tramitação no Congresso Nacional com a intenção de perenizar o Fundeb. São elas, a PEC 24/2017, PEC 65/2019 e PEC 15/2015, esta última já está sendo analisada pela Comissão Especial na Câmara dos Deputados, as duas primeiras estão no Senado Federal. Caso não se aprove a sua ampliação ou perenização, a educação básica estará em sérios riscos, pois estados e municípios não têm autonomia financeira para arcar com os custos. Se a União não aportar o principal, a educação pública será uma mera lembrança, antes mesmo que consigamos a tão sonhada qualidade.

O que diz a Constituição

O financiamento da Educação, a partir da Constituição Federal (CF) de 1988, passou a sofrer menos intempéries, visto que o legislador garantiu o mínimo necessário, ou seja, 18% para a União e 25% para Estados e Municípios.

Além disso, no artigo 211, parágrafo primeiro, está dito que “ A União organizará o sistema federal de ensino e financiará as instituições de ensino públicas, federais e exercerá, em matéria educacional, função redistributiva e supletiva, de forma a garantir equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade do ensino mediante assistência técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios.”

O que significa isso de fato?  18% e 25% sobre o que?

A CF estabelece em seus artigos de 157 a 162, que o sistema tributário deve ser partilhado pelas esferas de governo, visto que no Brasil é o governo federal quem mais arrecada. Desta forma, parte da arrecadação da União é transferida para Estados e Municípios e parte da arrecadação dos Estados é transferida aos Municípios. Esses repasses são feitos para diminuir o impacto das grandes diferenças de arrecadação e para aumentar o poder de investimento de Estados e Municípios, levando em consideração que a União arrecada aproximadamente 70% dos tributos, os Estados perto de 25% e os Municípios em torno de 5%.

Sistema tributário e Educação

No Brasil há três categorias de tributos: impostos, taxas e contribuições. Os impostos são muito importantes, pois, por meio deles, o governo obtém recursos que custeiam quase todas as políticas públicas.  As taxas são tarifas públicas cobradas para fornecimento de algum serviço, tal como documento, ou segunda via de certidões e passaportes, por exemplo. As contribuições de melhoria são cobradas do contribuinte que teve, por exemplo,  seu imóvel valorizado por alguma benfeitoria. E as contribuições sociais e econômicas, de competência da União. As sociais são para cobrir gastos da Seguridade Social e as econômicas para fomentos de certas atividades econômicas.

Para o cálculo dos 18% garantido para a União custear a educação, são computados apenas os impostos, conforme estabelecido pelo parágrafo 212 da CF, que diz que a União aplicará nunca menos de 18% e os Estados e Distrito Federal e os Municípios, nunca menos  que 25% da receita resultante dos impostos e transferências constitucionais. E, ainda neste mesmo artigo, está dito que o ensino fundamental terá o acréscimo da contribuição social do salário-educação, recolhidos pelas empresas (a emenda 53 de 2006 modificou isso, acrescentando as outras etapas de ensino).

A fórmula de cálculo é a seguinte: só após os repasses obrigatórios para os fundos de participação de Estados e Municípios (FPE e FPM), e depois, dos Estados para os Municípios, é que as porcentagens são retiradas do bolo restante. Isso ocorre para não haver dupla contabilização.

Os recursos transferidos são destinados à Manutenção e Desenvolvimento do Ensino (MDE), conforme o disposto no artigo 212 da CF, regulamentado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB). As atividades suplementares, tais como merenda, uniformes, dinheiro direto na escola são financiados com outros recursos administrados pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), com recursos provenientes, dentre outras fontes, do salário-educação, recolhido pela União, que repassa uma parte para Estados e Municípios.

O que significa a Manutenção e Desenvolvimento do Ensino (MDE)? O que está dentro disso?

Apesar de vaga, a expressão MDE diz respeito a ações específicas, que focam diretamente o ensino. Ações estas especificadas pela LDB, artigo 70. São elas:

  • Remunerar e aperfeiçoar os profissionais da educação;
  • Adquirir, manter, construir e conservar instalações e equipamentos necessários ao ensino (construção de escolas, por exemplo);
  • Usar e manter serviços relacionados ao ensino tais como aluguéis, luz, água, limpeza etc.
  • Realizar estudos e pesquisas visando o aprimoramento da qualidade e expansão do ensino, planos e projetos educacionais.
  • Realizar atividades meio necessárias ao funcionamento do ensino como vigilância, aquisição de materiais…
  • Conceder bolsas de estudo a alunos de escolas públicas e privadas.
  • Adquirir material didático escolar.
  • Manter programas de transporte escolar.

Outras fontes de financiamento

Além dessas receitas, há outras fontes, tais como o salário-educação, que é recolhido das empresas, sobre o cálculo de suas folhas de pagamento. Essa receita é dividida entre União, Estados e Municípios. Quem arrecada a contribuição é o INSS, que fica com 1% a título de administração e repassa o restante para o FNDE, que desconta 10% e divide os 90% da seguinte forma:

A União fica com um terço dos recursos mais os 10% do FNDE. Os outros dois terços dos 90% ficam com Estados e Municípios, em razão direta ao número de matrículas de cada ente federado, de acordo com o censo escolar do ano anterior.

Além do salário-educação, o FNDE possui verbas oriundas de outras contribuições sociais. O Fundo desenvolve alguns projetos importantes, por exemplo: Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE), Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), Brasil Alfabetizado, Apoio ao Atendimento à Educação de Jovens e Adultos (Fazendo escola/PEJA) e Programa Nacional de Apoio ao Transporte Escolar (Pnate).

Fundeb em risco

Os fundos – o Fundef, criado em 1996 para manutenção e desenvolvimento do ensino fundamental, e o Fundeb, substituindo o anterior a partir de 2007 e visando à educação básica como um todo – representam uma tentativa de racionalização do gasto educação. Podemos dizer que além da vinculação de recursos, conforme explicado acima, há a subvinculação.

A transição do Fundef para o Fundeb significou o aumento da complementação da União aos fundos estaduais, de R$ 492 milhões, em 2006, para cerca de R$ 14 bilhões, em 2019. Neste ano, estima-se um aporte total para o fundo de aproximadamente R$ 150 bilhões, sendo a principal fonte de recursos para a educação básica no Brasil.

Como sempre houve um subfinanciamento da educação, ao Fundeb foram acrescidos novos recursos, como os oriundos do IPVA, por exemplo, que ampliou o financiamento, mas ampliou também o número de alunos atendidos, não equacionando, ainda, a questão do sub-financiamento.

O cálculo do Fundeb também é feito de acordo com o número de matrícula na educação básica pública de acordo com os dados do último censo escolar, feito anualmente. Dividi-se o montante pelo número de matriculados para se obter o valor aluno e em seguida repassar aos Estados e municípios a parte que cabe a cada um. Aqueles que não atingirem o valor mínimo por aluno deverão ter complementação da União. Já se verificou que a União, em muitos momentos, subdimensiona  o custo por aluno para não ter de efetuar a complementação para os diversos estados que não conseguiriam atingir o piso.

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Educação precisa de investimentos, não de mitos

Em defesa da educação, contra o desperdício da experiência

 

 

Produção nacional de insumos é chave para acesso a medicamentos

No último dia 23, foi aprovado pela Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados (CSSF) o Projeto de Lei 10096/18, que altera a Lei nº 8.080/9, para dispor sobre a produção nacional de insumos farmacêuticos ativos estratégicos para o tratamento de doenças negligenciadas.

De acordo com o texto do PL e o parecer da CSSF, um dos principais motivadores para sua elaboração foi a recente escassez de penicilina no mercado brasileiro frente ao aumento do número dos casos de sífilis. Foi necessária a adoção de medidas para evitar a falta do medicamento, como por exemplo, a autorização do Ministério da Saúde para aumentar o preço e estimular o mercado. Outros países também enfrentaram problemas com o desabastecimento de penicilina.

Isso porque a penicilina tem baixo valor comercial, por ser um princípio ativo antigo, de amplo uso e barato. Com isso, as empresas farmacêuticas não têm interesse em fabricá-lo, já que seu retorno financeiro é baixo. A orientação pelo lucro é ponto central do problema das doenças negligenciadas (como dengue, Chagas, tuberculose, hanseníase, malária entre outras).

O parecer da Comissão sintetiza o quadro: “o problema (das doenças negligenciadas) é particularmente grave em relação à disponibilidade de medicamentos, já que as atividades de pesquisa e desenvolvimento das indústrias farmacêuticas são principalmente orientadas pelo lucro, e o retorno financeiro exigido dificilmente seria alcançado no caso de doenças que atingem populações marginalizadas, de baixa renda e pouca influência política, localizadas, majoritariamente, nos países em desenvolvimento, como o Brasil ”.

O estudo do Inesc  sobre os recursos federais destinados à assistência farmacêutica (2013-2017) mostra que apesar do lucro das empresas farmacêuticas atingir cerca de cem bilhões de reais, e do setor receber subsídios fiscais de quase 10 bilhões de reais, isso não se traduz em redução do preço do medicamento para o consumidor final. A indústria farmacêutica não sentiu os efeitos da crise no Brasil, que levou a diversos cortes e contingenciamentos, inclusive na área da saúde. Mesmo assim, recursos públicos não deixaram de ser canalizados para esse setor em volumes vultosos e crescentes.

Considerações sobre o  PL

O PL estabelece, então, que os laboratórios farmacêuticos públicos deverão produzir os insumos ativos destinados a estas doenças. Quando a produção pública dos insumos não for possível, será autorizada a celebração de parcerias ou convênios com o mesmo objetivo.

Produzir princípios ativos nacionalmente é importante para evitar riscos de desabastecimento e diminuir a vulnerabilidade ao mercado e ao cenário internacional. Um diferencial brasileiro positivo é a existência de laboratórios farmacêuticos públicos que podem realizar esta atividade. Um bom exemplo da importância destes laboratórios e da produção pública local foi a política de combate a AIDS, na qual só foi possível oferecer tratamento – e não apenas a prevenção – de forma ampla, pois o país detinha a competência para produzir localmente.

O Brasil pôde, nesse sentido, usar esta competência para usufruir das flexibilidades estabelecidas no acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (mais conhecido por sua sigla em inglês, TRIPS). Uma delas é a licença compulsória, que permite a produção ou a importação de um medicamento genérico, forçando a concorrência e a queda dos preços. Essa medida foi utilizada apenas como uma ameaça no Brasil na década de 1990 e no início da década seguinte, o que levou a consideráveis reduções de preços dos medicamentos diante da possibilidade concreta de produção do genérico por laboratórios públicos nacionais, caso a licença fosse concedida[1].

Todavia, é necessária a atenção a dois pontos que não são detalhados no PL: a definição de doenças negligenciadas e as possíveis parcerias. Doenças negligenciadas é um termo amplo, que pode incluir diversos tipos de enfermidades e com diferentes prioridades. Como o PL tem o objetivo especifico de evitar o desabastecimento de insumos de baixo interesse comercial, é necessário que o texto da lei estabeleça isso de forma explícita.

Parceria deve ser para a independência

Sobre as parcerias, o texto aponta que caso os laboratórios públicos não tenham condições de fabricação destes insumos, eles podem procurar parceiros “para a adaptação de sua linha produtiva e aquisição de tecnologias e processos” e que o “Poder Público fica autorizado a financiar, estimular, promover e buscar parcerias nacionais e internacionais”.

O objetivo principal dessas parcerias deve ser de capacitar o laboratório público oficial a realizar de forma independente a produção dos insumos. Assim, deve-se priorizar aquelas que visam a plena transferência da tecnologia para as instituições públicas e não apenas a aquisição pontual de insumos ou processos de empresas privadas. Visa-se assim a autonomia de fato em relação a produtores internacionais e à volatilidade do mercado, além de estimular a concorrência. Este ponto também deve ser registrado de forma explícita no texto.

A proposta será analisada ainda, em caráter conclusivo, pelas comissões de Finanças e Tributação e de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara federal.

Alinhamento internacional

No último dia 24, em Genebra, na Assembleia Geral da Saúde, seis agências internacionais assinaram a “Declaração interinstitucional sobre a produção local de medicamentos e outras tecnologias relacionadas com a saúde”. Elas se comprometeram a trabalhar “de forma colaborativa, estratégica e holística em parceria com governos e outras partes relevantes para fortalecer a produção local”, com base nos respectivos conhecimentos e mandatos.

A Organização Mundial de Saúde (OMS), a Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial (UNIDO), a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e o Fundo Global reiteraram com a declaração que a produção local e a transferência de tecnologias são elementos cruciais para promover a inovação, capacitação e melhorar o acesso das populações à medicamentos e tecnologias em saúde. Além disto, enfatizaram a sua importância no contexto de desabastecimento global.

[1] ABIA, 2016. Mito vs Realidade: sobre a resposta brasileira à epidemia de HIV e AIDS em 2016. Disponível em http://abiaids.org.br/wp-content/uploads/2016/07/Mito-vs-Realidade_HIV-e-AIDS_BRASIL2016.pdf

Educação precisa de investimento, não de mitos

Será que todas as pessoas entendem a diferença entre universidade, centro universitário e faculdade? As universidades, obrigatoriamente, precisam ter o tripé de ensino, pesquisa e extensão; os centros universitários podem ter, mas não obrigatoriamente; as faculdades também estão dispensadas do tripé e, em geral, não fazem pesquisa nem extensão. Outra particularidade das universidades é que elas devem ter programas de mestrado e doutorado, além de uma qualificação mais rigorosa de seu corpo docente, com maior número de mestras (es), doutoras (es) e pós-doutoras (es). Dos centros universitários também é exigido mais pós-graduadas (os). Já as faculdades podem ter mais especialistas na composição do quadro de docentes.

Só com essa explicação inicial, fica nítido que quem faz pesquisa são as universidades. E no Brasil, a maioria delas é pública. De acordo com o Censo Escolar produzido pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), 87,9% do total da rede de ensino superior é composta por instituições privadas. No entanto, 53% das universidades são públicas, onde se produz a maior parte das pesquisas e das atividades de extensão, que resultam, dentre outras coisas, em políticas públicas como o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid).

Pibid sem verbas

O Pibid é uma ação, dentro da Política Nacional de Formação de Professores do Ministério da Educação (MEC), que pretende (ou pretendia) oferecer aos discentes, na primeira metade do curso de licenciatura, uma aproximação prática com o cotidiano das escolas públicas de educação básica e com o contexto em que elas estão inseridas.

O programa concede (concedia) bolsas a alunos de licenciatura participantes de projetos de iniciação à docência desenvolvidos por Instituições de Educação Superior (IES) em parceria com as redes de ensino.

Os projetos devem (deveriam) promover a iniciação do licenciando no ambiente escolar ainda na primeira metade do curso, visando estimular, desde o início, a observação e a reflexão sobre a prática profissional no cotidiano das escolas públicas de educação básica. O que pode desenvolver uma outra forma de ver o cotidiano das escolas e formar profissionais mais maduras (os) e cientes dos desafios que enfrentarão. Os estudantes bolsistas precisam (precisavam) ser acompanhados por um professor da escola e por um docente de uma das instituições de educação superior participantes do programa.

Essa inciativa foi uma das melhores propostas para pesquisa e extensão voltadas para as licenciaturas, pois colocava as futuras (os) educadoras (es) dentro das escolas, com formação prática aliada à formação teórica, promovendo o desenvolvimento de laços acadêmicos e de afeto com as futuras profissões.

E o que aconteceu com este projeto? Veja na tabela abaixo, retirada do Siga Brasil, com dados da Lei Orçamentária Anual (LOA) para 2019:

 

Ou seja, esse programa não existe mais, o que é bastante contraditório com o discurso do governo de valorização da educação básica. Sem licenciados e pedagogos bem preparados não existe educação básica fortalecida.

Cortes afetam também a educação básica

E quando dizem que o ensino superior está retirando dinheiro da educação básica, sugerindo uma falsa dicotomia entre as esferas da educação, deve-se dizer que o que retirou recursos de toda a educação, incluindo a básica, é a Emenda Constitucional 95 de 2016, que estabeleceu o teto dos gastos. De 2014 para 2018, e medida retirou 8%, em valores reais, da educação básica. Em valores absolutos, atualizados pelo IPCA, foi de R$ 84,1 bilhões, para R$ 76,7 bilhões. Isso considerando que a maior parte do recurso da educação básica é obrigatória e garantida pelo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb).

Além disso, números da tabela abaixo, com dados da LOA de 2019, mostram algumas ações referentes à educação básica que estão com o total ou parte de seus recursos indisponíveis, afetadas que estão pelo corte de recursos que, repito, não é só no ensino superior.

Com apenas alguns exemplos de onde estão incidindo os cortes, a saber, no transporte escolar; na implantação de escolas de educação infantil, que o governo diz valorizar tanto e priorizar; no funcionamento de escolas de educação básica federais, etc, é possível verificar que o discurso do governo não se alinha a prática. Com especial atenção aos livros didáticos, onde houve um corte de mais de mais de 85%, o que inviabilizará a política de distribuição dos livros, afetando enormemente a população mais pobre.

Outro dado relevante é o corte de 60%, conforme tabela abaixo, de bolsas permanência, que seriam para as (os) estudantes mais pobres, além dos indígenas e quilombolas, para que consigam permanecer em seus cursos até o final. Então, é perceptível, olhando para os cortes, dizer que a opção desse governo é pelos ricos e privilegiados, diferente do discurso público.

A cultura e a memória também estão sem valor nas priorizações governamentais, pois já era pouco o que haviam reservado para restauração do Museu Nacional, e virou menos ainda, conforme se constata na tabela abaixo.

A educação resiste

A defesa da educação pública, gratuita e de qualidade sempre esteve no horizonte de lutas da população brasileira, e foram muitos os resultados. De acordo com dados do Inep, o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) dos anos iniciais do ensino fundamental saiu de 3,8 em 2005 para 5,5 em 2015; e dos anos finais de 3,4 para 4,5. Desde a Conferência Nacional da Educação, em 2010, nos manifestamos pedindo 10% do PIB para a Educação. Com esta luta, o movimento social garantiu este índice no Plano Nacional de Educação (PNE), que agora está sendo rasgado junto com a Constituição.

Ainda precisamos avançar muito, mas, infelizmente, estamos primeiro lutando para manter o que já conquistamos e ainda remando contra a maré de desinformação e fake news sobre educação disseminada pelo próprio governo.

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Contra a cultura da violência, empatia e políticas públicas

Quando um presidente da república afirma que “quem quiser vir fazer sexo com mulher, fique à vontade” e ainda diz que o país não é um paraíso gay, legitima com palavras proferidas e outras não ditas que mulheres estão à disposição das vontades alheias. Simultaneamente, deixa evidente o quanto teme que o Brasil seja referência para a homossexualidade, como se fosse um demérito.

Ao tratar de violência sexual, que afeta crianças e adolescentes, não podemos nos deter somente ao ato da conjunção carnal e considerar que a violência teve origem no momento da agressão. A violência é uma construção processual fundamentada por uma cultura que permite que ela aconteça. O ato do agressor não é solitário, por trás de seu gesto há terreno propício respaldado no comportamento de muita gente. A trama é tão bem tecida que, para muitos, a violência não é percebida como tal.

Assim, embora extremamente brutais, os estupros coletivos, para homens e meninos que a praticam, não passam de uma diversão. A violência pressupõe a ausência de empatia. A fala que disponibiliza sexo com mulheres (leia-se também meninas) legitima o desprezo por suas vidas, desejos, vontades e dignidades. Em uma sociedade centrada no adulto, e que é racista, machista e homofóbica, a cultura que impera exclui a percepção de inúmeras pessoas da categoria humana.

Crianças e adolescentes são as principais vítimas

O Atlas da Violência 2018, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), revela que do total de 22.918 casos de estupro registrados pelo sistema de saúde em 2016, 50,9% foram cometidos contra crianças de até 13 anos. As adolescentes de 14 a 17 são 17% das vítimas e 32,1% eram adultas. As pessoas com algum tipo de deficiência também representam 12,2% do total de casos de estupros coletivos.

Observa-se que todos os dados relativos à violência sexual são subestimados. Ainda segundo a pesquisa, “os estudos mais conservadores estimam que o número de registros equivale a, no máximo, 10% da quantidade real de estupros de cada ano, ou seja, esse número é muito pior”. Atribui-se às campanhas feministas o aumento de denúncias, possibilitando conhecer o problema em uma dimensão um pouco mais realista, o que é essencial para a elaboração de políticas públicas que produzam efeitos na redução na violência sexual.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) diz em seu artigo 5º que “nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais”.

Portanto, é papel de todas as políticas públicas desvendar as raízes da violência sexual e atuar para proteger crianças e adolescentes, para responsabilizar os agressores, mas sobretudo prevenir, criar um mundo seguro para a vida transcorrer em patamares dignos e felizes. A tarefa é hercúlea no momento de desmonte do Estado e com os cortes e censura na educação.

Educar para construir novas sensibilidades

Na revista Descolad@s nº 6, produzida por adolescentes do projeto Onda do Inesc, a matéria intitulada “Educação de Gênero: construção de novas sensibilidades”, de Maria Castanho, 17 anos, dá dicas do que fazer. Para ela, a educação de gênero tem o objetivo de estimular o desenvolvimento da percepção sensível sobre todos os gêneros; motivar a convivência e o respeito entre os diferentes gêneros; desnaturalizar os papéis de gênero; fortalecer a ideia de que o corpo é nosso e de que a nossa sexualidade é determinada pelos nossos desejos; combater a educação sexista, que atribui a meninos mais oportunidades e controle sobre suas vidas e para as meninas, a noção do corpo como objeto sexual e do qual elas não têm controle nem poder de decisão; enfrentar a violência contra mulheres combatendo as raízes do feminicídio; enfrentar relacionamentos abusivos; e por fim, superar a cultura do estupro.

Em tempos em que a voz da autoridade máxima celebra mais as armas do que educação, que a educação sexista é defendida com radicalidade e, ainda, que o debate de gênero é censurado nas escolas, as perspectivas não são boas. Ainda assim, é hora de confiar nas vozes das ruas e acreditar que crianças e adolescentes podem inaugurar uma nova ordem social em que prevaleça a ética e o respeito em suas relações.

Em defesa da educação, contra o desperdício da experiência

*Título parafraseando Boaventura de Sousa Santos.

Há um mantra que diz ser a educação o caminho para a transformação das sociedades, com a redução de desigualdades e a possibilidade de se ter mobilidade social. Apesar de acreditar que este não é o único fator atuante, é certo que sem ela não há solução viável. No entanto, o governo atual está demonizando o avanço educacional.

O discurso oficial é o de que não há pesquisa nas universidades públicas, apenas nas privadas. Afirmação sem dados da realidade, que indicam o contrário: são as universidades públicas que produzem ciência no país. De acordo como relatório intitulado Research in Brazil (2011-2016), encomendado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), alcançamos a 13° posição do ranking de países que mais produzem artigos científicos. O relatório aponta ainda que, devido ao aumento do investimento em pesquisa a partir da década de 1990, o Brasil passou a ser mais citado em estudos de outros países, e a tendência até 2016 era de crescimento.

O  portal do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) explica o impacto da colaboração internacional na pesquisa, revelado pelo relatório:

Globalmente, a ciência torna-se cada vez mais colaborativa, cada país colaborando com cerca de 200 outros países. O impacto da citação parece correlacionar-se fortemente com as taxas de colaboração internacional. Portanto, os 80.291 documentos produzidos por autores brasileiros em co-autoria internacional alcançaram o impacto médio mundial de 1,31 pontos, ultrapassando o índice nacional de 0,86 (2016), e representam em torno de 32,03% do total de publicações científicas produzidas pelo Brasil no período. De acordo com o Relatório, é encorajador ver que, ao comparar os países que compõem o BRICS, o Brasil teve aumentos anuais no número de documentos produzidos em colaboração internacional, com impacto médio maior.

Outra informação importante que consta no relatório é a de que 95% da produção científica e publicações de artigos acadêmicos vêm das universidades públicas, desmentindo cientificamente a fala do presidente de que são as universidades privadas que mais produzem.

Teto de gastos na educação

Uma das razões que elevaram o status brasileiro nos meios acadêmicos e de pesquisa mundiais foi a ampliação do investimento estatal, especialmente a partir dos anos 1990 e incrementados significativamente na primeira década do século XXI. Cenário este que está mudando drasticamente desde 2015. Para verificar, basta comparar o que foi autorizado para o orçamento do ensino superior de 2015 para cá. Com números corrigidos pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), o Portal Siga Brasil mostra que, entre 2015 e 2018, houve redução do orçamento autorizado, que passou de R$ 43,1 bilhões para R$ 36,4 bilhões, representando uma queda de 18%. Com relação ao pago, no mesmo intervalo, a diferença se confirmou, ou seja, a política de austeridade cortou 18% do valor real aplicado na educação superior em três anos.

E em 2019, o valor autorizado é ainda menor, de R$ 35,7 bilhões, fora os cortes prometidos, o que aponta para um cenário ainda mais austero, até porque, conforme verificado, o que é autorizado não é executado na íntegra, tendendo à redução. O que o Ministério da Educação está prometendo, então, é um corte de 30% em cima de um orçamento que vem caindo ano a ano por conta da Emenda do Teto dos gastos (EC95).

Como o Inesc mostrou em recente levantamento, a política de austeridade só atinge as políticas sociais voltadas para a população, mantendo os privilégios daqueles que são donos do capital. A Proposta de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) para 2020, enviada pelo governo ao Congresso Nacional, prevê as isenções tributárias que beneficiam os de sempre e significam um rombo no orçamento maior que o propalado déficit da Previdência, de R$ 326, 16 bilhões.

UnB > Google > Pesquisar

Uma das universidades citadas como realizadora de “balbúrdia!” – portanto, merecedora do corte, segundo a justificativa do governo – é a Universidade de Brasília (UnB).  Em 2014, a instituição teve um orçamento executado de apenas R$ 2,2 bilhões e o autorizado para 2019, cinco anos depois, é de R$ 1,8 bilhão, sem contar os prometidos cortes orçamentários e de bolsas de pesquisa. Pergunta-se, como a UnB dará conta dos seus custos?

A despeito do baixo orçamento, a UnB é a 8° melhor universidade do país, de acordo com o ranking Times Higher Education, consultoria britânica responsável por avaliações em todo o mundo. E alguns de seus cursos estão entre os melhores, segundo outra pesquisa realizada pelo jornal Folha de São Paulo. O Ranking Universitário Folha (RUF) coloca 27 cursos da UnB ocupando as dez primeiras posições: Relações Internacionais (2°), Serviço Social (4°), Arquitetura e Urbanismo (5º), Fisioterapia (5º), Matemática (5º), Nutrição (5º), Biologia (6º), Ciências Contábeis (6º), Propaganda e Marketing (6º), Psicologia (6º), Engenharia Civil (7º), Farmácia (7º), Geografia (7º), História (7º), Odontologia (7º), Design e Artes Visuais (8º), Direito (8º), Letras (8º), Turismo (8º), Administração (9º), Economia (9º), Educação Física (9º), Medicina (9º), Pedagogia (9º), Computação (10º), Enfermagem (10º) e Engenharia Elétrica (10º).

Então, presidente e ministro da educação, antes de anunciar cortes e dizer que as universidades públicas não produzem pesquisa, que são locais de balbúrdia, façam uma busca simples no Google e vejam que senso comum não é ciência. Para planejar políticas públicas, além de ouvir os seus prováveis usuários (as), é importante verificar números, dados anteriores e séries históricas para não ficar vomitando tanta bobagem – que pode ser derrubada por uma simples pesquisa rápida na internet.

Incentivos fiscais e gastos tributários: perspectivas para o novo governo

O Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) 2020, entregue ao Congresso Nacional em 15 de abril, reflete as escolhas da política econômica do atual governo por austeridade fiscal e corte de gastos sociais. Por exemplo, o salário mínimo não terá aumento real pela primeira vez desde 2006, somente sendo corrigido pela inflação.

Quando avaliamos a Renúncia de Receita Administrada pela RFB e Previdência para 2020 observamos, porém, que os gastos tributários ficaram imunes à austeridade. Os R$ 326,16 bilhões em gastos projetados pelo governo federal representam um rombo no orçamento equivalente a 21,16% do total de arrecadação e 4,14% do PIB. A título de comparação, a estimativa do Tesouro Nacional para o déficit da Previdência em 2019 é de R$ 309 bilhões.

Apesar do governo Bolsonaro defender, desde a campanha eleitoral, a diminuição das isenções e benefícios fiscais, 2019 iniciou com aumento desses gastos, por meio da sanção da Lei 13.799/2019 e da decisão do STF do dia 25/4, ambas medidas referentes ao aumento dos incentivos fiscais para as regiões norte e nordeste do país.

Ainda que uma das propostas de reforma tributária que está na mesa hoje aponte para a diminuição dos incentivos fiscais, discussões acerca do impacto desses gastos para o orçamento e para a sociedade de maneira geral, até agora, estão longe de ocorrer.

O que são gastos tributários

Os gastos tributários, como o nome já diz, funcionam praticamente como um gasto público, embora teoricamente sejam uma renúncia de receita. Em tese, são criados com algum objetivo específico, que pode ser, por exemplo, equalização de renda entre regiões, incentivo a setores econômicos ou mesmo uma vantagem tributária que vise atacar questões distributivas. Eles fazem parte do bolo de desonerações fiscais do governo e podem ser isenções, deduções ou outros benefícios de natureza tributária que reduzem a arrecadação potencial. Isenções ou benefícios fiscais podem, ou não, ser classificados pela Receita Federal como gastos tributários a partir de mecanismos legais, o que significa que esses são apenas uma parte do total de incentivos fiscais governamentais.

 O Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), por meio da campanha #SóAcreditoVendo, questiona os gastos tributários, especialmente aqueles concedidos a pessoas jurídicas. Isto porque não há transparência a respeito de quem são os beneficiários e quanto eles estão recebendo, o que impede análises acerca de qual o propósito de cada gasto. Além disso, os gastos tributários não são avaliados enquanto políticas públicas, ou seja, não se sabe se a promessa de resultados socioeconômicos advindos dessas renúncias fiscais é cumprida.

Impacto na Previdência

Os gastos tributários atingem as receitas que alimentam a Previdência. Quatro tributos que financiam a seguridade social – constituída por Previdência, Assistência Social e Saúde – são o Programa de Integração Social (PIS), a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS), a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CLSS) e a Contribuição para a Previdência Social. Somados, eles representam 51,6% do total de gastos tributários projetados para 2020 – com o último sozinho representando 21,03%. Cria-se, assim, parte do déficit que hoje em dia é utilizado como justificativa para o fim da previdência enquanto política social redistributiva.

O primeiro passo de 2019: prolongamento dos subsídios para Sudene e Sudam

Durante a campanha eleitoral, Guedes prometeu cortar de 10% a 20% dos benefícios fiscais e, com isso, recuperar de R$ 30 a R$ 60 bilhões para os cofres federais. Todavia, no terceiro dia do novo governo, Bolsonaro sancionou a Lei nº 13.799/2019, que mantém até 2023 a redução de 75% do Imposto de Renda de Pessoa Jurídica (IRPJ) de empresas operando nas áreas de atuação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) e da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam).

Dos 25% restantes, as empresas ainda podem pleitear, até 50% para aquisição de máquinas e equipamento novos, o que significa até 82,5% de isenção do Imposto de Renda. Pela estimativa de gastos tributários da Receita Federal para 2020, a Sudam e a Sudene representam 2,41% do total de gastos tributários.

Em matéria que analisou esse projeto de lei, o Inesc questionou a ausência de transparência acerca dos beneficiários dessas isenções, além da falta de avaliação de resultados de uma política que ocorre há mais de 50 anos. Somente na Sudam, os valores agregados dos incentivos entre 2007 e 2015 alcançaram R$ 16,5 bilhões.

Estudos do Inesc apontam também que parte dos gastos tributários é aplicada em empresas transnacionais de energia, agronegócio e mineração, que, além de não precisarem de incentivos fiscais, trazem impactos socioambientais negativos para a região. A Vale S/A, responsável pelas tragédias de Mariana e de Brumadinho, é uma dessas empresas.

Vale ressaltar que o Tribunal de Contas da União (TCU) publicou relatório no qual exige que o governo apure o impacto fiscal decorrente da prorrogação dos benefícios fiscais, além de apontar qual será a compensação, isto é, como irá impedir que tal isenção leve à queda na arrecadação. Essas exigências estão de acordo com a Lei de Responsabilidade Fiscal, que obriga a compensação por meio da criação de uma fonte de custeio permanente, além da realização de avaliações periódicas dos incentivos concedidos.

Primeiramente, Bolsonaro anunciou que a compensação aconteceria por intermédio do aumento no Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), mas acabou sendo desmentido pelo ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, que postergou decisões acerca da compensação. O TCU ressaltou que, apesar de mais de 50 anos de incentivos, a região norte ainda está abaixo da média nacional nos indicadores econômicos.

Promessas da reforma tributária

Os primeiros movimentos do governo em relação à reforma tributária estão conturbados, com diferentes propostas sendo discutidas concomitantemente. Na formulação liderada pelo Secretário da Receita Federal, Marcos Cintra, consta a eliminação dos impostos previdenciários que incidem sobre os salários e, para os substituir, a criação de um imposto sobre transações financeiras, chamado de Contribuição Previdenciária (CP). A CP afetaria todas as transações financeiras da economia, sejam elas realizadas virtualmente ou em espécie, resultando inclusive na tributação da economia informal. A proposta virou polêmica, pois também significaria o recolhimento de tributos das igrejas – o que levou Bolsonaro a se manifestar contrário à criação de novos impostos e Silas Malafaia a pedir a demissão do secretário.

Apesar do seu futuro incerto, vale ressaltar que, segundo entrevistas concedidas pelo secretário, a proposta também ataca os gastos tributários. Cintra declara à Folha de São Paulo que “Precisamos acabar com os gastos tributários, que já bateram em R$ 400 bilhões por ano. Oferecemos um terço de nossa arrecadação”. Quando perguntado pelo Estadão sobre as desonerações advindas da reforma, ele enfatiza que o PIS e o COFINS possuem centenas de casos especiais que acabam criando privilégios tributários.

Contudo, ainda se sabe muito pouco sobre os impactos dos gastos tributários na sociedade. Quem de fato se beneficia com essas isenções e com que valores são perguntas que permanecem sem respostas.

O aumento de subsídios para a Zona Franca de Manaus pelo STF

Outra notícia relacionada a benefícios fiscais foi a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no último dia 25 de abril. A corte entendeu que há direito de creditamento do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) a empresas que comprarem insumos e matérias primas da Zona Franca de Manaus. Normalmente, o processo de creditamento é um desconto que empresas têm direito a receber para evitar a dupla taxação. Nesse caso, porém, não houve um imposto anterior cobrado, devido à Zona Franca ser livre de impostos. Dessa forma, criou-se uma exceção, que pode representar, segundo estimativas da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, R$ 16 bilhões por ano de incentivo fiscal.

A tese final do STF arrola que há direito ao creditamento de IPI na entrada de insumos, matéria prima e material de embalagem adquiridos junto à Zona Franca de Manaus, sob o regime da isenção, considerada a previsão de incentivos regionais constante na Constituição. Paulo Guedes manifestou-se contra a decisão do STF e a Procuradoria-Geral da República pediu acesso aos processos judiciais relacionados à decisão para análise, o que demonstra que pode no futuro pressionar por uma revisão do julgamento.

De acordo com o Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias 2020, os gastos tributários com a Zona Franca de Manaus e Áreas de Livre Comércio são estimados em R$ 28,6 bilhões, ou 8,81% do total da estimativa de gastos para 2020. Por um lado, iniciativas para o desenvolvimento da Zona Franca de Manaus podem representar  um estímulo a regiões brasileiras com indicadores socioeconômicos piores. Tanto o aumento dos incentivos fiscais relacionados à Zona Franca de Manaus quanto os referentes à Sudam e à Sudene estão alinhados aos Princípios Fundamentais da Constituição Federal – que, no Artigo 3º, enfatiza a importância da redução das desigualdades sociais e regionais. Por outro lado, o fomento à compra de insumos e matérias primas pode favorecer a reprimarização da região e a exploração de recursos naturais.

 Como não existem estudos aprofundados sobre os efeitos das concessões fiscais oferecidas pelo governo, a sociedade brasileira continua sem saber se elas são efetivas ou se reforçam as desigualdades, beneficiando os mais ricos em detrimento das pessoas menos favorecidas. Urge, pois, aprovar medidas que tornem esses gastos transparentes, assim como empreender avaliações que evidenciem seus efeitos, diretos e indiretos.

Extinção de conselhos reforça ideia de Estado autoritário e não público

Conselhos, comitês, fóruns e conferências têm prestado, principalmente ao longo das três últimas décadas, um papel fundamental na esfera pública. Contudo, decreto de Bolsonaro determina fim de colegiados ligados à administração federal. Artigo de José Antônio Moroni, publicado hoje (3/5) na Folha de S.Paulo, mostra que sem esses espaços de participação, resta o “balcão de negócios”, que reforça o poder das velhas e novas oligarquias.

José Antônio Moroni é integrante do colegiado de gestão do Inesc e da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político.

Extinção de conselhos reforça ideia de Estado autoritário e não público

Decreto de Bolsonaro determina fim de colegiados ligados à administração federal

Os desejos de participar da esfera pública, assim como os de liberdade e igualdade, sempre estiveram presentes nas lutas sociais nos diferentes períodos da história e de diversas formas.

Participar significa incidir nas questões que dizem respeito à vida concreta das pessoas, mas também nos processos de tomada de decisão do Estado e dos governos. Fruto desse processo é que hoje culturas e países diversos reconhecem a participação como um direito humano fundamental.

Para dar concretude a esse direito, reconstruíram a sua institucionalidade, incorporando os espaços institucionais de participação no arcabouço das instituições democráticas. É um novo desenho democrático, que reconhece outras formas legítimas de participação na esfera pública que não apenas a via da representação eleitoral.

Vivemos numa sociedade diversa, plural e complexa, onde o exercício do poder (tomar decisões) deve refletir essa diversidade e, para isso, é necessário ampliar o que se entende por instituições democráticas.

A democracia não pode ser reduzida apenas aos procedimentos eleitorais, que, na maioria das vezes, reproduzem as relações de poder estabelecidas na sociedade.

Precisamos construir instituições democráticas e, ao mesmo tempo, essas instituições precisam ser plurais para incorporar as diferentes demandas, sujeitos e vozes de uma sociedade complexa.

Somente esse mosaico democrático é capaz de processar as transformações que tanto queremos. Em outras palavras, superar essa crise de perspectiva que a humanidade vive somente com a “democratização da democracia”.

A concepção minimalista de democracia onde a participação não tem lugar, aliada a uma igualdade estabelecida apenas do ponto de vista formal, gera uma sociedade baseada no privilégio (que é para poucos) e não no direito (que é para todos).

A base política desta concepção é um Estado autoritário, opaco, patrimonialista e fomentador da desigualdade. Um Estado a serviço da manutenção deste “status quo”.

>>> Leia a íntegra do artigo.

Educação pública numa democracia moribunda

O afeto não pode ser arrogante, o diálogo é uma das dimensões mais fundamentais do processo educativo.

Paulo Freire

Em uma sociedade democrática é de se esperar que a política de educação reflita seus princípios e que as escolas dialoguem com os anseios da população a quem elas se destinam. É o que vemos acontecer hoje?

Para Paulo Freire, a educação é um exercício constante de reciprocidade. Aprender e ensinar são atitudes inseparáveis que devem focar na superação das opressões e na realização plena da nossa humanidade. O caráter libertador, segundo Freire, se conquista a partir da leitura do mundo e de uma interpretação crítica e sensível permanente da vida, construção que se dá na interação entre os sujeitos e suas realidades. Ele ainda mostra que a cultura e a ética são centrais no processo dinâmico que é a educação.

Em consonância com essa linha de pensamento, o educador e filósofo Anísio Teixeira, trouxe uma importante contribuição para a educação brasileira, defendendo ‘ensinar a viver com mais inteligência, mais tolerância e mais felicidade’. Ele apostou na educação pública, universal e de qualidade como lugar para o exercício do pensamento crítico e da solidariedade e, para isso, a liberdade e a expressividade são condições essenciais.

Ambos evidenciam que a escolha de uma diretriz pedagógica é uma escolha política e que a educação desemboca na ação transformadora. A educação humanista exige que se pense na sociedade em busca de se contribuir para um mundo melhor, justo e solidário. Paulo Freire e Anísio Teixeira acreditavam que o elo entre o sujeito e a sua realidade é a essência da educação.

Escola: espaço de cidadania

Sendo a nossa democracia imperfeita e cada vez mais ameaçada e fragilizada, as escolas públicas brasileiras também vivem sérias contradições. Ainda estão mais ancoradas em estruturas conservadoras, com brechas maiores ou menores para experiências diferenciadas. Muitas estão mergulhadas em si, dialogando pouco com as respectivas comunidades. Ainda assim, a escola é o mais precioso espaço de cidadania que agrega a diversidade humana movimentando conhecimentos, histórias e afetividades. Trabalho digno e participação democrática são conquistas que se dão a partir de construções processuais iniciadas na escola.

Não é de hoje que se criou uma expectativa, propagada principalmente por instituições privadas, sobre a educação como a possibilidade de ‘escalada para o sucesso’, resultando em um campo de disputas mais do que uma construção coletiva de um projeto comum. Nesse caso, o que interessa é o desenvolvimento de habilidades e competências, como se pudessem ser isoladas da complexa existência em sociedade. A educação elitista, em última instância, forma para competir, para promover melhores performances em concursos e vestibulares ou para uma colocação no mercado de trabalho.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) defende uma concepção mais ampla do direito à educação, que vai além da formação técnica.  No seu Art. 53 diz que “A criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho, assegurando-se-lhes: I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II – direito de ser respeitado por seus educadores; III – direito de contestar critérios avaliativos, podendo recorrer às instâncias escolares superiores; IV – direito de organização e participação em entidades estudantis; V – acesso à escola pública e gratuita próxima de sua residência. Parágrafo único. É direito dos pais ou responsáveis ter ciência do processo pedagógico, bem como participar da definição das propostas educacionais.

 Do mesmo modo, o Art. 58 conclui que “No processo educacional respeitar-se-ão os valores culturais, artísticos e históricos próprios do contexto social da criança e do adolescente, garantindo-se a estes a liberdade da criação e o acesso às fontes de cultura”.

tirinha Armandinho
Tirinha do Armandinho cedida por Alexandre Beck para publicação no site do Inesc

Em resumo, o direito proclamado na Constituição brasileira, assim como no ECA e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) é o direito à educação de qualidade, calcada no respeito às culturas locais e à participação da comunidade na construção da escola pública.

Os riscos da educação domiciliar

A defesa injustificável pela educação domiciliar, proposta do atual governo, restringe a experiência das crianças e priva-as do convívio com outras. É na interação com as pessoas que se aprende a escutar, a associar ideias, a criticar, a apreciar, a fazer escolhas, a discernir o ético do não ético e, com isso, construir um pensamento autônomo. O mais importante é conhecer pessoas e crescer com o exercício da empatia. O risco de se criar sujeitos autocentrados e insensíveis ao outro é grande.

A escola militarizada é outro problema, pois traz na prática uma educação autoritária, arbitrária que, com normas e ritos rígidos, contraria o direito à livre expressão e à participação asseguradas nas leis brasileiras. A censura às universidades públicas e os cortes de verbas, com destaque para a pesquisa, ameaçam o desenvolvimento da ciência e da criação de soluções para problemas importantes do país em todas as áreas como saúde, tecnologia, meio ambiente, questões sociais.

A Emenda Constitucional do Teto de Gastos Públicos, que congela por vinte anos os investimentos nas áreas sociais, aponta para um péssimo cenário de precarização do que já não estava perfeito. Além disso, o decreto 9.741, publicado em março deste ano em edição extra do Diário Oficial da União, contingencia R$ 29,582 bilhões do orçamento federal de 2019. A Educação perdeu R$ 5,839 bilhões, cerca de 25% do previsto.

Considerando o princípio da universalização do direito, é inconcebível haver um ‘bom’ direito para poucos e um ‘precário’ para muitos. Com estes cenários, escolas privadas destinadas a seletas famílias terão acesso a boas estruturas com laboratórios, espaços para teatro, esportes, boas metodologias e práticas pedagógicas inovadoras, professores qualificados. Já as escolas públicas terão que sobreviver à custa do sangue e suor dos trabalhadores e trabalhadoras da educação com salários baixos e péssimas condições para o exercício da profissão. Sem fôlego e sem recursos, a tendência óbvia é a educação pública definhar.

>>> Leia também o primeiro texto da parceria com as tirinhas do Armandinho

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