A rebeldia do Sul Global no debate sobre tributação

30/07/2024, às 14:33 | Tempo estimado de leitura: 6 min
Por Nathalie Beghin* para Carta Capital
Indignados com a soberba dos ricos, os países do Sul, liderados pela União Africana movem o debate tributário internacional da OCDE para a ONU
Foto: Diogo Zacarias/Ministério da Fazenda
Artigo publicado originalmente na Carta Capital

Anualmente, os países do Sul Global deixam de arrecadar bilhões de dólares em decorrência da evasão e elisão fiscal. As suas elites e as transnacionais do Norte drenam vultosos recursos que poderiam ser gastos no combate à fome, à pobreza e as desigualdades, assim como na realização dos direitos humanos. As soluções até então apresentadas pelos países ricos, especialmente por intermédio do G20 e da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), não beneficiam os mais pobres. Cansado de esperar em vão, o Sul Global se rebelou e se organizou na defesa da criação da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Cooperação Tributária Internacional (UNFCTC, na sua sigla em inglês), a COP Tributação.

Os países de baixa renda, que historicamente têm tido pouca ou nenhuma influência sobre as regras tributárias globais, continuam a ser os mais afetados pelo abuso fiscal global, estimado pela Tax Justice Network em U$ 480 bilhões ao ano. Ainda que a maioria das perdas fiscais anuais seja sofrida pelos países de renda mais alta (US$ 433 bilhões), essas perdas equivalem a 9% dos orçamentos de saúde pública de seus países; nos países de renda mais baixa as perdas (US$ 47 bilhões) correspondem à metade (49%) de seus orçamentos de saúde pública. Buscando alterar essa realidade, a OCDE, com apoio do G20, vem há cerca de 10 anos elaborando uma série de propostas de cooperação tributária internacional que visam conter os abusos fiscais.

Contudo, os resultados têm sido pífios, pois as sugestões em pouco ou nada beneficiam o Sul Global. O chamado Marco Inclusivo com seus Pilares 1 e 2 traz poucos resultados, pois não irá reduzir o abuso fiscal das grandes empresas de maneira expressiva e os benefícios para os países de baixa renda são altamente questionáveis. Ademais, o OCDE é um espaço pouco transparente e pouco inclusivo, pois todas as negociações acontecem somente em inglês à portas fechadas, sem tradução para qualquer outro idioma, e não há participação efetiva dos países não-membros e nem da sociedade civil.

O feitiço se tornou contra o feiticeiro.

Indignados com a soberba dos ricos, os países do Sul, liderados pela União Africana e com apoio da sociedade civil, resolveram agir. Se organizaram e atuaram para a criação de uma Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Cooperação Tributária Internacional, deslocando o debate da OCDE para a ONU, um espaço mais inclusivo, democrático e participativo. A resolução de criação da “COP Tributação” foi aprovada em finais de 2023 e agora estão sendo negociados os Termos de Referência da Convenção. Pego de surpresa, o Norte Global pouco pode fazer para impedir a rebeldia. Agora tenta atuar para minimizar os estragos com argumentos que beiram o ridículo: de um lado, alegam que a UNFCTC é complementar à OCDE, o que não é verdade, pois estão comprovadas a opacidade e a baixa equidade do Marco Inclusivo; de outro, defendem que as decisões da Convenção precisam ser tomadas por consenso, porque se for pelo voto, os países do Norte perdem.

Nos próximos dias e até meados de agosto acontecerá a segunda rodada de negociações dos Termos de Referência da Convenção, nas Nações Unidas. Representantes de várias organizações da sociedade civil de todo o mundo participaremos dos debates em Nova York defendendo regras inclusivas, justas e equitativas para a cooperação tributária internacional.

Há enorme expectativa de que o Brasil, sob a liderança de Lula, seja um indiscutível aliado das demandas do Sul Global. Espera-se que o país cerre fileiras com os países em desenvolvimento, atuando para fortalecer a Convenção, para que seja o lócus decisório multilateral privilegiado, no qual a participação global dos países e da sociedade civil, a transparência pública e as estruturas legais de defesa de direitos humanos assim como o conhecimento técnico da ONU podem proporcionar um fórum mais efetivo para garantir soluções tributárias mais justas e inclusivas.

* Nathalie Beghin, é do Colegiado de Gestão do Inesc e integrante da delegação da Aliança Global para a Justiça Fiscal (GATJ) nas negociações da UNFCTC.

Categoria: Artigo
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