A memória da terra: o que o marco temporal não pode apagar

16/08/2017, às 16:31 | Tempo estimado de leitura: 29 min
O STF julga hoje ações que podem ser decisivas para o futuro dos povos indígenas e quilombolas no Brasil. No centro da controvérsia jurídica está a noção de “terra tradicionalmente ocupada” e a ameaça de consolidação da tese político-jurídica do “marco temporal” – sobre as quais há um debate marcado por desinformação e preconceito. Este artigo busca discutir ambas de um ponto de vista antropológico.

Por Andressa Lewandowski, Luísa Molina e Marcela Coelho de Souza, para o site Le Monde Diplomatique Brasil

Desgraçado país o que tenha medo de livrar-se dos próprios erros porque para liberta-se deles tenha de exibi-los. Mil vezes exibi-los, e expondo-os inspirar horror, para que nunca mais voltem a repetir-se, do que envergonhadamente ocultá-los e ocultando-os, protegê-los, com o risco de voltarem amanhã, confiados na complacência que enseja, senão estimula os abusos.

(ministro Paulo Brossard)

“Nossa História não começa em 1988”, afirma a Articulação dos Povos Indígenas no Brasil. Concomitante ao lançamento dessa campanha, alguns de seus representantes percorreram os gabinetes dos ministros do Supremo Tribunal Federal, em Brasília, tentando convencer os juízes daquilo que parece óbvio: o caráter originário dos seus direitos territoriais. Trata-se de uma peregrinação que tenta mostrar ao tribunal – a quem cabe a precípua guarda da Constituição Federal (CF) –, o que diz e o que não diz a própria Carta Magna. Isto é: mostra aos ministros que a tese por eles denominada “marco temporal” de ocupação – que limita a demarcação de terras indígenas àquelas áreas sob a posse dos coletivos indígenas em 5 de outubro de 1988 – é uma leitura equivocada e arbitrária do texto constitucional, que ignora toda a violência sofrida por esses povos nos períodos anteriores a 1988. Violência esta que, à luz do direito contemporâneo, não implica em nada menos do que crime de genocídio.

A intensa mobilização das organizações indígenas neste momento – especialmente em Brasília, mas também em outras capitais – tem como foco o julgamento, pelo STF, de três Ações Civis Originárias (ACOs), que estão na pauta plenário do tribunal no dia 16 de agosto. Duas dessas ações foram movidas pelo estado do Mato Grosso, que reivindica indenização pela demarcação do Parque Nacional do Xingu e das terras indígenas Nambikwára e Parecis. A terceira, impetrada pela Funai, pede a anulação de títulos incidentes na TI Ventara, no estado do Rio Grande do Sul. A despeito das especificidades de cada uma dessas ações, os três processos trazem mais uma vez ao plenário do Supremo, instância máxima do tribunal, o debate sobre os sentidos e a extensão da expressão constitucional “terras tradicionalmente ocupadas”, do artigo 231 da CF. A última decisão do plenário envolvendo esse debate foi em 2009, quando se decidiu pela demarcação contínua da TI Raposa Serra do Sol – aplicando naquele caso específico (e ainda que de modo controverso) o critério do marco temporal.

Mesmo sem caráter vinculante, a utilização desse critério no caso Raposa Serra do Sol serviu de referência para pelo menos três outros processos de demarcação (TI Guyraroká, TI Limão Verde, TI Porquinhos), que foram suspensos ou anulados por decisões da segunda turma do STF. Decorre daí a importância das decisões acerca das ações agora em pauta. São três processos que podem orientar e consolidar a jurisprudência do STF sobre a questão, tornando-se parâmetros concretos para os demais casos judicializados, e mesmo para a regulamentação do próprio processo administrativos de demarcação. Uma intepretação que admita o marco temporal para demarcação só serve como instrumento político de grupos econômicos cujos interesses são diametralmente opostos aos dos índios – grupos esses que são responsáveis por grande parte do esbulho e da violência promovida contra esses povos.

Leia também: Quilombolas lançam campanha “O Brasil é Quilomboa – Nenhum Quilombo a Menos”

Por outro lado, se um critério ou um marco objetivo é aquilo que faz falta para os ministros ou para o Estado, basta lembrar que a própria Constituição de 1988 é um marco. Mas o que ela marca não é e nem pode ser um limite temporal para o direito à terra – uma vez que, como insistem os povos indígenas, a história deles não começou em 1988, e tampouco terminou lá.  Parece tratar-se exatamente do contrário: ao proteger “seus usos costumes e tradições” e seus direitos originário sobre as “terras que tradicionalmente ocupam”, a Constituição celebra a resistência dos indígenas, reconhecendo os efeitos desastrosos da política de colonização, rompendo com o paradigma assimilacionista, e garantindo aos povos originários que, para “intergrar-se” à cidadania nacional, não lhes seja exigido des-integrarem-se de sua condição indígena. A terra é justamente parte fundamental do direito à diferença. Trata-se de uma promessa de futuro que celebra a pluralidade constituinte do país, como afirmação e positivação das diferenças constitutivas da nacionalidade.

Terra é vida

A peregrinação dos índios a Brasília cobra essa promessa: de que seja reconhecido o seu direito à diferença – o direito de existir enquanto coletividade distinta. Ao cobrá-la, repetem o que todos os povos, de uma forma ou de outra, estão dizendo a todo o momento: que viver (de acordo com) a sua própria cultura – ou existir enquanto coletividade distinta – não se dissocia de viver em suas terras. Estar na terra, viver com/na terra é condição de existência dos modos de vida desses povos. Não à toa, as reivindicações territoriais indígenas são invariavelmente formuladas em termos de uma relação que esses povos descrevem como intrínseca com suas terras – uma relação em que a terra só pode ser dita pertencer a eles na medida em que eles mesmos se veem como pertencentes a ela. Pertencentes, isto é, tendo sua identidade definida, como indivíduos e coletividades, pelos laços com um território que não é apenas recurso econômico mas universo social, político e religioso.

Vale notar que levar a sério essas afirmações está implicado no respeito ao princípio da autodeterminação indígena, como se vê na Declaração da ONU sobre os direitos desses povos e na Convenção 169 da OIT, ratificada pelo Brasil. E é preciso fazê-lo. Extraindo todas as consequências dessas afirmações e do fato de que elas são respaldadas por determinações constitucionais, torna-se possível ter alguma noção do que está em jogo hoje para os índios, além de vislumbrar a dimensão do retrocesso iminente, em relação a algumas das mais caras conquistas de nossa “Constituição cidadã”. Pois se a garantia da terra é, para esses povos, elemento imprescindível na garantia da vida – se a vida, como ela é conhecida (segundo o próprio modo de vida, a própria cultura) passa fundamentalmente por estar na terra –, expulsar comunidades inteiras (com reintegrações de posse, remoções e afins) ou negar-se a reconhecer determinadas áreas como Terra Indígena é agir diretamente sobre a possibilidade de vida desses povos. Em outras palavras, é promover vetores etnocidas e genocidas (isto é, de morte, uma vez que cultura e vida são indissociáveis para esses povos).

Foi inclusive com esses vetores que a própria Constituição buscou romper ao quebrar o paradigma assimilacionista e integracionista até então vigente – segundo os quais as formas de organização e modos de vida indígenas estariam destinados a desaparecer, com a dissolução dessas coletividades enquanto tais e assimilação de seus membros ao corpo dos “trabalhadores nacionais”. A proeminência da tese do marco temporal é uma das faces do fantasma desse paradigma, que volta a nos assombrar nestes tempos em que a retórica da cidadania e da “inclusão” dos índios é mobilizada, sem nenhum constrangimento, nos discursos de autoridades da República. Basta recordar a recente declaração do ministro da Justiça Torquato Jardim a um grupo de índios Terena, Kinikinau e Kadiweu: “É preciso estabelecer uma relação econômica de custo benefício com a terra que justifique vocês indígenas permanecerem nelas”. Nada mais distante do espírito e da letra da Constituição; nada mais distante da justiça.

Tradicionalidade e imemorialidade

O conceito de tradicionalidade (preferido pela Constituição ao de imemorialidade) se refere ao modo de ocupação, sendo desprovido de referência temporal.  Afinal, não se pode exigir fidelidade territorial de 500 anos aos territórios indígenas: se tal fidelidade já não se verifica no Velho Mundo, o que dizer do Novo, constituído desde a Conquista por processos de colonização que incluíram expulsão violenta, deslocamento e concentração forçados, drástica redução demográfica e recorrente desarticulação social dos povos aborígenes[1]? É mais que evidente que tradicionalidade não pode ser interpretada como antiguidade; nas palavras frequentemente citadas do jurista José Afonso da Silva: “O tradicionalmente refere-se não a uma circunstância temporal, mas ao modo tradicional de os índios ocuparem e utilizarem as terras e ao modo tradicional de produção, enfim, ao modo tradicional de como eles se relacionam com as terras” [2]. Isso não significa que o tradicional seja imutável; mas significa que um dos argumentos levantados a favor do argumento do marco temporal, que podemos batizar “efeito Copacabana” [3] – segundo o qual, na ausência de um tal marco, nada impediria os índios de reivindicar Copacabana – seria inteiramente desprovido de sentido.

O que define a tradicionalidade da ocupação de um povo indígena, do ponto de vista dos seus próprios usos, costumes e tradições, é uma forma determinada de memória da terra, intrinsecamente ligada aos modos indígenas de viver nela. A perda dessas terras e sua subsequente desfiguração com a conversão em espaços urbanos, agrícolas ou industriais — implica, com o tempo (às vezes mais, as vezes menos), na desconstituição dessa memória. Por essa razão mesma, o argumento do “efeito Copacabana”, com todo seu apelo – pois de fato sabemos que foi indígena Copacabana, como tudo o mais – resulta numa falácia perigosa.

Em que sentido podemos afirmar que a tradicionalidade da ocupação refere-se a uma forma determinada de memória? Que forma seria esta? As pesquisas antropológicas voltadas para a questão da territorialidade indígena, em suas múltiplas dimensões — econômica, política, cosmológica ou religiosa — são unânimes em reiterar a relação constitutiva entre modos de habitar, modos de conhecer, e modos de rememorar (e assim transmitir) o conhecimento relativo às terras vividas como território[4] por esses povos. A interpretação jurídica da ocupação tradicional como habitat de um povo, “terra ocupada pelos índios, ocupada no sentido de utilizada por eles como seu ambiente ecológico”[5], aproxima-se dessas conclusões, mas continua concebendo esse habitat como ambiente natural – no velho espírito de que o “selvagem” só é ”bom” quando se apresenta como parte da natureza, não tanto quando se reivindica sujeito de sua própria socialidade.

O que a ocupação tradicional constitui é um ambiente social, histórico e ecológico complexo, criativamente produzido pelos povos e comunidades concernidos, capaz de lhes oferecer uma existência tanto mais satisfatória quanto correspondente a seus valores fundamentais e identidades. Há mais de um século a ideia de que existem raças ou povos “primitivos” (e outros “superiores”) foi inapelavelmente enterrada por todas as ciências sociais e humanas – e, um pouco depois mas mais amplamente, por toneladas de convenções e tratados internacionais que procuraram responder à devastação causada pelo racismo, pelo autoritarismo e pelo colonialismo ao longo do século XX. No fundo, é isso que está em jogo quando se diz ser necessário atentar para as formas concretas da ocupação tradicional, uma vez que, na ausência dos instrumentos metodológicos adequados, elas se tornam invisíveis sob o peso de preconceitos que insistem em negar a povos tradicionais seu lugar na contemporaneidade .

As formas de utilização da terra das comunidades indígenas, suas práticas produtivas, são assim inseparáveis da história de relações políticas e cósmicas com seus coabitantes ou vizinhos: entidades espirituais, espécies animais e vegetais, outros povos, fazendeiros, bois… Todos esses recursos naturais (e sociais) são localizados em lugares específicos, e os sistemas topônimos e tradições etnohistóricas e míticas de cada povo registram o conhecimento de suas presenças, das técnicas, e dos protocolos diplomáticos necessários a sua utilização. A ocupação tradicional, portanto, não é outra coisa que uma ocupação fundada nessa memória em que se entrelaçam valores morais, conhecimento ecológico, regras sociais, que é por sua vez reiterada prática e narrativamente nas formas concretas e coletivas de habitação e uso.

Na medida em que as coletividades enfrentam as transformações do mundo contemporâneo, com a intensificação e diversificação de suas interações com as mais diversas instâncias, é claro que muda o conteúdo desta tradicionalidade se alterará. Mas é claro também que os únicos juízes legítimos do quão “tradicionais” são essas alterações só podem ser os próprios sujeitos, na medida em que a tradição nada mais é do que aquilo que os mantém como uma comunidade culturalmente diferenciada, com sua própria identidade, no que conhecem como seu território.

Permanência e mobilidade

Talvez o traço das territorialidades indígenas mais invisível e incompreensível do ponto de vista moderno e do Estado seja o das formas de mobilidade desses povos. Por isso, antes de mais nada, é preciso descartar definitivamente uma interpretação desinformada da noção de habitação permanente, que a identifica de um lado com o espaço específico das moradias (“aldeias”), e de outro a considera incompatível com o regime de mobilidade e deslocamento próprio aos modos indígenas de uso da terra.

Esses dois erros advém do desconhecimento da dinâmica espaço-temporal das formas sociais da vida indígena. A conversão de roças novas em aldeias, de aldeias habitadas em aldeias antigas (esvaziadas), e destas (com suas roças) em capoeiras e floresta secundária, forma um ciclo temporal que é espacialmente circular, além de circulante, já que as novas roças tendem a ser abertas nas capoeiras e florestas secundárias ‘deixadas para trás’ (o que não significa, dada a circularidade mesma, abandonadas). Essa dinâmica de mobilidade, enraizada não apenas em condicionantes ecológicas, mas também sistemas religiosos, sociais e cosmológicos, é parte integral das formas de organização desses povos, e muitas vezes se estende e reproduz, de maneiras sempre particulares, em condições contemporâneos marcadas por diversos tipos de restrição de direitos sobre essas terras e acesso a elas, incluindo processos de urbanização.

Esse modo de ocupação, hoje se sabe, não apenas dá testemunho da adaptação indígena aos ambientes em que vivem como da própria conformação destes ambientes, em suas características ecológicas, pelas práticas nativas de uso e manejo de recursos. Há hoje inúmeras evidências do caráter antropogênico de diversos tipos de paisagens, de formações pedológicas e florísticas na Amazônia. A extensão em que essas paisagens são antropogênicas, e em que sua biodiversidade foi criada pela intervenção humana (leia-se, indígena), ao longo de milênios de ocupação, ainda é objeto de debate, mas o fato de que muitos ecossistemas geralmente considerados como naturais foram alterados pelo manejo de populações indígenas é irrecusável, e está em acordo com o consenso entre biólogos e ecólogos de que “perturbações” no meio ambiente (como as derivadas da agricultura de toco ou queimadas praticadas por populações de baixa densidade) promovem aumento da biodiversidade[6].

Fica claro o infundado da tentativa de hierarquizar os critérios contidos no parágrafo primeiro do artigo 231 da para CF o reconhecimento da tradicionalidade em círculos concêntricos, como se os vínculos com a terra fossem mais sólidos no círculo da “habitação em carát

Categoria: Notícia
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